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Indaial – 2021 Regência Prof. Felipe Damato de Lacerda 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2021 Elaboração: Prof. Felipe Damato de Lacerda Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: L131r Lacerda, Felipe Damato de Regência. / Felipe Damato de Lacerda. – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 241 p.; il. ISBN 978-65-5663-564-4 ISBN Digital 978-65-5663-563-7 1. Regência musical. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 780 apResentação Estimado acadêmico, seja muito bem-vindo à disciplina de Regência! Neste livro didático, nós vamos estudar os conhecimentos, habilidades e competências da regência musical. No entanto, antes de adentrarmos nos conteúdos, gostaríamos de fazer alguns avisos importantes. Primeiramente, a regência é uma das áreas mais complexas e fascinantes da música! Nela, os diferentes conhecimentos e habilidades musicais e não musicais se integram na condução de grupos musicais das mais diversas formações instrumentais/vocais. Tendo em vista que o objetivo final da regência é sempre a performance musical, ela é uma atividade musical eminentemente prática. Considerando essas duas características da regência, a prática e a complexidade, avisamos de antemão que este livro didático, mesmo com as indicações de leituras e vídeos complementares, apenas tocará na superfície do que é a regência. Ainda que haja conhecimentos teóricos envolvidos, a formação para a regência é um processo primariamente interativo entre o aprendiz de regência, seu professor e um grupo musical. Nesse sentido, há de se reconhecer as limitações que certos meios de aprendizagem impõem a algumas áreas do conhecimento, nesse caso, em particular, à regência. Oscar Zander, em seu livro Regência Coral, pondera que a “regência não se pode aprender só através de livros e aulas teóricas. Estas somente nos podem mostrar o caminho e nada é definitivo. O melhor livro e a melhor aula continuam sendo a prática viva com um bom professor de regência” (ZANDER, 1979, p. 14, grifo nosso). Ressaltamos que há aprendizados significativos a serem constituídos em regência através de “livros e aulas teóricas”, principalmente considerando que, diferentemente da época em que Oscar Zander escreveu seu livro, atualmente, há recursos tecnológicos que expandem as capacidades dos meios não presenciais. Destacamos, no entanto, que o aprendizado da regência se pauta no aprofundamento do conhecimento musical, na observação da prática de bons regentes e, sobretudo, na sua própria prática “viva” e reflexiva da regência. Em segundo lugar, salientamos que este livro didático é comprometido com o entendimento de que uma disciplina de regência só tem lugar em um curso de licenciatura em música se estiver alinhada com a percepção de que a regência musical nos tempos de hoje está profundamente irmanada com a educação musical, principalmente no Brasil, onde grupos com significativa experiência musical são muito raros, sendo que o regente em grande parte do tempo trabalhará com educação musical de base. Este livro está organizado em três unidades. Na primeira unidade teremos uma introdução à regência musical, em que refletiremos sobre a natureza da regência, apontaremos quais são as funções desempenhadas na regência e os conhecimentos e habilidades necessários para desempenhá- las. Abordaremos também de forma ampla os padrões gestuais básicos de regência, contemplando marcação de tempos, entradas, cortes, dinâmica, articulação, entre outros. Na segunda unidade, abordaremos a regência em seus aspectos mais práticos, como a escolha e preparo do repertório, o ensaio e a performance musical, além de apontar particularidades da regência vocal e instrumental. Na terceira unidade, conversaremos sobre a regência voltada para a educação musical. Aqui, veremos a necessidade de preparo pedagógico para desempenhar a regência, como também refletiremos sobre as particularidades de se atuar regendo grupos musicais em espaços formais e não formais. Ao longo de sua leitura, você encontrará sugestões de vídeos e exercícios que são indispensáveis para o seu aprendizado. É muito importante que assista aos vídeos mais de uma vez e exercite frequentemente seu gesto de regência, lembrando que regência é comunicação e comunicação é ação e para agir em tempo real é necessário praticar muito! Bons estudos! Prof. Felipe Damato de Lacerda Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE sumáRio UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL .......................................................... 1 TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? .................................................................................................. 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 UM BREVE HISTÓRICO DA REGÊNCIA ..................................................................................... 4 3 AS FUNÇÕES DA REGÊNCIA ......................................................................................................... 9 3.1 REGENTE INTÉRPRETE ............................................................................................................... 9 3.1.1 Leitura e percepção musical ............................................................................................... 10 3.1.2 Prática vocal/instrumental .................................................................................................. 13 3.1.3 Conhecimentos sobre história da música ......................................................................... 15 3.2 COMUNICAÇÃO ......................................................................................................................... 15 3.3 REGENTE LÍDER ..........................................................................................................................17 3.4 REGENTE ARRANJADOR.......................................................................................................... 19 3.4.1 Conhecimentos de teoria musical, harmonia e contraponto ......................................... 20 3.5 REGENTE EDUCADOR MUSICAL .......................................................................................... 21 4 REGENTE OU MAESTRO? ............................................................................................................. 21 5 POR QUE ESTUDAR REGÊNCIA NA LICENCIATURA EM MÚSICA? .............................. 24 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 26 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 27 TÓPICO 2 — CONVENÇÕES PARA MARCAÇÃO DE TEMPO ............................................... 29 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 29 2 PRINCÍPIOS GERAIS ...................................................................................................................... 29 2.1 POSIÇÃO FUNDAMENTAL ...................................................................................................... 32 3 MARCAÇÃO DE TEMPO ................................................................................................................ 35 3.1 MARCAÇÃO DE COMPASSOS SIMPLES ............................................................................... 36 3.2 MARCAÇÃO DE COMPASSOS COMPOSTOS ....................................................................... 46 3.3 MUDANÇA DE COMPASSO .................................................................................................... 50 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 52 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 53 TÓPICO 3 — CONVENÇÕES DE ENTRADA, CORTE E EXPRESSIVIDADE....................... 55 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 55 2 ENTRADAS E CORTES ................................................................................................................... 56 2.1 ENTRADA EM CABEÇA DE TEMPO ..................................................................................... 56 2.2 ENTRADA EM CONTRATEMPO.............................................................................................. 58 2.3 CORTES, FERMATAS E REENTRADAS .................................................................................. 60 3 DINÂMICA ......................................................................................................................................... 61 4 ARTICULAÇÕES ............................................................................................................................... 63 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 66 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 71 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 72 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 75 UNIDADE 2 — REGÊNCIA EM AÇÃO ........................................................................................... 77 TÓPICO 1 — TRATO COM O REPERTÓRIO ................................................................................ 79 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 79 2 ESCOLHA DE REPERTÓRIO ......................................................................................................... 