Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
RHAA 11 127 Divers. In. Black. Arqueologia de navios negreiros e identidade Divers. In. Black. Slavers Shipwreck archaeology and identity BRUNO SANCHES RANZANI DA SILVA ingressante pós-graduação em antropologia, universidade Federal de Minas gerais. graduado em história pela universidade estadual de Campinas. Master student at the Anthropology Post graduation Program, Federal University of Minas Gerais – Brazil. LAURA CANDIAN FRACCARO graduanda em história na universidade estadual de Campinas. Undergraduate History student at the Campinas State University - Brazil RESUMO Este trabalho pretende discutir de que maneira a arqueologia vem lidando com as recentes demandas públicas por participação e divulgação dos saberes arqueológicos. Estu- daremos o caso da arqueologia em navios negreiros por seu forte impacto social mundial. PalavRaS-chavE Identidade, arqueologia subaquática, memória social, patrimônio. aBSTRacT This paper intends to discuss the way in which archaeology has been dealing with the recent demands from the non academic public for participation and publication of the archaeological knowledge. We’ll take as a study case the archaeology of wrecked slave ships, due to its strong social impact worldwide. KEywORdS Identity, underwater archaeology, social memory, patrimony. Bruno Sanches Ranzani da Silva / Laura Candian Fraccaro 128 RHAA 11 Henrietta Marie In memory and recognition of the courage, pain and suffering Of the enslaved African people. “Speak her name speak her name And gently touch the souls Of our ancestors.” (Placa comemorativa no sítio do naufrágio do negreiro henrietta Marie) Introdução No fim de semana do primeiro mergulho (“batizado”) de um de nós, conversávamos uma noite entre os “iniciados” enquanto os instrutores planejavam o mergulho do dia seguinte. Ao saber que havia me formado em História fazia menos de um mês, um dos participantes me pediu: “Bom, então conte-nos uma histó- ria!” Não pude esconder meu desconforto quando respondi: “Mas como, contar uma história? Fiz curso de História, não de conto de fadas!”. Afinal, o que mais poderia fazer um historiador além de contar histórias? Creio que sinto o mesmo quando digo que estudo Arqueologia e escuto: “Já encontrou algum fóssil?”, ou “Ah, então é um Indiana Jones!”, ou ainda “Sempre foi meu sonho fazer isso, talvez um dia quando eu aposentar faça por hobby.” Afinal, essas pes- soas não entendem que não fazemos hobby, não corremos de bolas gigantes nem usamos chicote. Estudamos História ou Arqueologia ou Antropologia! No entanto, por que não entendem que fazemos História, Arqueologia ou Antropologia? Deveriam entender o que fazemos? Ou ainda, o que quer dizer fazer História, Arqueologia ou Antropologia? A relação entre uma disciplina engendrada nas “Ciências Humanas” com as “Humanas” fora das “Ciências” tem marcado as discussões acadêmicas. Nosso propósito com esse pequeno ensaio é observar essa relação no contexto dos trabalhos de arqueologia de navios negreiros. Desde a década de 1980, vemos surgir novas propostas de interação entre a disciplina e o público leigo. Essa proposta mais ativa começa a se moldar no termo “Arqueologia Pública”. Hoje entendida como ação com o povo, para usarmos uma expressão de Paulo Freire, permite que tenhamos uma ciência aplicada em benefício das comunidades e segmentos sociais.1 Entre os temas que chegam a ser abordados na en- trada do século XXI, estão a configuração do espaço de um museu e suas impressões no público;2 o discurso arqueológico e criação de 1 FUNARI, Pedro Paulo A.; ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion. “Editorial”. arqueologia Pública, São Paulo, no 1, 2006, p. 3. 2 CASTAÑO, A. M. M. “A divulgação do patrimônio arqueológico em Castilla y Henrietta Marie In memory and recognition of the courage, pain [and suffering Of the enslaved African people. “Speak her name speak her name And gently touch the souls Of our ancestors.” (Comemorative plaque at the slaver henrietta Marie ship- wreck site) Introduction On the weekend of one of the authors’ first dive, one could talk among the “initiated” while the in- structors planned the dive for the next day. On ac- knowledging my past as a history student, one of the comrades asked me to “tell them a story!” I couldn’t hide a certain discomfort after replying “What do you mean? I’ve just graduated in History, not Fairy- tale!” Apparently a historian could do nothing else! We believe the feeling is the same when talking about the archaeological work and hearing “Have you found any dinosaurs yet?” or that “so you’re an Indiana Jones!” or even “It has always been my dream to do that, perhaps when I retire”. Can’t these people understand that our profession is not a hobby, we don’t run away from gigantic rolling stones and we do not use a whip? We Study History, Archaeol- ogy, Anthropology! But if we think about it, why can’t they understand that we do History, Archae- ology and Anthropology? Should they know what our jobs are all about? Or even, what it means to do History, Archaeology and Anthropology? The relation between a discipline conceived inside the “Human Sciences” and the “Humans” outside the “Sciences” has marked current academic research. Our goal with this paper is to analyze the relation between the archaeology and the non-aca- demic public, taking as a ground the archaeology of wreck slaver ships. Since the 1980’s we can see a growing theoretical concern over new propositions to the interaction between academic discipline and the general public. These new propositions start to be molded in the term “Public Archaeology”. Two brazilian authors have define this concept as an action with the people, in the terms of Paulo Freire, which allows us to have a sci- ence applied to the benefit of communities and social sectors1. Among the themes undertaken in Latin America at the doorsteps of the 21st Century are: the configura- 1 FUNARI, Pedro Paulo A.; ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Mar- ion. “Editorial”. arqueologia Pública, São Paulo, n° 1, 2006, p. 3. Divers. In. Black. RHAA 11 129 interpretações públicas do passado;3 projetos multidisciplinares de manejo de recursos econômicos e culturais;4 e tentativas de interligar diferentes conhecimentos.� São intentos e sucessos de transformar o patrimônio cultural público em algo mais que simplesmente igrejas barrocas e casas de barões do café.6 A prática subaquática da Arqueologia, surgida na década de 1960, com a expansão do mergulho autônomo, tem enfrentado, no entanto, alguns problemas com o público. Tanto mergulhadores re- creativos, quanto grandes empresas de salvamento, adotam um nível de contato com os vestígios submersos de modo que pode danificá- los, em especial se o propósito é “resgatar” peças sem a possibilidade de tratamento ideal. Por essa razão, arqueólogos criticam a ação de mergulhadores e condenam o salvamento, alegando inclusive um tipo de pirataria moderna. Estes últimos, no entanto, defendem suas atividades como resgates legítimos de relíquias históricas perdidas no fundo do oceano e distante do grande público.7 Leon (Espanha): o desafio dos espaços divulgativos”. arqueologia Pública, no 1, 2006, pp. 07-18. TAMANINI, E.; PEIXER, Z. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura: educação popular e herança cultural no século XXI”. arqueologia Pública, no 2, 2007, pp. 23-32. QUESADA, M.; MORENO, E.; GASTALDI, M. “Narrativas arqueológicas públicas e identidades indígenas en Catamarca”, arqueologia Pública, no 2, 2007, pp. 57-72. 3 REIS, José A. “Lidando com as coisas quebradas da história”. arqueologia Pública, no 2, 2007, pp. 33-44. SCHAAN, Denise P. “Arqueologia, público e comodificação da herança cultural: o caso da cultura Marajoara”, arqueologia Pública, no 1, 2006, pp. 19-30. DOMINGUEZ, Lourdes. S. “Guanabacoa como una ‘experiencia’ india en nuestra colonización: los restos de la arqueologia pública”, arqueologia Pública, no2, 2007, pp. 89-98. 4 BERÓN, M.; GUASTAVINO, M. “Manejo de recursos culturales y puesta en valor de historias regionales”, arqueologia Pública, no 2, 2007, p. 45-56. CASTRO, A. et allii. “Sítio arqueológico carsa (Puerto Deseado, Patagonia, Argentina): Reflexiones sobre la práctica de una arqueologia social y pública”, arqueologia Pública, no 2, 2007, pp. 7-22. ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion. “Arqueologia e sociedade no município de Ribeirão Grande, sul de São Paulo: ações em arqueologia pública ligadas ao Projeto de Ampliação da Mina Calcária Limeira”, arqueologia Pública, no 1, 2006, pp. 63-122. SEMPÉ, M. C.; SALCEDA, S. A.; MARTINEZ, S. “Desarrollo de un modelo productivo para la recuperación sociocultural de poblaciones marginales de la provincia de catamarca: Azampay una experiencia piloto”, arqueologia Pública, no 2, 2007, pp. 73-88. � CURY, M. X. “Para saber o que o público pensa sobre arqueologia”, arqueologia Pública, n° 1, 2006, pp. 31-48. LIMA, L. P.; FRANCISCO, G. da S. “O que é isso? Para que serve? Quem são vocês? O que fazem? Uma experiência de Arqueologia Pública em Paranã – TO”, arqueologia Pública, no 1, 2006, pp. 49-62. 