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CURSOS DE ATUALIZAÇÃO GUIA DE PRÁTICA CLÍNICA EM TCC 2020 © Todos os direitos autorais desta obra são reservados e protegidos à Editora Sanar Ltda. pela Lei nº 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume ou qualquer parte deste livro, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, gravação, fotocópia ou outros), essas proibições aplicam-se também à editoração da obra, bem como às suas características gráficas, sem permissão expressa da Editora. Emergências Médicas na Odontologia Fernanda Fernandes Fabrício Sawczen Fabrício Sawczen Andre Cristophe Caio Vinicius Menezes Nunes Paulo Costa Lima Sandra de Quadros Uzeda Silvio Jose Albergaria da Silva Título | Editor | Projeto gráfico e diagramação| Capa | Revisor Ortográfico | Conselho Editorial | Editora Sanar S.A R. Alceu Amoroso Lima, 172 - Salvador Office & Pool, 3ro Andar - Caminho das Árvores CEP 41820-770, Salvador - BA Tel.: 0800 337 6262 atendimento@sanar.com www.sanarsaude.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo-SP) Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846 M845g Moretti, Sarah. Guia da Prática Clínica em TCC / Sarah Moretti e Fernanda Brito.– 1. ed.– Salvador, BA : Editora Sanar, 2020. 91 p.; il.. E-Book: PDF. ISBN 978-65-87930-39-8 1. Atualização. 2. Psicologia. 3. Técnicas Cognitivas. 4. Técnicas Comportamentais. I. Título. II. Assunto. III. Moretti, Sarah. IV.Brito, Fernanda. CDD 150 CDU 159.9 ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Psicologia. 2. Psicologia. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA MORETTI, Sarah; BRITO, Fernanda. Guia da Prática Clínica em TCC. 1. ed. Salvador, BA: Editora Sanar, 2020. EBook. ISBN 978-65-87930-39-8. AUTORA FERNANDA DE SOUZA BRITO Doutora em Psicologia pela Universida- de Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Terapia Cognitiva-Comportamen- tal pelo Centro de Psicoterapia Cogniti- vo Comportamental Wainer & Piccoloto (WP). Docente em Instituições de Ensino Superior de Psicologia desde 2012. SUMÁRIO PSICOTERAPIA COGNITIVO COMPORTAMENTAL 7 1. Histórico e Fundamentos 7 BASES FILOSÓFICAS E METODOLÓGICAS 15 2.1 Bases filosóficas 15 2.2 Bases metodológicas 18 PRINCÍPIOS DA TCC 20 3.1 Conceituação cognitiva dos casos: definições essenciais 21 3.2 Aliança terapêutica segura 25 3.3 Colaboração e participação ativa 27 3.4 Orientada a metas e focalizada em problemas 28 3.5 Ênfase no presente 29 3.6. Tempo de tratamento reduzido 29 3.7. Sessões estruturadas 29 3.8 Psicoeducativa 30 3.9. Enfatiza prevenção da recaída 30 3.10 Variedade de técnicas para modificar pensamento, humor e comportamento 31 ATENDIMENTO CLÍNICO E RELAÇÃO TERAPÊUTICA NA TCC 34 4.1 As sessões iniciais 35 4.2 As sessões intermediárias 35 4.3 As sessões finais 35 4.4 A estruturação da sessão 36 PENSAMENTOS AUTOMÁTICOS (PAS) 38 5.1 Erros típicos de pensamento / Distorções cognitivas 39 SUMÁRIO FUNDAMENTOS DO CONCEITO DE CRENÇAS 41 CRENÇAS INTERMEDIÁRIAS E CENTRAIS 46 INTER-RELAÇÃO DOS COMPORTAMENTOS COM EMOÇÕES E PENSAMENTOS 49 CONCEITUAÇÃO COGNITIVA: FUNÇÕES E DICAS 52 PLANEJAMENTO TERAPÊUTICO 55 10.1 Planejando as sessões iniciais 56 10.2 Planejando as sessões intermediárias 57 10.3 Planejando as sessões finais 57 IDENTIFICAÇÃO DE PENSAMENTOS AUTOMÁTICOS 59 AVALIAÇÃO E RESPOSTA AOS PENSAMENTOS AUTOMÁTICOS 62 REESTRUTURAÇÃO COGNITIVA 65 TÉCNICAS COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS I 69 14.1 Questionamento socrático 70 14.2 Questionamento / experimento comportamental 71 14.3 Escrever uma carta 72 14.4 Interrupção de pensamento 72 14.4 Relaxamento muscular progressivo 73 14.5 Respiração diafragmática 74 14.6 Cronograma de atividades diárias 74 SUMÁRIO TÉCNICAS COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS II 76 15.1 Solução de problemas 76 15.2 Vantagens e Desvantagens / Balança decisional 77 15.2 Role Play 77 15.3 Técnica da torta/pizza – gerenciamento de metas e responsabilidades 78 15.4 Lista de méritos 78 15.5 Cartão de enfrentamento 79 TÉCNICAS COGNITIVAS E COMPORTAMENTAIS III 80 16.1 Seta/Flecha descendente 80 16.2 Teste das previsões negativas 80 16.3 Revisão da forma como lidou com eventos negativos do passado 81 16.4 Preocupações produtivas x improdutivas 81 16.5 Máquina do tempo / Distanciamento 82 16.6 Como os outros lidaram com isso? 82 16.6 Ventilação escrita 83 PERSPECTIVAS ATUAIS EM TERAPIA COGNITIVA COMPORTAMENTAL I 84 17.1 Terapia do esquema – TE 84 17.2 Terapia comportamental dialética – DBT 85 17.3 Terapia de aceitação e compromisso – ACT 85 17.4 Terapia focada na compaixão – TFC 85 PERSPECTIVAS ATUAIS EM TERAPIA COGNITIVA COMPORTAMENTAL II 86 18.1 Terapia cognitiva processual – TCP 86 18.2 Terapia de modificação do viés atencional 86 18.3 Terapia metacognitiva – TMC 87 18.4 Terapia cognitiva comportamental baseada em mindfulness – MBCT 87 REFERÊNCIAS 88 7Guia de Prática Clínica em TCC 1Psicoterapia Cognitivo Comportamental 1. HISTÓRICO E FUNDAMENTOS Desde a década de 60, a abordagem cognitivo comportamental tem tido grande destaque como campo de pesquisa e intervenção. Para compreen- der sua amplitude, é fundamental ter clareza sobre seu desenvolvimento histórico. As abordagens cognitivas nasceram buscando garantir o status científico da psicologia por meio da coleta de dados empíricos e pesquisas sistemáticas, o que reflete ainda hoje nas práticas e na expressiva quantida- de de artigos sobre a eficácia de suas intervenções1,2. A psicoterapia cognitiva comportamental foi a primeira forma de psicoterapia baseada em evidên- cias e testada com critérios mais rigorosos, sendo atualmente considerada o padrão-ouro nesse campo, levando em conta todo o seu progressivo pro- grama de pesquisas3. O esforço por cientificidade das abordagens cognitivas comportamentais favorece a comprovação da sua efetividade para o tratamento de uma gran- de variedade de transtornos psicológicos4. No entanto, uma teoria possui utilidade quando é capaz de produzir novas hipóteses e pesquisas gerando mais conhecimentos empíricos sobre o fenômeno estudado5. Nesse sentido, compreender sua evolução ao longo do tempo e seu status atual tem o intuito de ampliar reflexões sobre o futuro da psicologia, em es- pecial da psicoterapia. Para tanto, inicialmente será apresentada uma bre- ve retrospectiva do surgimento da terapia cognitivo comportamental, ini- ciando pelo paradigma behaviorista de compreensão dos comportamentos Desligado o fio que ata o presente à experiência passada, como se voltar ao futuro? Maria Rita Kehl 8Guia de Prática Clínica em TCC humanos, seguido pela revolução cognitiva, em especial com os trabalhos pioneiros de Beck e Ellis e, por fim, apresentando hoje o que se entende por terceira onda das terapias cognitivas comportamentais6. 1.1 CONTEXTO HISTÓRICO DE SURGIMENTO DA TCC O surgimento da Terapia Cognitiva Comportamental é fortemente creditado ao trabalho de Beck sobre o papel das cognições na depressão na década de 60, embora muitos pesquisadores e psicólogos tenham contribuído para culminar no que historicamente ficou conhecido como revolução cognitiva4. Em geral, os textos apresentam essa evolução histórica descrevendo pri- meira, segunda e terceira onda das terapias cognitivo comportamentais6. Observa-se ao longo do tempo uma mudança no uso do termo terapia cog- nitiva comportamental, atualmente apresentado no plural com grande fre- quência, uma vez que os desdobramentos históricos atingiram ampla diver- sidade de modelos teóricos e de intervenção. 1.1.1 PRIMEIRA ONDA DAS TERAPIAS COGNITIVO COMPORTAMENTAIS A primeira onda das terapias cognitivo compor- tamentais é caracterizada pelo modelo compor- tamental (behaviorista) derivado dos trabalhos do fisiologista Pavlov (1849-1936) sobre condicio- namento respondente entre cães. Posteriormen- te, Watson (1878-1958) fundou o behaviorismo metodológico, buscando pautar seus trabalhos nos comportamentos diretamente observáveis e verificando osprincípios do condicionamento respondente entre humanos. Segundo Watson, a psicologia deveria ser definida como ciência geral do comportamento e essa ciência do comportamento não usaria nenhum dos termos tradicionais referentes à mente e à consciência, evitaria a subjetividade da introspecção, e estudaria apenas o comportamento objetivamente observável7. Nesse pri- meiro momento, o comportamentalismo priorizava técnicas de exposição para modificação de comportamentos6. Condicionamento respondente: aprendizagem de um novoa comportamento a partir da associação de estímulos. 9Guia de Prática Clínica em TCC PONTO DE FIXAÇÃO Técnicas de exposição demandam que o cliente imagine (exposição imaginada) ou confronte realmente (exposição ao vivo) estímulos temidos. Na sequência, Skinner (1904-1990) desenvolve o behaviorismo radical. In- fluenciado pelo funcionalismo e pragmatismo de James (1842-1910) e pela teoria evolucionista de Darwin (1809-1882), Skinner buscou investigar rela- ções funcionais entre o comportamento humano e as contingências que o controlam. Para Skinner, o comportamento deveria ser compreendido den- tro de um contexto que engloba desde a história da espécie (filogênese), da pessoa (ontogênese) e da cultura até as relações funcionais entre pessoa e ambiente, enfatizando o controle externo do comportamento6. Skinner propõe o behaviorismo radical como uma filosofia da ciência que enaltece o poder das circunstâncias/contingências. Dessa maneira, assim como a teoria darwiniana desafiou a perspectiva criacionista sobre o mun- do, o behaviorismo radical desafiou a noção de livre-arbítrio, adotando uma postura monista, naturalista e antimentalista nas explicações sobre o com- portamento humano7. PONTO DE FIXAÇÃO Monismo: é aquilo que atribui unidade ou singularidade a um conceito. No caso, ao comportamento é atribuída uma unidade, na medida em que ele é determinado por circunstâncias externas. Logo, o behaviorismo rejeita uma explicação dualista sobre o comportamento, rejeitando a noção de mente como um agente causal dos comportamentos7. 