80 3 ADEQUAÇÃO DE REPERTÓRIO ................................................................................................. 84 3.1 ADAPTAÇÃO DE ARRANJOS EXISTENTES .......................................................................... 85 3.2 CONFECÇÃO DE ARRANJOS ................................................................................................... 89 4 ESTUDO DO REPERTÓRIO PARA A REGÊNCIA .................................................................... 96 4.1 APRENDIZADO DO REPERTÓRIO.......................................................................................... 96 4.1.1 Planejamento da interpretação musical .......................................................................... 100 4.2 PREPARO DO GESTUAL DE REGÊNCIA ............................................................................. 102 4.2.1 Linha de regência ............................................................................................................... 103 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 106 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 107 TÓPICO 2 — ENSAIO E PERFORMANCE ................................................................................... 109 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 109 2 O ENSAIO ......................................................................................................................................... 110 2.1 PLANEJAMENTO ...................................................................................................................... 110 2.2 CONDUÇÃO ............................................................................................................................... 114 2.3 AVALIAÇÃO DE RESULTADOS ............................................................................................. 118 3 A PERFORMANCE .......................................................................................................................... 119 3.1 PLANEJAMENTO ...................................................................................................................... 119 3.2 CONDUÇÃO ............................................................................................................................... 121 3.3 AVALIAÇÃO DE RESULTADOS ............................................................................................. 122 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 124 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 125 TÓPICO 3 — REGÊNCIA VOCAL E REGÊNCIA INSTRUMENTAL..................................... 127 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 127 2 FORMAÇÕES VOCAIS ................................................................................................................. 127 2.1 HISTÓRICO E REPERTÓRIO ................................................................................................... 128 2.2 CARACTERÍSTICAS .................................................................................................................. 131 2.2.1 Contexto social brasileiro ................................................................................................. 134 2.2.2 Particularidades no gesto................................................................................................. 135 3 FORMAÇÕES INSTRUMENTAIS ............................................................................................... 136 3.1 HISTÓRICO E REPERTÓRIO ................................................................................................... 136 3.2 CARACTERÍSTICAS .................................................................................................................. 139 3.2.1 Contexto social brasileiro ................................................................................................. 143 3.2.2 Particularidades no gesto ................................................................................................. 144 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 145 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 153 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 154 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 157 UNIDADE 3 — REGÊNCIA E EDUCAÇÃO MUSICAL ............................................................ 159 TÓPICO 1 — PREPARO PEDAGÓGICO PARA A REGÊNCIA ............................................... 161 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 161 2 FORMAÇÃO DOCENTE ............................................................................................................... 161 3 O ENSAIO COMO MOMENTO DE EDUCAÇÃO MUSICAL .............................................. 167 4 CONHECIMENTOS DAS ÁREAS DE CIÊNCIAS HUMANAS ........................................... 171 5 DIDÁTICA MUSICAL ................................................................................................................... 176 5.1 PLANEJAMENTO DIDÁTICO ................................................................................................. 179 6 EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA .................................................................................................... 181 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 183 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 184 TÓPICO 2 — CONSIDERAÇÕES PRÁTICAS SOBRE O ENSINO MUSICAL NA REGÊNCIA................................................................................................................. 187 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 187 2 LIDANDO COM FORMAÇÕES MISTAS ................................................................................. 187 3 CONSIDERAÇÕES MUSICAIS ................................................................................................... 189 4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O GESTO DE REGÊNCIA ........................................................ 194 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 198 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 199 TÓPICO 3 — CONTEXTOS DE ATUAÇÃO PROFISSIONAL ................................................. 201 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 201 2 CONTEXTOS NÃO FORMAIS DE ATUAÇÃO ........................................................................ 203 2.1 PROJETOS SOCIAIS ................................................................................................................... 203 2.2 INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS ................................................................................................... 207 2.3 ESCOLAS DE MÚSICA ............................................................................................................. 210 2.4 OUTROS ESPAÇOS .................................................................................................................... 212 3 CONTEXTOS FORMAIS DE ATUAÇÃO ................................................................................... 214 3.1 ESCOLA DE EDUCAÇÃO BÁSICA ........................................................................................ 214 3.2 CONSERVATÓRIOS DE MÚSICA ........................................................................................... 218 3.3 ENSINO SUPERIOR ................................................................................................................... 223 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 226 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 233 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 234 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 237 1 UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • entender a construção histórica da regência; • refletir sobre a natureza e as funções da regência; • compreender os processos de formação do regente; • realizar uma comunicação gestual básica através de convenções de regência. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – O QUE É REGÊNCIA? TÓPICO 2 – CONVENÇÕES PARA MARCAÇÃO DE TEMPO TÓPICO 3 – CONVENÇÕES DE ENTRADA, CORTE E EXPRESSIVIDADE Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 O QUE É REGÊNCIA? 