6 FUNARI, Pedro Paulo A.; Pelegrini, Sandra. de C. A. Patrimônio histórico e cultural, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2006. 7 BASS, George F. arqueologia subaquática, Verbo, Cacim, 1971. RAMBELLI, Gilson. arqueologia até debaixo d’água, Maranta, São Paulo, 2002. SILVA, Bruno S. Ranzani. Baú de tesouros: cultura material e o sublime das profundezas. 54 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. tion of museum spaces and public impressions2; The archaeological discourse and consequent community interpretation of the past3; Multidisciplinary projects of cultural and economic resources management4; And the combination of academic and community forms of knowledge of the past�. In other words, a few but successful attempts of turning the cultural heritage into something more than just baroque churches and Baron’ Manors6. The underwater academic practice of archaeology came to be around in the 1960’s, with the develop- ment and expansion of SCUBA diving. Since then, it has faced some problems with recreational divers and shipwreck salvage companies. These groups, specially the second, may sometimes interfere nega- tively in the site. Even when the purpose is to “save” lost artifacts, emerging the materials without proper treatment may lead to irreversible damage. For this reason, archaeologists have criticized the actions of recreational divers and condemned the practice of underwater salvage (seen as a new kind of piracy). As a defense, the criticized groups have claimed jus- tice over their good will, for they are the ones who bring out from the unreachable depths a heritage that belongs to all7. 2 CASTAÑO, A. M. M. “A divulgação do patrimônio arqueológico em Castilla y Leon (Espanha): o desafio dos espaços divulgativos”. arqueologia Pública, n° 1, 2006, pp. 07-18. TAMANINI, E.; PEIXER, Z. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura: educação popular e herança cultural no século XXI”. arqueologia Pública, n° 2, 2007, pp. 23-32. QUESADA, M.; MORENO, E.; GASTALDI, M. “Narrativas arqueológicas publicas e identidades indígenas en Catamarca”, arqueo- logia Pública, n° 2, 2007, pp. 57-72. 3 REIS, José A. “Lidando com as coisas quebradas da história”. ar- queologia Pública, n° 2, 2007, pp. 33-44. SCHAAN, Denise P. “Arqueo- logia, publico e comodificação da herança cultural: o caso da cultura Marajoara”, arqueologia Pública, n° 1, 2006, pp. 19-30. DOMINGUEZ, Lourdes. S. “Guanabacoa como una “experiencia” india en nuestra colonización: los restos de la arqueologia publica”, arqueologia Pública, n° 2, 2007, pp. 89-98. 4 BERÓN, M.; GUASTAVINO, M. “Manejo de recursos culturales y puesta en valor de historias regionales”, arqueologia Pública, n.2, 2007, p. 45-56. CASTRO, A. et allii. “Sitio arqueologico carsa (Puerto Deseado, Patagonia, Argentina): Reflexiones sobre la práctica de una arqueologia social y publica”, arqueologia Pública, n° 2, 2007, pp. 7-22. ROBRAHN- GONZÁLEZ, Erika Marion. “Arqueologia e sociedade no município de Ribeirão Grande, sul de São Paulo: ações em arqueologia pública ligadas ao Projeto de Ampliação da Mina Calcária Limeira”, arqueo- logia Pública, n° 1, 2006, pp. 63-122. SEMPÉ, M. C.; SALCEDA, S. A.; MARTINEZ, S. “Desarrollo de un modelo productivo para la recuperación sociocultural de poblaciones marginales de la provincia de catamarca: Azampay una experiencia piloto”, arqueologia Pública, n° 2, 2007, pp. 73-88. � CURY, M. X. “Para saber o que o público pensa sobre arqueologia”, arqueologia Pública, n° 1, 2006, pp. 31-48. LIMA, L. P.; FRANCISCO, G. da S. “O que é isso? Para que serve? Quem são vocês? O que fazem? Uma experiência de Arqueologia Pública em Paranã – TO”, arqueologia Pública, n° 1, 2006, pp. 49-62. 6 FUNARI, Pedro Paulo A.; Pelegrini, Sandra. de C. A. Patrimônio histórico e cultural, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2006. 7 BASS, George F. arqueologia subaquática, Verbo, Cacim, 1971. RAM- BELLI, Gilson. arqueologia até debaixo d’água, Maranta, São Paulo, 2002. Bruno Sanches Ranzani da Silva / Laura Candian Fraccaro 130 RHAA 11 O presente trabalho toca exatamente nesse ponto, isto é, na relação entre a Arqueologia e o público, que nos últimos 30 anos vem pedindo um maior engajamento dos pesquisadores. Ob- servaremos o exemplo particular da prática arqueológica embaixo d’água, tendo como caso os trabalhos em alguns navios negreiros no Golfo do México, no Mar do Caribe, na Austrália e no Brasil, tema histórica e socialmente polêmico. “Da diáspora” A impressão que o público tem da cultura material submersa já havia nos chamado a atenção em trabalho anterior (SILVA, Bruno, op. cit.). No mergulho recreativo, os sítios submersos são pontos de apreciação e de diversos interesses: busca por tesouros, por aventura, por relíquias históricas, belezas naturais, válvula de escape dos pro- blemas da modernidade ou pontos de referência sócio-históricos. A escravidão africana representa um marco imensurável na história da sociedade ocidental e nenhum esforço seria capaz de apagá-la. Não somente pela presença de descendentes dos escra- vizados nos continentes americanos, mas também pelas diferentes formas que a memória desse período toma. A memória da escravi- dão, mesmo fora do ambiente acadêmico, constitui-se, por muitas vezes, um campo delicado. Para alguns, juntamente com o tráfico de escravos, representa o início de um erro de consequências catastró- ficas, que trouxe a pobreza e um grande problema: a inclusão social desse elemento externo, que foi o africano (e seus descendentes). Também é considerada elemento integrante do presente, pois a partir de diversas políticas de exclusão social ao longo dos séculos de escravidão e pós-emancipação tenta-se manter os negros à parte da sociedade. Para outros, incluindo os mergulhadores negros, que aqui também são objetos de análise, representa parte de um passado doloroso, que tem de ser lembrado, mas como uma superação de diversos obstáculos da história do povo afro-americano. Apesar de ser uma memória múltipla e delicada, não acreditamos que abando- nar discussões sobre esse tema seja sensato. Pode ser que para uns, é abrir uma ferida, mas para outros se trata de um exorcismo. O vínculo entre o passado e o presente transparece hoje nas pesquisas acadêmicas tanto em História quanto em Arqueologia. Não dizemos de maneira anacrônica, mas é o reconhecimento de que estamos, hoje, movendo ideias sobre ontem, e que nossos olhos são filtros críticos daquilo que veem. Tendo isso em mente, buscamos relacionar a Arqueologia dos navios negreiros com o público que possa por ela se interessar; pú- blico arqueológico ou não arqueológico, em especial o segundo. This paper deals exactly withthis point, the relation between archaeology and the society who has, over the last 30 years, asked for a greater social engagement from the Academy. We shall enter this matter with a specific case study: the archaeology of sunken slave ships (in the Mexican Gulf, Caribbean Sea, Australia and Brazil), a historically and socially impacting issue. “About the Diaspora” The interest shown by the public on the sub- merged material culture has already caught our at- tention (SILVA, Bruno. op. Cit.). For recreational divers submerged sites have a diversity of attrac- tions: the search for sunken treasures, for adventure, for historical relics, natural beauties, and an escape from everyday stress or simple appreciation for dis- tinguished historical sites. African slavery has left an immensurable scar on the western world history, and no attempt will ever be able to erase it. Not only because of Afri- can descendents who are a considerable part of our social body, but also by the great variety of shapes which this tragic memory has taken. The memory of slavery is a very delicate field, whether inside or outside the Academy. For some, transatlantic slave trade is the beginning of a drastic mistake with catastrophic consequences, such as the poverty and social exclusion of many African descendents. And these issues are not at all a thing from the past, for it is seems like a permanent toil trying to erase centuries of segregation politics. For others it is a painful history, but it should be remembered as a history of a people constantly overcoming obsta- cles; a painful but proud memory. We understand the multitude and fragility of this memory, but we don’t think that abandoning the theme of discus- sion is in any way a sensible choice. For some, it may seem like opening a wound, but for others it is about exorcising a ghost. The connection between past and present is a clear concern in current academic practice, both in history and archaeology. It has gone beyond the simple concern with anachronism. It is a reflection about having our ideas moving through data from the past, and being our eyes critical filters. It is about the inevitability of some subjectivism in our scien- tific research. SILVA, Bruno S. Ranzani. Baú de tesouros: cultura material e o sublime das profundezas. 