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TUTORIA II - UC19 Fábi� Duart� Carneir� �lh� - P7 GOTA Definição Gota é a artropatia inflamatória decorrente da formação de cristais de urato monossódico di-hidratado nos tecidos articulares. Ela resulta do aumento da produção de ácido úrico, com consequente deficiência de excreção renal, devido a alteração na síntese de purinas e hábitos alimentares. A elevação dos níveis séricos de urato (NSU) pode advir de uma produção excessiva ou uma redução na excreção renal. Esta última é o principal mecanismo e está presente em algum grau em 90% dos casos. Epidemiologia A prevalência da gota na população varia muito em decorrência da ferramenta diagnóstica empregada, região geográfica e ano da coleta dos dados. Verificam-se na literatura taxas de prevalência oscilando na faixa de 1 a 5%. Apresenta grande predominância no sexo masculino, em uma proporção de 7:1 a 9:1, que diminui com a idade. Após os 65 anos, a distribuição pode chegar a 3:1. A maior incidência ocorre dos 30 aos 60 anos. No sexo feminino a maior incidência situa-se na faixa dos 55 e 70 anos, no período climatérico, uma vez que o estrógeno tem efeito uricosúrico. Fatores de risco Nas últimas décadas observou-se uma tendência ao aumento da prevalência da gota, possivelmente relacionado a diversos fatores: ➔ Dietéticos (maior ingestão de proteínas, alimentos ricos em purinas, calorias, bebidas adoçadas, bebida alcoólica e frutose); ➔ Aumento da longevidade ➔ Uso de fármacos hiperuricemiantes (como diuréticos e ácido acetilsalicílico); ➔ Doença renal crônica; ➔ Síndrome metabólica. Etiologia A formação dos cristais decorre da supersaturação de urato dos tecidos envolvidos. O limite de solubilidade do urato em fluidos corporais no pH de 7,4 e temperatura de 37°C é de 7 mg/dL, correspondendo à definição físico-química de hiperuricemia. ⇒ Redução do pH e da temperatura diminuem a solubilidade desse soluto, o que explica a topografia predominantemente apendicular periférica das crises. A formação do ácido úrico (AU) ocorre a partir da dupla oxidação da purina hipoxantina pela xantina oxidase. A formação das diversas purinas é intercambiável, e a hipoxantina pode ser reaproveitada pela ação da hipoxantina guanina fosforibosiltranferase. A deficiência dessa enzima pode acarretar uma forma grave e precoce de gota. A frutose e o álcool podem acelerar a produção do AMP que, ao entrar na via das purinas, gera mais hipoxantina. O AU uma vez formado não pode ser degradado. Setenta por cento de sua eliminação ocorre pela excreção renal e o restante pelo intestino. A homeostase do nível sérico do ácido úrico depende basicamente dos rins. Por ser uma molécula pequena, ele é totalmente filtrado, entretanto, aproximadamente 90% dessa carga é reabsorvida no túbulo proximal, por meio de transportadores de ácidos orgânicos. O mais importante deles é o URAT1, de grande importância no tratamento, pois pode ser inibido por agentes farmacológicos. Alguns fármacos como a losartana, a probenecida e o AAS em altas doses, quando presentes na luz tubular, podem deslocar o AU do transportador, elevando sua excreção. A eliminação renal diária é de 300 a 800 mg nas 24 h e o clearance de AU normal é acima de 6 a 7 mL/min. Recentemente foi identificado um novo transportador de AU denominado ABCG2. Ele está presente no rim e intestino e é capaz de afetar os NSU. Em relação à influência genética, já foram encontrados 28 locus ligados à modulação dos níveis de AU. Entre os produtos codificados, destacam-se vários transportadores, denominados transportossomos de urato. A gota é determinada pela interação dos fatores genéticos e ambientais. Fisiopatologia O principal mecanismo para a crise inflamatória é a ativação dos inflamassomas NLRP3, que ocorre via interação cristal-macrófago. APENAS A PRESENÇA DO CRISTAL NÃO É SUFICIENTE PARA ATIVAR A INFLAMAÇÃO, É NECESSÁRIO A PARTICIPAÇÃO DE OUTROS FATORES, COMO ÁCIDOS GRAXOS LIVRES. Os