10Guia de Prática Clínica em TCC O conceito de condicionamento operante, pro- posto pelo behaviorismo radical, representa um processo pelo qual consequências selecionam comportamentos que serão aprendidos, man- tidos ou não, durante a vida da pessoa7. Logo, o comportamento operante é um comportamento em que a resposta é controlada por suas conse- quências. Diferente do comportamento respon- dente, que é controlado por eventos ambientais anteriores ao comportamento. 1.1.2 SEGUNDA ONDA DAS TERAPIAS COGNITIVO COMPORTAMENTAIS A segunda onda das terapias cognitivo comportamentais foi iniciada pelo psicólogo behaviorista Tolman (1886-1959) que considerava muito reducio- nista a explicação sobre o comportamento humano apenas a partir das re- lações entre estímulos e respostas. Tolman propôs que a aprendizagem não resultava apenas de tentativas e erros ou ocorria de forma aleatória, ele jul- gava importante considerá-la como dirigida a objetivos, daí sua perspectiva teórica ter ficado conhecida como behaviorismo intencional6. O início da década de 60 é marcado pela emergência de uma revolução cognitiva: termo utilizado para se referir a um movimento científico de sur- gimento das ciências cognitivas, que agrupou diferentes disciplinas, desde a psicologia, linguística, neurociências, até a inteligência artificial, entre ou- tras4. Na psicologia, as pesquisas de Bandura (nascido em 1925 e atualmente com 95 anos), sobre aprendizagem vicária, crenças de autoeficácia e modelos de processamento de informações, lançavam questionamentos sobre o behaviorismo que adotava uma postura não mediacional para explicar os comportamentos humanos8. Bandura foi um crítico do modelo operante, propondo uma compreensão da aprendizagem sem tentativa (vicária), co- nhecida como “modelação”, que ocorre pela observação de um modelo, sem a necessária reprodução do comportamento. Por meio de experimen- tos, mostrou que os reforços percebidos eram mais efetivos do que os reais. Em outras palavras, as consequências eram mediadas pelas cognições. Comportamento operante é controlado pelos eventos ambientais que ocorrem após a resposta. 11Guia de Prática Clínica em TCC Desse modo, Bandura apresentou limitações de abordagens estritamente comportamentais quando, por exemplo, descreveu o conceito de crença autoeficácia, destacando que este se- ria um importante aspecto para compreender o comportamento. Diante deste cenário, um con- junto representativo de teóricos e terapeutas pas- saram a se identificar com teorias que ressaltam o papel mediador da cognição sobre o comporta- mento humano2. A exemplo disso, Mahoney publicou em 1974 um livro inti- tulado Cognition and Behavior Modification, defendendo a cognição como mediadora do comportamento8. Nesse contexto, Beck (nascido em 1921 e atualmente com 99 anos) propôs a Psicoterapia Cognitiva como um modelo terapêutico eficaz para o trata- mento da depressão. Insatisfeito com a forma como a psicanálise concebia e tratava este transtorno, Beck conduziu pesquisas sistemáticas e constatou que os sonhos das pessoas deprimidas mostravam sensações de fracasso, perdas e derrota; diferente dos sentimentos de raiva e hostilidade direcio- nados a si mesmas (uma espécie de masoquismo ou necessidade de sofrer) descritos pela psicanálise4. Diante disso, concluiu que as pessoas deprimi- das realizavam avaliações tendenciosas das situações, reflexo de uma visão negativa na representação de si, dos outros e do mundo. Tal representação posteriormente descrita como tríade cognitiva foi aplicada à compreensão de outros transtornos, ampliando o escopo de conhecimentos e interven- ções da psicoterapia cognitiva. A tríade cognitiva é composta por três padrões cognitivos na forma como o indivíduo vê a si mesmo, o mundo e o futuro, como pode ser observado na figura 1. Figura 1 - Tríade Cognitiva Visão de si Visão do futuro Visão do outro/mundo Fonte: elaborado pela autora. Crença de autoeficácia: grau de percepção e convicção que uma pessoa tem de realizar algo de modo bem- sucedido. 12Guia de Prática Clínica em TCC PRATICANDO A TEORIA Leia o trecho a seguir do poema de Drummond: “MÃO SUJA Minha mão está suja. Preciso cortá-la. Não adianta lavar. A água está podre. Nem ensaboar. O sabão é ruim. A mão está suja, suja há muitos anos.” Nota-se que o poema reflete a tríade cognitiva por meio de uma grande conexão entre a forma como a pessoa se vê (“minha mão está suja”); a forma como vê o mundo (“a água está podre” e “o sabão é ruim”); e a forma como vê o futuro (“Não adianta lavar”). No que se refere às intervenções da psicoterapia cognitiva para o tratamento da depressão e de outros transtornos, Beck estabeleceu como foco a avalia- ção e modificação das cognições distorcidas para avaliações mais realistas e adaptativas. Para tanto propôs que a abordagem cognitiva se diferenciasse da psicanálise4, conforme se observa no quadro 1. Quadro 1 - Diferenças básicas entre a Psicoterapia Cognitiva e a Psicanalítica Psicoterapia Cognitiva Psicanálise Foco em problemas presentes, atuais Foco em traumas passados Foco em experiências psicológicas acessíveis Foco nas experiências inconscientes Fonte: elaborado pela autora. De acordo com Beck e Alford9, a psicoterapia cognitiva fornece uma estru- tura teórica unificadora dentro do qual as técnicas clínicas de outras abor- dagens psicoterapêuticas estabelecidas e validadas por meio de pesqui- sas sistemáticas, observações clínicas e estudos de sua eficácia, podem ser apropriadamente incorporadas. Nesse sentido, outros teóricos cognitivistas assumem que a natureza e a função do processamento de informações, ou 13Guia de Prática Clínica em TCC seja, da atribuição de significados, constituem o elemento central para com- preender comportamentos desadaptativos. Logo, atribuem grande impor- tância às cogniçõeshumanas. PONTO DE FIXAÇÃO Cognição: função que está relacionada a deduções sobre experiências e sobre a ocorrência e controle dos eventos futuros. Envolve o processo de “identificar e prever relações complexas entre eventos, de modo a facilitar a adaptação a ambientes passíveis de mudança”9. Além dos trabalhos de Beck, outros teóricos contribuíram para a chamada revolução cognitiva, por exemplo: Ellis, Meichenbaum e Mahoney4. No final da década de 50, Ellis propôs a terapia racional emotiva, cuja intervenção estava pautada no modelo ABC, apresentado na figura 2, que favorecia a identificação e modificação de crenças irracionais por meio de questiona- mentos, desafios, disputas e debates lógico-empíricos. Figura 2 - Modelo ABC de Ellis A Situação ou evento ativador B Crenças C Consequências: - Emocionais - Fisiológicas - Comportamentais Fonte: Elaborado pela autora4. Por volta da década de 70, Meichenbaum desen- volveu técnicas cognitivas para modificação de comportamentos disfuncionais10. Por exemplo, o treino de autoinstrução objetiva modificar o di- álogo interno da pessoa para facilitar o enfren- tamento de uma determinada tarefa, situação ou problema. E o treino de inoculação do estres- se que visa proporcionar às pessoas uma defesa ativa frente a situações potencialmente estres- Autoinstrução: autoverbalização, conversa que a pessoa estabelece com ela mesma. 14Guia de Prática Clínica em TCC santes, incentivando a autorregulação de pensamentos, comportamentos e sentimentos que favoreçam respostas adaptativas, habilitando-as para a resolução de problemas e oferecendo práticas de ensaio imaginado e/ou ao vivo para ampliar a confiança do cliente na utilização de seus repertórios de enfrentamento10. 1.1.3 TERCEIRA ONDA DAS TERAPIAS COGNITIVO COMPORTAMENTAIS Por volta dos anos 2000, à medida que as ciências cognitivas foram se de- senvolvendo, de forma empírica e científica, buscando validar seus pres- supostos teóricos, foi surgindo um conjunto diverso de teorias. Tais teorias também são conhecidas como de terceira geração ou contextuais, pois se dispõem a serem mais sensíveis ao contexto e as funções dos fenômenos psicológicos6. Desse modo, concebem o ser humano como resultado de um processo de produção social e essa diversidade teórica representa a tentati- va de dar conta desse sujeito que se transforma continuamente, dando ên- fase às estratégias de mudanças experienciais e de contexto. Algumas das principais terapias de terceira onda são: ▶ Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness11 ▶ Terapia Comportamental Dialética (TCD)12 ▶ Psicoterapia Analítica Funcional (PAF)13 ▶ Terapia de Aceitação e Compromisso14 Assim, os diferentes modelos de terapia de terceira onda destacam a impor- tância da aceitação das experiências e das técnicas de mindfulness, e, com- parativamente aos modelos teóricos de segunda onda, atribuem menor ên- fase à reestruturação cognitiva. Conhecer o desenvolvimento histórico de uma abordagem é fundamental para a compreensão de seus pressupostos teóricos e de seus avanços. A terceira onda da terapia cognitivo-comportamental, portanto, segue em pleno desenvolvimento, numa linha de pensamento complexa, flexível e influenciada por múltiplas correntes filosóficas e psicológicas6. Assim, para além dos avanços teóricos, é também fundamental conhecer as bases filo- sóficas e metodológicas das terapias cognitivo comportamentais, apresen- tadas no capítulo seguinte. 15Guia de Prática Clínica em TCC Durante séculos, artistas, filósofos e cientistas formularam e reformularam questões relacionadas ao ser humano, buscando compreender suas emo- ções, pensamentos e comportamentos. Consequentemente, ao entender como funcionam tais aspectos, surgem técnicas e meios para modificá-los. Dessa maneira, neste capítulo foram analisadas as bases filosóficas e meto- dológicas da terapia cognitiva comportamental (TCC). A terapia cognitiva comportamental tem como principal pressuposto o fato de que as pessoas podem mudar comportamentos e emoções, modifican- do a interpretação que fazem das situações. Logo, não é a situação em si que causa sofrimento às pessoas, mas a interpretação que as pessoas fazem da situação. Tal constatação tem raízes na filosofia grega e em tradições orien- tais que serão apresentadas a seguir. 