1 INTRODUÇÃO Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao nosso primeiro tópico de estudos deste livro didático. Aqui iremos estudar os princípios fundamentais que constituem a natureza da regência, seu histórico, as funções a serem desempenhadas, além de refletir a respeito do motivo de estudar regência musical em um curso de licenciatura em música. Para começar vamos considerar alguns pontos para buscar uma definição do que é regência. O Dicionário Grove de Música define regência como “A direção de uma execução musical através de gestos visíveis destinados a garantir a coerência e unidade de execução e interpretação” (SADIE, 1994, p. 771). Para nós, definir a regência somente a partir da direção da performance musical com gestos parece incompleto, tendo em vista que a execução musical é apenas a ponta do iceberg do trabalho do regente. Aproveitando que estamos trabalhando com a regência a partir de um curso de licenciatura em música, é importante expandir nossos horizontes, por esse motivo adotaremos uma definição mais alargada de regência para este livro. Performance é o termo utilizado atualmente para definir a ação da qual resulta um acontecimento artístico, independentemente da linguagem artística em questão. Para compreender melhor o que é a performance recomendamos que você leia o pequeno artigo disponível em: https://www.infoescola.com/artes/performance/. NOTA Definiremos regência como uma área da música que contemplaa gestão de todos os processos necessários para a construção e implementação da performance, com destaque para a atuação em grandes grupos musicais, como bandas marciais, corais, orquestras, entre outros. Esta definição traz uma concepção processual da regência, em detrimento de uma percepção que restringe a atuação do regente aos seus gestos no momento da performance, juntamente com a percepção de que a performance é construída pela interação entre regente e grupo durante os ensaios. UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 4 Agora, de quais processos estamos falando? Isso vai depender do contexto específico em que se está atuando. Por exemplo, se você estiver conduzindo uma orquestra composta por musicistas profissionais, cujo repertório contempla as obras canônicas da música de concerto europeia, você terá que saber que lida com musicistas com muita experiência musical. Desse modo, pode-se escolher peças desafiadoras, focar em ensaiar uma interpretação musical ideal com articulações específicas, dinâmicas muito bem trabalhadas, variações de andamento, entre outros. Fique atento que você deverá ter capacidade musical suficiente para lidar com essa realização musical com desenvoltura e comunicar suas ideias musicais ao grupo com uma linguagem apropriada. Se você aceitou um trabalho para reger um coral composto por pessoas sem experiência musical anterior, a conduta será diferente. Será necessário ensinar os integrantes a cantar de forma afinada, mantendo o ritmo, para elaborar a execução de um repertório a partir desse processo de educação musical, lembrando que o repertório deverá ser escolhido de acordo com as capacidades do grupo. Nesse contexto, é comum que as pessoas participem do grupo por querer socializar, ou seja, talvez elas não estejam muito motivadas para desenvolver suas habilidades musicais, o que deverá ser levado em conta por você. Esses exemplos são apenas um pequeno aperitivo da complexidade da atuação de regentes em diferentes contextos. Não se apavore! Ao longo deste livro didático, iremos esclarecer essa complexidade pouco a pouco. Antes de tudo, vamos dar uma “olhada” em um breve histórico da regência para identificarmos como surgiu e evoluiu essa área dentro da música. 2 UM BREVE HISTÓRICO DA REGÊNCIA Então, acadêmico, você deve se perguntar: “por que estudar a história da regência é importante?” Ora, primeiramente para valorizarmos o processo histórico que deu a todos nós o conhecimento de que estamos compartilhando com você neste livro. Em segundo lugar, se não sabemos a história de algo é mais difícil se ter clareza para onde se quer ir. Já ouviu a declaração de um dos maiores físicos de todos os tempos, Isaac Newton, dizendo “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes"? Essa frase demonstra que só é possível avançar verdadeiramente o conhecimento partindo do que foi construído pelas gerações anteriores. Isso foi escrito em uma carta, datada 5 de fevereiro de 1675, de Isaac Newton para Robert Hooke. FONTE: <https://digitallibrary.hsp.org/index.php/Detail/objects/9792>. Acesso em: 10 maio 2021. NOTA TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 5 Com esses motivos em mente, iremos adentrar em uma narrativa cujo objetivo principal é dar uma visão geral do processo histórico. Focaremos nossos estudos na Europa a partir da Idade Média. Indicaremos materiais mais completos que podem ser consultados caso você queira conhecer mais sobre o assunto. Na Idade Média europeia, a comunicação gestual se dava através da regência quironômica. Segundo o Dicionário Grove de Música, quironomia é a “teoria dos sinais manuais; a forma antiga de reger, de acordo com a qual o músico principal indicava as curvas melódicas e os ornamentos por meio de sinais espaciais” (SADIE, 1994, p. 759). Nesse sistema, havia gestos específicos para indicar certos movimentos melódicos, bem como os ritmos a serem executados. No entanto, não havia ainda o conceito de pulsos regulares em música. A mão guidoniana foi uma metodologia específica de regência nesse período, que tinha como objetivo auxiliar na leitura cantada de música escrita, bem como na memorização de melodias. Guido d’Arezzo foi um monge musicista que atuou na capela de Arezzo (Itália), escrevendo diversos tratados de teoria musical, incluindo uma descrição dessa técnica de regência. FIGURA 1 – ESQUEMA DE MÃO GUIDONIANA FONTE: <https://en.wikipedia.org/wiki/Guidonian_hand>. Acesso em: 16 nov. 2020. Devido à complexificação da polifonia vocal no período renascentista, e consequentemente o aprimoramento da notação rítmica, surgiu a necessidade de se organizar o tempo em música de forma mais assertiva, pois imagine se cada um dos quatro naipes de um coral resolvesse cantar com ritmo mais livre? Vamos ver como eram as figuras rítmicas nesse período? UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 6 FIGURA 2 – FIGURAS RÍTMICAS NO PERÍODO RENASCENTISTA FONTE: Sabag e Igayara (2013, p. 36) As figuras rítmicas dessa época já trazem alguma semelhança com as que usamos nos dias de hoje. Sobre essa semelhança, Sabag e Igayara (2013) advertem que ela é mais em aparência do que em funcionalidade, tendo em vista que atualmente “as relações métricas entre as figuras baseiam-se em proporções fixas e sempre assumidas como sendo duplas”, já na notação renascentista, “as mensurações dos valores podiam ser duplas ou triplas, sendo usual a coexistência de medidas distintas para diferentes valores em uma mesma peça” (SABAG; IGAYARA, 2013, p. 36). Ou seja, a divisão de uma figura rítmica podia ser em duas ou em três de menor valor, não havendo nenhum sinal para diferenciar uma da outra, portanto, só podia ser identificado contextualmente na obra em si, que muitas vezes trazia os dois tipos de divisões. Conjuntamente com essas alterações na notação rítmica, surgiu na Renascença a noção de tactus, que é uma “Unidade de tempo, medida por um movimento da mão, utilizada nos séculos XV e XVI. Na teoria, cada tactus (representando um movimento da mão descendente e ascendente) representava uma semibreve em andamento normal […] (entre 60 e 70 vezes por minuto)” (SADIE, 1994, p. 925). Assim, a regência na renascença já começou a apresentar gestos, com gestos descendentes e ascendentes, que indicavam marcação de pulsos (tactus). Tome cuidado, acadêmico, pois o tactus não contempla ainda a hierarquia de tempos fortes e fracos da organização rítmica em compassos, o que foi estabelecido posteriormente. Outro ponto de destaque é que a música ainda era composta e executada em seu aspecto horizontal, ou seja, o entendimento da época era de adicionar melodias cantadas simultaneamente e não o empilhamento vertical de notas formando acordes. Isso pode ser verificado pelo fato de que somente as partes serem escritas nas publicações, não havia o hábito de se escreverem “partituras”, segundo o Dicionário Grove de Música esse “termo, de origem italiana (partire significa ‘dividir’), alude à distribuição de diversas TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 7 partes vocais e/ou instrumentais em diversos pentagramas (ou pautas)” (SADIE, 1994, p. 702). Desse modo, a regência do tactus (com movimentos descendentes e ascendentes alternados), organizava a estrutura sobre a qual cada voz elaboraria seu ritmo. Durante o período Barroco, a noção de tactus foi alterada gradativamente para contemplar hierarquias entre as pulsações, resultando nas fórmulas de compasso como as conhecemos hoje. Um aspecto predominante do período era a presença do baixo-contínuo em quase todas as obras musicais coletivas, desse modo era frequente o cravista ou organista fazer gestos com a cabeça ou rolo de papel para dar entradas aos músicos do coro e da orquestra. Ainda que a notação rítmicatenha se desenvolvido a regência manteve seu aspecto de marcação de pulsos, por vezes sendo realizada de forma ruidosa batendo fortemente com um bastão no chão. Há uma história tragicômica frequentemente contada, a da morte do músico francês Jean-Baptiste Lully (1632 – 1687). Durante uma apresentação musical Lully bateu a ponta do bastão de marcar o tempo em seu pé, o ferimento acabou gangrenando e o músico, que também era dançarino, se recusou a ter sua perna amputada e acabou morrendo por causa da gangrena poucos meses depois do ocorrido (SADIE, 1994, p. 554). Existe um filme baseado na biografia de Jean-Baptiste Lully, chamado Le Roi danse (O Rei Dança). O filme, lançado no ano de 