54 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em história) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. Divers. In. Black. RHAA 11 131 Essas preocupações não são novas dentro das discussões arqueológicas brasileiras. Recentemente, o brigue americano Ca- margo, que traficava após a proibição do tráfico em 1850, foi objeto de pesquisa.8 Assim, a importância dos estudos arqueológicos do naufrágio de um negreiro é ressaltada a partir da visão alternativa que pode nos proporcionar, considerações que não estão nos livros, sobre um tráfico ilegal (na época), lucrativo e cruel (RAMBELLI, Gilson, op. cit.). Esperamos que o presente trabalho possa também contribuir, mesmo que minimamente, para os estudos arqueológicos e da escravidão nas Américas. Um dos sítios que vemos ter sido amplamente estudado, o naufrágio do tumbeiro inglês henrietta Marie, surgiu como um projeto impactante, tanto pela altura de seu andamento quanto pela forte memória social que lhe foi atribuída. Michael Cottman, jorna- lista americano, negro (afro-americano), participou de boa parte dos primeiros anos de pesquisa histórica sobre a embarcação e publicou um livro de memórias e reflexões, suas e de diversos indivíduos que se envolveram no projeto, negros e não negros.9 Um outro ponto que nos parece importante, os trabalhos no henrietta Marie foram iniciados com financiamento de uma das mais conhecidas empresas de caça ao tesouro dos Estados Unidos, a Mel Fisher. Pelo anda- mento dos trabalhos, pelo alcance de sua divulgação e pela relação entre a pesquisa e uma empresa de salvamento, consideramos o caso do henrietta Marie interessante para ser explorado. Cottman cresceu em Detroit, EUA, em meio a movimen- tações sociais contra a discriminação racial nas décadas de 1970 e 1980. O autor relata os ensinamentos de seus pais sobre a cultura africana, considerada sua própria cultura, que deveria ser mantida com o orgulho da própria vida e a persistência de seus objeti- vos. Quando se tornou mergulhador, percebeu que teria de en- frentar também os percalços de cor nas pequenas embarcações que transportam turistas ao point de mergulho. É um jornalista renomado e politicamente inserido em discussões sobre a condição dos negros nos Estados Unidos e sobre a história afro-americana. Correspondente para o Washington Post, entre outras mídias, como o Blackamerica.web, também é escritor, sendo um dos seus livros mais conhecidos o the Million Man March (A marcha dos milhões de homens), uma marcha em Washington D.C. por mais direitos aos negros.10 O mergulho em um negreiro naufragado é mais que 8 RAMBELLI, Gilson. “Tráfico e navios negreiros: contribuição da Arqueologia Náutica e Subaquática”, Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil, v. 2, no 4, 2006, pp. 59-72. 9 COTTMAN, Michael. H. the Wreck of the henrietta Marie. New York, Crown, 1999. 10 http://www.michaelhcottman.com/. Acessado em 3 de janeiro de 2009. Having that in mind, we intend to relate the ar- chaeology of slave ships with the public interested in it: both archaeological and non-academic public, specially the second one. This discussion is not new or Brazilian archaeol- ogy. Recently, an American brig, the Camargo, was an object of research. It was still active on the slave trade even after the national prohibition in 18508. The author calls our attention to the alternative perspective which archaeology can give us on the unwritten history of an illegal, lucrative and cruel commerce (RAMBELLI, Gilson. op. Cit.). We hope that the present paper may contribute, even if mini- mally, to the studies of archaeology and slavery in the Americas. One of the studied sites was the shipwreck of the henrietta Marie, a large Project which the im- portance lies not only on the advanced stage of the research, but also on the memorial weight added to it. Michael Cottman, an African-American journalist, had a large participation in the historical research on the wreck, and later published a book about his experiences. The book is a beautiful narrative on memories and reflexions, not only his but from many others who “met” the henrietta Marie, Black or White9. It is worth remembering that the works on the henrietta Marie started with the finance of the most famous hunting treasure company in the USA, The Mel Fisher. Considering the advanced stage of the works, its large publicity compared to other shipwreck projects, and its relation with a treasure hunting company, we thought the henrietta Marie as an interesting case to be studied. Cottman was born in Detroit, USA, among the social movements against racism in the 1970’s and 1980’s. The author tells us about his parental teach- ings of African culture, taken as their own culture, which should never be forgotten, should always be remembered with pride and should guide him to his goals. When he became a diver, he realized he would also have to face the prejudice which roamed the little vessels taking them to the diving points. Michael Cottman is a renowned and politically en- gaged journalist, critical of the Black conditions in the United States and researcher of African-Ameri- can history. Correspondent for the Washington Post and web media Blackamerica.web, He is also a book writer: the Million Man March, a march on Wash- 8 RAMBELLI, Gilson. “Tráfico e navios negreiros: contribuição da Arqueologia Náutica e Subaquática”, Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil, v. 2, nº 4, 2006, p. 59-72. 9 COTTMAN, Michael. H. the Wreck of the henrietta Marie. New York, Crown, 1999. BrunoSanches Ranzani da Silva / Laura Candian Fraccaro 132 RHAA 11 uma curiosidade para ele, faz parte da formação política de um estudioso da história dos afro-americanos. O que nos interessa aqui é justamente a discursividade que o autor constrói quando envolvido na pesquisa da embarcação. Qual a importância que vê um mergulhador negro ao interagir com os vestígios de um navio negreiro, e com um grupo diverso de indivíduos que, diferentes em diversas maneiras, se encontram em algum tipo de comunhão diante do mesmo vestígio? Stuart Hall, um autor considerado marco na discussão sobre a construção de identidades na sociedade moderna pós-colonial, produziu alguns ensaios sobre o tema do que chamou a diáspora. Hall nasceu na Jamaica em 1932, em uma família de classe média. Criado e consciente da miscigenação do ambiente colonial, sendo inclusive negro, foi estudar literatura em Oxford, Inglaterra, em 1951, aproximando-se da “New left” inglesa com personagens como E. P. Thompson, Raymond Williams, Raphael Samuel, Charles Taylor. Hall surgirá nas discussões acadêmicas como um dos gran- des críticos da cultura colonial.11 Em seu texto quem precisa de identidade?12 o autor reflete sobre a formação de identidades, abrindo o campo para um conceito mais fluido. Sua premissa é de que não nos basta, hoje, as definições na- cionalistas, étnicas e raciais de identidade. Com essa posição, inicia sua argumentação partindo de uma consequente pergunta: “Qual a necessidade, então, de continuar com o debate sobre ‘identidade’? Quem precisa dela?” (HALL, op. cit., p. 1). Sua argumentação gira em torno da historicidade da identidade. Essa, na visão do autor, não é um conceito existencial, mas sim uma construção dependente de um contexto social, cultural, político e temporal. Não se trata de “ser”, ou de lembrar o passado “raiz” para compreender uma existência diretamente descendente desse passado. Mas sim é uma questão de vir a ser, de usar os recursos do passado para “suturar” as feridas que se formam sobre o indivíduo, feridas também causadas por um contexto específico. O autor enfatiza que o caráter “inessencial” da identidade, ou seja, o fato de ser um parâmetro construído, não interfere, no entanto, em sua profundidade nem em sua atitude. O surgimento da narrativização de si, mas a natureza necessa- riamente ficcional desse processo de maneira alguma diminui a 11 SOVIK, Liv. “Apresentação: para ler Stuart Hall” In: HALL, Stuart. da diáspora – identidades e mediações e identidades culturais, org. Liv Sovik, 1. reimpressão revista, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006, pp. 9-22. 