2.1 BASES FILOSÓFICAS O estoicismo foi um movimento filosófico grego que pregava que as emoções destrutivas resultavam de erros de julgamento, do qual o filósofo Epitecto fez parte. Ele lançou uma das mais famosas frases entre os terapeutas cognitivos, afirmando que não sofremos pelos fatos, mas pela interpretação que fazemos deles10. Ou seja, uma mesma situação pode impactar de modo diferente as pessoas, assim como uma mesma situação pode ser vivenciada de diferentes maneiras pela mesma pessoa em momentos diversos de sua vida. 2Bases filosóficas e metodológicas O que perturba o ser humano não são os fatos em si, mas a interpretação que ele faz dos fatos Epitecto, século 1 d.C. 16Guia de Prática Clínica em TCC Dois outros filósofos gregos influenciaram o pensamento moderno com relação à forma de investigar as ideias15. Platão defendia o racionalismo, dizendo que o caminho para o conhecimento se dá pela análise lógica. Já Aristóteles, em defesa do empirismo, argumentava que o conhecimento é adquirido por meio das evidências empíricas, ou seja, pela experiência e ob- servação. Nesse sentido, Platão propôs uma tese; Aristóteles, uma antítese. De acordo com Sternberg15, as teorias racionalistas sem qualquer conexão com observações podem não ser válidas, mas grandes quantidades de da- dos decorrentes de observação sem uma estrutura teórica que as organize podem não ter relevância. Desse modo, o avanço das ideias pressupõe uma dialética: processo de desenvolvimento em que as ideias evoluem com o passar do tempo por meio de um padrão de transformações e pode-se che- gar a uma síntese, na qual os aspectos mais críveis da tese e da antítese se integram. Atualmente, considera-se que o desenvolvimento científico da terapia cog- nitiva comportamental é fortemente ligado ao racionalismo crítico, uma fi- losofia epistemológica, proposta por Popper, que compartilha suas raízes filosóficas com as ciências naturais16. Racionalismo crítico: o conhecimento só pode ser obtido tentando falsear hipóteses derivadas de teorias. Com base nessa corrente filosófica, o conhecimento é objetivo e, assim, mos- tra propriedades e consequências que não são redutíveis ao que se prefere que a verdade seja16. Seguindo este mesmo princípio, na terapia cognitiva comportamental as pessoas são incentivadas a gerar hipóteses com base em suas crenças (teorias) sobre o mundo, sobre elas próprias e seu futuro. Combinado ao questionamento socrático, no qual uma série de perguntas é feita para coletar informações que sustentam ou não a ideia da pessoa sobre algo e ajudá-la a determinar suas crenças subjacentes. Por meio de um processo caracterizado como empirismo colaborativo os clientes falsi- ficam hipóteses elaboradas para testar crenças disfuncionais. Eles são então encorajados a revisar seu sistema de crenças, o que resulta em redução do sofrimento emocional. 17Guia de Prática Clínica em TCC Questionamento socrático: conjunto de perguntas simples, porém perspicazes para revelar contradições presentes na forma de pensar de uma pessoa, ajudando-a a formular novos conceitos e opiniões. Nota-se que os pressupostos filosóficos ocidentais da terapia cognitiva descritos até o momento exerceram maior impacto na segunda onda das terapias cognitivas comportamentais, que atribuiu maior ênfase à reestru- turação cognitiva. No entanto, observa-se também que a terapia cognitiva comportamental não está especialmente vinculada a uma tradição filosófi- ca específica16. Nesse sentido, as filosofias orientais também exerceram forte influência sobre a terapia cognitiva, em especial sobre as terapiasde terceira onda, ao enfatizarem a aceitação como um primeiro passo para mudanças significativas nas vidas das pessoas10. O Budismo, nesse sentido, parte da constatação do sofrimento como a condição fundamental de toda existência e afirma a possibilidade de su- perá-lo por meio da obtenção de um estado de bem-aventurança integral, paz e plenitude. Em uma perspectiva próxima, o Taoísmo, tradição filosófica e religiosa milenar originária da China, também postulava a influência das ideias sobre as emoções: “Toma consciência dos teus pensamentos, pois resultam em palavras. Toma consciência das tuas palavras, pois resultam em ações. Toma consci- ência das tuas ações, pois resultam em hábitos. Toma consciência dos teus hábitos, pois resultam em caráter. Toma consciência do teu caráter, pois resultará no teu destino.” Lao-Tsé Aproveitando alguns fundamentos das filosofias orientais, as terapias de ter- ceira onda fundiram técnicas e teorias comportamentais e cognitivas, dan- do maior abertura às tradições clínicas antigas e enfatizando: mudança con- textual, função ao invés da forma, e construção de repertórios de tratamento flexíveis e efetivos6. Diante disso, considera-se ainda que as terapias de ter- ceira onda atualmente estão sob influência de um movimento da filosofia da ciência conhecido como teoria da complexidade. “Nossa serenidade não depende das situações, mas de nossa reação diante delas. Portanto, ao intervirmos no aqui e agora, torna-se possível provocar mudanças em nosso futuro.” Buda, 563 a.C. 18Guia de Prática Clínica em TCC “O homem é visto como homo complexus, capaz de se auto-organizar e de estabelecer relações com o outro, em um processo de auto-eco-organiza- ção.”6 Assim, atualmente são concebidas as terapias cognitivas comportamentais numa linha de pensamento complexa, flexível, em movimento e influencia- da por diversas correntes filosóficas e psicológicas. Em consonância com esta complexidade, a TCC intenciona promover diálogo entre ciências, para que seus conhecimentos alcancem este homem complexo, que também se movimenta. Tal concepção se aproxima dos postulados pós-modernos de Kuhn que revelam a necessidade de identificar as mudanças de pensamen- to para promover desenvolvimento científico1. 2.2 BASES METODOLÓGICAS Em termos metodológicos, a TCC herda das abordagens comportamentais técnicas derivadas dos princípios de aprendizagem, condicionamento res- pondente e operante, tais como: exposição, dessensibilização sistemática, relaxamento, entre outras. Da terapia cognitiva, as técnicas baseiam-se em pressupostos cognitivos para compreensão do ser humano, ou seja, enfati- zam o papel das cognições na gênese e desenvolvimento dos transtornos mentais4. Assim, utiliza técnicas cognitivas como o questionamento socráti- co, a reestruturação cognitiva, entre outras. A distinção entre técnicas cognitivas e comportamentais é, para alguns au- tores, apenas didática, uma vez que muitas afetam tanto as cognições quan- to os comportamentos do cliente4. A figura 3 apresenta os princípios básicos da terapia cognitiva, tal como Beck a propôs4,17. Figura 3 - Fundamentos básicos da terapia cognitiva proposta por Beck Hipótese mediacional Os processos cognitivos gerenciam os comportamentos e as emoções Hipótese de acesso As cognições podem ser monitoradas e alteradas Hipótese de mudança Mudanças comportamentais desejadas são obtidas a partir de alterações cognitivas subjacentes Fonte: elaborado pela autora4,17. 19Guia de Prática Clínica em TCC Desse modo, a TCC incorpora conceitos e técnicas de duas abordagens psicológicas: a terapia com- portamental e a terapia cognitiva. Entretanto, é importante destacar que para ser uma aborda- gem cognitiva é necessário incluir o papel media- dor da cognição como componente importante do plano de tratamento. Logo, a TCC mesmo uti- lizando técnicas comportamentais, compreende os prejuízos ao bem-estar geral das pessoas a par- tir do modelo cognitivo. O modelo cognitivo, representado na figura 4, assu- me que o modo como as pessoas se sentem e se comportam está relaciona- do ao modo como elas interpretam e pensam sobre as coisas e situações4. Figura 4 - O modelo cognitivo Situação / Evento Emoção Comportamento Avaliação cognitiva/ pensamento Fonte: elaborado pela autora. PRATICANDO A TEORIA Imagine a seguinte situação: faltou energia/luz numa escola no período noturno. Eduardo pensa: “é provável que tenha sido uma queda de energia passageira”. Mônica pensa: “e se a energia não voltar, como vou fazer para voltar pra casa?”. Será que Eduardo e Mônica teriam as mesmas emoções e comportamentos? Distorções cognitivas: erros de pensamento associados a emoções e comportamentos disfuncionais. 20Guia de Prática Clínica em TCC Beck, ao desenvolver a TCC, preocupou-se em construir uma base teórica coerente antes mesmo do desenvolvimento das propostas de intervenção e tratamento. Ele visou à construção de uma teoria abrangente de psicopa- tologia que descrevesse a abordagem de tratamento com clareza suficiente para possibilitar a investigação de seu suporte científico. Com isso, poderia testar a teoria e a eficácia das intervenções terapêuticas4. Nesse sentido, a TCC alcançou um número expressivo de estudos sobre di- ferentes aplicações terapêuticas, no entanto possui princípios teóricos es- senciais. Este capítulo se dedica a descrever os dez princípios essenciais da TCC, bem como descrever habilidades necessárias ao terapeuta cognitivo comportamental. No que se refere às habilidades e competências, muitos autores têm desta- cado a importância de se obter não somente conhecimentos declarativos e procedurais, mas principalmente competências reflexivas18,19. Essas últi- mas descritas como a capacidade que o terapeuta desenvolve para integrar mais automaticamente novos dados à compreensão cognitiva que possui do cliente, bem como aperfeiçoar habilidades para testar hipóteses sobre o cliente e para dar maior variabilidade ao modelo mais básico da TCC19. 