2000, retrata a fatídica cena que levou Lully à morte. A trilha sonora do filme também contém obras musicais dele. Mais informações em: https://cinecartaz.publico.pt/Filme/29851_o-rei-danca. DICAS Durante o século XVIII ocorreram várias alterações na linguagem musical na Europa, como a consolidação da música instrumental, a sistematização do sistema tonal e a ascensão da melodia com acompanhamento homofônico. Foi durante o período Clássico que observamos o princípio do que conhecemos hoje como regência. Com o progressivo declínio do baixo-contínuo e o advento da música orquestral de Mannheim e sinfônica, começa a se esboçar a necessidade de os instrumentistas serem dirigidos por outro músico, às vezes não executante, com a tarefa de ensaiar sistematicamente a orquestra, orientá-la e dirigi-la durante as apresentações (LAGO JUNIOR, 2002, p. 35). UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 8 Foi nesse período também que começou a se observar a preocupação em sistematizar e dar elegância ao gesto de regência, que até então eram limitados a batidas de bastão no chão ou gestos para baixo e para cima: “Surge depois na França uma surpreendente inovação: para os compassos ternário e quaternário, os diretores passaram a executar movimentos laterais” (LAGO JUNIOR, 2002, p. 35). Destacamos que essa transição não ocorreu de forma repentina e completa, muitos diretores regiam a partir do cravo, ou eram violinistas que exerciam dupla função (LAGO JUNIOR, 2002). Foi somente a partir do Romantismo que a figura do regente, ainda vinculada à de compositor, tomou vida própria com alguns pioneiros, com destaque para Felix Mendelssohn (1809 – 1847), Hector Berlioz (1803 – 1869) e Richard Wagner (1813 – 1883). Nesse sentido, a técnica da regência foi se desenvolvendo conjuntamente com as técnicas composicionais, servindo primariamente à expressão musical. Esse século também testemunhou um grande crescimento técnico e expressivo da regência, ao mesmo tempo em que ajudou a construir a mitologia do artista sobre-humano, o gênio talentoso da música, que perdura até os dias de hoje. Todo esse processo culminou na separação das figuras do regente e do compositor no século XX, bem como sua explosão de popularidade e poderes! Lago Junior (2002) nos traz uma perspectiva que é simultaneamente precisa e cômica: No século XX, a força moral e criativa, associada ao carisma artístico reforçado pelos meios de comunicação criaram um dos “monstros sagrados” e “titãs” do nosso tempo, misto de celebrante de uma liturgia com o de star ou star-system […]. Além disso, o regente do século XX será o artista, o administrador, o entrepreneur, o pensador, o educador, o disciplinador e o guardião das tradições da música orquestral sob todas as suas formas e gêneros (LAGO JUNIOR, 2002, p. 135-136). A partir dessa expansão da área de atuação do regente ao longo do século XX é que temos hoje essa atuação de múltiplas funções. Assim chegamos ao fim de nossa breve síntese do histórico da regência, em que vimos seu desenvolvimento a partir da Idade Média, na Europa, até os dias de hoje. Existem muitos acontecimentos que foram deixados de fora, deixaremos leituras adicionais aqui caso você queira adentrar mais nesse assunto. Caso você queira saber mais sobre a história da regência recomendamos o livro de Sylvio Lago Junior – A arte da regência: história, técnica e maestros (LAGO JUNIOR, 2002). Caso você queira uma leitura mais leve, mas que traga mais detalhes sobre o que abordamos aqui, acesse o site do professor André Egg da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR): http://andreegg.org/2020/03/31/o-surgimento-do-maestro/. DICAS TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 9 3 AS FUNÇÕES DA REGÊNCIA Como acabamos de ver no subtópico anterior, no século XX, o regente se tornou “o artista, o administrador, o entrepreneur, o pensador, o educador, o disciplinador e o guardião das tradições da música orquestral sob todas as suas formas e gêneros” (LAGO JÚNIOR, 2002, p. 136). Neste subtópico, nós iremos um pouco mais a fundo nessas diferentes funções que são exercidas na regência, além de comentar processos de formação importantes para estar apto a desempenhá-las. É digno de nota que as funções que listaremos aqui não ocorrem de forma isolada, existem muitas intersecções e sobreposições entre elas. Vamos começar então com a primeira delas e que para muitas pessoas ainda é a única definição: o regente como intérprete musical. Em seguida, comentaremos a comunicação, a relação entre regência e liderança, por fim o regente educador musical. 3.1 REGENTE INTÉRPRETE Em nossa síntese sobre o histórico da regência, vimos que durante muito tempo, quem regia também era um executante, ou então era o próprio compositor da obra, o que foi muito frequente até o século XX. Tendo em vista essas origens é de se esperar que a principal função da regência ainda hoje seja a interpretação musical. Interpretação musical é a recriação de uma obra musical a partir de uma gravação e/ou de fontes escritas. Esse processo envolve escolhas por parte de quem está interpretando, desde qual andamento, dinâmica geral da peça, até a escolha de articulação em notas específicas. Para descrever de forma geral como o regente desempenha esta função, vamos utilizar o 3° movimento da Primavera da obra “As Quatro Estações” de Antonio Vivaldi (1678-1741), conforme foi arranjada para guitarras elétricas pelo grupo Sinfonity, a fim de demonstrar algumas das etapas necessárias. Dê uma conferida na gravação do 3° movimento da Primavera da obra “As Quatro Estações” de Antonio Vivaldi nesse arranjo interessante do grupo Sinfonity: https://www.youtube.com/watch?v=6tkRbCXzN5o&ab_channel=SinfonityTVGuitar. DICAS UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 10 Vamos dizer que você tem um grupo de guitarristas muito competentes: você traz a ideia de fazer essa obra musical para o grupo, o grupo aceita, mas somente se você conduzir a preparação da obra, ou seja, reger! O que você irá fazer? Primeiramente, você precisará estudar bastante a obra original ouvindo gravações diferentes, lendo a partitura, bem como aprender a tocar o máximo possível das linhas em seu instrumento de maior domínio, no caso a guitarra. Sempre dando atenção às concepções detalhadas da interpretação musical, como dinâmica, mudanças de andamento, sonoridade, entre outros. Durante esse processo de estudo individual, você já vai começar a ensaiar o grupo. Nesse momento, você vai estabelecer, com base no que você conhece das capacidades técnicas de cada um, quem irá tocar qual parte. Você conduzirá os ensaios decidindo quais partes devem ser mais exercitadas, você precisará ter zelo para identificar e corrigir erros de notas, ritmos e outros parâmetros da intepretação que você idealizou. É nessa etapa que você estará constantemente comparando a música que está sendo executada com a música que você construiu mentalmente no seu estudo individual e corrigindo quando a realidade não condisser com o que você previu. Durante o processo, você usarávários dos seus conhecimentos musicais, você comunicará ideias musicais verbalmente, exemplificando no instrumento, além de utilizar o gesto de regência. Quando o repertório estiver ensaiado, haverá o momento da performance musical, quando você poderá conduzir a execução regendo e através dos seus gestos manterá a unidade de andamento, corrigirá eventuais erros, chamará atenção para ideias musicais ensaiadas, a fim de garantir a fluência da apresentação. Para fazer isso tudo que descrevemos nos parágrafos anteriores é preciso se ter diferentes conhecimentos e habilidades musicais. A seguir, vamos conversar sobre os aspectos mais importantes para se desempenhar a função de regente intérprete musical. 