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Intérprete de Libras Cristiane Seimetz Rodrigues Flávia Valente In té rp re te d e Li br as Intérprete de Libras Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-1726-3 Código Logístico 22208 Intérprete de Libras Cristiane Seimetz Rodrigues Flávia Valente IESDE Brasil S.A. Curitiba 2011 IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: IESDE Brasil S.A. R696i Rodrigues, Cristiane Seimetz; Valente, Flávia. / Intérprete de Libras. / Cristiane Seimetz Rodrigues; Flávia Valente. – Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2011. 232 p. ISBN: 978-85-387-1726-3 1. Interpretação. 2. Libras. 3. Estudo da tradução. I. Título. CDD 419 Especialista em Educação Bilíngue para Surdos pelo Instituto Paranaense de Ensino – Maringá. Graduada em Letras Português/Inglês pelo Centro Universitá- rio Campos de Andrade. Sua prática profissional envolve a formação continuada dos profissionais da educação de surdos da rede estadual de ensino do Paraná, a valorização da participação social dos surdos e a difusão da Língua Brasileira de Sinais(Libras). Flávia Valente Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Atua como tutora de alunos surdos, orientando e revisando produ- ções acadêmicas da graduação e pós-graduação, com ênfase nas áreas de Letras, Linguística, Tradução e Educação. Cristiane Seimetz Rodrigues Sumário Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras ..................................................... 13 Considerações iniciais .............................................................................................................. 13 Uma distinção necessária e, por vezes, incômoda: tradutor X intérprete ........... 14 O surgimento da profissão no Brasil ................................................................................. 15 Perfil e competências do TILS .............................................................................................. 18 Código de ética ......................................................................................................................... 22 Formação profissional ............................................................................................................ 24 O fazer tradutório ..................................................................... 35 O que significa traduzir ............................................................................................................ 35 Tipos de tradução segundo Roman Jakobson ............................................................... 37 A polêmica da tradução literal versus tradução livre .................................................... 41 Tradução cultural ....................................................................................................................... 45 O fazer da interpretação ........................................................ 57 No que consiste interpretar ................................................................................................... 57 Interpretação simultânea e interpretação consecutiva .............................................. 60 A (in)visibilidade do intérprete ............................................................................................. 64 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação ................................... 79 Diferença entre saber uma língua e conhecer sua estrutura ................................... 79 O domínio da estrutura linguística na tradução e interpretação ........................... 80 A questão da variação linguística e do neologismo em Libras ............................... 83 As implicações da modalidade de língua na tradução e interpretação ............... 86 Tradução acarreta o recorte de uma realidade............................................................... 90 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar ..........101 O que é gênero discursivo ..................................................................................................101 Discursos da esfera cotidiana .............................................................................................109 Áreas de atuação ....................................................................119 Intérprete no contexto social ..............................................................................................119 Intérprete no contexto educacional .................................................................................123 Intérprete na Educação Especial, na Educação Básica regular e no Ensino Superior ..............................................................................................................125 Intérprete na área jurídica ....................................................................................................128 Intérprete religioso .................................................................................................................128 Práticas de tradução e interpretação em Libras ..........141 Estratégias para a interpretação simultânea .................................................................141 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação ................................................163 Como as teorias da tradução se revelam na prática da interpretação .................163 Escrita de língua de sinais ...................................................183 Escrita de língua de sinais para quê?................................................................................183 Natureza e abrangência da escrita em língua de sinais ............................................185 Escrita de língua de sinais ....................................................................................................187 Algumas especificações sobre as combinações de configurações de dedos......................................................................193 SignWriting ................................................................................................................................196 Relação entre escrita de sinais, interpretação e tradução ........................................203 Contribuições do tradutor e intérprete no desenvolvimento da Libras ..........................................213 O papel dos tradutores no desenvolvimento das línguas nacionais ...................213 Apresentação Ao longo desta disciplina, estudante, você terá a oportunidade de entrar em contato com as mais recentes produções acadêmicas sobre interpretação e tradu- ção em Libras, bem como com teorias mais gerais sobre tradução e interpretação que podem ser aplicadas a essa língua. São apresentados e discutidos pontos teó- ricos e práticos pertinentes à atuação do profissional de tradução e interpretação em Libras. A intenção, em cada aula, é levar não apenas ao conhecimento da área, mas também a uma reflexão sobre como o perfil desse profissional vem se mol- dando e sobre os requisitos necessários para o exercício da atividade. O seu material impresso está organizado em dez aulas, que contemplam con- teúdo, atividades, texto complementar e dicas de estudo. Na primeira aula, você será introduzido ao mundo de atuação do Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais (TILS). A visão apresentada é panorâmica, de forma a prepará-lo para os próximos conteúdos. As aulas 2 e 3 são dedicadas a distinguir a função do intér- prete da do tradutor, não perdendo de vista o elo comum entre elas, a tradução. Em seguida, na aula 4, você encontrará umaexposição sobre os motivos – alguns óbvios, outros nem tanto – pelos quais ambas as línguas envolvidas no processo de tradução e interpretação devem ser dominadas pelo TILS. Seguindo a linha de proficiência e fluência linguística, a aula 5 apresenta as vantagens de pensar a tra- dução e interpretação não apenas como textos, mas como gêneros discursivos. A aula 6 volta-se para a análise dos campos de atuação para o TILS, indicando as principais exigências e condições de trabalho. Ao se deparar com as aulas 7 e 8, você, possivelmente, sentirá que tudo começa a fazer mais sentido em relação à prática diária do TILS. Isso porque essas aulas se dedicam a expor relatos de experiência profissional ou acadêmica sobre os desafios do trabalho diário desse profissional, apresentando algumas estratégias de enfrentamento e aliando a parte empírica da profissão a um aporte teórico, de forma que você possa fundamentar suas escolhas durante o ato interpretativo e/ou tradutório. No texto seguinte, lhe é dada a oportunidade de conhecer dois sistemas de escrita para as línguas de sinais, os quais poderão ser muito úteis não só para o exercício da sua profissão, mas também para o seu crescimento pessoal, à medida que um novo recurso de instrução chega ao seu conhecimen- to. Finalmente, na aula 10, há um histórico sobre a atuação do TILS no Brasil e o importante papel que vem desempenhando, juntamente com surdos e outros interessados na área da surdez, para o enriquecimento e a padronização linguís- tica da Libras. Para um melhor aproveitamento do material disponibilizado, leia-o com aten- ção, tome notas, procure estabelecer vínculos entre os conteúdos explorados a cada aula, reflita sobre como esses conteúdos se manifestam ou podem se ma- nifestar na sua trajetória de formação; dedique ao texto complementar a mesma atenção dada ao texto da aula, afinal, ele é também parte da aula. Neste ponto, você pode estar certo de que dispõe de tudo o que necessita para tirar o máximo de proveito deste material, investindo, com isso, na excelência de sua formação profissional. Bom estudo! As autoras. 13 O presente capítulo tem por objetivo expor informações, conheci- mentos e reflexões referentes à área de tradução/interpretação da Língua Brasileira de Sinais (Libras), de forma a possibilitar ao leitor a apropriação dessa área/profissão ainda em formação e em franca expansão. Espera-se que ao final da leitura o interlocutor deste texto seja capaz de discernir entre as funções, responsabilidades, direitos, perfis, condições de trabalho e formação de tradutores e intérpretes de Libras, bem como tenha alcance dos rumos que ainda se delineiam para a área. Considerações iniciais A primeira coisa a se considerar no estudo da tradução e interpretação da Libras é que se trata de um campo ainda muito pouco explorado, por razões variadas, estando entre as principais: a Língua Brasileira de Sinais ter sido reconhecida apenas recentemente; tratar-se de uma língua des- conhecida e usada por uma minoria; o fato de que a área dos Estudos da Tradução, na sua condição de campo disciplinar, é ainda muito nova. Por isso, ainda são escassos os estudos envolvendo a Libras, quanto mais a tradução/interpretação dessa língua. Mesmo em literatura estrangeira, a temática é ainda explorada de forma incipiente. Dessa forma, o tema deste capítulo é explorado a partir de questões que se consideram essenciais na formação e atuação do tradutor e intér- prete, questões estas exploradas nos últimos anos em documentos ofi- cias, tal como a lei regulamentadora da profissão (a ser sancionada pelo presidente da República), e artigos científicos produzidos no Brasil e para a realidade do país. Nesse sentido, muito do apresentado aqui se trata de uma coletânea dos conhecimentos fundamentais e, ao mesmo tempo, bá- sicos para o desempenho da função de tradutor e intérprete. Procurou-se privilegiar fontes relacionadas, seja na teoria ou na prática, à esfera da tra- dução e interpretação em Libras. Contudo, devido à já citada “falta” de re- ferências nesse campo, lançou-se mão também de textos sobre tradução e interpretação de línguas orais, estabelecendo comparações de modo a clarificar e enriquecer as discussões propostas. Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras Vídeo 14 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras Uma distinção necessária e, por vezes, incômoda: tradutor X intérprete Uma vez que a abordagem científica da tradução/interpretação em Libras é ainda inicial, pouco se tem tratado da diferença entre tradutor e intérprete. Em termos práticos, e mesmo nas rodas de conversa entre os profissionais dessa área, costuma-se associar a figura do tradutor à do intérprete, como se desem- penhassem o mesmo trabalho. Não raro, são encontradas menções ao “tradutor- -intérprete” de Libras como a figura – observe bem que se fala de “a figura”, e não “as figuras” – responsável por verter em Língua Brasileira de Sinais a língua portuguesa (ou outro idioma) e vice-versa. No que diz respeito à tradução e in- terpretação nas línguas orais, essa identificação, ou confusão, também existe: “Os intérpretes existem desde a Antiguidade, assim como os tradutores, com quem são frequentemente confundidos; o tradutor trabalha com a palavra escrita, o intérprete com a palavra falada.” Assim começa o livreto da União Europeia (Commission of the European Communities, s/d) com informações para os candidatos a seus cursos de formação de intérpretes que atendem às necessidades da instituição, o maior empregador de tradutores e intérpretes do mundo. (PAGURA, 2003, p. 210) O autor continua em seu esclarecimento de que, mesmo havendo o processo de tradução de um idioma ao outro na interpretação – tanto na simultânea, em que a língua-fonte vai sendo vertida para a língua-alvo em paralelo ao discur- so proferido, ao “mesmo tempo”, quanto na consecutiva, na qual o intérprete escuta uma fala e, após a conclusão de um trecho significativo ou do discurso inteiro, assume a palavra e repete todo o discurso na língua-alvo –, a maioria dos estudiosos e praticantes das duas áreas reserva o uso das nomenclaturas citadas para duas atividades diferentes: o tradutor trabalha com texto escrito e o resultado de sua tradução é um “outro” escrito; o intérprete lida com a fala, e o resultado de seu trabalho é uma “outra” fala. Transpondo tal conceituação para a língua de sinais, deve-se assumir que o profissional responsável por transpor discursos falados para Libras, ou o contrário, é o intérprete. Já o que transpõe um discurso escrito para Libras é o tradutor. Convém notar que a Libras, embora já possua um sistema gráfico de repre- sentação, uma escrita, não costuma ser traduzida nessa modalidade, indepen- dente de ser o texto de partida ou de chegada. Isso significa que a tradução envolvendo a Libras se dá, majoritariamente, no contexto de discursos escritos em outros idiomas (o português, por exemplo) sendo vertidos para a Libras si- nalizada, equivalente à língua oral, e não para a escrita de sinais, modalidade equiparada à língua escrita. Observe-se que não se está falando de uma impos- Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 15 sibilidade de tradução de textos escritos para escrita de sinais, apenas se está registrando a rara observância dessa prática. Estabelecida a necessária diferenciação entre tradutor e intérprete, resta tratar do incômodo que a mesma causa aos profissionais da área. Como dito anteriormente, não são raras as referências ao “Tradutor-Intérprete” de Língua de Sinais, identificado sob a sigla TILS. O uso desse termo tem ganhado um sig- nificado desnecessário, tornando dúbio o que deveria ser claro: a distinção entre duas atividades interdependentes, relacionadas, mas de natureza diversa. Ao que parece, pois ainda não há um estudo sobre isso, considerando apenas o que a prática cotidiana e o convívio com os profissionaisrevela, muitos Intérpretes de Língua de Sinais (ILS) acreditam que, se lhes for usurpada a nomenclatura de “tradutor”, ficam diminuídas a complexidade, seriedade e mesmo a profissio- nalização de sua atividade. Para muitos, não ser chamado de “tradutor” é uma forma de subalternização, como se interpretar fosse mais fácil do que traduzir. Possivelmente esse sentimento, crença, se justifique e derive do entendimen- to pejorativo do termo “interpretar” quando empregado na atividade de tradu- ção em Libras, já que é associado – não sem motivo, é verdade, mas de maneira apressada e equivocada – à faculdade de “compreender”, ou seja, elaborar para si um sentido e passar para o outro, seu cliente, um significado que é seu, e não do “autor” do discurso traduzido/interpretado, resultando numa fuga à tão alme- jada fidelidade da mensagem, da qual se tratará mais à frente. Todavia, será visto ao longo dessa discussão que ambas as atividades, tra- dução e interpretação, são complexas em demasia, exigindo dos profissionais capacidades, características e conhecimentos que ora se entrecruzam e ora se distanciam. Também não é o intuito aqui proceder numa dicotomia entre os dois campos, como se o profissional tivesse de escolher na sua atuação entre um deles. Somente se quer propor uma reflexão para fundamentar uma escolha feita para este curso: a de que tradução e interpretação são áreas diferentes de atividade, pelas quais os profissionais podem transitar, sem, contudo, esquece- rem das demandas exigidas por cada uma. Por isso, toda vez que se fizer menção ao TILS, ela deve ser lida como o tradutor e o intérprete. O surgimento da profissão no Brasil De modo geral, tanto aqui como em outros países, a formação de tradutores e intérpretes de línguas de sinais está vinculada à prática de atividades volun- tárias, que, com o decorrer do tempo e com o avanço das conquistas sociais do 16 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras surdo, foram sendo valorizadas em sua condição de atividade trabalhista. Nesse sentido, a luta do surdo por espaços nas esferas sociais, como na educação, no trabalho, na saúde etc., e, principalmente, pelo reconhecimento de sua língua como língua de fato e da qual ele poderia se valer nos espaços sociais conquista- dos, deflagrou a necessidade pelo Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais, uma vez que as instituições precisaram, por uma questão de acessibilidade, que uma ponte fosse estabelecida entre elas e o surdo. No Brasil, as atividades voluntárias de tradução e interpretação de que se falou anteriormente foram notavelmente observadas no meio religioso a partir de 1980. Não é errado dizer que está aí, em nosso país e também em outros, o nascedouro da profissão de intérprete e tradutor de Libras. No âmbito religioso, a atividade de tradução e interpretação se inicia com base num objetivo final: evangelizar o surdo. Contudo, na busca de tal intento, era necessário ao intérprete formar-se a si mesmo, uma vez que, à época, não se contava com cursos profissionalizantes, tampouco com espaços onde a língua de sinais fosse ensinada. Dessa forma, a atividade de tradução e interpretação, a princípio, foi exercida principalmente por pessoas que tinham contato com algum parente, amigo ou cônjuge surdo. Nesse sentido, essas pessoas tiveram de aprender a língua de sinais em contato com o surdo e ir estabelecendo, ao longo desse contato e da prática, um conjunto de conhecimentos e estratégias – linguísticas, culturais, sociais, tradutológicas etc. –, o que lhes permitiu viver e exercer o papel de intérprete de Libras. Ademais, conforme relato de Masutti e Santos (2008, p. 155), de forma a evitar o isolamento e a exclusão social do surdo, “instituições com fins religiosos, edu- cativos, sociais e de ajuda em geral ofereciam diferentes serviços para a comu- nidade surda”. Por meio das trocas efetuadas entre intérpretes e surdos, aqueles, passando a serem os representantes e interventores dos surdos, auxiliaram a comunidade surda em suas lutas sociais por melhores condições de trabalho, educação, reconhecimento linguístico e cultural, entre outras. O avanço das po- líticas educacionais, linguísticas etc. voltadas à comunidade surda trouxe à tona a necessidade do reconhecimento e também de políticas que balizassem a nova profissão que se delineava. Cientes disso, muitos daqueles intérpretes que atua- vam voluntariamente se tornaram, ao longo dos anos, líderes da categoria e, atualmente, participam do cenário nacional enquanto articuladores do movimento em busca da profissionalização desse grupo, como membros e presidentes das associações de intérpretes de Língua de Sinais no país. (MASUTTI; SANTOS, 2008, p. 153) O aparecimento de associações de intérpretes originou-se e, igualmente, re- sultou de um movimento organizativo da categoria, muitas vezes em parceria Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 17 com a comunidade surda, que, aos poucos, foi e vem ganhando fôlego em even- tos tais como: o I Encontro Nacional de Intérpretes de Língua de Sinais, realizado no Rio de Janeiro e organizado pela Federação Nacional de Educação e Integra- ção dos Surdos (Feneis), em 1988, que propiciou, pela primeira vez, o intercâm- bio entre alguns intérpretes do Brasil e a avaliação sobre a ética do profissional intérprete; o II Encontro Nacional de Intérpretes de Língua de Sinais, também organizado pela Feneis, realizado em 1992 no Rio de Janeiro, que possibilitou a troca de diferentes experiências entre os intérpretes do país, discussões e vo- tação do regimento interno do Departamento Nacional de Intérpretes, funda- do mediante a aprovação do mesmo; I Encontro Nordestino de Intérpretes de Libras, realizado em João Pessoa, em 1998; I Seminário de Intérpretes, realizado em São Paulo, em 2001; I e II Encontro de Intérpretes do estado de Santa Catari- na, realizados em Florianópolis, respectivamente, no ano de 2004 e 2005. Muito desse avanço organizacional foi possível graças ao estabelecimento, a partir dos anos 1990, de unidades de intérpretes e tradutores ligadas aos escri- tórios regionais da Feneis. Em 2000, o contato entre os TILS de todo o Brasil foi facilitado pela disponibilização da página dos Intérpretes de Língua de Sinais (<www.interpretels.hpg.com.br>.) e pela abertura de um espaço para partici- pação dos intérpretes através de uma lista de discussão via e-mail. Essa lista é aberta para todos os intérpretes interessados e pode ser acessada através da página dos intérpretes. Além disso, a Feneis, a partir de 2002, passou a sediar escritórios em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Teófilo Otoni, Brasília e Recife, além da matriz no Rio de Janeiro, permitindo que a luta pelos direitos do surdo e, em sua esteira, do intérprete, alcançasse realmente um patamar nacio- nal, podendo articular movimentos em prol da educação, saúde, trabalho, direi- to a intérprete etc. de maneira descentralizada, de forma a atingir outras áreas que não apenas o Rio de Janeiro. No dia 24 de abril de 2002, foi homologada a Lei Federal 10.436 que reconhece a Língua Brasileira de Sinais como língua oficial das comunidades surdas brasi- leiras, porém, sua regulamentação viria apenas três anos depois, com o Decreto 5.626/2005. A partir de então, houve um avanço na aplicação das políticas linguís- ticas em relação à Libras, fazendo com que ela alcançasse gradativamente um lugar próprio enquanto objeto de interesse científico, sendo estudada sob pers- pectivas várias – antropológica, educacional, tradutológica, linguística, literária, entre outras. Portanto, essa lei e sua respectiva regulamentação representam um passo fundamental no processo de reconhecimento e formação do profissional Intérprete de Língua de Sinais no Brasil, bem como a abertura de várias oportuni- dades no mercado de trabalho, que são respaldadas pela questão legal. 