3Princípios da TCC Ser empático é ver o mundo com os olhos do outro e não ver o nosso mundo refletido nos olhos dele. Carl Rogers 21Guia de Prática Clínica em TCC 3.1 CONCEITUAÇÃO COGNITIVA DOS CASOS: DEFINIÇÕES ESSENCIAIS O primeiro princípio central da TCC é estabelecer uma completa e adequada compreensão do caso em termos cognitivos; o que pressupõe compreender a tríade cognitiva: a visão que a pessoa tem de si, dos outros e do mundo. A conceituação cognitiva é uma técnica de compreensão do caso e de adesão ao tratamento por parte do cliente. Significa compreender como ele funcio- na e, a partir disso, propor intervenções eficazes20. A conceituação cognitiva também pode ser denominada de conceitualiza- ção cognitiva, formulação do caso ou enquadre cognitivo. Segundo Pereira e Rangé10, é a habilidade clínica mais importante, pois visa construir um mapa de entendimento sobre como o cliente se estruturou para sobreviver e como se protegeu de suas crenças negativas e da adversidade do ambiente. A conceituação envolve compreender os aspectos apresentados na figura 5. Figura 5 - Conceituação cognitiva Dificuldades, experiências do cliente Teoria e pesquisa da TCC Conceituação cognitiva Princípios-chave: - Da descrição à explanação do problema - Empirismo colaborativo - Incorporar pontos fortes e resiliência Fonte: elaborado pela autora20. Desse modo, a conceituação é construída considerando uma compreensão integrada das experiências do cliente e dos pressupostos teóricos e empíri- cos da TCC. Quanto às experiências do cliente, é importante compreender seu diagnóstico clínico; problemas atuais e fatores estressores precipitantes; predisposições genéticas e familiares20. E, para analisar seu processamento cognitivo, é imprescindível a compreensão dos conceitos básicos da TCC, 22Guia de Prática Clínica em TCC tais como: pensamentos automáticos, crenças intermediárias,estratégias compensatórias e crenças centrais. 3.1.1 PENSAMENTOS AUTOMÁTICOS (PAS) O nível de processamento cognitivo mais básico/superficial e facilmente identificável pelo cliente é o pensamento automático10. São pensamentos que costumam ocorrer de modo rápido ou automático diante da avaliação que as pessoas fazem de seus eventos de vida. Os PAs correspondem a um tipo de processamento das informações subjacente ou paralelo ao processa- mento consciente, sob a forma de uma primeira interpretação imediata de qualquer situação. De acordo com Wright, Basco e Thase21, “embora possamos estar sublimi- narmente conscientes da presença de pensamentos automáticos, normal- mente essas cognições não estão sujeitas à análise racional cuidadosa” (p.19). Sendo assim, os PAs são caracterizados como espontâneos, concisos, recor- rentes e, portanto, não se costuma questionar sua veracidade e utilidade. Desse modo, a maioria das pessoas precisa de treinamento para monitorar e identificar seus PAs, que, em geral, refletem distorções cognitivas e são acompanhados de forte emoção negativa21. 3.1.2 ESQUEMAS COGNITIVOS Abaixo do nível de processamento cognitivo dos pensamentos automáticos, existem os esquemas que são mais profundos e enraizados. Esquemas são princípios mais duradouros de pensamento que as pessoas desenvolvem para organizar cognitivamente grandes quantidades de informações com as quais se deparam a cada dia e para tomar decisões oportunas e apro- priadas20. Ou seja, as pessoas utilizam esquemas como uma forma de lidar com o mundo, a partir de grandes categorias. Logo, o esquema é a estrutura cognitiva que mantém o conteúdo (crenças) armazenado e que organiza as experiências. Na TCC, interessam dois tipos de conteúdo dos esquemas: as crenças intermediárias e as centrais. CRENÇAS INTERMEDIÁRIAS OU CRENÇAS-REGRA: São regras ou pressupostos que oferecem apoio e estão relacionadas às crenças centrais. É um nível de processamento cognitivo intermediário que se apresenta em forma de condições inflexíveis (“se isso, então aquilo”) ou regras taxativas (“deveria”) que protegem as pessoas da ativação dolorosa de suas crenças centrais10. As crenças intermediárias cumprem a função de operacionalizar as crenças centrais. 23Guia de Prática Clínica em TCC CRENÇAS CENTRAIS OU NUCLEARES: São mais rígidas e profundas, em geral globais, excessivamente generali- záveis e absolutistas, pois se relacionam à imagem que a pessoa construiu de si, dos outros e do mundo desde muito cedo na vida. Nesse sentido, elas consistem em um acúmulo de vivências e aprendizagens que a pessoa ad- quire e mantém na convivência com outras pessoas significativas20. Por se- rem mais profundas, são mais difíceis de ser acessadas e modificadas10. As crenças centrais não são necessariamente disfuncionais, mas a sua forma de ativação pode se tornar disfuncional em alguns casos, quando uma crença é ativada de modo não condizente com o contexto e com as evidências22. Em geral, as pessoas utilizam estratégias compensatórias para evitar o con- tato com suas crenças centrais e pressupostos que aliviam seu sofrimento de modo momentâneo, mas, a longo prazo, reforçam e pioram as crenças disfuncionais4. Tais estratégias podem ser mecanismos de evitação e com- portamentos de busca de segurança que acabam retroalimentando o siste- ma de ativação disfuncional de crenças. Praticando a teoria: Escute a música de Eduardo e Mônica (Legião Urba- na), considere o caso abaixo e, em seguida, complete o diagrama de con- ceituação cognitiva apresentado na Figura 6. Caso 1: Eduardo. Atualmente com 32 anos. Procurou atendimento com quei- xas de ansiedade. Chegou ao consultório extremamente abatido, como se estivesse há dias sem dormir. Relata estar se sentido muito sobrecarrega- do no trabalho e, apesar de estar de férias no momento, procurou terapia, pois não consegue relaxar. Relata amar a sua esposa, mas sente que ela o responsabiliza por tudo de ruim que acontece com a família. Diz, inclusive, que como o filho deles ficou em recuperação na escola, e eles não poderão viajar nas férias, Mônica, sua esposa, reclama com ele e diz: “a gente não vai curtir por culpa sua! Esse menino puxou a você! Não estuda!”. Ele tem se entristecido com esses comentários da esposa, mas relata “deixar para lá”, para não virar uma briga maior ainda. Diz que sempre fez de tudo pelo relacionamento e pela família, começando a trabalhar muito cedo e não se sente valorizado e reconhecido. Caso 2: Mônica. Atualmente com 40 anos. Procurou atendimento psicoló- gico, pois tem se sentido cada vez mais tentada a se automedicar. Não chega a fazê-lo, apesar de sua facilidade de acesso a medicamentos (ela é médica), mas o pensamento de usar medicamentos para sentir alívio e bem-estar ocorre várias vezes ao longo do dia e isso a deixa angustiada. Ela diz: “não posso perder o controle, fiz isso várias vezes ao longo da minha 24Guia de Prática Clínica em TCC juventude.”. Atualmente, evita todo e qualquer tipo de bebida e outras dro- gas. Mas as medicações acessíveis fazem com que ela se sinta tentada a usá-las e isso a perturba. Considera que seu relacionamento com Eduardo é muito bom, é estável, que eles têm dois lindos filhos e sente medo de pôr tudo a perder por receio de ter recaídas quanto ao uso de substâncias. Em- bora considere seu relacionamento com Eduardo muito bom, sente que ela o “estragou”, pois diz ter apresentado a ele coisas muito diferentes ao que ele estava acostumado, inclusive a bebidas. E sente que ele a culpa por isso. Figura 6 - Diagrama de Conceituação Cognitiva Dados relevantes da história Crenças Centrais Crenças intermediárias Estratégias compensatórias Situação Pensamento automático Significado do PA Emoção Comportamento Fonte: Elaborado pela autora, adaptado de Knap e Beck4. 25Guia de Prática Clínica em TCC 3.1.3 PRINCÍPIOS-CHAVE DA CONCEITUAÇÃO COGNITIVA Uma vez tendo compreendido os conceitos básicos do modelo cognitivo, a conceituação cognitiva é elaborada e nesse sentido o terapeuta segue al- guns princípios básicos: da descrição à explanação do problema apresenta- do pelo cliente, o empirismo colaborativo e a incorporação de pontos fortes e resiliência do cliente20. Inicialmente, se busca uma adequada compreensão do problema apresen- tado pelo cliente, de modo detalhado, para a qual se pode analisar, em ter- mos históricos, fatores que predispuseram a pessoa a apresentar aquele tipo de dificuldade. Em seguida, em nível mais explicativo, busca-se entender quais fatores estão contribuindo para a manutenção do problema. Toda essa análise é feita considerando o empirismo colaborativo, que en- volve um compartilhamento de conhecimentos entre cliente e terapeuta, no qual o cliente contribui informando ao terapeuta os detalhes sobre seu problema e o terapeuta contribui psicoeducando o cliente em relação ao modelo cognitivo e demais aspectos teóricos e empíricos da TCC. Por fim, compreendidas as dificuldades apresentadas pelo cliente, alguns autores20,23 defendem que se incorporem à conceituação cognitiva os recur- sos que o cliente possui, seus pontos fortes e de que modo ele tem sido resiliente diante da vida. Ao enfatizar tais aspectos, pode-se ampliar os resul- tados da terapia, aliviando o sofrimento, melhorando a qualidade de vida e fortalecendo tanto a capacidade do cliente para lidar com as adversidades futuras quanto à aliança terapêutica23. A aliança terapêutica segura é o se- gundo princípio básico da TCC e será descrita a seguir. 3.2 ALIANÇA TERAPÊUTICA SEGURA A TCC está pautada principalmente na aliança terapêutica, que consiste em desenvolver no cliente um senso de cooperação e confiança. Na construção dessa aliança são fundamentais a empatia, afeto, autenticidade e o alívio dos sintomas. Para isto, faz-se necessário que o terapeuta compreenda o cliente como ativo e responsável pelo seu próprio processo de mudança. Por si, uma aliança terapêutica segura já é consideradapor muitos teóricos e profissionais como um poderoso instrumento de mudança. Destaca-se que questões do cliente podem interferir numa relação terapêutica sólida e em- pática24, como pode ser observado no quadro 2. 