3.1.1 Leitura e percepção musical Uma leitura musical bem desenvolvida é essencial para que o aprendizado do repertório ocorra com agilidade, além de ser importante ter um suporte escrito para a sua memória, pois frequentemente o regente trabalhará com mais repertório do que pode memorizar. Quando falamos em leitura musical nos referimos à capacidade de transformar texto musical escrito em som com pouco ou nenhum contato anterior com a partitura ou gravações, também chamada de leitura musical à primeira vista. É possível estabelecer que o amadurecimento da leitura musical ocorre quando se conquista a capacidade de: TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 11 • Ler fluentemente alturas nas claves de Sol, Fá e Dó na 3ª linha, em qualquer tonalidade, com atenção para a altura real das notas em cada uma das claves. • Ler fluentemente ritmos em compassos simples e compostos, incluindo quiálteras de 3, 5 e 6, pelo menos. • Executar as dinâmicas, articulações e outras indicações. • Manter a coerência da leitura musical em andamentos lentos e moderados. Já a percepção musical engloba, além de questões de leitura musical, a percepção auditiva, memória musical e a capacidade de escrever a música que ouve. É vital para o regente desenvolver uma percepção auditiva satisfatória, pois o regente durante ensaios e apresentações precisará ouvir atentamente o que o grupo está produzindo sonoramente, comparando com a sua mentalização sonora, avaliando quanto o som real é fiel ao som imaginado. Nesse sentido, é importante ouvir bem não apenas as alturas das notas, mas também uma compreensão detalhada de relações rítmicas em diferentes gêneros musicais, de diferentes intensidades e timbres de vários instrumentos musicais. Existem várias estratégias para se desenvolver uma boa percepção auditiva. Primeiramente pode-se aprender músicas copiando auditivamente as gravações, sem nenhum suporte escrito, nem mesmo cifras, prática conhecida popularmente como “tirar de ouvido”. Outra estratégia que ajuda bastante nesse processo é escutar ativamente obras musicais de diversos gêneros musicais, procurando analisar os elementos da música enquanto ouve, isso pode ser conjugado com acompanhar visualmente a partitura. Podemos mencionar também a prática de tentar escrever a partitura do que ouve diretamente, com ou sem apoio instrumental, os famosos ditados musicais. Por último recomendamos que você experimente com a sonoridade do seu instrumento principal, buscando aprimorar seus crescendo e diminuendos, articulações e sonoridade geral. Além de anos de experiência, para desenvolver a leitura musical e percepção auditiva é preciso que a técnica instrumental, os conhecimentos teóricos e o desenvolvimento musical global sejam abordados de forma integrada e equilibrada. Pode parecer uma constatação óbvia, mas não foi assim no passado. Por muito tempo o ensino musical conservatorial considerava que a prática musical só podia existir a partir da decodificação da partitura, ou seja, para começar a tocar qualquer instrumento você precisaria estar versado na leitura musical, sendo submetido a períodos mais ou menos longos de aulas de solfejo e teoria musical antes de poder encostar no instrumento. Em contrapartida, nos dias de hoje, é comum que algumas escolas livres de música não façam questão de que seus estudantes entrem em contato com a notação musical tradicional, argumentando que não é necessário aprender a ler para tocar um instrumento musical. O que não deixa de ser também um radicalismo, nós acreditamos que prática instrumental e leitura musical são processos complementares que precisam ser conduzidos concomitantemente. UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 12 O desenvolvimento da leitura musical à primeira vista é uma área de estudo dentro da música. Gonçalves (2018) investigou as disciplinas de leitura musical à primeira vista em cursos de graduação em música da Região Sul do Brasil e, segundo o autor, ler à primeira vista envolve coordenação ocular, memória visual, reconhecimento de padrões musicais, técnica instrumental, experiência musical geral, ouvido interno, entre outros. Para entender melhor a complexidade da leitura à primeira vista, recomendamos a leitura do Capítulo 2 da tese intitulada “A disciplina de leitura musical à primeira vista em cursos de graduação em música do sul do Brasil: um estudo com base na teoria social cognitiva sobre processos de ensino/aprendizagem” (GONÇALVES, 2018). Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/57013/R%20-%20T%20 -%20ALEXANDRE%20GONCALVES.pdf?sequence=1&isAllowed=y. DICAS O aprimoramento da percepção auditiva e da leitura musical auxilia no desenvolvimento do que chamamos de ouvido interno. O ouvido interno é a capacidade de mentalizar uma obra musical, sem apoio instrumental, com riqueza de detalhes, seria uma versão auditiva da famosa “memória fotográfica”, não deve ser confundido com a parte anatômica do corpo de mesmo nome. À medida que aprimoramos nossa experiência musical essa mentalização fica cada vez mais fidedigna. Achamos importante aproveitar esse momento para termos uma conversa sobre o “ouvido absoluto”. A definição comum de ouvido absoluto pode ser sintetizada como “a capacidade de identificar, nomear ou produzir a frequência de um estímulo tonal sem o auxílio de um tom de referência” (VELOSO; FEITOSA, 2013, p. 357). No entanto, Veloso e Feitosa problematizam a definição do termo […] define-se o ouvido absoluto ao se verificar elevado grau de precisão na associação direta entre um estímulo sonoro e um rótulo verbal específico. Portanto, nota-se participação evidente de um componente linguístico (cognitivo) relacionado à habilidade que o diferencia das demais manifestações da música no cérebro humano, além do conhecimento prévio em teoria musical como condição intrínseca (VELOSO; FEITOSA, 2013, p. 358). Tendo em vista que é necessário que o indivíduo possua treinamento musical formal para se identificar a habilidade como ela é definida atualmente, o ouvido absoluto é muito raramente visto em não músicos. Veloso e Feitosa (2013) apontam estudos que relacionam o treinamento musical formal precoce TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 13 (antes dos seis anos de idade) a uma maior probabilidade de se desenvolver essa característica, ao mesmo tempo que outros sugerem também para a presença de fatores genéticos. Para nós, o ouvido absoluto é uma habilidade curiosa de se ver presencialmente e talvez útil para quem a possui, mas, em última análise, desnecessária para se aprofundar em música. Em contraposição ao ouvido absoluto, a maioria de nós ao treinar a percepção auditiva está desenvolvendo o que chamamos de ouvido relativo, ou seja, você sabe a distância de diversas notas relativamente a um som de referência. Esse tipo de percepção é o que de fato é necessário para o músico, pois a maioria dos sistemas musicais lidamcom a relações entre as alturas sonoras. Desse modo, frisamos que para a regência o importante é o desenvolvimento de um bom ouvido relativo. 3.1.2 Prática vocal/instrumental Com exceção de gêneros musicais feitos exclusivamente através de meios digitais, a música geralmente se materializa através da ação de uma pessoa sobre seu próprio corpo e/ou sobre um instrumento musical, produzindo som. Ainda que o regente não produza nenhum som enquanto conduz a execução musical de outras pessoas, é indispensável que se tenha habilidades instrumentais bem desenvolvidas, independentemente de qual instrumento musical (voz é um instrumento musical). Destacamos que essa recomendação também é válida para professores de música em formação, independentemente em qual área irão atuar. Entretanto, muitas vezes ocorre que estudantes de cursos de licenciatura em música não conseguem se dedicar a uma prática instrumental aprofundada. Isso ocorre pois frequentemente os currículos dispersam a carga horária dedicada à prática instrumental em diversas áreas como piano, violão, flauta doce, percussão, entre outros. O que pode ocorrer também é que a alocação prioritária de carga horária para disciplinas pedagógicas predomina sobre a prática instrumental individual e coletiva. Frisamos que a experiência do desenvolvimento instrumental é muito importante. Portanto, acadêmico, continue aprimorando seu instrumento principal, faça aulas, estude, participe de cursos diversos, estude todos os dias, durante o seu curso de graduação e após tê-lo concluído. Voltando para o valor da prática instrumental para a função de intérprete musical do regente, além da proficiência em seu instrumento principal, é importante também adquirir um pouco de experiência com o piano, pelo menos para ler melodias de forma fluente. O piano é um bom instrumento para dar suporte à preparação do regente, pois é um instrumento que facilita a execução de linhas melódicas, principalmente por não possuir uma exigência técnica UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 14 elevada em relação à produção do som. Ter algum domínio do piano é útil como instrumento de apoio ao ensaio, principalmente em regência coral, por ser um instrumento que permite a execução polifônica de, pelo menos, duas linhas melódicas simultaneamente sem grandes obstáculos técnicos. Essa afirmação da simplicidade do piano pode parecer estranha para você, então vamos refletir sobre a coordenação motora exigida para produzir uma nota musical em diferentes instrumentos. No piano, você precisa apertar uma tecla com um dedo e o som acontece sem distorção, abafamento ou desafinação (isso se o piano está afinado). Em um instrumento de sopro você precisa segurar o instrumento, dominar a embocadura, pressão de ar, coordenar duas mãos, utilizando vários dedos simultaneamente para tampar vários furos. Já com um violino você vai ter um desafio próprio apenas para segurar o instrumento com o pescoço e o arco com uma das mãos, sem experiência com o arco o som vai sair “miado” com irregularidades, as notas que não são em corda solta vão estar desafinadas, entre outros. Lembrando que estamos fazendo essas observações com relação ao piano partindo da necessidade de executar melodias, tocar piano pode ser tão desafiador, ou até mais, do que outros instrumentos, dependendo da complexidade do que está sendo tocado. Para a regência recomendamos também que se tenha alguma experiência usando a voz para cantar, não queremos dizer com isso que seja obrigatório ter uma técnica