12 HALL, Stuart. “Introduction: Who needs identity?” In: HALL, Stuart; GAY, Paul du (eds.). questions of cultural identity, Trowbridge (UK), 2000. ington DC for African-American rights10. The dive on a slaver shipwreck is more than a mere curiosity for him. It is part of the political formation of an African-American history researcher. Our point of interest here is the discourse created by the author when wrapped in the research of the wreck. What is the response of a black diver when facing the vestiges of a slaver, and how he develops a certain relation with the other divers, different people who are at the same communion site. An author considered as a reference in the discus- sions of identity in post-colonial society, Stuart Hall, has written some papers around the theme which he called the diaspora. Stuart Hall was born in Jamaica 1932, in a middle class family. Raised, and conscien- tious, of the miscegenation of the colonial environ- ment, being also black, he went to study literature in Oxford in 1951. There, he got close to the British “New Left” (E. P. Thompson, Raymond Williams, Raphael Samuel, Charles Taylor). Hall would become one of the greatest critics of the colonial culture11. In his paper Who needs identity?12 The author re- flects on the formation of identities, opening the field for a more fluid concept. He starts from the insufficiency of the national, ethnic and racial defi- nitions of identity. From that, he argues about the need of an identity: “What, then, is the need for a further debate about ‘identity’? Who needs it?” (HALL, op. Cit., p. 1). His arguments run through historicity and identity. To Hall, identity is not an existential concept, but a construction from social, cultural, political and temporal contexts. It is not about “being” or connecting with “the roots” of an esteemed ancestry. It is a matter of “coming to be”, using resources from the past to “suture” the wounds inflicted on the individual, wounds also in- flicted by a determined context. The author emphasizes the “inessential” charac- ter of identity, of its being a constructed parameter. This doesn’t interfere, however, in the deepness and authenticity of the construction. They arise from the narrativization of the self, but the necessary fictional nature of this process in no way undermines its discursive, material or political 10 http://www.michaelhcottman.com/. Acessado em 03 de janeiro de 2009. 11 SOVIK, Liv. “Apresentação: para ler Stuart Hall” In: HALL, Stuart. da diaspora – identidades e mediações e identidades culturais, org. Liv Sovik, 1º reimpressão revista, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2006, pp. 9 – 22. 12 HALL, Stuart. “Introduction: Who needs identity?” In: HALL, Stuart; GAY, Paul du (eds.). questions of cultural identity, Trowbridge (UK), 2000. Divers. In. Black. RHAA 11 133 discursividade, materialidade ou efetividade política, mesmo se o pertencimento, a “sutura na história” pela qual as identidades surgem, for, parcialmente no imaginário (bem como no simbólico) e portanto sempre construído parcialmente pela fantasia, ou pelo menos em um terreno fantasmático (HALL, Stuart, op. cit., p. 4). O peso de se posicionar contra uma situação considerada opressiva é uma forte motivação para a construção de narrativas que legitimem as vontades do sujeito, assim como as fundações do sistema opressor estão também sobre uma narrativa legitimadora. As- sim, o reconhecimento de que as identidades são construídas dentro de um discurso requer o estudo dos mecanismos de poder que agem no momento em que supostas heranças, tradições, são evocadas. Algemas, identidade e memória Tendo em consideração as argumentações de Hall, podemos voltar nossa atenção à leitura de Cottman. A obra é o resultado de uma sensibilidade despertada no autor pela participação na pes- quisa e mergulho no sítio do naufragado henrietta Marie, e mescla vínculos histórico-culturais, pertença social e realização pessoal. O autor aplica em sua produção desejos de conhecimento e combate, de entendimento e crítica, de esclarecimento e superação. Esses sentimentos não pertencem somente ao autor, como pretende deixar claro ao transcrever seus diálogos e reflexões de outras personagens conhecidas em sua saga. São sentimentos compartilhados por outros componentes da associação de mergulhadores negros. Um dos trechos mais marcantes do livro, expressão desse sentimento de união, foi escrito sobre o primeiro dia do 2o encon- tro da Associação Nacional de Mergulhadores de SCUBA Negros (National association of Black scuba divers), reproduzindo grande parte do criador da Associação, Dr. Jose Jones: Olhando a sala repleta de mergulhadores negros, podiam-se ver homens e mulheres negras de todas as partes do país vestindo shorts e camisetas, sentados em um deslumbre silencioso, exaltados por fazer parte de algo tão extraordinário. Havia doutores e advogados, policiais e bombeiros, educadores e executivos de computação, químicos e engenheiros, carteiros e arquitetos. Jones falou de invernos passados, de ligações culturais, de laços com nossos ancestrais africanos. Ele falou aos mergulhadores negros sobre desafiar o mesmo oceano no qual o povo africano pereceu. Ele falou do navio negreiro henrietta Marie. “Há um navio não muito longe daqui, um navio negreiro chamandohenrietta Marie, um navio que carregou nossos ances- effectivity, even if the belongingness, the ‘suturing into the story’ throught which identities arise, is, partly in the imaginary (as well as the symbolic) and therefore, always, partly constructed in fantasy, or at least in a fantasmatic field. (HALL, Stuart. op. cit, p. 4). The power for fighting an oppressive situation is a strong motivation for the construction of narratives which may legitimate the will of the individual. In the same way that narratives were created by the oppressors to sustain their domain. Therefore, to understand the construction of identities inside a discourse we need to understand the mechanisms of power which act in the moment which the supposed heritages and traditions are evoqued. Cuffs, identity and memory Having gone through some of Hall’s arguments, we can return to the reading of Cottman. His book is the result of the his sensibility when taking part in the research, when diving, when placed in front of the wreck of the henrietta Marie, and it mixes cultural-historical bonds, social belonging and per- sonal achievement. The author combines feelings of learning and fighting, of understanding and critique, of clearing and overcoming. These feelings do not belong solely to the author, as he tries to clarify through the transcription of many conversations with other characters met during his saga. They are feelings shared by other members of the Black Scuba Divers Association. One of the most touching parts of the book, ex- pression of this union, was written about the first day of the 2º Meeting of the National Association of Black Scuba Divers. He transcribed the major part of the speech given by the creator of the Association, Dr. Jose Jones: Looking out over the roomful of black divers, one could see black men and women from across the nation dressed in shorts and T-shirts, sitting in silent amazement, thrilled to be part of something so extraordinary. There were doctors and lawyers, policemen and firefighters, educators and computer executives, chemists and engineers, postal workers and architects. Jones spoke of winters past, of cultural connec- tions, of links to our African forefathers. He spoke to black divers about challenging the same oceans where African people had perished. He talked of the slave ship henrietta Marie. “There’s a ship not far from here, a slave ship Bruno Sanches Ranzani da Silva / Laura Candian Fraccaro 134 RHAA 11 trais da África para as Índias Ocidentais trezentos anos atrás”, disse Jones. “Ele carregava alguns dos membros da sua família e alguns da minha.” “Esse navio negreiro veio à tona no momento em que esta- mos formando uma organização internacional de mergulhadores negros. Não há coincidências. Esse navio negreiro é parte de nós, queira gostemos ou não.” Havia um sentimento de união que parecia preencher o sa- lão: uma sensação de vínculo familiar passado e presente, um sentimento de amizade e camaradagem que ninguém poderia ter antecipado. “Esse navio representa parte de nosso passado, parte do passado de vocês”, Jones falava enquanto caminhava pelo salão. “É parte de um lugar dentro de cada um de nós. Esta é uma oportunidade extraordinária – e a primeira oportunidade – para mergulhadores negros estudar um navio negreiro que representa uma porção de sua história, uma história que tem sido escrita extensamente, analisada e interpretada por escritores europeus.” “Mas hoje”, ele disse “nós podemos ajudar a reconstruir essa parte de nossa história nós mesmos, porque podemos explorar o fundo do oceano. O que faz do henrietta Marie tão importante é não se tratar apenas de nossa história”. Cada indivíduo no salão estava radiante de orgulho. Para eles, o henrietta Marie não era apenas uma história de um livro, mas algo tangível que podia ser examinado e observado embaixo d’água. Jones parou por um momento e ofereceu uma sugestão, uma ideia que havia discutido semanas antes com Oswald Sykes, um mergulhador recém-certificado, e Ric