26Guia de Prática Clínica em TCC Quadro 2 - Fatores do cliente que podem interferir na aliança terapêutica segura Pensamentos sobre seu fracasso na terapia Pensamentos sobre a influência de sua mudança sobre os outros Carência de habilidades para cooperar Anseios em relação ao “novo eu” Fraca socialização ao modelo terapêutico Falta de motivação Ganhos secundários da manutenção de seu padrão disfuncional Reduzido controle dos impulsos e/ou excesso de rigidez Discordância cliente-terapeuta quanto aos objetivos do tratamento Fonte: elaborado pela autora24. Para cada um desses desafios a construção de uma aliança terapêutica se- gura é fundamental que o terapeuta seja empático, colocando-se no lugar do cliente, buscando intuir o que ele está sentindo e pensando, sendo, ao mesmo tempo, capaz de manter a objetividade para discernir possíveis dis- torções de pensamento ou comportamentos desadaptativos21. Desse modo, a empatia deve estar aliada à autenticidade, que representa a capacidade de se comunicar de uma maneira honesta, natural e emocionalmente co- nectada ao mostrarem aos clientes que entendem a situação apresentada por eles. “O terapeuta autêntico é diplomático ao dar feedback construtivo aos pacientes, mas não tenta esconder a verdade.” (p.24)21. Praticando a teoria: é importante considerar os momentos adequados para fazer comentários empáticos para o cliente. Nesse caso, o terapeuta pode se perguntar: ▶ “Entendo bem as circunstâncias de vida e o estilo de pensamento dessa pessoa?” ▶ “Esta é uma boa hora para mostrar empatia?” ▶ “Qual a quantidade necessária de empatia agora?” ▶ “Existe algum risco em ser empático nesse momento com esse pacien- te?” 27Guia de Prática Clínica em TCC O uso excessivo de comportamentos empáticos pode inadvertidamente vali- dar sentimentos de desesperança e autocondenação. Assim, a empatia deve estar acompanhada de autenticidade e busca por soluções. Ou seja, o terapeu- ta precisa converter a compreensão do cliente e sua preocupação com ele em ações que aliviem seu sofrimento e o ajudem, sempre de modo colaborativo21. 3.3 COLABORAÇÃO E PARTICIPAÇÃO ATIVA O termo utilizado comumente para a necessidade de envolver o cliente no processo terapêutico é empirismo colaborativo. A TCC parte do pressupos- to que existe uma responsabilidade compartilhada pelo estabelecimento de metas e agendas entre cliente e terapeuta capaz de direcionar para as mu- danças cognitivas e comportamentais desejadas. Desse modo, terapeuta e cliente investigam empiricamente a validade e utilidade de seus pensamen- tos e comportamentos disfuncionais21. O terapeuta desenvolve uma relação terapêutica de colaboração ativa quan- do demonstra ser: amigável, envolvido, criativo, psicoeducativo e voltado para a ação. O uso adequado do humor pelo terapeuta é visto como uma forma de trazer liberação emocional e possui três grandes vantagens: pode normalizar e humanizar a relação terapêutica; auxiliar no rompimento de padrões rígidos de pensamentos e comportamentos; e desenvolver ou apri- morar a habilidade do cliente em usar o humor para lidar com estressores21. PONTO DE FIXAÇÃO O uso do humor não é necessariamente terapeuta e paciente contando piadas. O uso adequado do humor pode envolver o uso de hipérboles, exageros, para fazer o cliente dar-se conta do impacto de manter padrões disfuncionais (Figura 7). Figura 7 - Regras para o uso adequado do humor esponâneo e genuíno construtivo focado em um problema externo ou em um modo de pensamento incongruente em vez de uma fraqueza pessoal. Fonte: elaborado pela autora21. 28Guia de Prática Clínica em TCC 3.4 ORIENTADA A METAS E FOCALIZADA EM PROBLEMAS Orientar para metas na TCC envolve compreender não somente as dificul- dades da pessoa, mas principalmente o que ela pretende alcançar, após ter seus problemas resolvidos. Quando uma pessoa busca terapia, é muito pro- vável que ela já possua algumas metas para sua vida e, na primeira sessão, em geral ao final, isso já pode ser investigado pelo terapeuta25. No entanto, é fundamental que o terapeuta busque trabalhar com o cliente o processo de desenvolvimento dessas metas já ensinando ao cliente o valor de estabele- cer alvos específicos e mensuráveis para a mudança. O Quadro 3 apresenta importantes aspectos para o estabelecimento de metas21. Quadro 3 - Dicas para estabelecer metas na terapia cognitivo-comportamental Instrua o paciente sobre as técnicas de estabelecimento de metas. Tente evitar metas muito generalizadas e abrangentes que possam ser difíceis de definir ou atin- gir. A formulação de metas desse tipo pode fazer com que o paciente se sinta pior, pelo menos temporariamente, se elas parecerem pesadas ou inatingíveis. Seja específico. Oriente os pacientes a escolherem metas que tenham a ver com preocupações ou problemas significativos. Escolha metas de curto prazo que você acredite ter probabilidade de serem alcançadas no futuro próximo. Desenvolva algumas metas de longo prazo que exijam trabalho mais extensivo na TCC. Tente usar termos que tornem as metas mensuráveis, ajudando-o a medir o progresso. Fonte: Wright, Basco, & Thase21. PRATICANDO A TEORIA Durante todo o tratamento as metas estabelecidas devem ser revistas! Podem ser necessários ajustes ao tratamento para superar as barreiras presentes na conquista de metas. 29Guia de Prática Clínica em TCC 3.5 ÊNFASE NO PRESENTE A TCC prioriza inicialmente os problemas atuais da pessoa e situações espe- cíficas e presentes geradoras de angústia25. Apenas se volta ao passado em duas circunstâncias: ▶ Quando há predileção do cliente por enfatizar o passado, havendo risco para a aliança terapêutica em não atender a essa preferência. ▶ Quando um retorno às experiências infantis pode representar um ga- nho na compreensão de crenças e ideias rígidas atuais. 3.6. TEMPO DE TRATAMENTO REDUZIDO O caráter breve da TCC relaciona-se com a ênfase dada ao presente, associa- da ao caráter estruturado do tratamento que é voltado para o atendimento a metas. Assim, comparativamente a outras abordagens para uma boa par- te das dificuldades e transtornos dos clientes, a TCC oferece um tratamento mais rápido. No entanto, dependerá também do tipo de transtorno apresen- tado, do grau com que as dificuldades da pessoa afetam diferentes áreas de sua vida25. 3.7. SESSÕES ESTRUTURADAS A fim de garantir rápido alívio dos sintomas e melhora da qualidade de vida das pessoas, a TCC tem um modo estruturado de tratamento21. A estrutu- ração das sessões visa maximizar sua eficiência, auxiliando as pessoas a di- recionarem seus esforços para se recuperarem e alcançarem crescimento pessoal. Desse modo, estruturar a sessão é uma das habilidades essenciais ao terapeuta cognitivo comportamental, que deverá transmiti-la aos clien- tes. É necessário estrutura para as sessões e para o tratamento como um todo. Essa estrutura, com um planejamento claro e detalhado, visa garantir uma clareza dos problemas-chave a serem trabalhados e firmeza quanto à resolução desses problemas. Praticando a teoria: é fundamental que o terapeuta trabalhe com o cliente para definir uma agenda apropriada aos problemas-alvo. Os tópicos da sessão devem ser adequados ao tempo disponível, as prioridades devem ser estabelecidas e a agenda seguida. 30Guia de Prática Clínica em TCC 3.8 PSICOEDUCATIVA Na TCC, o terapeuta assume a função de educa- dor, ou seja, tem a função de ensinar aos pacien- tes como funciona o modelo cognitivo, ajustando e adaptando a psicoeducação à realidade de vida do cliente25. Assim, os clientes aprendem habilida- des para questionar e modificar suas cognições, aprendendo a lidar melhor com seus estados de humor, implementando mudanças significativas em seu comportamentoe prevenindo recaídas. Alguns autores enfatizam que a psicoeducação deve abordar as caracterís- ticas do transtorno que o cliente apresenta, os sintomas e o prejuízo em seu funcionamento, bem como sua hipótese explicativa26. Nesse caso busca-se analisar fatores que contribuíram para a origem e manutenção dos sinto- mas, informando ao cliente os detalhes relativos ao tratamento disponível. Ademais, deve-se psicoeducar sobre o papel e os efeitos da terapia e quais são as responsabilidades do cliente e do terapeuta. Os ensinamentos podem ser transmitidos de diferentes maneiras, a saber: ▶ Uso de exemplos da vida do cliente para ilustrar conceitos. ▶ Explicações breves e checagem da adequada compreensão por meio de perguntas para engajar o cliente ao seu processo de aprendizagem. ▶ Utilização de materiais psicoeducativos: textos, livros, filmes, entre ou- tros. ▶ Diagramas por escrito. 3.9. ENFATIZA PREVENÇÃO DA RECAÍDA Uma vez que a pessoa aprende a reconhecer suas distorções cognitivas, ela pode estar mais bem capacitada para evitar tais pensamentos, ou questio- ná-los mais adequadamente, diante de eventos estressores, mesmo após o término da terapia25. Nesse sentido, uma das grandes preocupações da te- rapia cognitivo-comportamental é prevenir a recaída. Em geral, enfatiza-se mais especificamente a prevenção de recaída no fim do processo terapêuti- co. Prevenir recaída envolve auxiliar o cliente a antever problemas em poten- cial, que podem lhe causar dificuldades futuras. São utilizadas técnicas para que o paciente treine maneiras eficazes de enfrentamento. Dentre elas, po- de-se citar o ensaio cognitivo que envolve as etapas descritas na figura 8. A psicoeducação tem por objetivo ensinar o cliente a ser seu próprio terapeuta. 31Guia de Prática Clínica em TCC Figura 8 - Ensaio cognitivo para prevenção de recaída 1. Pense sobre a situação com antecedência. 