18 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras Até o anode 2010, ainda não se tem uma diretriz nacional sobre o perfil e as exigências para a formação profissional do TILS. O que há é um conjunto de princípios, baseado no código de ética da atividade, a ser seguido, sendo que cada estado estabelece a regulamentação da prática de tradução e interpreta- ção. Esse quadro, contudo, está em via de ser alterado, já que foi aprovado, em julho de 2010, pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado (CAS), o projeto de lei que regulamenta a profissão de tradutor e intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras), faltando somente a sanção do presidente da República, haja vista o caráter terminativo da decisão tomada pela CAS. Com a sanção presidencial, finalmente se poderá tratar da prática de tradução e interpretação como uma profissão de fato e de direito, o que levará, consequentemente, ao estabeleci- mento de políticas públicas para a “nova” atividade, seja no tocante a melhorias nas condições de trabalho, seja no que tange à formação desse profissional. O referido projeto de lei, que tramitou no Senado como PLC 325/2009 (na Câmara, tramitou como Projeto de Lei 4.673/2004), entre outras coisas, estabelece como exigência para exercer a profissão uma das três formações: � curso superior de tradução e interpretação com habilitação em Libras (lín- gua portuguesa); � nível médio, com formação em cursos (obtida até 22 de dezembro de 2015) de educação profissional reconhecidos pelo sistema que os creden- ciou, ou cursos de extensão universitária, ou cursos de formação continua- da, esses dois últimos promovidos por instituições de Ensino Superior e instituições credenciadas por Secretarias de Educação; � certificação de proficiência, sendo que a mesma será fornecida até o dia 22 de dezembro de 2015 pela União, que, diretamente ou por intermédio de credenciadas, promoverá, anualmente, exame nacional de proficiência em Tradução e Interpretação de Libras – Língua Portuguesa. Além disso, o projeto prevê a elaboração de uma norma específica que es- tabelecerá a criação de Conselho Federal e Conselhos Regionais responsáveis pela aplicação da regulamentação da profissão, em especial da fiscalização do exercício profissional. Perfil e competências do TILS Necessário dizer que embora se faça menção ao TILS aqui, a maior parte das asserções desta seção são feitas em torno do intérprete, uma vez que os mate- Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 19 riais de consulta disponíveis se remetem principalmente a ele. Ainda assim, será possível ao leitor vislumbrar os pontos em que tradução e interpretação se apro- ximam e se distanciam. Esclarecido isso, o primeiro requisito para um candidato a TILS é o pleno domínio da Libras, bem como da sua própria língua materna, nesse caso, o português. Porém, só o domínio das línguas envolvidas no proces- so de tradução não basta para que alguém atue como tradutor ou intérprete. Segundo aponta Quadros (2007, p. 29), também não se deve cair no mito de que professores de surdos ou filhos de pais surdos têm predisposição e/ou maior facilidade, tornando-se intérpretes mais bem preparados por conta disso. O domínio da Libras, ser filho de surdos, ou professor de surdos, nada disso garante, por si só, que alguém possa ser intérprete. É preciso, na verdade, que haja uma conjunção de características que envolvem, além do conhecimento profundo da estrutura das línguas envolvidas e a responsabilidade de manter- -se fiel e neutro em relação ao objeto de interpretação, o conhecimento cultu- ral suficiente da língua-alvo e da língua-fonte para fazer as devidas adaptações linguísticas de cunho idiomático e cultural. Aí, entrecruzam-se habilidades lin- guísticas próprias e inferências que ocorrem durante o próprio ato interpretati- vo, que levam intérpretes a usarem diferentes recursos para expressar os mais diversos significados, seja nas palavras, em nível lexical, ou nas frases, em nível sintático. Por tal razão, a abertura ao aprendizado contínuo, tanto em cursos de formação quanto em convívio com surdos, usuários da Libras e colegas de profissão, é imprescindível. As práticas de autoavaliação e de autocrítica e o feedback de seus clientes também são importantes componentes auxiliadores na excelência do desempenho da profissão. Até agora se falou de questões relativas a escolhas lexicais e estrutura sintáti- ca, no entanto, a ação do intérprete não se limita a isso. Há ainda a semântica e a pragmática, que são componentes naturais do discurso e certamente devem ser contemplados nessa atuação. Por exemplo, o falante tem intenções discursivas que são entendidas por seus ouvintes, por compartilharem o mesmo campo lin- guístico; os surdos, porém, só percebem tais sutilezas se o intérprete utilizar-se de recursos para tanto. Isso implica em superar a dificuldade imposta pela mo- dalidade da Libras. Sabendo que esta é uma língua de modalidade espaço-visual e a língua portuguesa de modalidade oral-auditiva, há uma incompatibilidade da estruturação gramatical, ou dizendo melhor, são sistemas organizados distin- tamente. E isso se torna um complicador, conforme afirma Quadros (2007), pelo fato dos profissionais desconhecerem as particularidades da língua. 20 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras Ademais, a autora afirma que o intérprete ao intermediar um processo intera- tivo deve ser responsável pela veracidade e fidelidade das informações. A ética é um ponto muito importante, mas apenas ela (como a própria autora, aliás, men- ciona em outras passagens) não garante a fidelidade de interpretação em rela- ção às intenções discursivas dos envolvidos no ato comunicativo. É preciso que o intérprete tenha excelente domínio da língua de partida, bem como da língua de chegada, que ele reconheça as diferentes intenções discursivas do indivíduo e tenha ainda a capacidade de perceber certas sutilezas semânticas e pragmáti- cas na língua-fonte (a de partida) e saber como expressá-las na língua-alvo (a de chegada). Entretanto, a fidelidade, tão almejada, é difícil de alcançar, se pensada como sinônimo de exatidão, por isso cabe aqui uma citação acerca da questão da fidelidade em tradução que capta o que se julga pertinente pensar sobre a interpretação (guardadas as devidas diferenças): Só se poderia falar em tradução literal se houvesse línguas bastante semelhantes para permitirem ao tradutor limitar-se a uma simples transposição de palavras ou expressões de uma para outra. Mas línguas assim não há, nem mesmo entre os idiomas cognatos. As inúmeras divergências estruturais existentes entre a língua do original e a tradução obrigam o tradutor a escolher, de cada vez, entre duas ou mais soluções, e em sua escolha ele é inspirado constantemente pelo espírito da língua para a qual traduz. (RÓNAI, 1987, p. 21) Isso significa que, assim como na tradução, durante a interpretação não há uma única maneira de se dizer na língua-alvo o que foi dito na língua-fonte e isso leva ao fato de que não há apenas uma maneira ideal, boa, de interpretação, mas muitas. Então, cabe ao TILS construir “maneiras adequadas” de transmitir ao seu cliente as informações que a ele são dirigidas onde e com quem estiver – consultórios médicos, reuniões de trabalho, júri, conferências, sala de aula, entre outras possibilidades. Evidentemente, quão mais bem formado for o profissio- nal, mais chances de sucesso terá na execução de sua tarefa. A formação municia o TILS, por meio de teorias e prática, a lidar com os desafios de sua atividade. No entanto, tal como em outras áreas do saber e do fazer, não existem fórmulas, ou receitas infalíveis, que possam ser seguidas e aplicadas indiscriminadamente. Existem, sim, teorias que subsidiam a prática e práticas que alimentam a teoria, as quais, quando entrelaçadas, conforme se espera fazer ao longo deste curso, oferecem ao tradutor e intérprete a autonomia necessária para ir moldando sua atuação e criando suas próprias estratégiasde tradução e interpretação. Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 21 As exigências específicas à tradução e à interpretação da Libras Ao intérprete da Libras cabe a responsabilidade de transmitir o que foi dito. Para tanto, não precisa manter a mesma forma gramatical apresentada na lín- gua-fonte, mas deverá garantir que o conteúdo chegue aos surdos (que natu- ralmente são os receptores dessa língua) na mesma proporção qualitativa que chega aos que ouvem o que é proferido. Porém, para realizar tal feito, o intérprete deve fazer escolhas lexicais adequadas, estruturar a língua-alvo respeitando sua organização gramatical, bem como desenvolver técnicas de recepção-emissão simultâneas, ou seja, sua agilidade em ouvir deve ser relevante para não perder informações mencionadas no discurso falado. Além de assimilar o que ouve e fazer a acomodação em sua mente, o intér- prete deve processar a informação, o que, nesse caso, significa julgar qual sina- lização da Libras corresponde a dada sentença do português. É uma tomada de decisão que acontece rapidamente. Os tradutores, por sua vez, dispõem de tempo suficiente à obtenção de um texto final técnica e linguisticamente correto. A atividade de interpretação, por outro lado, encontra-se associada a um forte componente de imprevisibilidade, o que obriga o intérprete a preocupar-se sobretudo com a mensagem essencial do discurso transposto, e não tanto com a sua transposição integral. Esse fator leva também a que esta profissão seja muito exigente do ponto de vista físico e mental, pois o intérprete necessita estar altamente concentrado e acompanhar o ritmo das falas, ouvindo e sinalizando ao mesmo tempo. Por envolver questões pertinentes à proficiência linguística, à cultura, à ética, ao emocional, à acuidade intelectual, à compreensão de texto e outros, é que a interpretação simultânea apresenta-se como um grande desafio a quem se dispõe a atuar como mediador entre os indivíduos da situação comunicativa. Não menos complexa ou árdua é a tarefa do tradutor, entendido nesse mo- mento como o que executa o ofício de transpor para Libras textos escritos. Claro que o contrário, a transposição da Libras para textos escritos, também é passível de ser realizado, mas, claro, numa proporção muito menor, já que a demanda por esse tipo de trabalho ainda é pequena. 