vocal muito desenvolvida. Nossa intenção é evidenciar a utilidade de se ter a capacidade de cantar de forma afinada em uma tessitura mediana para sua voz e conseguir demonstrar notas, ritmos, dinâmicas e efeitos sonoros diversos com a voz, tudo isso muito importante para a comunicação de ideias musicais quando estiver regendo um grupo. Caso a voz já seja o seu instrumento principal, recomendamos que você desenvolva alguma prática instrumental, com destaque para o domínio do piano. Outra recomendação importante para quem almeja se aprofundar mais na regência é ter sido em algum momento integrante do tipo de formação que você irá reger como instrumentista ou cantor. Figueiredo (2006, p. 7) comenta a importância dessa experiência para a formação do regente: […] para se tornar um bom regente, é necessário que o candidato vivencie o cantar em coro, principalmente sob a orientação de um regente experiente, que aborde grande variedade de repertório. Não é possível ser um bom regente de coro sem ter sido um cantor de coro. O que se aprende nas entrelinhas de um ensaio, com seus bons e maus momentos, é de uma importância vital na formação de um regente. Ainda que Figueiredo (2006) esteja se referindo especificamente ao canto coral, podemos extrapolar sua recomendação para outras formações musicais. Em outras palavras, se você tem interesse em reger orquestra, é necessário que seja instrumentista de orquestra sob a regência de alguém experiente, se você quer trabalhar com banda marcial, toque em bandas e assim por diante. Sempre busque aprimorar sua prática instrumental, individual e coletiva! TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 15 3.1.3 Conhecimentos sobre história da música Com base nas disciplinas de história da música que teve ao longo do curso, você pode imaginar que estamos falando da música de concerto europeia, mas não é somente isso que queremos dizer com história da música. Queremos dizer que o regente precisa conhecer, além de aspectos gerais desses assuntos, inclusive da música clássica, precisa conhecer a história da música comercial do século XX, música folclórica e os diversos gêneros que as compõem e compreender aspectos estéticos de alguns destes gêneros musicais. Esses conhecimentos são essenciais para o desempenho da função de intérprete musical do regente, pois não é possível interpretar um jazz adequadamente se você não está familiarizado com os preceitos estéticos deste gênero musical, bem como seu histórico. Por isso é sempre importante que você pesquise o contexto histórico das obras que você for reger, para poder tomar decisões interpretativas mais informadas. 3.2 COMUNICAÇÃO Quem rege, assim como qualquer professor, precisa conseguir comunicar suas ideias, tanto musicais como não musicais, de forma clara, sintética e objetiva, seja de forma verbal ou não verbal, caso contrário, não desempenhará suas funções de forma satisfatória. Neste subtópico iremos introduzir esse assunto que será mais detalhado ao longo do livro. Como você provavelmente viu na disciplina de Comunicação e Linguagem, existem dois tipos de linguagem: a verbal e a não verbal. A linguagem verbal, seja ela escrita ou oral, é definida pelo uso de palavras para a comunicação de ideias, sentimentos, entre outras coisas; enquanto a linguagem não verbal lança mão de imagens, símbolos, gestos, expressões faciais para a comunicação. O regente se utiliza de ambas para o desempenho de suas diversas funções. Vamos iniciar com a linguagem verbal na regência. Um dos pontos mais importantes com relação à comunicação verbal na regência é despoluir o canal de comunicação, por exemplo, ninguém gosta quando nosso acesso à internet está congestionado e tudo fica lento, não conseguimos acessar nem e-mail. Então, quando o regente fala ele precisa ser ouvido! Ouvido mesmo! Ou seja, se há ruído de conversas paralelas ou de pessoas tocando seus instrumentos musicais fora de hora, o canal de comunicação já estará poluído, dificultando a compreensão da mensagem. A gente sabe como ensaios podem ser barulhentos com as conversas infindáveis ou ainda o guitarrista que não para de “fritar” o instrumento. Por isso, também é função do regente disciplinar o seu grupo para manter limposos canais de comunicação, garantindo o máximo de clareza e entendimento. UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 16 Mas cuidado! Pois o próprio regente pode comprometer a eficiência de sua comunicação falando demais. Veja só o que Figueiredo (2006, p. 8) tem a nos dizer sobre isso: Todos nós concordamos, também, que ensaio, pelo menos em seus momentos essenciais, não é lugar para se falar. O problema é que, quando dizemos tal frase, estamos sempre nos referindo aos coralistas. Mas e os regentes? Como falam! Informações que deveriam ser puramente objetivas acabam virando discursos. Devíamos estar sempre atentos à proporção que existe em nossos ensaios entre os momentos em que se está cantando e os momentos em que se está falando, principalmente o regente. Tendo em vista a fala de Figueiredo (2006), recomendamos também que o regente evite comunicar informações desnecessárias, por exemplo, discorrer longamente sobre algum aspecto histórico da obra, reserve isso para as conversas descontraídas com os integrantes nos intervalos e após o ensaio. Outro ponto importante para que uma comunicação funcione bem é que o regente saiba bem o que é preciso falar. Isso é um problema, pois pode acontecer de o regente não saber bem a peça ou então não tem ideia de que estratégia adotar para resolver algum problema de execução que o grupo está tendo. Por isso esteja sempre bem preparado. No ofício da regência, a comunicação não verbal é tão importante quanto, ou até mais que a verbal. A comunicação não verbal inclui os gestos de regência, expressões faciais, postura corporal, exemplificação musical e uso de imagens. A exemplificação musical, por exemplo, pode ser feita diretamente no instrumento em questão ou imitando vocalmente o som que você gostaria que fosse executado. A demonstração direta no instrumento é muito importante para modelar a execução musical, principalmente em grupos menos experientes, nesse sentido é muito mais importante mostrar do que descrever. A fim de comunicar suas ideias musicais ao grupo em tempo real, sem que isso interfira sonoramente na execução, é necessário algum tipo de comunicação que aconteça pelo canal visual. Dessa forma, a comunicação através de gestos, posturas corporais e expressões faciais foi se tornando, ao longo da história o modo predominante de comunicação entre regente e grupo. Tradicionalmente, a comunicação gestual na regência é conhecida também pelo nome de técnica de regência. Trataremos da comunicação gestual na regência de forma aprofundada nos tópicos 2 e 3 desta unidade. A comunicação do regente durante ensaio e performance será tratada mais detalhadamente na Unidade 2. ESTUDOS FU TUROS TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 17 3.3 REGENTE LÍDER Podemos definir liderança como a capacidade que certas pessoas possuem de unir outras pessoas com objetivos comuns, coordená-las, estabelecer normas de conduta, permitindo a todos a alcançar os objetivos do grupo. Todas essas questões dependem de relacionamento humano. Rocha (2004) fala sobre a importância do relacionamento humano na condução do trabalho em grupos musicais, estabelecendo que a “relação construtiva entre regente e grupo depende de três fatores: a postura e o comportamento do líder, a forma de condução do grupo na implementação dos planos e a administração de conflitos” (ROCHA, 2004, p. 24). Mas o que seria essa “postura e comportamento do líder”? O autor cita sete qualidades: “autoridade pessoal, autodomínio, clareza de objetivos e de expressão do pensamento, capacidade de planejamento, empatia e capacidade de mobilização, poder de argumentação e sentido de reconhecimento” (ROCHA, 2004, p. 24). Ainda que essas qualidades possam ser consideradas características pessoais, algumas delas podem ser desenvolvidas no longo prazo. Por exemplo, o poder de argumentação se relaciona com o entendimento geral sobre a vida e do conhecimento que o indivíduo tem aliado à sua segurança emocional. Conhecimento se constrói com estudo ao longo dos anos e segurança emocional se constrói com autoconhecimento. O segundo fator é a condução do grupo na implementação dos planos. Nesse sentido, o grupo se sentirá motivado se considerar que o regente está conduzindo as atividades de modo com que os objetivos sejam alcançados. No entanto, dependendo de como os objetivos do grupo foram estabelecidos pode ocorrer um problema, por exemplo, o regente quer fazer um repertório por achar que vai ajudar o grupo a se desenvolver musicalmente, mas a maioria dos integrantes gostaria de fazer outro repertório. Esse desencontro entre os objetivos desejados pelo regente e o grupo podem causar dificuldades na implementação das tarefas e ter um efeito negativo na motivação tanto de regente como de integrantes. O último fator mencionado por Rocha (2004) é a administração de conflitos. Todo agrupamento de seres humanos tem