5. Implemente a nova estratégia. 4. Ensaie o modo mais adaptativo de pensar e se comportar. 2. Identifique possíveis PAs e comportamentos. 3. Modifique os PAs. Fonte: Elaborado pela autora21. 3.10 VARIEDADE DE TÉCNICAS PARA MODIFICAR PENSAMENTO, HUMOR E COMPORTAMENTO Após a conceituação cognitiva do caso, terapeutas cognitivo comportamen- tais podem utilizar uma grande variedade de técnicas a depender do objeti- vo da sessão e das dificuldades apresentadas pelo cliente25. Em geral, algu- mas técnicas cognitivas, como o questionamento socrático, a descoberta guiada e a flecha descendente, são utilizadas com muita frequência, com- binadas com técnicas de outras abordagens. 32Guia de Prática Clínica em TCC PONTO DE FIXAÇÃO Descoberta guiada: por meio de perguntas, auxilia- se o cliente a perceber suas cognições como ideias e não necessariamente como verdades sobre algo. Exemplo: “quais evidências de que seu pensamento é verdadeiro?”. Flecha descendente: a partir da investigação sobre os significados dos pensamentos automáticos do cliente chegar a níveis cognitivos mais profundos, suas crenças. Exemplo: “E se isso for verdade, o que isso significa sobre você?”. Os dez princípios básicos da TCC se aplicam a todos os clientes, no entanto, o tratamento para cada um pode apresentar grande variabilidade a depen- der de suas demandas. Nesse sentido é fundamental que o terapeuta se preocupe com o desenvolvimento de habilidades e competências que ex- trapolem o domínio especificamente técnico e procedimental, para alcan- çar competências mais reflexivas que o tornem apto a integrar técnicas e procedimentos de modo mais automático ao tratamento, variando adequa- damente as atividades terapêuticas25. Judith Beck25 descreveu as principais atividades e habilidades do terapeuta cognitivo comportamental, como se observa na figura 9: Figura 9 - Atividades do terapeuta cognitivo comportamental Fazer resumos períodicos Conceituar o caso Estabelecer aliança terapêutica Psicoeducar o cliente Identificar problemas Coletar dados Testar hipóteses TCC Fonte: elaborado pela autora25. 33Guia de Prática Clínica em TCC O desenvolvimento de habilidades para ser um terapeuta cognitivo com- portamental envolve diferentes estratégias de treinamento19. Alguns pes- quisadores constataram que leituras e palestras foram avaliadas com mais frequência como estratégias eficazes para a aprendizagem de conceitos. A modelagem foi uma estratégia avaliada como eficaz tanto para a aprendi- zagem conceitual quanto procedimental. Os métodos experienciais, como a dramatização (role playing) e um trabalho de autoexperiência associados à modelagem e a uma prática reflexiva, incorporam novas aprendizagens ao sistema de procedimentos da TCC. PRATICANDO A TEORIA Os trabalhos de autoexperiência que o terapeuta cognitivo comportamental pode desenvolver competências reflexivas na TCC envolvem19: • Fazer terapia pessoal; • Participar de grupos terapêuticos baseados na TCC, a exemplo das práticas de Mindfulness; • Praticar técnicas da TCC em si mesmo, como parte de um programa formal de treinamento, ou como estratégias rotineiras do seu contexto de vida; • Realizar supervisão com profissional experiente. 34Guia de Prática Clínica em TCC Considerando a TCC como uma abordagem de tratamento orientada para metas e para resolução de problemas, há de se estabelecer um caminho claro a seguir para que se alcancem os objetivos desejados pela díade clien- te-terapeuta. Assim, as sessões em TCC pressupõem uma estruturação. Ao longo do tratamento, em geral breve, podem ser observadas três grandes fases em que se agrupam sessões de acordo com os seguintes objetivos: a construção de uma aliança terapêutica e conceituação cognitiva do caso, a intervenção propriamente dita e a prevenção de recaídas. O uso de variadas técnicas ao longo do processo terapêutico básico da TCC situa-se na fase de intervenção sob os problemas e reestruturação cognitiva, correspondendo a uma fase intermediária27. A figura 10 exemplifica as fases da TCC em um espaço temporal breve. Figura 10 - Fases da TCC em um espaço temporal breve Início Meio Fim Rapport ----------------------- Avaliação ----------------------- Tarefas e experimentos ------------------------------------------------------------------------------------- Técnicas diversas ---------------------------------------------------------------------------- Prevenção à recaída ------------------------------------------------------- Fonte: Adaptado de Caminha e Habigzang27 4Atendimento clínico e relação terapêutica na TCC Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui? Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato. Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice. Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato. Lewis Carroll 35Guia de Prática Clínica em TCC 4.1 AS SESSÕES INICIAIS Na fase inicial do tratamento, o principal foco do terapeuta recai sobre a aliança de trabalho com o cliente que posteriormente se transformará em uma aliança terapêutica. Assim, o terapeuta dedica-se à coleta de dados e ao acolhimento das demandas apresentadas pelo cliente, construindo a conceituação/avaliação cognitiva do caso ao mesmo tempo em que busca estabelecer uma relação de confiança com o cliente (rapport)25. Praticando a teoria: o rapport envolve um conjunto de habilidades. As fra- ses demonstradas no quadro 4 podem ser usadas pelo terapeuta para bus- car o estabelecimento de um vínculo seguro com seu cliente. Quadro 4 - Frases que o terapeuta pode utilizar para estabelecer o rapport Frases do terapeuta Objetivo “Eu gostaria de entender o que está aconte- cendo com você para ajudá-lo” Demonstrar interesse, compromisso e buscar cooperação (O terapeuta resume sua compreensão sobre o caso)... “Eu entendi bem a situação?” Compartilhar a conceituação e buscar feedback “O que você acha de conversarmos sobre isso?” Tomar decisões de forma colaborativa 4.2 AS SESSÕES INTERMEDIÁRIAS Na fase intermediáriada TCC, as sessões são voltadas para os problemas es- pecíficos do cliente, no intuito de auxiliá-lo a desenvolver novas estratégias de enfrentamento para lidar com os desafios e estressores do seu contexto25. Trabalha-se colaborativamente com o cliente para que ele aprenda modos alternativos, mais realistas, funcionais e saudáveis, de ver a si mesmo, os ou- tros/mundo e o futuro. Avaliam-se as metas já alcançadas e enfatiza-se o progresso feito. 4.3 AS SESSÕES FINAIS Quando o cliente já possui boas habilidades de análise e reflexão sobre seus pensamentos, emoções e comportamentos e tem sua autonomia restabe- lecida e/ou fortalecida, inicia-se a fase final do tratamento. Enfatiza-se a pre- 36Guia de Prática Clínica em TCC venção de recaída, e prepara o cliente para o encerramento da terapia: ses- sões com intervalos maiores, e são agendadas sessões de reforço25. 4.4 A ESTRUTURAÇÃO DA SESSÃO Na TCC, cada sessão possui uma estrutura básica, com vistas a utilizar o tem- po de forma eficiente, conforme se observa na figura 11. Toda sessão se inicia com um acolhimento inicial, “quebrando o gelo” e criando um clima favorá- vel para o desenvolvimento da entrevista. Em seguida, revisa-se o problema/ metas da terapia buscando avaliar as condições gerais do cliente, se algo mudou desde a última sessão e como está o seu humor. Figura 11 - Estrutura básica de uma sessão de TCC Rapport Atualização do estado do cliente / verificação do humor e de sintomas Estabelecimento de uma agenda para a sessão Abordagem dos tópicos da agenda: educação do cliente sobre o modelo cognitivo Discussão e estabelecimento da(s) tarefa(s) de casa Fonte: Elaborado pela autora25. O estabelecimento da agenda envolve construir com um cliente um roteiro de tópicos a serem trabalhados naquela sessão, informando o cliente sobre a importância dessa agenda, como no modelo a seguir. 37Guia de Prática Clínica em TCC PRATICANDO A TEORIA “Você já me falou sobre os motivos que lhe trouxeram à terapia (atualização do estado do cliente). Agora eu preciso saber como você está se sentindo hoje (verificação do humor). Eu preciso informar-lhe sobre como funciona a terapia cognitiva (educação do cliente sobre o modelo cognitivo) e detalhes sobre o atendimento (enquadramento). Vou também querer saber de você o que você gostaria de acrescentar a nossa agenda de hoje. Eu vou lhe passar algumas tarefas para você fazer em casa (tarefa de casa), e, no fim, vou relembrar o que falamos (resumo) e vou querer saber o que você achou da terapia (feedback)”. Dando sequência à sessão, os tópicos definidos na agenda são abordados, sempre com foco na psicoeducação sobre o modelo cognitivo nas sessões iniciais, ou nas técnicas de reestruturação cognitiva e modificação de com- portamentos nas sessões intermediárias. O estabelecimento das tarefas de casa são um importante componente da TCC: elas mantêm o vínculo do cliente com a terapia, mesmo fora do tempo da sessão, em geral solicitando que ele monitore seus pensamentos, emoções e comportamentos nos mais diversos tipos de atividade. Por fim, a sessão se encerra solicitando que o cliente faça um resumo do que ocorreu e reforce os pontos importantes em parceria com o terapeuta. Ambos fornecem um feedback sobre a sessão, e para o cliente é uma opor- tunidade de relacionar os aspectos positivos e negativos da sessão e o seu grau de adesão ao processo terapêutico25. 