22 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras Um estudo bastante interessante é o empreendido por Quadros e Souza (2008) quanto à prática de tradução de textos escritos em português para a Língua Brasileira de Sinais. Em sua pesquisa, os autores relatam o processo tra- dutológico empregado na confecção dos materiais de ensino (DVDs e Ambien- te Virtual) do curso Letras Libras ofertado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e seus polos. A leitura do relato interessa na medida em que é possível traçar a diferença da natureza da tarefa executada pelo tradutor e pelo intérprete. Destaque para a preparação prévia de que dispõe o tradutor, poden- do se valer de recursos de consulta, avaliar a qualidade de sua tradução (gravada em DVD) e lapidá-la no confronto com o texto original, coisas impensáveis para o contexto da interpretação simultânea, em que o profissional precisa resolver seus “problemas” no ato. Aqui, como na interpretação, exige-se o domínio das técnicas arroladas nos parágrafos anteriores. Código de ética Ética é o conjunto de princípios morais que se devem observar no exercí- cio de uma profissão. O estabelecimento do conjunto a ser seguido por cada profissão é feito por aqueles que a exercem, de forma a respaldar sua prática e também orientá-la, assim como fornecer parâmetros para a formação daqueles que integrarão a categoria. Dessa forma é que se estabelece o código de ética de uma atividade profissional. Com a tradução e interpretação não é diferente. A existência do código justifica-se a partir do tipo de relação que o intérprete esta- belece com as partes envolvidas na interação. O intérprete está para intermediar um processo interativo que envolve determinadas intenções conversacionais e discursivas. Nessas interações, o intérprete tem a responsabilidade pela veraci- dade e fidelidade das informações. Assim, a ética deve estar na essência desse profissional e permear todas as suas decisões no momento de sua atuação. A seguir é transcrito o código de ética que é parte integrante do Regimento Inter- no do Departamento Nacional de Intérpretes (Feneis): (Registro dos Intérpretes para Surdos – em 28-29 de janeiro de 1965, Washington, EUA). Tradução do original Interpreting for Deaf People, Stephen (ed.) USA por Ricardo Sander. Adaptação dos Representantes dos Estados Brasileiros – Aprovado por ocasião do II Encontro Nacional de Intérpretes – Rio de Janeiro/RJ/Brasil – 1992. Capítulo 1. Princípios fundamentais Artigo 1.o São deveres fundamentais do intérprete: 1.º O intérprete deve ser uma pessoa de alto caráter moral, honesto, consciente, confidente e de Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 23 equilíbrio emocional. Ele guardará informações confidenciais e não poderá trair confidências, as quais foram confiadas a ele; 2.º O intérprete deve manter uma atitude imparcial durante o transcurso da interpretação, evitando interferências e opiniões próprias, a menos que seja requerido pelo grupo a fazê-lo; 3.º O intérprete deve interpretar fielmente e com o melhor da sua habilidade, sempre transmitindo o pensamento, a intenção e o espírito do palestrante. Ele deve lembrar dos limites de sua função e não ir além de sua responsabilidade; 4.º O intérprete deve reconhecer seu próprio nível de competência e ser prudente em aceitar tarefas, procurando assistência de outros intérpretes e/ou profissionais, quando necessário, especialmente em palestras técnicas; 5.º O intérprete deve adotar uma conduta adequada de se vestir, sem adereços, mantendo a dignidade da profissão e não chamando atenção indevida sobre si mesmo, durante o exercício da função. Capítulo 2. Relações com o contratante do serviço 6.° O intérprete deve ser remunerado por serviços prestados e se dispor a providenciar serviços de interpretação, em situações onde fundos não são possíveis; 7.° Acordos em níveis profissionais devem ter remuneração de acordo com a tabela de cada estado, aprovada pela Feneis. Capítulo 3. Responsabilidade profissional 8.° O intérprete jamais deve encorajar pessoas surdas a buscarem decisões legais ou outras em seu favor; 9.º O intérprete deve considerar os diversos níveis da Língua Brasileira de Sinais bem como da Língua Portuguesa; 10.° Em casos legais, o intérprete deve informar à autoridade qual o nível de comunicação da pessoa envolvida, informando quando a interpretação literal não é possível, e o intérprete, então, terá que parafrasear de modo claro o que está sendo dito à pessoa surda e o que ela está dizendo à autoridade; 11.º O intérprete deve procurar manter a dignidade, o respeito e a pureza das línguas envolvidas. Ele também deve estar pronto para aprender e aceitar novos sinais, se isso for necessário para o entendimento; 12.° O intérprete deve esforçar-se para reconhecer os vários tipos de assistência ao surdo e fazer o melhor para atender às suas necessidades particulares. Capítulo 4. Relações com os colegas 13.° Reconhecendo a necessidade para o seu desenvolvimento profissional, o intérprete deve agrupar-se com colegas profissionais com o propósito de dividir novos conhecimentos de vida e desenvolver suas capacidades expressivas e receptivas em interpretação e tradução. Parágrafo único. O intérprete deve esclarecer o público no que diz respeito ao surdo sempre que possível, reconhecendo que muitos equívocos (má informação) têm surgido devido à falta de conhecimento do público sobre a área da surdez e a comunicação com o surdo. (QUADROS, 2007, p. 28) 24 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras Formaçãoprofissional Em virtude das novas exigências do mercado de trabalho, aliadas à difusão da Libras e ao crescente número de pessoas que conhecem e desejam utilizá-la profissionalmente, vê-se cada vez mais a especialização desta profissão. Desse modo, quem inicia uma carreira de tradutor e/ou de intérprete deverá contar com um mercado de trabalho exigente cujo acesso não é garantido pelo mero conhecimento da língua em questão. Deverá adquirir, por isso, técnicas espe- cializadas em tradução e/ou interpretação e é essencial que invista em conheci- mentos técnicos e conhecimentos gerais, através, por exemplo, de estágios, de contato com a comunidade surda em variados âmbitos e de um esforço cons- tante na investigação e na autoformação. Há vários níveis de formação de intérpretes para surdos no mundo. Desde o nível secundário ao nível de mestrado, podem-se encontrar pessoas especia- lizando-se para se tornarem profissionais mais qualificados. Essa variação em níveis de qualificação reflete um desenvolvimento sociocultural da comunidade surda. A preocupação em formar intérpretes surge a partir da participação ativa da comunidade surda na comunidade em que está inserida. Além dos níveis de formação, começam a se delinear também as especialidades, ou áreas, de atu- ação do TILS. Assim, além de uma formação mais geral, necessária a todo pro- fissional, ainda há a possibilidade, transformada, sem dúvida, futuramente, em necessidade, de uma formação específica a cada esfera de atuação: educacional, jurídica, médica, empresarial-trabalhista, religiosa etc. Para o momento, aborda- se, por meio do texto complementar, a formação do intérprete educacional, o qual é ainda o mais requisitado no mercado de trabalho atual. Texto complementar O intérprete educacional (QUADROS, 2007, p. 55-59) O intérprete educacional é aquele que atua como profissional Intérprete de Língua de Sinais na educação. É a área de interpretação mais requisita- da atualmente. Na verdade, essa demanda também é observada em outros países: Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 25 Nos Estados Unidos, em 1989, estimava-se que 2 200 Intérpretes de Língua de Sinais estivessem atuando nos níveis da educação elementar e no ensino secundário. [...] Atualmente, mais de um terço dos graduados nos cursos de formação de intérpretes são empregados em escolas públicas. Mais da metade dos intérpretes estão atuando na área da educação. (STEWART et al. 1998) Considerando a realidade brasileira na qual as escolas públicas e parti- culares têm surdos matriculados em diferentes níveis de escolarização, seria impossível atender às exigências legais que determinam o acesso e a per- manência do aluno na escola observando-se suas especificidades sem a pre- sença de Intérpretes de Língua de Sinais. Assim, faz-se necessário investir na especialização do Intérprete de Língua de Sinais da área da educação. O intérprete especialista para atuar na área da educação deverá ter um perfil para intermediar as relações entre os professores e os alunos, bem como entre os colegas surdos e os colegas ouvintes. No entanto, as competências e responsabilidades desses profissionais não são tão fáceis de serem determi- nadas. Há vários problemas de ordem ética que acabam surgindo em função do tipo de intermediação que acaba acontecendo em sala de aula. Muitas vezes, o papel do intérprete em sala de aula acaba sendo confundido com o papel do professor. Os alunos dirigem questões diretamente ao intérprete, comentam e travam discussões em relação aos tópicos abordados com o intérprete, e não com o professor. O próprio professor delega ao intérprete a responsabilidade de assumir o ensino dos conteúdos desenvolvidos em aula ao intérprete. Muitas vezes, o professor consulta o intérprete a respeito do desenvolvimento do aluno surdo, como sendo ele a pessoa mais indicada a dar um parecer a respeito. O intérprete, por sua vez, se assumir todos os papéis delegados por parte dos professores e alunos, acaba sendo sobrecar- regado e, também, acaba por confundir o seu papel dentro do processo edu- cacional, um papel que está sendo constituído. Vale ressaltar que se o intér- prete está atuando na educação infantil ou fundamental, mais difícil torna-se a sua tarefa. As crianças mais novas têm mais dificuldades em entender que aquele que está passando a informação é apenas um intérprete, é apenas aquele que está intermediando a relação entre o professor e ela. Diante dessas dificuldades, algumas experiências têm levado à criação de um código de ética específico para Intérpretes de Língua de Sinais que atuam na educação. Em alguns casos, ao Intérprete de Língua de Sinais é per- mitido oferecer feedback do processo de ensino-aprendizagem ao professor, por exemplo. Se essa possibilidade existe, poder-se-ia prever que o intérprete assumiria a função de tutoria mediante a supervisão do professor, o que em 26 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras outras circunstâncias de interpretação não seria permitido. No entanto, isso poderia gerar muitos problemas... Os intérpretes-tutores deveriam estar pre- parados para trabalharem com as diferentes áreas do ensino. Se a eles fossem atribuídas as responsabilidades com o ensino, eles deveriam ser professores, além de serem intérpretes. E se estiverem assumindo a função de professo- res, por que estariam sendo contratados como intérpretes? Considerando tais questões, poder-se-ia determinar que o intérprete assumirá somente a função de intérprete, que em si já se basta, e caso seja requerido um professor que domine língua de sinais, que este seja contratado como tal. Conforme apresentado em <www.deafmall.net/deaflinx/.edcoe.html>. (2002), nos Estados Unidos já houve tal discussão e foi determinado ser an- tiético exigir que o intérprete assuma funções que não sejam específicas da sua atuação enquanto intérpretes, tais como: � tutorar os alunos (em qualquer circunstância); � apresentar informações a respeito do desenvolvimento dos alunos; � acompanhar os alunos; � disciplinar os alunos; � realizar atividades gerais extraclasse. Em <www.deafmall.net/deaflinx/useterp2.html>. (2002), apresentam-se alguns elementos sobre o Intérprete de Língua de Sinais em sala de aula que devem ser considerados: � Em qualquer sala de aula, o professor é a figura que tem autoridade absoluta. � Considerando as questões éticas, os intérpretes devem manter-se neutros e garantirem o direito dos alunos de manter as informações confidenciais. � Os intérpretes têm o direito de serem auxiliados pelo professor através da revisão e preparação das aulas que garantam a qualidade da sua atuação durante as aulas. � As aulas devem prever intervalos que garantam ao intérprete descan- sar, pois isso garantirá uma melhor performance e evitará problemas de saúde para o intérprete. Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 27 � Deve-se também considerar que o intérprete é apenas um dos ele- mentos que garantirá a acessibilidade. Os alunos surdos participam das aulas visualmente e precisam de tempo para olhar para o intér- prete, olhar para as anotações no quadro, olhar para os materiais que o professor estiver utilizando em aula. Também, deve ser resolvido como serão feitas as anotações referentes ao conteúdo, uma vez que o aluno surdo manterá sua atenção na aula e não disporá de tempo para realizá-las. Outro aspecto importante é a garantia da participa- ção do aluno surdo no desenvolvimento da aula através de perguntas e respostas que exigem tempo dos colegas e professores para que a interação se dê. A questão da iluminação também deve sempre ser considerada, uma vez que sessões de vídeo e o uso de retroprojetor podem ser recursos utilizados em sala de aula. Ainda se podem levantar outros problemas que surgem em relação aos in- térpretes em sala de aula. Por exemplo, o fato dos intérpretes interagirem com os professores pode levara um problema ético, pois é natural travar comentá- rios a respeito dos alunos durante os intervalos. O código de ética prevê que o intérprete seja discreto e mantenha sigilo, não faça comentários, não compar- tilhe informações que foram travadas durante sua atuação. Assim, o código de ética dessa especialidade deveria também prever que ao intérprete fosse permitido apenas fazer comentários específicos relacionados à linguagem da criança, à interpretação em si e ao processo de interpretação, quando estes forem pertinentes para o processo de ensino-aprendizagem. Outro aspecto a ser considerado na atuação do intérprete em sala de aula é o nível educacional. O Intérprete de Língua de Sinais poderá estar atuan- do na educação infantil, na educação fundamental, no ensino médio, no nível universitário e no nível de pós-graduação. Obviamente que em cada nível de- ve-se considerar diferentes fatores. Nos níveis mais iniciais, o intérprete estará diante de crianças. Há uma série de implicações geradas a partir disso. Crianças têm dificuldades em compreender a função do intérprete puramente como uma pessoa mediadora da relação entre o professor e o aluno. A criança surda tende a estabelecer o vínculo com quem lhe dirige o olhar. No caso, o intér- prete é aquele que estabelece essa relação. Além disso, o intérprete deve ter afinidade para trabalhar com crianças. Por outro lado, o adolescente e o adulto lidam melhor com a presença do intérprete. Nos níveis posteriores, o intér- prete passa a necessitar de conhecimentos cada vez mais específicos e mais 28 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras aprofundados para poder realizar a interpretação compatíveis com o grau de exigência dos níveis cada vez mais adiantados da escolarização. De modo geral, aos Intérpretes de Língua de Sinais da área da educação é recomendado redirecionar os questionamentos dos alunos ao professor, pois dessa forma o intérprete caracteriza o seu papel na intermediação, mesmo quando esse papel é alargado. Nesse sentido, o professor também precisa passar pelo processo de aprendizagem de ter no grupo um contexto diferen- ciado com a presença de alunos surdos e de Intérpretes de Língua de Sinais. A adequação da estrutura física da sala de aula, a disposição das pessoas em sala de aula, a adequação da forma de exposição por parte do professor são exemplos de aspectos a serem reconsiderados em sala de aula. Cabe apresentar uma outra questão, há vários professores que também são Intérpretes de Língua de Sinais. O próprio MEC está procurando formar professores enquanto intérpretes. Isso acontece, pois alguns professores acabam assumindo a função de intérprete por terem um bom domínio da língua de sinais. Nesse caso, esse profissional tem duas profissões: a de pro- fessor e a de Intérprete de Língua de Sinais. A proposta do MEC em formar in- térpretes selecionando professores da rede regular de ensino objetiva abrir esse campo de atuação dentro das escolas. Assim, o “professor-intérprete” deve ser o profissional cuja carreira é a do magistério e cuja atuação na rede de ensino pode efetivar-se com dupla função: 1. Em um turno, exercer a função de docente, regente de uma turma seja em classe comum, em classe especial, em sala de recursos, ou em es- cola especial (nesse caso, não atua como intérprete). 2. Em outro turno, exercer a função de intérprete em contexto de sala de aula, onde há outro professor regente. Dicas de estudo Despertar do Silêncio, de Shirley Villalva, Editora Arara Azul. Esse livro retrata a trajetória de vida de uma surda parcial que procura en- tender o mundo à sua volta, significá-lo por meio de uma língua, mas a questão que se coloca à autora é que língua empregar em tal significação, uma vez que, durante muito tempo, a Libras nada comunicava aos que estavam ao seu redor, nem a ela própria. O relato da autora permite a reflexão sobre como a tradução Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 29 e interpretação de uma língua dependem, em certa medida, da maneira como o mundo é visto, apreendido, recortado. A Intérprete (2005), dirigido por Sydney Pollack. O filme apresenta o drama de uma intérprete das Nações Unidas, Silvia Broome, que ouve, por acaso, uma ameaça de morte a um chefe de estado afri- cano, planejada para acontecer na Assembleia Geral das Nações Unidas. A con- versa é ouvida num raro dialeto que poucas pessoas, além de Silvia, nascida na África, podem entender. A abordagem do filme permite refletir sobre os limites da atuação do intérprete, as implicações éticas, bem como apresenta um pouco da rotina de trabalho desse profissional. Atividades 1. Você viu ao longo do texto que existe no Brasil um código de ética que estabe- lece os princípios de conduta para a atividade. E quanto ao que o código não prevê diretamente? Afinal, é impossível prever todas as situações inusitadas pelas quais um intérprete pode passar. Como agir em relação a isso? Abster-se quando não há uma conduta clara e específica recomendada? 30 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 2. Discorra sobre os motivos pelos quais apenas o domínio da Libras e da lín- gua portuguesa não garante que alguém possa atuar como intérprete e/ou tradutor dessas línguas. 3. Fundamentando-se nas discussões estabelecidas ao longo da aula a respei- to da atuação do tradutor e do intérprete, é possível dizer que interpretar e traduzir são atividades de natureza diversa, embora relacionadas entre si? Justifique sua resposta. Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 31 Referências BRASIL. Projeto de Lei 4.673-C de 2004. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Disponível em: <wwwlegis. senado.gov.br/mate-pdf/72153.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2010. MAGALHÃES, Ewandro Junior. Sua Majestade, o Intérprete: o fascinante mundo da tradução simultânea. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. MASUTTI, Mara Lúcia; SANTOS, Silvana Aguiar. Intérpretes de Língua de Sinais: uma política em construção. In: QUADROS, Ronice Müller de (Org.). Estudos Surdos III. Petrópolis: Arara Azul, 2008. PAGURA, Reynaldo. A interpretação de conferências: interfaces com a tradução es- crita e implicações para a formação de intérpretes e tradutores. DELTA [on-line], 2003, v. 19, n. spe, p. 209-236. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-44502003000300013>. Acesso em: 14 jul. 2010. QUADROS, Ronice Müller de. O Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. 2. ed. Secretaria de Educação Especial; Brasília: MEC; SEESP, 2007. QUADROS, Ronice Müller de; SOUZA, Saulo Xavier de. Aspectos da tradução/en- cenação na Língua de Sinais Brasileira para um ambiente virtual de ensino: prá- ticas tradutórias do curso de Letras Libras. In: QUADROS, Ronice Müller de (Org.). Estudos Surdos III. Petrópolis: Arara Azul, 2008. RÓNAI, P. Escola de Tradutores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1987. SILVA, Lídia da; RODRIGUES, Cristiane Seimetz. Marcas aspectuais na interpreta- ção simultânea do português para a Língua de Sinais Brasileira (Libras). Revista Eletras [on-line], Curitiba, v. 20, jul. 2010. Disponível em: <www.ctp.br/eletras/ textos/Artigo_livre_20.2_Marcos_aspectuais_na_interpretação_simultanea_ do_portugues_SILVA_RODRIGUES.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2010. Gabarito 1. Na sua condição de conjunto, o código de ética tenta alcançar, por meio de princípios gerais, situações mais específicas do cotidiano do TILS. Entre- tanto, por se tratarem de princípios, os preceitos estabelecidos no código 32 Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras de ética funcionam como um norte a seguir mesmo quando algumas situ- ações não são contempladas diretamente por ele. Nessa hora, vale o bom senso de cada um, e ter em mente que, na condição de uma profissão com suas responsabilidades, a não observância de certas condutas pode resul-tar em prejuízos não apenas para o cliente, mas também para si. 2. Apenas o domínio das línguas envolvidas no ato tradutológico não pos- sibilita a alguém ser um TILS, pois há muito mais exigências que preci- sam ser satisfeitas e que compõem o perfil do profissional. Nesse sentido, para o indivíduo tornar-se um tradutor e intérprete ele precisa apresen- tar características tais como responsabilidade de manter-se fiel e neutro em relação ao objeto de interpretação, o conhecimento cultural sufi- ciente da língua-alvo e da língua-fonte para fazer as devidas adaptações linguísticas de cunho idiomático e cultural, investir em formação, estar aberto a aprendizados, manter o convívio com surdos, procurar feedback do trabalho realizado, empenhar-se em desenvolver suas próprias estra- tégias de tradução, ter boa audição, pensamento rápido para julgar as escolhas lexicais, sintáticas, semânticas e pragmáticas mais adequadas à mensagem pretendida por aquele que a produziu etc. 3. Resposta mínima deve contemplar o reconhecimento de que são de fato duas tarefas diferentes, com exigências e características de atuação di- versas, mas que se entrecruzam na medida em que consistem em verter um conteúdo de uma língua-fonte para uma língua-alvo, sendo que as habilidades exigidas na tradução podem estar presentes na interpreta- ção e vice-versa. Panorama e perspectivas da tradução e interpretação em Libras 33 35 Neste capítulo a intenção é adentrar no mundo da tradução, definir o termo “traduzir” enquanto conceito fundamental que atravessa o ato in- terpretativo. A proposta é de aprofundamento no que seja a atividade de traduzir, os meios de executá-la, daí a apresentação de tipos de tradução, as implicações e limites de tal tarefa, as quais têm a ver com a questão da fidelidade. Esta, muitas vezes, buscada através da tradução cultural. Será discutido, nesse sentido, que, embora toda proposta de tradução lide com a cultura em que o texto do original foi produzido, existe uma vertente teórica a defender uma tradução que não apenas considere a cultura, mas que traduza de forma cultural, lançando uma ponte entre culturas diferen- tes, mais do que meramente entre línguas diferentes. O que significa traduzir A palavra traduzir apresenta diferentes conceituações. Segundo o di- cionário Aurélio (1986, p. 2.745), etimologicamente, significa “conduzir além”, “transferir”. Todavia, hoje em dia, também abrange sentidos como “transpor, trasladar de uma língua para outra”, “revelar, explicar, manifes- tar, explanar”, “representar, simbolizar”. Como se pode depreender das acepções apresentadas, traduzir designa, especificamente, uma operação de transferência linguística e, de modo mais geral, qualquer operação de transferência entre códigos ou, inclusive, dentro de códigos. Isso implica que a atividade de tradução pode assumir naturezas diversas de acordo com o que se está transferindo. Deriva daí a possibilidade de diferentes tipos de