Powell, um antigo mergulha- dor da marinha. Ele ainda não possuía todas as respostas para a im- plementação do plano, mas achou que deveria levantar a questão. “O que eu gostaria de ver é algum tipo de placa – ou me- morial – colocado no sítio do henrietta Marie”, Jones disse “Uma comemoração do povo negro, mergulhadores negros, para o povo negro, povo africano, nosso povo, que podemos deixar no fundo do oceano.” (COTTMAN, Michael. op. cit., pp. 115-116) Neste trecho, o autor registra o que sente ser um interesse comum pela união sob um mesmo marco étnico e cultural, decisão que de fato parece ir além do autor, considerando o fato de uma associação destinada à união de negros na atividade de mergu- lho, em especial na situação de mergulho em um navio negreiro afundado. A união independe da profissão, seja a de bombeiro ou executivo, o fato comum não é apenas ser negro, mas o sentimento de compartilhar um passado, ligado à escravidão e ao tráfico. É uma parte da história americana considerada comum a todos os presentes e constitutiva de suas personalidades e vidas. called henrietta Marie, a ship that carried our ances- tors from Africa to the West Indies three hundred years ago,” Jones said. “It carried some of your family members and it carried some of mine. “This slave ship has come to our attention at a time when we’re forming a national organization of black scuba divers. There are no coincidences. This slave ship is a part of us, whether we like it or not.” There was a sense of unity that seemed to fill the room: a sense of family connection past and present, a feeling of friendship and camaraderie that no one could have anticipated. “This ship represents a part of our past, a part of your past,” Jones said as he began to pace the floor. “It’s part of a place within each of us. This is an extraordinary opportunity – and the first opportu- nity – for black scuba divers to study a slave ship that represents a portion of our history, a history that has been written about extensively, analyzed, and interpreted by European writers. “But today,” he said “we can help reconstruct this part of our history ourselves, because we can explore the ocean floor. What makes the henrietta Marie so important is that this is not just about our history; it’s a pivotal part of the American history.” Every person in the room was beaming with pride. For them, the henrietta Marie was not simply a story from a book, but something tangible that could be examined and observed underwater. Jones paused for a moment and offered a sug- gestion, an idea that he had discussed weeks be- fore Oswald Sykes, a newly certified diver, and Ric Powell, a former navy diver. Hi didn’t have all the answers for implementing the plan yet, but he felt that he should raise the issue anyway. “What I would like to see is some kind of plaque – or memorial – placed at the site of the henrietta Marie,” Jones said “A commemoration from black people, black divers, to black people, African people, our people, that we can leave on the ocean floor.” (COTTMAN, Michael. op. Cit., pp. 115-116) In this citation, the author writes what he feels is a common interest in the union under a same ethnic and cultural marker (interest which does seems to be communal, considering the meeting of an Association of Black Scuba Divers). The bonds are regardless profession, be one a fireman or an executive. The junction factor is not only the Af- rican ascendency, but the feeling of sharing a past, connected with slavery and slave trade. It is an equal part of American history, and an equal mark on their personalities and lives. Divers. In. Black. RHAA 11 13� A questão social pode parecer ambígua para alguns, pois ao mesmo tempo que o mergulho restringe o acesso de possíveis participantes nessa comunhão, por ser uma atividade cara, não aparenta exercer qualquer tipode pressão de classe. Ao contrário, fica evidente em várias partes do livro o “quão longe” chegaram indivíduos negros na sociedade ocidental. Mesmo sendo discrimi- nados e desacreditados (o autor menciona situações diversas em que “negros não poderiam nadar bem” ou “não queriam montar dupla com mergulhadores negros”), conseguiram ocupar cargos de controle e de alto rendimento. Essa exaltação do sucesso e da ascen- são social é uma reação às constantes discussões sobre a condição dos negros no EUA, nas quais o pensamento tanto liberal como conservador norte-americano defende uma política meritocrática, individualista e de igualdade de oportunidades. O indivíduo deve ser tratado de acordo com sua capaci- dade e méritos próprios, independentemente do grupo social a que pertence e, por conseguinte, se esse indivíduo e seu grupo social vierem a ocupar uma posição segregada, é apenas fruto de suas características e ações.13 Por vezes, assim como outras minorias, são vistos como obstáculos para o desenvolvimento econômico e social da América ou como focos de degeneração da moral e religião. O que se esconde atrás dessa referência feita pelos mergulhadores ao sucesso é o sentimento de pertença à história da América. Mas é um espaço que eles não ocupam como vítimas da escravidão ou tráfico, mas como um grupo que, apesar dos obstáculos, conseguiu a ascensão e, portanto, constrói a América a partir de seus próprios esforços. Cottman argumenta que desde o início da história dos EUA, são os africanos e seus descendentes que a constroem. É na busca pelo passado do tráfico e da escravidão que esse grupo de mergulhadores se coloca como integrantes e atores da história norte-americana. Essa busca pelo passado, por uma raiz e toda a construção de um discurso que une ao mesmo tempo a África e a América, justifica a sua presença e pertença a esse mundo que não lhes é natural. Como o próprio autor afirma, são laços africanos e ancestrais, mas que os situam na América. A questão mais fortemente impressa aqui é a presença de todos diante dos vestígios de um acontecimento histórico, o nau- frágio de um negreiro, tumbeiro dos ancestrais, vínculo familiar e hereditário, cordão umbilical atemporal entre os afro-americanos (african-americans) e a mãe África. 13 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “Políticas Públicas para ascensão do negro do Brasil: argumentando pela ação afirmativa”, afro-Ásia, n. 18, 1996, pp.235-261. The social issue may be considered ambigu- ous, on one hand, since diving might still be a costly practice. On the other hand, it doesn’t seem to have caused any impediments on the members of the Association. On the contrary, it is evident, in many parts of the book, “how far” have black individuals conquered western society; Despite the prejudice and discredit (the Cottman mentions the common beliefs that “blacks couldn’t swim well” or “wouldn’t take black people as diving partners”), they’ve managed to achieve high professional ranks and good earning. This exaltation of the success, of social ascension is a reaction to the constant discussions on the conditions of the black people in the USA. In these discussions, both liberal and conservative conceptions in North America, sup- port the politic of merit, individualism and equality of opportunities. The individual must be treated accordingly with his own capacities and merits, regardless his social group. Consequently, if this individual comes to occupy a segregated social position, it is only as a result of his own actions13. It may be that, as it hap- pens with some social minorities, they come to be faced as an obstacle for economic development, or as foci of moral and religious degeneration. What lies behind this feeling of achievement demonstrated by the divers is the position of belonging to the Ameri- can history. But it is not a space occupied as victims of slavery, but as members of a group who managed to overcome the obstacles, to ascent socially and, therefore, built America through their own efforts. Cottman argues that since its beginning, America’s history has been molded by black hands. It’s in the search for the slavery and the trade in the past that these divers pose themselves as actors of North American history. The search itself for the past, the roots and the created discourse which unites Africa and America, are the just causes for the belonging in a world which sees them as foreigners. As the author himself puts it, they are African ancestral bonds, but place them in America. The strongest impression felt in the book is when all are present at the site, facing a historical moment, the wreck of a slaver, tomb of ancestors, familiar and hereditary bond, timeless umbilical cord between African-Americans and mother Africa. The cord goes through the sunken ship, remains of African and national history: The shipwreck not 13 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “Políticas Públicas para ascensão do negro do Brasil: argumentando pela ação afirmativa”, afro-Ásia, n° 18, 1996, pp.235-261. Bruno