38Guia de Prática Clínica em TCC Por definição, os pensamentos automáticos fazem parte do fluxo de pensa- mentos subliminar aos pensamentos mais manifestos, no entanto, ocorre de forma tão imediata diante das circunstâncias da vida que não é comum questioná-los. Na TCC, o monitoramento dos PAs tem grande destaque, pois os PAs influenciam emoções e comportamentos25. De acordo com o modelo cognitivo, os PAs são mais superficiais do que os esquemas (crenças) cognitivos e, portanto, mais acessíveis e/ou facilmen- te identificáveis pela pessoa. Logo, representam a primeira interpretação que fazemos diante dos episódios da vida. Essa primeira interpretação pode auxiliar em vários momentos, pois favorece uma rápida tomada de decisão sobre algo25. No entanto, nem sempre esta primeira interpretação condiz com os dados da realidade, distorcendo-os e levando a pessoa a sofrimento significativo. Os PAs distorcidos, disfuncionais ou negativos, são o objeto de interesse da TCC, uma vez que a análise “da validade e/ou utilidade dos PAs e a resposta adaptativa a eles, em geral, produzem uma mudança positiva no afeto” (p.160) 25. Dessa maneira, a avaliação dos PAs em termos de sua validade ou utilidade pode indicar que existem PAs distorcidos, que ocorrem apesar das evidên- cias contrárias; e PAs precisos, que estão corretos, mas levam a conclusões distorcidas, ou que são disfuncionais no sentido de não serem úteis, levando a pessoa a uma desmotivação em relação a algo, por exemplo. 5Pensamentos Automáticos (PAs) Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo. Buda 39Guia de Prática Clínica em TCC Outra forma de classificar os pensamentos automáticos é em relação ao quanto eles são visivelmente distorcidos/negativos/disfuncionais. Os PAs em formato de declaração apresentam claramente seu conteúdo negativo, por exemplo: “fulano não gosta de mim”. Já os PAs conhecidos como telegráfi- cos surgem como uma pergunta: “será que fulano gosta de mim?”. Nesse último caso, o caráter negativo fica subentendido. Sendo assim, é impor- tante que o terapeuta treine seu paciente para relatar esse pensamento te- legráfico em forma de declaração, que muito provavelmente indicará o seu aspecto disfuncional. PRATICANDO A TEORIA Os terapeutas cognitivo comportamentais, ao observarem seus clientes relatando algo, costumam notar suas mudanças emocionais e de comportamento, e realizam a avaliação dos PAs por meio da pergunta: “o que está passando (ou passou) pela sua cabeça neste momento?” 5.1 ERROS TÍPICOS DE PENSAMENTO / DISTORÇÕES COGNITIVAS Diversas pesquisas enfatizam a importância das distorções cognitivas, ou PAs negativos, na compreensão de diferentes quadros psicopatológicos e do bem-estar psicológico de crianças, adolescentes e adultos28,29. Nesse sen- tido, a literatura em TCC descreve algumas categorias típicas de distorções de pensamento, que podem ser vistas no quadro 5. 40Guia de Prática Clínica em TCC Quadro 5 - Lista de tipos de distorções cognitivas Distorções Cognitivas Descrição e exemplo Personalização Tendência a se culpar em diversas situações ou a considerar que o comportamento dos outros e eventos externos dizem respeito a si. “Eu não ajudei meu filho e por isso ele não con- seguiu passar no vestibular.” Pensamento dicotômico Considerar somente os polos extremos de um evento ou pes- soa. “Se eu der um chocolate ao meu filho, estragarei sua saú- de.” Catastrofização Fazer previsão extremamente negativa sobre o futuro. “Vou fracassar e isso será insuportável.” Raciocínio emocional Assumir que emoções são fatos. “Eu sinto que não sou uma pessoa querida.” Filtro mental / Abstração seletiva Ignorar aspectos relevantes de uma situação. “Dei uma infor-mação errada na palestra, a palestra foi ruim.” Supergeneralização Generalizar os casos negativos isolados, uso excessivo de ter- mos: “nunca”, “sempre”, “todo”. “Choveu hoje de manhã, a chuva vai estragar minhas férias inteiras.” Afirmações do tipo “deveria” Tendência a estabelecer regras de como as coisas deveriam ser e ignorar como de fato elas são. “Deveria ser uma mãe melhor.” Maximização e minimização Minimizar suas conquistas ou aspectos positivos e maximizar os erros e as coisas negativas que acontecem. “Consegui nota 10 porque o teste estava fácil.” Leitura mental Acreditar que sabe o que os outros estão pensando. “Meus colegas pensam que eu falhei.” Conclusões precipitadas Ter ideias infundadas sobre os acontecimentos que estãopor vir. “Não vou ficar à vontade naquele lugar.” Fonte: Elaborado pela autora4,25. 41Guia de Prática Clínica em TCC Na história das psicoterapias, o uso do conceito de crenças remete ao traba- lho de Ellis4,30 que, ao propor a Terapia Racional Emotiva, afirmou que mudar o modo de pensar das pessoas envolve ser capaz de reconhecer e de re- bater crenças irracionais. Ellis observou que diante de eventos negativos as pessoas podem reagir de forma automática e irracional, reforçando modos de pensar habituais que não são benéficos nem úteis, fazendo com que as pessoas se convençam ainda mais de que sua visão sobre si mesmas e sobre o mundo é justificada e verdadeira. Se, por outro lado, as pessoas fossem capazes de racionalmente considerar outras possibilidades, mais úteis, po- deriam questionar sua opinião de si e do mundo. De acordo com Ellis, o pensamento racional é equilibrado, favorece o otimis- mo e a saúde emocional30. O modelo ABC (A, evento ativador; B, crenças; C, consequências) influenciou fortemente a terapia cognitiva comportamental de Beck. Ao desenvolver a TCC, Beck descreveu que nas origens das distor- ções cognitivas, das interpretações/pensamentos automáticos distorcidos, es- tão em pensamentos disfuncionais mais profundos, chamados de esquemas. Ponto de fixação: esquemas são “estruturas cognitivas internas relativa- mente duradouras de armazenamento de características genéricas ou pro- totípicas de estímulos, ideias ou experiências que são utilizadas para orga- nizar novas informações de maneira significativa, determinando como os fenômenos são percebidos e conceitualizados”31. 6Fundamentos do conceito de crenças Há mais na superfície do que nosso olhar alcança.” Aaron Beck 42Guia de Prática Clínica em TCC Os esquemas se desenvolvem desde muito cedo na infância das pessoas e filtram as informações e experiências atuais. Beck4 diferencia o conceito de esquema do de crenças, informando que as crenças são o conteúdo dos esquemas. Dessa maneira, uma vez que a pessoa forma uma crença básica sobre algo, essa crença influencia a formação de outras que, ao persistirem, são incorporadas ao esquema. Nesse sentido, os esquemas são estruturas cognitivas mais duradouras que codificam, avaliam e interpretam, impondo um padrão de percepção da realidade, numa espécie de filtro cognitivo. As crenças incorporadas nos esquemas modelam o estilo de pensamento e disparam as distorções cognitivas relacionadas à psicopatologia ou à piora da qualidade de vida das pessoas. Assim, as crenças são moldadas pelas ex- periências singulares da pessoa, da identificação com outros e da forma como ela percebe a atitude dos outros para com ela. Tais experiências, asso- ciadas ao ambiente, favorecem ou inibem o surgimento de um agrupamen- to específico de crenças, ou seja, de esquemas. Nesse sentido, para explicar os prejuízos relativos à saúde, Beck afirmou que não são as crenças em si que são disfuncionais, mas a sua ativação que se torna disfuncional a depender da falta de evidên- cias e circunstâncias que justifiquem a crença (te- oria dos modos)22. Assim, as crenças e esquemas são em geral ativados por situações que guardam alguma semelhança com as experiências preco- ces associadas ao seu surgimento. Existem três grandes categorias de es- quemas disfuncionais25, apresentados na figura 12. Figura 12 - Três grandes classes de esquemas cognitivos Esquemas Conjuntos de crenças que interferem em pensamentos e comportamentos As pessoas costumam pensar sobre si mesmas: Desamor Não sou amado Sou rejeitado Serei abandonado Sou feio(a) Sou sozinho Teoria dos modos: os esquemas podem estar ativos ou adormecidos22. 43Guia de Prática Clínica em TCC Desamparo Sou frágil Sou carente Sou vulnerável Sou uma vítima Sou impotente Desvalor Sou incapaz Sou incompetente Sou um fracasso Sou uma fraude Sou inadequado Fonte: elaborado pela autora25. Os esquemas possuem um nível de amplitude, já que implicam um agru- pamento de crenças adquiridas desde a infância, e um nível de carga emo- cional, em especial negativa, quando sua ativação é disfuncional25. Alguns autores32 afirmam que a extensão com que um esquema tem efeito sobre a pessoa depende: ▶ Do quão fortemente seu esquema é mantido; ▶ Do quanto a pessoa julga o esquema essencial para a sua existência, bem-estar e segurança; ▶ Do quão cedo o esquema foi internalizado; ▶ Do quão fortemente, e por quem, o esquema foi reforçado. Por se referirem a um aspecto mais enraizado da estrutura cognitiva das pessoas, os esquemas, suas crenças centrais e pressupostos subjacentes são mais difíceis de serem acessados, avaliados e modificados. Nesse sentido, o terapeuta cognitivo deve manejar com cautela a identificação e modi- ficação de crenças centrais, uma vez que se refe- rem a convicções muito arraigadas que a pessoa tem de si, dos outros e do futuro. Após a psicoeducação do cliente quanto ao modelo cognitivo, ele já é capaz de identificar e questionar seus pensamentos automáticos disfuncionais. Deve-se começar a investigação do significado dos PAs e identificar suas crenças centrais e intermediárias. Quanto mais recorrente um pensamento automático disfuncional, maior probabilidade de estar relacionado às crenças centrais do cliente. 