tradução, como se verá posteriormente. Antes, porém, além das acepções dadas pelo dicionário, úteis, é verdade, é preciso considerar o que estudiosos e teóricos da tradução têm a discutir sobre as definições comumente atribuídas à palavra traduzir. Paulo Rónai, em A Tradução Vivida, avalia que: Ao definirem “tradução”, os dicionários escamoteiam prudentemente esse aspecto e limitam-se a dizer que “traduzir é passar para outra língua”. A comparação mais óbvia é fornecida pela etimologia: em latim, traducere é levar alguém pela mão para o outro O fazer tradutório Vídeo 36 O fazer tradutório lado, para outro lugar. O sujeito desse verbo é o tradutor, o objeto direto, o autor do original a quem o tradutor introduz num ambiente novo [...] Mas a imagem pode ser entendida também de outra maneira, considerando-se que é ao leitor que o tradutor pega pela mão para levá-lo para outro meio linguístico que não o seu. (RÓNAI, 1976, p. 3-4) Do excerto acima, é possível entender que a tradução pode adotar pelo menos dois movimentos, duas direções. De um lado, o original a ser traduzido é levado, conduzido até o leitor em sua língua de chegada, adaptando-se, para tanto, os “costumes”, características do original ao novo meio linguístico. Esse processo, não raro, leva a esquecer que a tradução se trata de um original vindo de uma realidade distante, fundamentalmente diferente. Nesse caso, tem-se o que Rónai (1976) chama de “tradução naturalizadora”. De outro lado, há o que o autor de- nomina de “tradução identificadora”. Movimento no qual o leitor (público-alvo da tradução) é conduzido para o país da obra que lê, entrando em contato com as peculiaridades dela, o que acentua sua origem distante, estrangeira. A visão adotada por Rónai (1976) é reforçada por Bassnett (2003, p. 9), para quem a tradução não é somente a transferência de textos de uma língua para outra, mas um processo de negociação entre textos e entre culturas, um pro- cesso em que ocorrem todos os tipos de transações mediadas pela figura do tradutor. Com isso, percebe-se que há muito mais por trás das acepções dadas à palavra traduzir, posto que não se trata apenas de “trasladar”, como se esse pro- cesso fosse automático, ou facilmente exequível. Há muitas implicações no ato de traduzir, bem como há diferentes maneiras de fazê-lo e também variedades de tradução. Fala-se em variedades de tradução, já que ela se verifica não apenas entre línguas – embora essa seja a mais lembrada e aceita em relação ao que, geralmente, no senso comum, se entende ser tradução –, mas também em dife- rentes sistemas semióticos. Por sistemas semióticos, entende-se a articulação de uma dada mensagem por meio de signos verbais e não verbais, com os diversos sistemas de sinais, de linguagem e suas relações. Dessa forma, pode-se dizer que também se trata de tradução, por exemplo, uma obra literária adaptada ao formato cinematográfico, em que há uma “trans- ferência” entre sistemas semióticos diferentes, bem como o mesmo se aplica a filmes/séries que ganham o formato de histórias em quadrinhos ou obras lite- rárias, ou ainda, mais modernamente, jogos eletrônicos que são transformados em filmes ou desenhos animados – como exemplo deste último tem-se o Super Mario Bros.: Peach-Hime Kyushutsu Dai Sakusen!, o primeiro longa-metragem ba- seado em um jogo de videogame. A seguir, será visto que esse tipo de tradução foi uma das contempladas por Roman Jakobson. O fazer tradutório 37 Tipos de tradução segundo Roman Jakobson Nesta seção, o intuito é tratar dos diferentes tipos de tradução a partir da di- visão proposta por Roman Jakobson (1896-1982), para quem existem três tipos de tradução: � A tradução intralingual, ou reformulação, consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. � A tradução interlingual, ou tradução propriamente dita, consiste na inter- pretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. � A tradução intersemiótica, ou transmutação, consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais. A tradução intralingual, atente para a prefixação da palavra – intra, significa dentro, nesse caso, dentro da língua – envolve uma única língua. Desse modo, não há uma língua-fonte diferente de uma língua-alvo para a qual o texto deverá ser vertido. Grosso modo, esse tipo de tradução pode ser entendido como uma paráfrase, uma explicação em palavras diferentes – consideradas sinônimas –, sobre algo dito ou escrito. Um exemplo prático disso tem relação com uma ati- tude muito difundida no cotidiano das pessoas. Ao se depararem com situações em que não entendem o que lhes foi dito, muitas pessoas não se furtam à brin- cadeira, sempre com fundo de verdade, de disparar um “traduza, por favor”. Nas palavras de Jakobson (1975, p. 65), “a tradução intralingual de uma pala- vra utiliza outra palavra, mais ou menos sinônima, ou recorre a um circunlóquio. Entretanto, via de regra, quem diz sinonímia não diz equivalênciacompleta [...]”. Ao dizer que a sinonímia não leva à equivalência completa, o autor pretende chamar a atenção para o fato de que não existem, qualquer que seja a língua, sinônimos perfeitos, haja vista que cada palavra da língua detém associações e conotações únicas, são valoradas diferentemente pelos usuários do idioma. Nesse sentido, por exemplo, “pássaro” não corresponde completamente a “ave”, a depender do contexto elas não são intercambiáveis. Da mesma forma, problema parecido se verifica no par “objetivo X intenção”, em que a palavra “intenção” se apresenta na língua de forma mais carregada de intencionalidade, não substi- tuindo bem a palavra “objetivo” em muitos contextos. A tradução intralingual também ocorre quando um texto do passado, como a “Carta de Pero Vaz de Caminha”, é lido por um leitor dos dias atuais, pois há a necessidade de buscar equivalências, dentro da mesma língua, para o que foi 38 O fazer tradutório dito numa outra época. Ou ainda, quando se trata de um texto contemporâneo ao leitor, mas complexo, em que as palavras são usadas fora de seu significado usual, tal qual o poema de João Cabral de Mello Neto “Educação pela Pedra”. Sobre essa segunda possibilidade, o leitor se vê diante de uma tarefa que pode ser descrita da seguinte maneira: [...] ao vazarmos em palavras um conteúdo que em nosso pensamento existia apenas em estado de nebulosa, fenômeno constante em todos os momentos conscientes da vida, estamos também traduzindo, mas praticamos a tradução intralingual, operação esta que tem as próprias dificuldades e cujo resultado muitas vezes nos deixa insatisfeitos. (RÓNAI, 1976, p. 1) A verdade é que existem muitos exemplos de tradução intralingual, os quais evidenciam o seu uso cotidiano nas mais diversas situações, seja na conversa entre um adolescente e um idoso, entre pessoas de um mesmo país, mas de regiões ou classes sociais diferentes. Muito disso se deve ao fato de que não há como usar as mesmas palavras ou regras gramaticais para expressar a mesma coisa. Cada pessoa, ao se expressar, tem à disposição pelo menos duas fontes de recursos linguísticos, a língua usada em seu país e compartilhada por todos e a sua “própria língua”, que lhe é única, cujas características mesclam as experiên- cias culturais, sociais, psíquicas e linguísticas vividas pelo indivíduo ao longo de sua vida. Experiências estas que influenciam também a compreensão e interpre- tação atribuída ao mundo, ao que ouve, ao que lê e vê, determinando, assim, o resultado daquela tentativa de “explicar em outras palavras” sobre a qual se falou no início desta explanação. Isso significa, então, que compreensão e interpretação são, portanto, palavras-chave no fenômeno da tradução intralingual. Quando há a transposição da mensagem de uma língua para outra, carac- teriza-se a tradução interlingual – observe o prefixo inter, que remete à noção de “relação”, “entre” –, tipo mais facilmente reconhecido no senso comum como tradução. Jakobson acredita que: [...] no nível da tradução interlingual, não há comumente equivalência completa entre as unidades de código, ao passo que as mensagens podem servir como interpretações adequadas das unidades de código ou mensagens estrangeiras [...]. Mais frequentemente, entretanto, ao traduzir de uma língua para outra, substituem-se mensagens em uma das línguas, não por unidades de códigos separadas, mas por mensagens inteiras de outra língua. Tal tradução é uma forma de discurso indireto: o tradutor recodifica e transmite uma mensagem recebida de outra fonte. Assim, a tradução envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes. (JAKOBSON, 1975, p. 65) Como se vê, a tradução interlingual pode ser considerada um fato de bilinguis- mo, pois envolve o domínio de duas línguas diferentes. O fenômeno compreendi- do nesse tipo de tradução muitas vezes não tem reconhecida a importância que merece. Considerando que todo e qualquer texto, independentemente da língua, O fazer tradutório 39 pode sofrer a tradução interlingual, tem-se à disposição um recurso riquíssimo para se ter acesso ao conhecimento produzido por outras culturas, conhecimen- to essencial para o desenvolvimento das sociedades, tanto na esfera científica quanto na econômica, bem como na religiosa ou médica, entre tantas outras. O mundo ocidental, da forma como é conhecido, existe graças aos trabalhos de tra- dução do grego para o latim e daí para outras línguas. Sem sombra de dúvida, a tradução lança uma ponte entre culturas diferentes e permite que a cultura-leitora da cultura-fonte se aproprie de certas características, torne “seu” o que é do outro, mas não numa espécie de cópia, e sim numa troca, negociação, reformulação. Não apenas no passado a tradução entre línguas foi de suma importância, ainda hoje o é, e talvez mais, tendo em vista o mundo globalizado em que vive- mos, com o diferencial de que o papel da tradução no desenvolvimento dessa “aldeia global” vem, cada vez mais, sendo sentido como crucial. Isso graças, em parte, à expansão da internet, pois agora existem on-line milhões de documen- tos em quase todas as línguas e uma boa parte dessa enorme massa textual é, de uma ou outra forma, tradução. No Brasil, por exemplo, calcula-se que a tradução interlingual representa cerca de 60 a 80% dos textos publicados e que 75% do saber científico e tecnológico provém das traduções, alimentando vários setores da vida nacional. Sem a tradução, muitos setores simplesmente não funciona- riam, como, por exemplo, o de softwares, medicamentos, automobilístico etc. A verdade, no entanto, é que, nesse tipo de tradução, a transposição literária sempre concentrou a atenção dos escritores e críticos. No Ocidente, comple- mentando o dito acima, os primeiros grandes pensadores da tradução foram romanos, e não por acaso, já que a civilização romana é, em grande parte, o produto de um projeto consciente de tradução e adaptação da civilização grega antiga. Assim, encontram-se em Cícero (106-43 a.C.) e Horácio (65-8 a.C.) os primeiros escritores a estabelecer a distinção entre “tradução literal” e “tradução do sentido”, distinção que salta naturalmente aos olhos de qualquer observador do fenômeno tradutório. Para ambos, preocupados em criar uma cultura romana, não se deve traduzir palavra por palavra, mas o sentido; no caso o sentido textualizado pelos gregos deveria, para eles, receber uma co- loração romana. Trata-se do “apropriar-se, tornar seu o que é do outro” citado anteriormente. Cícero e Horácio, conforme relata Bassnett (2003), entendem a tradução dentro do contexto alargado das duas funções principais do poeta: o dever humano universal de adquirir e disseminar a sabedoria, e a arte especial de fazer e dar forma ao poema. A posição deles sobre tradução teve grande influência em gerações posteriores de tradutores. 