inflamassomas ativam a caspase 1 que induz a formação da IL-1, que por sua vez ativa o fator de necrose tumoral alfa. Assim desencadeia-se a produção de mediadores pró-inflamatórios como fatores quimiotáxicos, citocinas inflamatórias, eicosanoides e espécies ativas de oxigênio. Obs: O inflamassoma é um complexo multiproteico intracelular que atua na ativação das caspases. Inflamassomas ⇒ Caspase 1 ⇒ IL-1 ⇒ TNF a ⇒ Mediadores pró inflamatórios (citocinas) ⇒ Quimiotaxia ⇒ monócitos, mastócitos, neutrófilos ⇒ Congestão vascular, proliferação sinovial e infiltração neutrofílica, proliferação fibroblástica e sinovial e dano tecidual. O cristal sofre também a opsonização por imunoglobulinas e componentes do complemento, induzindo a sua fagocitose e amplificando o processo inflamatório. Por outro lado, simultaneamente ao surgimento da crise, passa a ocorrer um processo ativo para bloquear a evolução da inflamação e reverter o dano tecidual. Entre os mecanismos aventados está o surgimento de macrófagos M1 e M2 que têm atividade anti-inflamatória, produção de TGF-alfa1 e IL-10, regulação exercida pela AMP-activated protein kinase e a ação bifásica dos neutrófilos. Este último mecanismo, conhecido como Neutrophils Extracellular traps ou NETosis, consiste na formação de uma rede fibrosa com a finalidade de contenção de patógenos. Na gota, essa rede é capaz de encobrir os cristais do líquido sinovial, criando uma barreira ao sistema imunoinflamatório. Quadro clínico A maioria das pessoas consegue conviver, por muitos anos, com níveis elevados de uricemia sem apresentar as complicações da formação de cristais de urato, como artrite ou litíase urinária, isso é a chamada hiperuricemia assintomática. Há evidências de que os indivíduos com ácido úrico persistentemente acima do normal, mesmo que não desenvolvam gota, apresentam risco maior de hipertensão arterial, insuficiência renal e doenças cardiovasculares. A gota articular costuma acometer pacientes masculinos, começando na quarta ou quinta década de vida, na forma de artrites agudas intermitentes, acometendo preferencialmente as articulações dos pés. Em mais da metade dos casos, as primeiras artrites ocorrem na articulação do hálux, levando ao quadro classicamente chamado de podagra. As crises agudas da gota (CAG) evoluem rapidamente com dor intensa e eritema local, com grande hipersensibilidade ao toque. Essas crises respondem bem a medicações anti-inflamatórias e podem mesmo ter resolução espontânea após alguns dias. Segue-se um período assintomático que pode durar meses. Se a doença não for adequadamente tratada a partir desta fase, as crises tendem a ser mais frequentes e prolongadas, terminando por tornarem-se um quadro crônico e progressivo, com sequelas e deformidades. Nesta fase começam a aparecer os depósitos de urato denominados de tofos. Os tofos podem ocorrer em qualquer lugar do corpo, mas são mais comuns em torno das articulações e nas bursas dos cotovelos. Os pacientes que chegam a esse estágio com frequência apresentam diversos graus de insuficiência renal, a chamada nefropatia úrica. O diagnóstico clínico da gota é fortemente sugerido pela alternância das CAG com períodos assintomáticos. As primeiras crises articulares podem ser confundidas com artrite traumática ou infecciosa. O diagnóstico diferencial nesta fase deve ainda incluir a artrite psoriásica e artrites causadas por outros cristais. - Artrite gotosa aguda ⇒ reação inflamatória intensa de início agudo, decorrente da precipitação dos cristais de monourato de sódio e acometendo frequentemente a primeira articulação metatarsofalangiana (crise de podagra). ★ Fatores desencadeantes ➔ Bebidas alcoólicas (cerveja tem mais purinas) ➔ Diuréticos, tuberculostáticos (rifampicina), ingesta excessiva de carnes e leguminosas (feijão, ervilha, lentilha), trauma, infecção. ➔ A crise de gota aguda geralmente é autolimitada, resolvendo-se dentro de 3-10 dias. - Artrite gotosa crônica ⇒ decorrente da reação