44Guia de Prática Clínica em TCC PRATICANDO A TEORIA O grau de dificuldade na identificação e modificação das crenças centrais varia de paciente para paciente, mas em geral recomenda-se que o terapeuta considere os seguintes passos25: 1. Elaborar mentalmente hipóteses sobre a categoria ativa de crenças do cliente (se desamor, desamparo ou desvalor) considerando o relato feito por ele sobre seus pensamentos e experiências; 2. Especificar a crença, a partir do uso de técnicas como a flecha descendente; 3. Compartilhar sua hipótese sobre a crença do cliente e buscar mais evidências sobre o surgimento e manutenção da crença; 4. Guiar o cliente para que ele realize o monitoramento de suas crenças no presente, buscando em que circunstâncias elas se ativam; 5. Auxiliar o desenvolvimento de crenças alternativas; 6. Buscar reduzir o impacto da crença disfuncional a partir do entendimento dos fatores que a mantêm e fortalecer as crenças alternativas. Investigar evidências sobre a veracidade das cren- ças é uma das maneiras de ensinar o cliente a re- visar suas distorções e desenvolver crenças alter- nativas mais realistas e adaptativas10. É necessário trabalhar as crenças do cliente por meio de análi- ses consistentes de conceituação cognitiva, abor- dando as crenças somente quando: houver uma quantidade considerável de evidências; o cliente tiver condições de reconhecê-las como disfuncio- nais; há motivação para substituir crenças antigas por novas mais funcionais. De acordo com Abreu33: Ponto de fixação: há um ditado popular que diz: “Não devemos matar o mensageiro antes de receber a mensagem.” Desse modo, não se deve pro- mover a alteração das crenças antes de compreender o processo emocional subjacente, e a capacidade do cliente de lidar com ele33. Abordar uma crença “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” Clarice Lispector 45Guia de Prática Clínica em TCC precocemente envolve o risco de ampliar a resistência do cliente quanto ao reconhecimento e mudança da crença no processo terapêutico. Segundo Leahy34, “a meta na terapia é auxiliar o paciente no reconhecimen- to de como seu esquema controla sua vida emocional e interpessoal e redu- zir o efeito deste no seu funcionamento diário”. Assim, o terapeuta auxilia a tomada de consciência sobre memórias, emoções e cognições associadas aos esquemas, favorecendo que o cliente exerça maior controle sobre suas reações, aumentando seu poder de escolha e deliberação quanto aos es- quemas e crenças desadaptativos35. 46Guia de Prática Clínica em TCC Como se vê na frase que inicia este capítulo,é importante cuidar das raízes. No caso da terapia cognitiva comportamental, costuma-se dizer que nossas cognições se estruturam como uma árvore: os galhos são os pensamentos automáticos que surgem e variam de acordo com as circunstâncias presen- tes e atuais da vida; as crenças intermediárias representam o tronco, que, por meio de regras e suposições, vinculam nossos pensamentos com as nos- sas crenças centrais ou nucleares; essas, por sua vez, representam as raízes, uma vez que são formadas de acordo com as primeiras experiências infantis. Essa metáfora está representada na Figura 13. Figura 13 - Representação das estruturas cognitivas como uma árvore Pensamentos automáticos Mais superficiais Imediatos Crenças Intermediárias Regras / Suposições Se... então Crenças Centrais Mais profundas / Rígidas Supergeneralizadas Fonte: elaborada pela autora. 7Crenças intermediárias e centrais Preocupas-te se a árvore de tua vida tem galhos apodrecidos? Não percas tempo; cuida bem da raiz e não terás de andar pelos galhos. Santo Agostinho 47Guia de Prática Clínica em TCC As crenças intermediárias, assim como os pensamentos automáticos, ope- ram em muitas situações, o que as tornam mais fáceis de serem identifi- cadas do que as crenças centrais36. Em geral, as suposições ou regras das crenças intermediárias orientam comportamentos e emoções de modo que ao analisá-las pode-se pensar em novos pressupostos que guiem a vida das pessoas de modo mais funcional. Ao observar o comportamento de um casal que não se comunica muito bem, pode-se supor que eles possuem a mesma regra ou pressuposto36. No entanto, é impossível saber quais os pressupostos subjacentes das pessoas apenas observando o comportamento delas. Nesse sentido, é fundamental compreender quais os pressupostos ou regras estão relacionados à forma como pensamos, sentimos e agimos. No exemplo do quadro 6, é possível observar que um mesmo comportamento pode estar associado a crenças intermediárias ou regras diferentes, que, por sua vez, se associam a crenças centrais diferentes. Quadro 6 - Exemplo de crenças intermediárias de um casal Crença intermediária Crença Central Comportamento Parceiro(a) 1 “se ele/ela gosta de mim então irá saber o que quero sem que precise me per- guntar” Não sou amado(a) Não se comunicar com o outro Parceiro(a) 2 “se ele/ela precisar de algo, então irá me dizer” Sou incompetente Não se comunicar com o outro Por um lado, as crenças intermediárias exercem a função de proteger as pes- soas quanto à ativação das crenças centrais disfuncionais que levam a sofri- mento significativo, uma vez que propõem regras de como agir no mundo para que “a vida dê certo”: não haverá problemas e a pessoa permanecerá relativamente estável. Por outro lado, esse conjunto de crenças, intermedi- árias e centrais, acaba atuando como círculos viciosos autoperpetuadores ou uma espécie de profecia na qual as pessoas acabam se comportando de modo a confirmar suas crenças/esquemas35. Ponto de fixação: “Os esquemas, depois de desenvolvidos, servem como modelos para o processamento das experiências ulteriores e acabam de- sembocando em confirmações automáticas e circulares dos próprios es- quemas.” (p.243)35. Desse modo, a autoimagem das pessoas é estruturada pelos esquemas e seu caráter circular: as pessoas selecionam informações da realidade externa que são congruentes com a autoimagem que confir- mam, de modo automático e circular, a identidade pessoal percebida35. 48Guia de Prática Clínica em TCC PRATICANDO A TEORIA Como identificar as crenças intermediárias? As dicas a seguir são muito úteis 36: 1. Quando as pessoas estão muito ansiosas, em geral, seus pensamentos são pressupostos do tipo “se... então...”. 2. Quando ocorrem mal-entendidos em relacionamentos, possivelmente as pessoas estão agindo com base em diferentes pressupostos. 3. Comportamentos extremos são estimulados por regras disfuncionais: abuso de substâncias, comer excessivamente, perfeccionismo. 4. Quando as pessoas querem mudar um comportamento, mas acham muito difícil fazer essa mudança, há por trás um pressuposto subjacente. Para testar a veracidade de crenças intermediárias/pressupostos pode-se realizar experimentos comportamentais. Tais experimentos consistem em executar a parte do “se” do pressuposto, para ver se a parte do “então” acon- tece ou não. A partir do teste desses pressupostos torna-se mais viável o questionamento das crenças centrais. 49Guia de Prática Clínica em TCC A terapia cognitivo comportamental enfatiza a relação entre as cognições, os comportamentos e as emoções (figura 14). Sendo assim, pensamentos, emoções e comportamentos devem ser vistos como eventos que se influen- ciam mutuamente e não tratados isoladamente. Figura 14 - Inter-relações entre cognições, emoções e comportamentos Cognições “O que passou por sua cabeça?” “O que pensou naquele momento?” Comportamento “O que você fez?” “Como agiu?” Emoções / Afeto Como se sentiu? Fonte: Elaborado pela autora. 8Inter-relação dos comportamentos com emoções e pensamentos Não vamos esquecer que as emoções são os grandes capitães de nossas vidas, nós obedecemos-lhes sem nos apercebermos. Vincent van Gogh 50Guia de Prática Clínica em TCC Uma das principais técnicas para identificação e modificação de compor- tamentos na TCC é o Registro de Pensamentos Disfuncionais. Nele, clientes e terapeutas mantêm um registro detalhado de eventos significativos para o cliente. Em geral, solicita-se que o cliente identifique situações nas quais ocorre uma mudança em suas emoções e monitore seus pensamentos, re- gistrando o que pensou, sentiu e fez. A premissa básica da TCC é que a atividade cognitiva é identificável e aces- sível, mesmo que a princípio o cliente não esteja consciente dela37. Ademais, as cognições podem ser questionadas e alteradas e esta mudança influencia e é influenciada por alterações nas emoções e nos comportamentos. Como vimos, apesar da existência de premissas básicas na TCC, existe um amplo rol de abordagens caracterizadas como cognitivas. Entre abordagens que enfatizam a reestruturação cognitiva, podemos notar diferenças quanto ao papel das cognições e das emoções. Por exemplo, a terapia cognitiva de- senvolvida por Beck e colaboradores22,25, bem como a terapia racional emo- tivo-comportamental de Ellis4, enfatizam as cognições como mediadoras dos comportamentos e das emoções, embora reconheçam que as emoções também influenciem as cognições. Já as terapias cognitivas construtivistas defendem preponderância das emoções sobre mudanças de comporta- mento37. As terapias cognitivas construtivistas surgiram com o propósito de atender às demandas de pacientes que representem desafios ao modelo cognitivo clássico, focalizando as emoções e as experiências ao longo do desenvolvi- mento de vinculação interpessoal no entendimento da formação e manu- tenção dos esquemas. Assim, para obter equilíbrio emocional, os construti- vistas consideram que a cognição vai além da mera representação interna do mundo externo37. As emoções exercem um importante papel auxiliando as pessoas a avalia- rem possibilidades, dando motivação para fazer algo e realizar mudanças, além de revelarem nossas necessidades38. As emoções são vistas como um tipo de marcador somático que diz o que as pessoas desejam fazer. Embora as pessoas racionalizem prós e contras de uma decisão, não raro elas efeti- vam a tomada de decisões considerando aspectos emocionais. Existe um longo debate sobre a primazia da cognição sobre a emoção e vice-versa, e a despeito das pesquisas advogarem em favor de um dos polos desse deba- te, há um consenso claro da interdependência entre cognições e emoções: cada uma pode influenciar a outra como um ciclo de retroalimentação38. Além do mais, não há necessidade de decidir sobre a primazia de uma ou de outra para desenvolver técnicas úteis para ajudar as pessoas. 51Guia de Prática Clínica em TCC Outro
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