40 O fazer tradutório Outra posição em relação ao ato de traduzir que marcou a história da tradu- ção e o fazer tradutório foi a empreitada de tradução da Bíblia. Se a preocupação de Cícero e Horácio era o texto de chegada para o enriquecimento da língua e da literatura latina, com a tradução da Bíblia, a preocupação do tradutor se volta para o texto de partida, posto que o desejado era “espalhar a palavra de Deus”, evangelizar, e, para tanto, estar o mais próximo possível da palavra divina. Por isso, as religiões, especialmente as religiões de tipo universalista, sempre traba- lharam com a tradução, elemento-chave para sua expansão entre os diferentes povos. Entre elas, talvez a que mais se dedicou às questões de tradução foi o cristianismo. De fato, a tradução da Bíblia constitui um dos mais ricos capítulos da história da tradução e também deu sua contribuição à discussão da oposição entre tradução literal e tradução livre. Como exemplo disso, pode-se mencionar São Jerônimo, que, ao traduzir o Novo Testamento, diz ter optado por traduzir o sentido, e não palavra por palavra. A propósito, essa questãode traduzir de forma literal ou livre atravessa a história da tradução, sendo tratada, por vezes, sob nomenclaturas diferentes, com avanços teóricos e práticos, mas que guar- dam, essencialmente, relação com esses primeiros conceitos formulados. Por tal razão, não se poderá deixar de discutir neste capítulo sobre o tema, bem como sobre a fidelidade da tradução e a tradução cultural, as quais estão interligadas àqueles conceitos de verter um texto livremente ou de forma literal. Contudo, antes, ainda há que se discutir a tradução intersemiótica. Ela pode ser definida, segundo Jakobson, como a transmutação de uma obra de um sistema de signos a outro. A forma mais corriqueira se dá entre um siste- ma verbal e um não verbal, como acontece com a passagem de um romance ou conto ao cinema, vídeo e história em quadrinhos; de poemas para ilustrações de livros; com a passagem de textos em geral para anúncios publicitários. No entanto, ela pode acontecer também entre dois sistemas não verbais, como por exemplo, entre música e dança e música e pintura. Sobre esse tipo de tradução, Rónai a estabelece como: [...] aquela a que nos entregamos ao procurarmos interpretar o significado de uma expressão fisionômica, um gesto, um ato simbólico mesmo desacompanhado de palavras. É em virtude dessa tradução que uma pessoa se ofende quando outra não lhe aperta a mão estendida ou se sente à vontade quando lhe indicam uma cadeira ou lhe oferecem um cafezinho. (RÓNAI, 1976, p. 2) A semiótica, para Jakobson, está no centro da discussão sobre a tradução, pois esta é uma forma de interpretação de signos. A procura por equivalentes também acontece na tradução intersemiótica, assim como na tradução intra e interlingual, ou seja, trata-se da busca, em um determinado sistema semió- tico, de elementos cuja função se assemelhe à de elementos de outro sistema O fazer tradutório 41 de signos. Entretanto, esse procedimento ainda leva em conta a existência de um sentido no texto, que deve ser transportado/traduzido para um outro texto/ sistema, isto é, se for considerado que o sentido esteja subjacente ao texto, pro- venha de sua estrutura. Na tradução intersemiótica, mas também nos demais tipos de tradução discutidos anteriormente, não é possível traduzir tudo. Por isso, desde o início, numa tradução intersemiótica, é preciso traçar uma estra- tégia de tradução para determinar quais são os componentes mais característi- cos do texto a ser traduzido entre dois códigos diferentes, pois quando um dos textos de uma tradução não é verbal, a seleção entre as partes que se traduzem e as que se sacrificam é muito mais evidente. Nesse sentido, toda tradução – os três tipos de que se falou – irá sempre oferecer algo além ou aquém do texto fonte, sendo que o sucesso da tradução, alcançar a mensagem pretendida, não depende apenas da criatividade ou da habilidade do tradutor, mas, antes, das decisões tomadas por ele, seja sacrificando algo, ou encontrando a todo custo um equivalente. Nesse ponto, há o embate entre tradução literal e tradução livre, que leva à questão da fidelidade. A polêmica da tradução literal versus tradução livre O problema da tradução livre face à tradução literal se coloca de forma mais contundente e visível na tradução interlingual. Segundo Rónai, em Escola de Tra- dutores, é um equívoco pensar que qualquer tradução que não seja literal seja livre e que apenas a primeira se constituiria como uma tradução fiel. Na verdade, como se verá adiante, o conceito de fidelidade em tradução não é algo fácil de alcançar e tampouco de delimitar. Mesmo assim, é comum encontrar menção de autores a dizer que não existe apenas uma possibilidade de tradução para um texto e, consequentemente, que não é possível ser completamente “fiel” porque na tradução nunca se diz a mesma coisa, mas quase a mesma. Na seção anterior, ao abordar a tradução interlingual se falou sobre a tradu- ção literal, em que o tradutor prioriza o texto de partida, procurando ficar o mais próximo possível do original, e também da tradução livre, em que a preocupação recai sobre o texto de chegada, de forma que seja acessível ao seu público-alvo, priorizando-se a tradução do sentido. Essa discussão pode ser vista e tomada também a partir dos conceitos de correspondência formal e equivalência dinâ- mica empregados por Gabel e Wheeler quando da discussão sobre a tradução literária da Bíblia – convém notar que a prática de tradução da Bíblia, mesmo nos 42 O fazer tradutório dias atuais, ainda tem muito a contribuir com a área dos Estudos da Tradução. De acordo com os autores, na correspondência formal a ênfase recai na forma do original e na equivalência dinâmica, sobre a capacidade do leitor de entender a realidade. Nenhuma dessas duas práticas é boa ou ruim em si mesma, pois, ao se dar início ao processo de tradução, os tradutores devem decidir se favorecem as exigências da forma ou as necessidades do leitor. Mas essa decisão não é nada fácil, como se pode depreender do excerto abaixo: Podem os tradutores ir longe demais numa ou noutra direção? Sem dúvida. Na direção da correspondência formal, eles podem chegar a produzir um texto mais hebraico ou grego do que inglês. Na direção da equivalência dinâmica, podem gerar um texto mais simples e fácil para os leitores modernos do que o original foi para seus primeiros leitores. Neste último caso, a preocupação dos tradutores com as limitadas capacidades de seus leitores pode levá-los a interpretar em vez de traduzir o texto. Há uma tênue linha a separar o que é deixar claro o sentido do original e o que é interpretá-lo – e os tradutores devem ter cuidado para não cruzá- -la. (GABEL; WHEELER, 2003, p. 220) Os autores tratam da tradução dos originais da Bíblia, no hebraico e no grego, para o inglês e chamam a atenção para o fato de que uma tradução literal/cor- respondência formal pode resultar num texto distante demais da língua-alvo por vezes ao ponto da incompreensão, e que o excesso na outra direção, tradução livre/equivalência dinâmica, pode levar à produção de um texto muito diverso, sem as peculiaridades do original, em que, por querer ajudar o seu leitor, o tradu- tor acaba empobrecendo o texto do original. Ao dizer que há de se ter cuidado para não interpretar o texto, os autores se referem a essa ânsia por “tornar tragá- vel, palatável” certos originais, fazendo com que eles percam – no caso da lite- ratura – o que os torna únicos. A intenção dos autores, de forma alguma, é fazer crer que não haja interpretação no ato da tradução, mas interpretação entendida como leitura, como compreensão do original. Sob tal perspectiva, é útil refletir sobre o que Gabel e Wheeler defendem para a tradução de textos literários: Uma das coisas mais importantes de uma passagem é saber, se ela for poética, que ela o é: estamos preparados para compreender uma passagem que consideramos poética de um modo diferente daquele pelo qual compreendemos uma passagem que consideramos prosa. Por isso, é importante que as traduções de poesia ao menos pareçam poesia, mesmo que muitos efeitos poéticos do original não possam ser representados na tradução. (GABEL; WHEELER, 2003 p. 217, grifo nosso) Após essas reflexões, alguns de vocês podem estar construindo o entendi- mento de que o ideal, na tradução, é ficar no meio termo entre tradução lite- ral/correspondência formal e tradução livre/equivalência dinâmica, posição por meio da qual se alcançaria a tão perseguida “fidelidade”. Será? Para saber, impor- ta discutir o que deve ser entendido por “ser fiel ao original”. O fazer tradutório 43 A questão da fidelidade da tradução A “fidelidade” é comumente usada como categoria avaliativa da qualidade dos trabalhos de tradução e interpretação. Contudo, poucos pensam sobre o que significa a fidelidade, qual sua acepção. Ser fiel é ser igual? É procurar a exati- dão? Existe algo que possa ser chamado de “padrão de fidelidade” a ser alcança- do? São perguntas como essasque se procura responder neste momento. Para tanto, serão empregadas as discussões de cunho mais filosófico da pesquisadora brasileira Arrojo (1986), que, a partir do final da década de 1980, problematizou o conceito de fidelidade e também as contribuições de Rónai (1976; 1987), cujas críticas de tradução baseadas em sua experiência prática se entrelaçam às ques- tões filosóficas apontadas por Arrojo. A autora discute a fidelidade a partir dos principais problemas teóricos que envolvem a pergunta: “a que devemos ser ‘fiéis’ quando realizamos uma tradu- ção?” A pesquisadora questiona a possibilidade de uma tradução ser inteiramen- te fiel ao texto “original”, propondo uma redefinição do conceito. Por meio de suas reflexões, ela procura construir com seu leitor o entendimento da natureza do conceito de “fidelidade” de tal forma a possibilitar a compreensão da autono- mia do tradutor – cuja leitura do texto de partida é, inevitavelmente, um produto de sua época, suas concepções teóricas, suas realidades. A “fidelidade” é o conceito mais invocado para avaliar traduções, e, segundo a autora, tradicionalmente, ela tem sido conceituada como uma correspondência literal ao texto fonte, o que muitos consideram positivo. No entanto, dos usuá- rios desse termo, poucos se preocupam em defini-lo, fazendo, então, com que qualquer avaliação de tradução pautada nesse conceito seja vaga, geral em de- masia, limitando a avaliação da tradução a apenas um de seus aspectos, a sua relação com o texto de partida. Isso, aliás, mostra o problema mais óbvio com essa atitude, que tem a ver com o fato de as línguas não serem isomórficas, ou seja, não existe correspondência um a um entre os seus elementos constitutivos. Além desse problema, existe a questão da inevitável intervenção do tradutor, como consequência de seu contexto histórico e social. Relacionado ao problema de as línguas não seres isomórficas, Arrojo apro- funda a questão ao discutir o processo de construção de significado, mostrando que uma palavra, mesmo dentro de uma mesma língua, não tem um sentido fixo e único, imediatamente decifrável por qualquer indivíduo. Assim, não existe uma linguagem capaz de neutralizar as ambiguidades, os duplos sentidos, as 44 O fazer tradutório variações de interpretação, as mudanças trazidas pelo tempo ou pelo contexto. No campo da tradução, essa discussão, diz a autora, leva ao questionamento do conceito de fidelidade