Sanches Ranzani da Silva / Laura Candian Fraccaro 136 RHAA 11 O cordão passa pelo naufrágio, vestígio da história de todos os afro-americanos e da história nacional: o naufrágio não somente leva os mergulhadores negros de volta à sua terra natal, mas retorna todos a uma das grandes cicatrizes de seu passado, direciona o holofote para os problemas enfrentados por uma grande parte da nação no presente, e abre espaço para sua participação na história nacional. O naufrágio é lugar da memória de Nora,14 um marco étnico, termo cunhado por Siân Jones,1� mas aqui tomado como um marco no presente. A memória é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em fun- ção do presente via gestão das memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos, símbolos, rituais, datas, comemorações...). Noção de que a memória torna poderoso(s) aquele(s) que a gere(m) e controla(m).16 Por um lado, temos a argumentação de Hall sobre a cons- trução da identidade, seu caráter histórico e local, a mãe África gerada por e não geradora de seus filhos. No entanto, devemos lembrar também da argumentação de Hall em defesa dessas ge- nealogias; sua artificialidade não nega sua força política, sua efe- tividade social. A dualidade “negros” e “brancos” não é a opção socialmente mais saudável, adverte Hall. Mas a crítica à pressão racial exercida por fora tampouco deve ser esquecida ou passiva. A sutura das feridas na história sugere que ainda existam feridas a serem curadas. Tradução de miscelâneas Como lida, então, a Arqueologia com essa situação? Um dos mais importantes periódicos internacionais de Ar- queologia, a revista internacional de arqueologia histórica (international Journal of historical archaeolog y), publicou um de seus números ex- clusivamente para trabalhos de arqueologia de navios negreiros. No primeiro artigo da revista, Janet Webster afirma a escassa 14 LE GOFF, Jacques. história e Memória, Trad. Bernardo Leitão, Irene Ferreira e Suzana Ferreira Borges, Unicamp, Campinas, 2003. 1� JONES, Sian. “Categorias históricas e a práxis da identidade: a interpretação da etnicidade na arqueologia histórica.” In: Funari, P. P. A., Orser Jr., C. E. & Schia- vetto, S. N. de O. (org.), identidades, discurso e poder: estudos da arqueologia contemporânea. São Paulo, Annablume; Fapesp, 2005. 16 SEIXAS, Jacy A. “Percursos de Memória em terras de história” in Memória e (res)sentimento, (orgs.) Bresciani, M. S. & Naxara, M., Unicamp, Campinas, 2004, p. 42. only takes the Black divers back to the homeland, but takes all down to the greatest scar of their past. It drives the spotlights to grave problems faced by a large sector of the American society today, and opens a space for their participation in the national history.The shipwreck is the “site of memory” of Pierre Nora14, an ethnic marker, term created by Siân Jones, but here used as a marker in the present. Memory is activated viewing the control of the past (and consequently the present). Remold the past for the present through memory means, before anything else, to control the materiality through which the memory expresses itself (from relics to monuments, archives, symbols, rituals, data, commemorations…). The sense that mem- ory makes it powerful the one(s) who control it1�. On one hand, we have the arguments of Hall about the construction of identity, its historicity and regionalism, mother Africa created by and not crea- tor of their children. Nevertheless, its artificiality does not deny its political strength, its social affec- tivity. The duality “black and white” isn’t socially the healthiest. But the critique to the racial pressure that comes from the outside should not be forgot- ten of pacified. The suturing of wounds in history means that are wounds still to be healed. Translating Miscellaneous How does, then, archaeology deals with all that? One of the most important international jour- nals in archaeology, the international Journal of histori- cal archaeolog y, has fully dedicated one of its issues to slaver shipwreck archaeology. On the first article on the journal, Janet Webster talks about the few researches on the area16. In this issue, three Projects are published: the henrietta Marie, the trouvadore and the ex-slaver James Mathews. We’ve already seen a bit about the first, which was found in 1971 by the Mel Fisher Salvage Team, one of the most famous treasure hunters in the modern world17. The trouvadore Project deals 14 LE GOFF, Jacques. história e Memória, Trad. Bernando Leitão, Irene Ferreira e Suzana Ferreira Borges, Unicamp, Campinas, 2003. 1� SEIXAS, Jacy A. “Percursos de Memória em terras de história” in Memória e (res)sentimento, (orgs.) Bresciani, M. S. & Naxara, M., Uni- camp, Campinas, 2004, p. 42. 16 WEBSTER, Janet. “Slave ships and maritime archaeology: an overview”, international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, nº 6, 2008a, pp. 6-19. 17 MALCOM, Corey; MOORE, David D. “Seventeenth-Century Vehi- cle of the Middle Passage: Archaeological and Historical Investigations Divers. In. Black. RHAA 11 137 rede de pesquisa sobre o tema, e fala sobre os poucos sítios com projetos em andamento.17 Nessa edição, aparecem trabalhos referentes a três projetos: o henrietta Marie, o trouvadore e o ex-negreiro James Mathews. Já vimos um pouco sobre o primeiro, que foi encontrado em 1971 por uma equipe de salvamento de Melvin Fisher, um dos mais famosos ca- çadores de tesouros da atualidade.18 O projeto do trouvadore lida de maneira central com as comunidades que vivem acerca do naufrágio (ainda não identificado com precisão), pois supõe-se, com base em re- gistros orais e escritos, que parte da população negra das ilhas Turks e Caicos, no mar do Caribe, tenha sido formada pelos sobreviventes do naufrágio de um negreiro na costa leste das ilhas.19 O terceiro traça a história de um tumbeiro após ter abandonado sua função inicial, ou seja, tenta reconstruir os “passos” de um ex-navio negreiro visando descobrir se efetivamente ele teria deixado o tráfico.20 As publicações dessa edição assumem, em algum momento de seus textos, a delicadeza e malgrado do tema da escravidão, e o fato de estudar os vestígios da Travessia (em inglês, Middle Passage) coloca a Arqueologia no meio dessa discussão. Na década de 1980, surge uma nova crítica teórica na Arqueo- logia, encabeçada pelo arqueólogo britânico Ian Hodder, que propõe o posicionamento engajado da Arqueologia diante da comunidade que demanda a compreensão da cultura material e das possibilidades discursivas que podem surgir dele. Hoje, Hodder é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Stanford, nos EUA, e foi o estudioso que primeiramente apresentou na Europa a perspectiva teórica americana processual. Contudo, ele próprio foi quem deu início a uma linha teórica em oposição ao processualismo, o chamado “pós-processualismo” (mas que hoje é conhecida como “arqueologia interpretativa”). Hodder já publicou diversas obras em que trabalha tanto com argumentações teórico-metodológicas defendendo uma reavaliação das práticas da disciplina, mais atenção ao sujeito como agente social, à heterogeneidade social e à influência subjetiva do pesquisador sobre seu produto de pesquisa. 17 WEBSTER, Janet. “Slave ships and maritime archaeology: an overview”, interna- tional Journal of historical archaeolog y, vol. 12, no 6, 2008a, pp. 6-19. 18 MALCOM, Corey; MOORE, David D. “Seventeenth-Century Vehicle of the Middle Passage: Archaeological and Historical Investigations on the Henrietta Ma- rie Shipwreck Site”, international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, no 6, 2008, pp. 20-38. 19 SADLER, N. “The Trouvadore Project: the search for a slave ship and its cul- tural importance”, international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, no 6, 2008, pp. �3-70. 