inflamatória crônica induzida pelos depósitos de microcristais nas cápsulas, sinóvias, osso subcondral, cartilagens,bolsas e tendões, formando massa de partes moles cutâneas e periarticulares: o tofo gotoso, que pode ser visualizado como massas indolores esbranquiçadas ou amareladas na pele de tamanho variável. ➔ Se desenvolve após 10 anos de gota aguda intermitente. ➔ Dor articular persistente, apesar de menor intensidade. ➔ Poliarticular, confundindo às vezes com artrite reumatóide. ➔ O tofo está relacionado com maior gravidade da doença. Diagnóstico Durante as CAG, são comuns as alterações inespecíficas dos exames de fase aguda, como leucocitose, aumento da velocidade de hemossedimentação e da proteína C-reativa. O achado de hiperuricemia, apesar de considerado pré-condição para o desenvolvimento da gota, tem valor diagnóstico limitado durante as crises. O diagnóstico definitivo de gota é dado pelo exame a fresco do líquido sinovial. O achado de cristais em forma de agulha, típicos do urato de monossódico (UMS), especialmente se fagocitados por leucócitos, é considerado patognomônico da gota. O emprego de microscópio equipado com filtros polarizadores facilita a detecção dos cristais e sua diferenciação com outros materiais, por sua forte refringência. Essa mesma forma de diagnóstico pode ser realizada pelo exame do conteúdo dos tofos e bursas inflamadas. A radiografia simples tem pouco valor diagnóstico nas primeiras crises. Com a evolução da doença, podem aparecer cistos subcondrais e erosões bem definidas na proximidade dos tofos, as chamadas lesões em saca-bocado. Os achados da ultrassonografia do esqueleto têm sido cada vez mais valorizados como sensíveis e específicos no diagnóstico da gota, mesmo em fases iniciais. O chamado sinal do duplo contorno, que consiste em uma linha hiperecoica detectada na superfície da cartilagem examinada, é considerado específico de depósito de cristais com até 95% de precisão. A tomografia computadorizada de dupla energia, que usa imagens reconstruídas a partir da atenuação de feixes de RX de intensidade baixa (80 kV) e alta (140 kV), permite detectar depósitos incipientes de cristais e até diferenciar os cristais de urato dos cristais de cálcio. Tratamento A educação do paciente sobre a sua doença e seu tratamento é parte fundamental para o sucesso terapêutico. → Diante de uma crise aguda de gota (CAG), o paciente deverá ser orientado a identificar os primeiros sinais e sintomas e, imediatamente, iniciar o seu tratamento, preferencialmente nas primeiras 24 horas. É muito importante que, na CAG, o paciente seja instruído a não interromper a medicação uricorredutora, caso esteja utilizando-a. → Repouso relativo, evitando toda e qualquer sobrecarga que aumente a dor na região acometida, e compressas com gelo no local da inflamação são medidas adjuvantes nos primeiros dias da CAG. → O controle adequado da hiperuricemia é a melhor forma de prevenção de novas CAG. Para que se possa prevenir a precipitação e induzir a reabsorção dos cristais de UMS já depositados, é recomendado que o nível sérico de urato (NSU) permaneça abaixo de 6 mg/dL. Nos pacientes com tofos, para que o processo de reabsorção ocorra de forma mais célere, o alvo terapêutico é abaixo de 5 mg/dL. Todo paciente deve ser orientado quanto à importância de uma dieta hipocalórica, com baixo teor de purinas e uma redução no consumo de álcool, refrigerantes e bebidas energéticas com alto teor de frutose. - Carnes, peixe, frango, presunto - Cerveja - Ervilha, lentilha, cogumelo, fava, espinafre Quando possível, deve-se procurar evitar o emprego de medicamentos hiperuricemiantes para o controle de eventuais comorbidades. Farmacologia Para o tratamento farmacológico da CAG podem ser empregados anti-inflamatório não hormonal (AINH), colchicina ou corticosteroide (oral, intramuscular ou intra-articular), isoladamente ou em certas combinações (AINH + colchicina ou corticosteroide + colchicina). ⇒ ⇒ ⇒ Na