conflitos, não é possível fugir dessa realidade, mas a atitude que tomamos ao abordar os conflitos pode mudar completamente o resultado. Por exemplo, é possível demonstrar real interesse em solucionar as diferenças, ou simplesmente fingir que não existe um problema, ou ainda utilizar o conflito para arregimentar outras pessoas do grupo para a sua “facção”, se a outra pessoa também arregimenta os seus seguidores, a situação sai completamente do controle. UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 18 Se tem uma coisa que afeta o bem-estar das pessoas, a produtividade dos ensaios, a execução musical, como também a longevidade do grupo, são os conflitos. Os conflitos em grupo geralmente têm as mesmas origens, algumas das mais frequentes são: • egos inflados e orgulhos feridos “eu canto muito melhor que a fulana, por que ela vai fazer o solo?”; • o sentimento de que os outros não se entregam tanto para o grupo como você; • corrida maluca para quem bajula mais o “maestro” para entrar na sua “graça”; • hipersensibilidade à crítica “eu não toquei a nota errada como o regente falou”. Dependendo dos objetivos do grupo e das motivações principais que as pessoas têm para estar ali, esses conflitos podem ser tolerados ou então causar a dissolução do conjunto. Grupos profissionais são mais resistentes a isso, pois a junção do grupo geralmente se dá por fidelidade à instituição empregadora ou à remuneração, enquanto grupos constituídos no ensino regular a obrigatoriedade de frequência força a constituição do grupo. Entretanto, a maioria dos grupos musicais são amadores e se juntam espontaneamente para cantar e tocar, nesses casos os conflitos podem se tornar bastante perniciosos para a existência do grupo. Muitas vezes, o regente será a figura que também reunirá a função de gestão administrativa do grupo, tendo em vista que algumas vezes partiu de você mesmo a formação do grupo, podendo até ser seu representante institucional. Você terá que marcar as apresentações, lidar com patrocinadores, organizar financeiramente o grupo, entre muitos outros. Os estudos sobre liderança na regência musical disponíveis no Brasil ainda não definiram de forma clara e inequívoca de que forma o regente atua como um líder. Apresentamos aqui a perspectiva trazida por Rocha (2004), o que, de forma alguma, esgota o assunto. Rita Fucci-Amato pesquisou um pouco sobre a função do regente como líder e gestor. Recomendamos a leitura do artigo dela sobre a liderança e inteligência emocional. Disponível em: http://www.abepro.org.br/biblioteca/enegep2010_tn_sto_116_758_15042.pdf. DICAS TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 19 3.4 REGENTE ARRANJADOR Durante o século XX observou-se o surgimento de um entrelaçamento entre a música de tradição erudita e diversos gêneros de música popular. Compositoresnacionalistas, como Heitor Villa-Lobos (1887-1959), fizeram esse processo ao buscar na música folclórica inspiração para suas composições, a fim de que representassem uma identidade nacional. Nos Estados Unidos, o compositor George Gershwin (1898-1937) mesclava a linguagem da música erudita europeia aos gêneros populares da época, como jazz e blues. A música composta para o cinema, desenhos animados e programas de rádio também contribuíram para essa fusão. Isso tudo foi gradualmente abrindo espaço para que cada vez mais se aceitasse que formações eruditas, como orquestras e corais, executassem música popular. Começaram então a surgir grupos que se especializavam em fazer versões de música popular com escrita musical erudita. Esse movimento foi muito forte no canto coral brasileiro a partir da década de 1960 e 1970 e prossegue até os dias de hoje, com arranjadores marcantes como Marcos Leite (1953-2002), Samuel Kerr (1935-), Levy Damiano Cozzela (1928-2018) e Carlos Alberto Pinto da Fonseca (1933-2006). Nas últimas décadas presenciamos também a hibridização de formações eruditas com o rock, em particular com o heavy metal, um exemplo icônico desse movimento é o álbum ao vivo S&M da banda Metallica com a Orquestra Sinfônica de São Francisco em 1999. Destacamos que bandas pioneiras como o Deep Purple também tenham feito isso ainda na década de 1960. Para que ocorra essa mudança de linguagem musical são necessários arranjos musicais que mesclem as linguagens. Em alguns casos são contratados arranjadores profissionais, mas, muitas vezes, quem escreve os arranjos é o próprio regente. Figueiredo (2006, p. 6-7) fala sobre outras necessidades além da estética para que o regente desempenhe esta função: Todos nós sabemos da dificuldade cada vez maior de termos um coro equilibrado, no que diz respeito a seus naipes. Muitas vezes, a pesquisa de repertório se torna frustrante, ao constatarmos que aquilo que existe não se adapta ao coro que temos. Os regentes brasileiros se deram conta do problema e passaram a investir na criatividade, gerando novas alternativas para repertório. Para que esse processo amadureça, é necessário que eles se engajem em cursos de Arranjo Vocal, que são cada vez mais comuns, principalmente no âmbito de cursos de férias e eventos corais de todo tipo. O autor cita a falta de cantores em certos naipes do coral como motivo para elaboração de arranjos, mas também existem propósitos educativos, como fazer um arranjo para trabalhar intervalos paralelos de 3ª ou baixo pedal, por exemplo. Antes de estudar arranjo propriamente é muito importante se possuir uma boa base dos fundamentos da linguagem musical, isso é importante também para a função de regente-intérprete. UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 20 3.4.1 Conhecimentos de teoria musical, harmonia e contraponto Acadêmico, ainda que seja um pouco óbvio, é muito importante que você tenha domínio dos fundamentos da linguagem musical, tanto para poder arranjar para o seu grupo, como para interpretar melhor a música. Cabe destacar que não estamos nos referindo a saber teoria musical e harmonia para fazer uma prova escrita, estamos recomendando que os conhecimentos estejam plenamente integrados a sua prática musical e docente. Vamos dar alguns exemplos. Digamos que você, acadêmico, é professor de bateria de uma escola de música, mas a dona da escola solicitou que ensaiasse um grupo de alunos de diversos instrumentos para o recital anual da escola. Aí, no dia do primeiro ensaio, você percebe que o tom da música está muito alto para o aluno de canto, então você decide baixar o tom da música! Você tem que estar com transposição na ponta da língua, senão imagine quanto tempo de ensaio você vai perder para trocar os acordes do acompanhamento, além de perder credibilidade com os estudantes. Imagine que nessa mesma situação você também tem um grupo de violinos que executará um arranjo escrito por você, então você precisa saber muito bem as notas que compõem cada acorde da harmonia e saber fazer uma boa condução de vozes para fazer o arranjo soar legal, além de considerar a limitação técnica dos alunos ao fazer o arranjo. Ou seja, mesmo que seu instrumento principal seja a bateria, é importante que possa atuar de forma ampla na constituição de uma música com variedade de instrumentos. Em outra situação vamos imaginar que você é um regente de coro e tem a partitura de uma música linda para coro à capella e você decidiu lançar o desafio para o seu grupo. No entanto, o grupo é inexperiente e você achou melhor fazer um acompanhamento instrumental, pelo menos para os ensaios, e você é pianista, então você mesmo vai acompanhar. No entanto, tem um problema: a partitura não traz os acordes cifrados, nem um acompanhamento para piano escrito em partitura, e agora? Você procura na internet por cifras ou partituras de um acompanhamento para essa música, mas não encontra, então você precisará arranjar um acompanhamento para a música tendo como base as notas que as vozes cantam (e isso também exige que tenha boa leitura musical), ou seja, se você tem o conjunto de notas musicais “mi, dó, sol, si”, terá que saber que isso é um acorde C7M/E. Mãos à obra. Esses dois exemplos, de caráter prático, apenas tocam na superfície da importância de se dominar os fundamentos da linguagem musical, sem mencionar a análise musical e sua importância para a intepretação musical. Destacamos também que para desempenhar a função de regente arranjador é essencial o domínio sobre esses conteúdos, como também uma boa leitura musical, além dos conhecimentos próprios de composição musical. TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 21 Acadêmico, tome sua formação em suas próprias mãos, revisite os seus livros didáticos da UNIASSELVI das disciplinas de Teoria Musical, Harmonia e Contraponto, Percepção Musical, busque outros materiais e cursos a respeito do tema e exercite na prática seus conhecimentos teóricos. 