20 HENDERSON, G. “The wreck of the ex-slaver James Matthews” international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, no 6, 2008, pp. 39-52. directly with the communities that live near the shipwreck (still not precisely identified). Oral and written records show that part of the Turks and Caicos island’s population, in the Caribbean sea, is constituted by the survivors of a slaver wreck (which sank in the east coast of the islands)18. The third one tells the story of a slaver which aban- doned its primary function. However, the purpose of tracing its history is the assumption that it hadn’t stopped trading slaves at all19. This issues’ papers mention, at some point, how complicated and sensitive area it is this field of re- search, and that studying its material remains drives archaeology into it. In the 1980’s, a new archaeological perspective started to gain space, especially after the publica- tions of the British archaeologist Ian Hodder. This perspective proposes a greater commitment of ar- chaeology in the face of the demanding community which seeks to understand better material culture and what archaeologists make of it. Hodder is now- adays a professor at the Stanford University, USA, and was the first one to apply the American “New Archaeology” in Europe. However, he himself was the first one to start a wave of criticism to this perspective, heading a theoretical movement which was first known as “postprocessual” archaeology (also known as “interpretative archaeology”). He has published many works defending a reevaluation of the methodological practices of the discipline: greater attention to the individual as social actor, heterogeneity in society and the archaeologist’s subjectivity over his work. The interpretative archaeology centers its ar- guments on the multivocality filling the archaeo- logical practice in three levels: past, present and archaeologist. The past, even when separated from the present, has never existed in a homogeneous way, as the present doesn’t exist in a homogeneous way. “His- tory is a mess”20, everyday life in the past is polisse- mous, as the authors defend, and therefore full of uncertainties, conflicts and possibilities. At the on the Henrietta Marie Shipwreck Site”, international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, nº 6, 2008, pp. 20-38. 18 SADLER, N. “The Trouvadore Project: the search for a slave ship and its cultural importance”, international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, nº 6, 2008, pp. 53-70. 19 HENDERSON, G. “The wreck of the ex-slaver James Matthews” international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, nº 6, 2008, pp. 39-52. 20 SHANKS, M.; HODDER, Ian. “Processual, postprocessual and interpretive archaeologies”. In: HODDER, Ian et allii, interpreting archaeolog y: finding meaning in the past, London;New York,Routledge, 1998, p. 9. Bruno Sanches Ranzani da Silva / Laura Candian Fraccaro 138 RHAA 11 A Arqueologia interpretativa centraliza seus argumentos na multivocalidade que preenche a prática arqueológica em três está- gios: o passado, o presente e o arqueólogo. O passado, mesmo quando fora presente, nunca se apre- sentou de maneira homogênea, tal como hoje. “A história é uma bagunça”,21 o cotidiano do passado é polissêmico, defendem os autores, e, portanto, cheio de incertezas, conflitos e possibilidades. Ao mesmo tempo, Shanks e Hodder atentam ao presente, nosso contexto de partida. É do presente que vêm nossos “pré-conceitos e pré-juízos”, nossos interesses pessoais e sociais. A arqueologia interpretativa, na proposta desses autores, não nega o presentismo, mas sim o reconhece como parte da pesquisa arqueológica. A Arqueologia não poderá encontrar no passado uma verdade objetiva, tanto por nunca haver existido uma verdade única no passado, como pelos desígnios pessoais e sociais que são ineren- tes à pesquisa. Nossas questões, nossas proposições, nossas suposi- ções, os vestígios que consideramos relevantes e as interpretações que julgamos válidas, tudo isso faz parte da responsabilidade do arqueólogo. O relativismo não é o oposto do objetivismo, como defendem os autores, tal como “real” e “místico”. A objetividade constrói-se na solidez de seus argumentos, e a multiplicidade sub- jetiva, como vimos nos diferentes exemplos, pode construir uma argumentação sólida. Reconhecer as subjetividades é, assim, a ob- jetividade da prática arqueológica. Entre as multiplicidades e incertezas do passado e do pre- sente, o arqueólogo está no centro, e cabe-lhe a tradução entre os dois tempos. Traduzir seria fazer um compreensível ao outro, estabelecer um diálogo entre as diversas partes envolvidas no tra- balho arqueológico. Ao lidar com o passado, os autores defendem o uso da crítica hermenêutica de seu objeto (Quais poderiam ser os significados do vestígio? Quais poderiam ser as intenções de seus criadores?) e reconhecem que os vestígios podem não responder necessariamente às nossas questões, trazendo-nos outras em seu lugar. Ao lidar com o presente, devemos também aplicar uma her- menêutica (formando assim uma dupla hermenêutica, comum à Sociologia) para entender a sociedade de onde partem nossas per- guntas e para a qual serão direcionadas nossas respostas. Podemos dizer, assim, que o trabalho interpretativo na Arqueologia requer atenção ao contexto sociológico, histórico, cultural, ético, disciplinar e nacional. O trabalho do arqueólogo tradutor é um trabalho que 21 SHANKS, M.; HODDER, Ian. “Processual, postprocessual and interpretive archaeologies”. In: HODDER, Ian et allii, Interpreting archaeolog y: finding meaning in the past, London; New York, Routledge, 1998, p. 9. same time, Shanks e Hodder call our attention to the starting context, the present. It’s from the present that comes all our prejudices and pre-con- ceptions, our personal and social interests. The interpretative archaeology does not deny the presentism, as the authors state, but accept it as part of the archaeological research. Archaeology won’t be able to find an objective truth, since there has never been one only truth in the past, and due to the inevitable individual filters which are part of the research. Our questions, our propositions, our suppositions, the vestiges we consider of relevance and the interpretations we consider valid. All of this is part of the archaeologist’s responsibility. Rela- tivism is not the opposition to objectivism, such as “real” and “mythical”. Any objectivity is built over solid arguments, and the multiplicity that is subjectivism can also build, as we’ve seen, solid and valid argumentations. To recognize subjectivities is, therefore, the objectivity of the archaeological practice. Among the multitude and uncertainties of the past and present, the archaeologist lies at the center, and it’s up to him the translation between both times. To translate means to make one part com- prehensible to the other, to manage a dialog among the parts involved. On dealing with the past, the authors have prescribed the use of hermeneutic cri- tique on their object. (“Which might be the mean- ings of these remains? Which might have been the intentions of the creators?”) and also that we should respect the limit of our presumptions and accept the questions posed by the materials themselves. On dealing with the present, we should also approach form a hermeneutic critique (a double hermeneutic commonly applied in sociology), to understand the society from which comes our questions and to where the answers are directed. We can say, there- fore, that the archaeological work demands atten- tion to the context (sociological, historical, cultural, ethical, disciplinary, and national). The job of the translator archaeologist involves what Shanks and Hodder have called “relationality” among the di- verse voices at play. To interact dynamically with the many views of the many parts. Finally, the paper by Shanks and Hodder directs our reading for two important moments on devel- oping relationality: The Project and the discourse. The project is from where all our preconceptions come, and for that matter it should be the first object of a critical conscious: justifying our meth- odological positions, explaining our objectives and considering the heterogeneous network which en- Divers. In. Black. RHAA 11 139 envolve o que os autores definiram como relacionalidade entre as diversas vozes que circundam sua atividade e considera os diversos pontos das diversas partes em uma interação dinâmica. Finalmente, o ensaio de Shanks e Hodder aponta para dois aspectos importantes no desenvolvimento dessa relacionalidade: o projeto e o discurso. O projeto é o ponto de partida de todos os nossos pré-conceitos, e por isso mesmo é o espaço em que deve- mos iniciar nossa consciência crítica, justificando nossas posições metodológicas, explicando nossos objetivos e considerando a rede heterogênea que compõe os membros participantes e o público- alvo. O resultado do projeto, seja uma publicação bibliográfica, exposição museológica ou um curso, é um discurso produzido e o qual esperamos que seja, se não aceito, pelo menos ouvido. Em nosso discurso, exprimimos uma estética, uma didática, vinculamos uma retórica, produzimos uma narrativa e intencionamos formar uma consciência. Esses aspectos não devem ser negligenciados na criação de nossos resultados de pesquisa. No entanto, inserindo aqui uma rápida, mas importante con- trapartida, não podemos esquecer do principal problema que sucede nos sítios submersos, a depredação. Com a busca por fantásticos tesouros, troféus de coragem e momentos de aventura, a cultura material submersa tem sofrido maus-tratos irreparáveis. Muitas vezes, o valor que atribuímos aos vestígios arqueológicos é a causa de sua destruição, e entre esses valores o monetário é o mais destruidor. O próprio henrietta Marie teve grande parte de seus trabalhos finan- ciados pela Mel Fisher Maritime heritage society,22 associação patrimo- nialista de uma das maiores empresas de caça ao tesouro dos EUA. Ou seja, ao mesmo tempo que temos essa empresa cobrindo parte da manutenção de um patrimônio cultural, temos o descobrimento acidental do naufrágio durante a busca da mesma empresa pelo atocha, embarcação espanhola que naufragara carregada de prata. E mesmo financiando projetos culturais, a Mel Fisher ainda vende joias e moedas de prata retiradas de naufrágios, com a propaganda own a piece of history (“possua um pedaço da história”).23 O certo ranço que alguns arqueólogos mostram sobre as empresas de salvamento vem justamente dessa preocupação pela conservação do patrimônio. Apesar do respeito aos vestígios do henrietta Marie, a Mel Fisher continua sendo uma empresa de caça ao tesouro e atribuindo um perigoso valor monetárioa objetos que deveriam permanecer sobre domínio público, por representarem mais do que um interesse valorativo. 