prática, não havendo contraindicação, um AINH em dose plena, associado ou não com colchicina em dose baixa (0,5 a 1,0 mg/dia), tem sido a opção mais empregada. ⇒ ⇒ ⇒ Para pacientes com contraindicação para o uso de AINH, a colchicina em dose baixa (1,0 mg inicialmente, seguido por mais 0,5 mg uma hora depois), quando usada nas primeiras 12 horas da CAG, é particularmente efetiva. Após as primeiras 36 horas o seu emprego não está indicado. ⇒ ⇒ ⇒ Quando houver contraindicação para o uso de AINH ou colchicina, ou ainda quando essas medicações não foram eficazes, o uso da prednisolona 35 mg/dia por 5 dias mostrou-se eficaz. O uso de medicações uricorredutoras (MUR) está fortemente indicado para pacientes que apresentem: ● 1 ou mais tofos, dano articular radiográfico (visto por qualquer método de imagem) atribuível à gota (forma crônica da doença); ● 2 ou mais CAG por ano. ● Mais de 1 CAG no passado, porém, atualmente, com menos de 2 CAG por ano ● Presença de doença renal moderada a grave (estágio ≥ 3); ● NSU muito elevados (> 9 mg/dL) ou passado de urolitíase. O início das MUR pode estar associado com o desencadeamento de novas CAG, por isso, para reduzir esse risco, as MUR devem ser iniciadas em doses baixas, de preferência associadas com o uso de fármacos anti-inflamatórios profiláticos. As doses das MUR deverão ser ajustadas, a cada 2 a 4 semanas, até se alcançar o alvo-terapêutico estabelecido para o paciente. Embora as recomendações das principais sociedades internacionais da especialidade defendam a estratégia do tratamento com alvo (treat-to-target) com o uso das MUR, a sua utilização, nas últimas duas décadas, não vem aumentando como se esperaria. Colchicina 0,5 mg a 1,5 mg ao dia é o esquema terapêutico mais utilizado para a prevenção de novas CAG. Quando a colchicina não é bem tolerada ou seu uso está contraindicado, a prescrição de doses baixas de um AINH ou de prednisona/prednisolona (≤ 10 mg/dia) deve ser considerada. Alopurinol O alopurinol é um inibidor competitivo da enzima xantina oxidase (iXO), prevenindo, assim, a síntese de urato a partir da hipoxantina e da xantina. Apesar de ser um fármaco bem tolerado pela maioria dos doentes, cerca de 3 a 5% dos que iniciam esta medicação podem apresentar reações adversas. As mais comuns incluem diferentes tipos de erupção cutânea, febre medicamentosa, náusea, vômito e alterações em exames laboratoriais como leucopenia, trombocitopenia e anormalidades da função hepática. Nenhum efeito adverso deve ser minimizado, uma vez que podem refletir uma condição mais grave conhecida como síndrome de hipersensibilidade ao alopurinol (SHA). - Além de um exantema eritematoso, esta síndrome se caracteriza por febre, hepatite, eosinofilia e insuficiência renal aguda. Embora a SHA seja considerada rara, com uma incidência estimada de 0,1% a 0,4%, ela é potencialmente fatal, com uma taxa de mortalidade de até 20%. - Com o intuito de reduzir os seus efeitos adversos e o risco de uma nova CAG, deve-se iniciar o alopurinol com doses não superiores a 100 mg/dia, aumentando-se as mesmas, progressivamente, a cada 2 a 4 semanas, até alcançar-se a uricemia alvo. Benzbromarona A benzbromarona é um potente uricosúrico capaz de bloquear de forma efetiva a reabsorção de ácido úrico mediada pela URAT1. A dose deve ser escalonada. Visando prevenir a ocorrência de urolitíase, o paciente deve ser orientado a fazer uma ingestão hídrica diária adequada (≥ 30 mL/kg). Apesar da boa eficácia dos iXO, alguns pacientes, mesmo com doses otimizadas, não conseguem alcançar a uricemia-alvo com o emprego dessas medicações em monoterapia. Além disso, em alguns casos a carga tofácea é tão elevada que uma redução mais acentuada da uricemia, por um certo período de tempo, permitiria uma reabsorção mais rápida dos tofos. Assim, o uso combinado de um iXO com uma medicação uricosúrica estaria indicado para um número significativo de pacientes gotosos.
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