3.5 REGENTE EDUCADOR MUSICAL Ao considerarmos que a função primária da regência é construir e conduzir uma intepretação musical com um grupo de cantores ou instrumentistas é de se esperar que a educação musical faça parte também da função do regente, independentemente do nível técnico do grupo em questão. O que muda ao se trabalhar com grupos de diferentes capacidades musicais é o que você vai ensinar e como você vai ensinar. O que se ensina pode variar entre trabalhar afinação vocal básica em um coral, orientar a manutenção de uma pulsação regular em um grupo de percussão, demonstrando uma articulação específica, ou então descrevendo aspectos profundos da simbologia da obra musical para uma orquestra, regentes estão ensinando música o tempo todo. O como se ensina vai variar de acordo com as dificuldades específicas e as capacidades de compreensão do grupo em questão. Se usar o exemplo do coral com problema de afinação é preciso identificar as origens principais da desafinação, se for a falta de controle respiratório será necessário treinar isso, se for a dificuldade em percepção do som, fazer exercícios de escuta. Sempre adotando a linguagem e exercícios adequados à compreensão dos integrantes. Para o desempenho satisfatório dessa função é importante que se tenha a preocupação em elaborar um olhar pedagógico para sua atuação como regente, buscando conhecimentos dentro das áreas de psicologia, sociologia, didática, neurociência, antropologia, entre outros. Em síntese, a regência implica educação musical e, por isso, a importância de uma formação docente para quem quiser reger. Este será um assunto recorrente neste livro, principalmente por estarmos falando aqui de uma disciplinade regência vinculada a um curso de licenciatura em música. 4 REGENTE OU MAESTRO? Acadêmico, vamos imaginar uma cena? Um homem vestindo um fraque entra no palco após os integrantes da orquestra terem afinado seus instrumentos. Ele, portando uma batuta na mão, é aplaudido enquanto se posiciona acima de um pódio elevado se vira de frente para a plateia e se curva em um gesto cortês, então ele vira de costas, levanta seus braços e juntamente com seus gestos energéticos a orquestra começa a fazer música. Ele é o maestro! UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 22 FIGURA 3 – GUSTAVO DUDAMEL FONTE: <https://glo.bo/2UKwIs5>. Acesso em: 17 nov. 2020. Vamos refletir um pouco sobre esta cena. É imprescindível o uso batuta para reger? Se uma pessoa rege uma orquestra por que comumente chamamos ela de maestro e não de regente? Será que a pessoa que rege um coral também é um maestro? Por que quem rege coral não usa batuta? Vamos entrar em um terreno controverso, então se preparem! Segundo o Dicionário Grove de Música (SADIE, 1994, p. 564-565), o termo maestro vem do italiano “mestre”, sendo um Título empregado, na linguagem musical, em vários sentidos. Pode-se referir a um compositor, um virtuose, um professor, um fabricante de instrumentos, ao regente […]. No Brasil, seguindo o costume italiano, é muito mais frequente usar-se o termo “maestro” do que “regente” para qualificar aquele que rege uma orquestra. Por essa definição do Dicionário Grove de Música podemos perceber que o título maestro serve mais para atribuir a qualidade de “mestre” em música a um indivíduo, ou seja, é uma medição de conhecimento da pessoa. Pode ser considerado também um termo para designar o líder de um grupo musical, mas sem perder o sentido original de “mestre”. Neste sentido, é um termo que não possui precisão técnica com relação à função musical desempenhada por uma pessoa, sendo utilizada mais como um pronome de tratamento, como meritíssimo ou vossa eminência, ou ainda como uma forma de demonstrar respeito por uma pessoa. Essa utilização como pronome de tratamento, ainda que não seja viciosa por natureza, pode abrir espaço para a utilização do termo para fins de enaltecimento do ego e para a conquista de status social. É comum algumas pessoas ao pegarem uma batuta e regerem uma orquestra de estudantes de um projeto social, por exemplo, comecem a se autointitular “maestro”, sem necessariamente possuírem ampla experiência musical o que justificaria o uso de um pronome de tratamento. Outra questão periférica a esse assunto que também é digna de nota é a “aura” de status social que rodeia a figura denominada maestro, principalmente em meios sociais com acesso à cultura da música de concerto, conjuntamente TÓPICO 1 — O QUE É REGÊNCIA? 23 com um preconceito de que as pessoas mais competentes regem orquestra, sendo melhores dos que regem bandas marciais e/ou coros. Em sua investigação das matrizes curriculares de cursos superiores em regência no Brasil, partindo da forma como as disciplinas de regência são nomeadas e organizadas, Lacerda e Figueiredo (2018, p. 21) afirmaram que “foram encontrados indícios da existência de uma hierarquização entre as regências de diferentes grupos musicais, com maior importância sendo dada para a Regência Orquestral”. Então como chamar? Maestro ou regente? Antes de responder à pergunta, vamos dar uma pincelada sobre como a função de conduzir um grupo musical é chamada em outras línguas. Em países de língua inglesa, os termos mais frequentemente utilizados para designar quem conduz uma orquestra é conductor (condutor) e music director (diretor musical), enquanto em alemão é frequente o uso de dirigent (regente), já em francês pode-se usar conducteur (condutor), chef d’orchestre (chefe da orquestra). Você percebeu que nessas línguas o termo define a função? Em português temos também um termo tecnicamente específico com relação à função: regente, que é a pessoa que rege ou conduz um grupo durante uma realização musical. Dessa forma, optaremos neste livro por manter a coerência de nomenclatura entre o verbo, “reger”, quem executa ação, “regente”, e o substantivo da ação “regência”. Outra questão a ser discutida neste assunto é a mulher na regência, algo muito importante de se mencionar, tendo em vista que “a mulher do século XIX esteve presente nas salas de concerto como cantora e às vezes como instrumentista, mas nunca como regente” (LAGO JUNIOR, 2002, p. 532). As mulheres na regência foram conquistando gradativamente espaço ao longo do século XX e continuam neste processo no século XXI. Vamos fazer um teste? Pesquise imagens de “regência de orquestra” no Google, veremos que os tempos estão mudando e que você até encontre uma mulher, mas a predominância das imagens será de figuras masculinas. Isso não ocorreu somente na regência, as mulheres compositoras e musicólogas até o final da II Guerra Mundial eram pouquíssimas e as que existiam geralmente eram esquecidas. Isso não só na música erudita, mas na música comercial também. Quantas compositoras da música brasileira você conhece? Compositoras mesmo, não mulheres que cantam obras compostas por homens. Pela falta de história em se ter mulheres assumindo esses papéis na música, dificilmente pensaríamos em uma mulher regendo uma orquestra ou sendo a compositora de uma obra sinfônica. Portanto, quando se fala “maestro” é automático se pensar em um homem, até porque existe o termo “maestrina”, também do italiano, para designar mulheres. Tendo em vista que a norma culta da língua portuguesa prevê que o gênero masculino e o neutro se sobrepõem, pode- se denominar a pessoa que rege genericamente como “o” regente. Lembrando aqui que neste caso o artigo é que define o gênero da palavra, pois regente é um substantivo verdadeiramente neutro como estudante e agente. UNIDADE 1 — INTRODUÇÃO À REGÊNCIA MUSICAL 24 Ainda que utilizemos o gênero neutro da norma culta “o regente” ao longo deste livro para designar a pessoa que rege, desejamos que você acadêmico pense na possibilidade de se imaginar que regentes podem ser mulheres também. 5 POR QUE ESTUDAR REGÊNCIA NA LICENCIATURA EM MÚSICA? Após essa contextualização, você deve se perguntar: se regência se originou com a música clássica, com orquestras sinfônicas, entre outros, por que preciso estudar regência para me formar professor de música? Boa pergunta! Para o acadêmico que vive a música popular e tem em sua perspectiva ser professor de instrumento, por exemplo professor de bateria em uma escola de música de sua cidade, é justo refletir se é importante mesmo estudar regência no seu curso, ou é apenas mais uma disciplina que precisa cumprir para ter o diploma. Então vamos tentar responder a estas questões de forma satisfatória. Primeiramente, esta disciplina não existe para formar regentes de orquestra! Naturalmente, se você quiser ser um regente de orquestra, você poderá continuar seus estudos e buscar cursos específicos que irão ajudá-lo nessa jornada. O objetivo principal de se estudar regência na licenciatura em música é para que o acadêmico exercite a integração de seus conhecimentos e habilidades musicais desenvolvendo mais uma ferramenta a compor suas possibilidades de ações pedagógicas. Figueiredo (2006) investigou a importância que estudantes de licenciatura em música atribuíam à disciplina de regência. Ele identificou que os participantes atribuíram duas qualidades principais: a aplicação direta na atuação como educadores musicais em diferentes espaços e estimular o estudo e a integração de conhecimentos musicais. Algumas das frases utilizadas pelos participantes: “O estudo da regência trouxe a possibilidade de futuramente utilizá-la profissionalmente,
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