22 http://www.melfisher.org/. Acessado em 27 de janeiro de 2009. 23 http://www.melfisher.com/. Acessado em 27 de janeiro de 2009. velops team members and general public. The result of the project, whether a paper publication, a mu- seum exposition or teaching classes, is a discourse produced to be, if not accepted, at least heard. In our discourses, we express an aesthetic, a didac- tic; we use rhetoric, produce a narrative and try to create a consciousness. These aspects shouldn’t be neglected in the making of our research. However, going here through a quick but im- portant counterpart, we cannot forget the main problem concerning underwater sites; pillage. In the search for fantastic treasures, trophies of per- sonal courage and a few moments of adventure, submerged material culture has suffered irreparable damage. Among the many values attributed to the archaeological remains the monetary is the deadli- est. The henrietta Marie was financed partially by the Mel Fisher Maritime heritage society21, a branch from one of the biggest treasure hunting compa- nies in the world. Actually, The henrietta Marie was discovered during a survey for another sunken ship, the atocha, a spanish vessel which went down with a large silver cargo. The odd part is that having a branch for cultural heritage management doesn’t seem to interfere with his bounty commerce, for which the propaganda is own a piece of history22. The grudge that archaeologists feel towards sal- vage companies, and sometimes recreational divers, comes from the concern with the conservation of the cultural heritage. Though we aknowledge the respect shown to the remains of the henrietta Marie, the Mel Fisher company is still a sunken treasure hunting group, and the financial value attributed to the submerged remains manaces the conservation of its social value. Conclusion We can return now to the papers of the Inter- national Journal of Historical Archaeology. The articles are directed to historical archaeologists23, and the papers circle through the concommitant use of written and material sources in archaeo- logical researches. Their main purpose is to call attention to the relevance of using both sources as a way of giving different perspectives to this delicate place in western history. However, all the papers merely scratch the importance that their work may have upon nowadays black communi- 21 http://www.melfisher.org/. Acessado em 27 de janeiro de 2009. 22 http://www.melfisher.com/. Acessado em 27 de janeiro de 2009. 23 WEBSTER, Janet. “Historical Archaeology and the slave ship”, inter- national Journal of historical archaeolog y, vol. 12, nº 6, 2008b, pp. 1-5. Bruno Sanches Ranzani da Silva / Laura Candian Fraccaro 140 RHAA 11 Conclusão Nesse momento podemos voltar aos textos da revista internacio- nal de arqueologia histórica. Os artigos são direcionados a arqueólogos históricos,24 e os trabalhos giram em torno da relação entre as fontes escritas e os achados materiais, de modo a demonstrar a importância de expandir os trabalhos em navios negreiros para a melhor com- preensão da história desse período. No entanto, todos os trabalhos apenas tangenciam a importância que suas pesquisas têm para as comunidades negras atuais. Melhor dizendo, as possibilidades inter- pretativas que partem do público não acadêmico foram deixadas em segundo plano em artigos publicados para o público acadêmico. Fora da academia, outras são as sensações sobre História, Ar- queologia e Antropologia. No entanto, não deixam de ser sensações interessadas e motivadas. Mergulhadores negros unem-se, preocupa- dos em formar uma identidade comum para lutarem e sobreviverem às adversidades de uma sociedade predominantemente branca e ainda preconceituosa aquém dos estudos acadêmicos, talvez, mas não das preocupações sociais, políticas e culturais que os próprios pesquisado- res tomam como motores de suas pesquisas. Seria esse simples relance o resultado da “delicadeza” da questão? Malcom e Moore aparecem no encontro da Associação Nacional dos Mergulhadores Negros, mas por que seu trabalho publicado na revista internacional de arqueologia histórica menciona apenas brevemente o monumento colocado no sítio? Não acusamos os autores de se ausentarem da discussão, mas de não a considerarem em maior evidência nessas publicações, que se dizem centrais na divulgação das pesquisas sobre o tema. Reconhe- cemos, com as observações feitas sobre as empresas de salvamento, que a Arqueologia esteja se preocupando com a construção de um valor além do financeiro. Mas a única maneira de fazer com que essa luta caminhe para além dos meios acadêmicos é enquadrar os esforços de divulgação nos planejamentos da pesquisa e colocá-los em prática nas comunidades não acadêmicas, sejam elas formadas por turistas mergulhadores ou pescadores das redondezas. Cottman registra um comentário de David Moore: “Como arqueólogo”, David disse, “Eu tento enxergar o sítio tão objetivamente quanto possível. Mas quando você olha aquelas algemas, o que o navio estava fazendo – seu objetivo – realmente é algo chocante. Aquelas algemas não foram manuseadas por mais de uma ou duas pessoas desde que foram usadas por escravos.” (COTTMAN, Michael, op. cit., p. 30) 24 WEBSTER, Janet. “Historical Archaeology and the slave ship”, international Journal of historical archaeolog y, vol. 12, no 6, 2008b, pp. 1-5. ties. In other words, the considerations on the possible interpretation which might come from the non-academic public were left aside. Outside the Academy others are the sensations about History, Archaelogy and Anthropology. They are, nevertheless, still interested and motivated sensibilities; Black divers search for a gathering in one common identity that might help them fight a predomminantly White and still prejudicial society. Detached from the academic concerns, perhaps, but not from the social, political and cultural concerns, which the academics themselves take as motors of their duties. Would this slight relapse be a mere result of the “sensitivity” of the subject? Malcom & Moore show up at the National Association of Black Scuba Divers, but why then their paper pub- lished at the iJha mentions only briefly the com- memorative plaque on the site? We’re not accusing the authors of running away from the subject, but of not shedding it more light, considering it is a journal with wide circulation through the academic environment. We understand that the archaeology is constantly trying to give a different meaning to the material cultural heritage, something beyond money and treasure hunting. But the only way to make this a real struggle is to escape the academic boundries by setting wider divulgence efforts in our archaeological programmes and publishings, and making them happen in non-academic circles, such as recreational dive or community fishermen. Cottman transctipts a comment by David Moore, “As an archaeologist,” David said, “I attempted to view the site as objectively and scientifically as possible. But when you look at those shackles, what that ship was doing – her objective – really hits home. Those shackles haven’t been handled by more than one or two people since they were worn by slaves. (COTTMAN, Michael. op. Cit., p. 30) Is it possible that the discipline is considered so objective that it completely denies personal per- ceptions? Or there is nothing else besides “ours” reasons againts “theirs”? Acknoledgments To our families, to the Ukranian, to the Lab Partner, to “Krébio” and to our favorite American export. Divers. In. Black. RHAA 11 141 Será que a disciplina ainda se considera suficientemente ob- jetiva para negar-se à subjetividade? Ou será que de fato não nos resta a não ser as “nossas” razões contra as “deles”? Agradecimentos Às nossas famílias,ao ucraniano, à companheira de Lab, ao Krébio e à nossa exportação americana favorita. Aos professores Andres Zarankin, Gilson Rambelli, Pedro Paulo Funari e Robert Slenes. We also thank the professors Andrés Zarankin, Gilson Rambelli, Pedro Paulo Funari and Robert slenes.
Compartilhar