na condição de transferência total dos significados de um texto em uma língua, para outro texto em outra língua, argumentando que nenhuma tradução é capaz de recuperar a totalidade do “original”, já que revela, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretação desse texto, e não o “transpor- te” de seu conteúdo para uma nova língua: “[...] o que acontece não é uma trans- ferência total de significado, porque o próprio significado do ‘original’ não é fixo ou estável e depende do contexto em que ocorre” (ARROJO,1986, p. 23). Olhar similar sobre a questão é lançado por Rónai (1987, p. 22-23) no que diz respeito à impossibilidade de significados estanques nas palavras: [...] ao tradutor não lhe basta um conhecimento aproximativo da língua do autor que está vertendo. Por melhor que maneje o seu próprio instrumento, não pode deixar de conhecer a fundo o instrumento do autor. O tradutor deve conhecer todas as minúcias semelhantes da língua de seu original a fim de captar, além do conteúdo estritamente lógico, o tom exato, os efeitos indiretos, as intenções ocultas do autor. Assim a fidelidade alcança-se muito menos pela tradução literal do que por uma substituição contínua. A arte do tradutor consiste justamente em saber quando pode verter e quando deve procurar equivalências. Mas como não há equivalências absolutas, uma palavra, expressão ou frase do original podem ser frequentemente transportadas de duas maneiras, ou mais, sem que se possa dizer qual das duas é a melhor. Para Rónai (1987), inclusive, a dificuldade da tradução reside justamente nas palavras traduzíveis: são essas que enganam ou alimentam a ilusão de ser possí- vel a “fidelidade” da tradução. Por isso, é preciso compreender que o sentido não preexiste à compreensão, entretanto, é constituído por ela; todavia, o tradutor mais constrói, reconstrói, transforma e recria do que simplesmente transporta algo que estava a princípio imutável no texto dito como original. A tradução obriga o tradutor a investigar detalhadamente a função de cada palavra, esqua- drinhar atentamente o sentido de cada frase e, finalmente, reconstruir a paisa- gem mental do autor e descobrir-lhe o que o autor quis dizer–“[...] a tradução é um mundo de minúcias” (RÓNAI, 1987, p. 43). Com base no dito por Rónai e Arrojo, se aceitamos que “o tradutor não poderá evitar que seu contato com os textos seja mediado por suas circunstâncias, suas concepções e seu contexto histórico e social” (ARROJO, 1986, p. 38), como fica a questão da fidelidade? Uma resposta possível, ainda em construção pelos teó- ricos dos Estudos da Tradução, está relacionada ao reconhecimento de que a leitura de um original é, sim, dirigida por diversos fatores, tais como experiência e conhecimento de cada leitor e condições de produção de cada texto, tanto na língua de partida quanto na língua de chegada. Entretanto, isso não significa O fazer tradutório 45 que o tradutor deva renunciar à busca de um sentido, ou seja, da compreensão da obra original; sem isso, não haveria razão para traduzir. Porém, o tradutor não pode restringir-se a buscar um único sentido, como se estivesse predetermina- do: é necessário considerar que toda obra é algo aberto, que pode ser cortado e recortado por múltiplas leituras e interpretações e que a tradução não deve fechar essas leituras, limitando-se a apenas uma, quando existe a possibilidade de se obter mais de um sentido. Isso implica que nenhuma tradução (ou leitura) de um texto é definitiva e unanimemente aceita por todos, em qualquer época e em qualquer lugar. Exemplo disso é o livro, sem dúvida, mais traduzido na his- tória da civilização: a Bíblia. Embora seja um texto milenar, e também em função disso, a Bíblia continua sendo traduzida, seus tradutores – os atuais e os anteriores – esforçam-se para verter o texto de forma a respeitar o sentido do original, mas sem perder de vista as concepções textuais e teóricas da comunidade a que o tradutor perten- ce e os objetivos estabelecidos na tradução. Evidência disso são as “diferentes” traduções resultantes dessa “obra” ao longo dos séculos. Uma tradução dirigida a leitores atuais difere substancialmente de uma dirigida aos leitores do século XVIII, por exemplo. Todavia, isso não implica que qualquer uma das versões – a dos dias atuais ou a do século XVIII – seja mais ou menos “fiel” ao original, signi- fica apenas que elas procuraram/procuram o difícil ponto de equilíbrio em que se respeita o sentido do original sem deixar de considerar, no entanto, as con- cepções e condições históricas e sociais que atravessam a cultura de uma época – a do tradutor e seu público, a qual, em última análise, é o que permite que um significado seja atribuído a tudo que chega até nós. Essa questão de equilíbrio entre o sentido e a cultura preservada num original e a cultura e concepções do público-alvo é um dos pontos discutidos pela tradução cultural, desenvolvida nas últimas décadas, sobre a qual se trata a seguir. Tradução cultural O campo de tradução cultural remete a questões de identidades e diferen- ças, de veracidade e falsidade, de fidelidade e traição, enfim, de poder, repre- sentação e historicidade. De forma a ilustrar isso, Corrêa (2009) lança como exemplo a obra de um escritor da Costa do Marfim, Ahmadou Kourouma, Alá e as Crianças Soldados, cuja tradução brasileira, segundo a pesquisadora, recebeu o prêmio Fnac de melhor obra traduzida do francês no ano de 2003, quan do de seu lançamento. 46 O fazer tradutório Conforme a pesquisadora, o narrador– a obra tem um caráter metalinguístico e metatradutório à medida que o autor cria um personagem que escreve numa língua diferente da sua língua materna, precisando para tanto se valer de diferen- tes dicionários e de métodos de tradução –, numa espécie de prólogo atravessado pela crítica e pelo deboche, faz uma advertência no sentido de chamar a atenção para toda a dificuldade que teria passado para tornar sua mensagem compreen- sível a mais de um universo cultural, ou seja, o dos africanos e suas diversidades intrínsecas, e o dos francófonos da França e possivelmente de ou tras colônias. Abaixo está transcrito um dos exemplos de Corrêa para ilustrar a mencionada difi- culdade do narrador e o comentário que a pesquisadora faz sobre o mesmo: “As crianças soldados estavam furiosas, vermelhas de tão fu riosas (A gente não deve dizer vermelho de furioso no caso dos pretos. Os pretos nunca ficam vermelhos, eles ficam carrancudos)”. Ao longo do romance, o narrador usará parêntesis todas as vezes que uma expressão lhe parecer difícil ou estranha a cada uma dessas possíveis culturas, ou quando desejar que suas re ferências culturais, sobretudo as africanas, sejam bem entendidas. (CORRÊA, 2009, p. 40-41) O exercício que Kourouma faz com a linguagem explicita o embate, a ruptura e o esforço pelo encontro entre duas culturas, aquela em que se expressa, outra que lhe é materna. Isso mostra, e corrobora o discutido anteriormente, que duran- te a tradução o tradutor é obrigado a fazer escolhas. De um lado, pode optar por veicular elementos culturais do original de que parte, sem correlação ime diata em sua própria língua-cultura. De outro modo, o mesmo tradutor poderá optar por fazer certa assimilação desses elementos, buscando adaptar em seu texto referências similares, caso as en contre em sua própria cultura. Essas escolhas re- metem ao que em tradução cultural se denomina por traduções estrangeiras ou domesticadoras. Na primeira, o tradutor opta por manter-se próximo ao original, oferecendo como resultado da tradução um texto que carrega referências, figu- ras de linguagem, estruturas reconhecidas pelo público-alvo como estrangeiras, podendo a partir disso fazer uma leitura da cultura com a qual entra em contato, mas, claro, sempre correndo o risco de não alcançar o entendimento de algo que é alienígena a sua própria cultura. Na segunda, a escolha do tradutor fará com que prime por aproximar o texto-fonte de seu público-alvo, tendo como resulta- do um texto nacionalizado, de fácil compreensão, mas que, possivelmente, não permitirá ao leitor entrever as referências culturais que atravessavam o original. Essas escolhas, é preciso entender, são não apenas possíveis, mas necessá- rias, não se pode escapar delas no ato tradutório. Conforme esclarece Venuti (2002), o tradutor, ao comunicar um texto estrangeiro, interpreta fatores domés- ticos, utilizando a tradução como colaborador à formação de atitudes domés- ticas em relação a países estrangeiros ou não. Assim, a complexidade do ato O fazer tradutório 47 Tradução cultural: uma proposta de trabalho para surdos e ouvintes (RAMOS, 2000, p. 7-10) De que princípio parte a ideia da tradução cultural? Tudo pode ser tra- duzido, ou, em função da própria natureza da linguagem, nada se traduz? Segundo Paes (1990, p. 13), “os partidários dessa teoria têm apontado com razão que as palavras isoladas não têm sentido em si mesmas: a sua signifi- cação é determinada, de cada vez, pelo respectivo contexto. Por contexto entende-se a frase ou o trecho em que a palavra se encontra no momento, tradutório leva ao fato de que a valorização ou apagamento de etnias, raças e nacionalidades específicas são atitudes capazes de favorecer tanto o respeito pela diferença cultural quanto o ódio baseado no etnocentrismo, no racismo ou no nacionalismo. Nesse sentido, a tarefa de traduzir mantém íntima relação com questões de domínio, ruptura e poder: Uma tradução, ao circular na igreja, no estado e na escola, pode ter poder de manter ou revisar a hierarquia de valores na língua-alvo. A escolha calculada de um texto estrangeiro e da estratégia tradutória pode mudar ou consolidar cânones literários, paradigmas conceituais, metodologias de pesquisa, técnicas clínicas, e práticas comerciais na cultura doméstica. (VENUTI, 2002, p. 131) Com isso, percebe-se que as traduções constituem um dos elementos essen- ciais ao processo de formação de uma nova identidade. Podem, conforme a in- tenção de quem as pratica, manter o estado de coisas vigente numa dada área do saber, ou em qualquer outra esfera da sociedade que dependa da tradução, bem como trazer mudanças em relação a tal estado, deflagrando um verdadeiro movimento de resistência cultural. Uma pergunta interessante que você, leitor, deve estar se fazendo seria pensar em como tudo isso se aplica à tradução em Libras. Para que você possa fazer uma relação mais concreta entre tradução cul- tural e a prática de tradução em Libras, o assunto é abordado no texto comple- mentar. Portanto, boa leitura. Texto complementar 48 O fazer tradutório tornados entendíveis por um conjunto de centenas de outras frases lidas ou ouvidas anteriormente pelo ouvinte ou leitor, e que subsistem no fundo de sua consciência”. Quando se fala em duas línguas/culturas estabelecidas e reconhecidas, com indivíduos capazes de realizar com eficiência o trânsito entre esses dois quase “universos”, já existe o impasse sugerido pela posição acima exposta. É evidente que há uma certa impossibilidade de se traduzir, ao imaginarmos também um ponto a ponto perfeito. Partimos de um conceito de língua que não separa língua e cultura. Exatamente por isso nos abre a possibilidade de tudo se traduzir. Reescrever, em última instância. Em relação à língua de sinais poder ser língua-alvo de uma tradução, uma das questões da pesquisa que levei adiante foi justamente demonstrar a possibilidade de se efetivar um trabalho de tradução textual de uma obra literária, não apenas um recontar de história, mas uma criação autêntica de tradução. No Brasil existem estudos sobre as línguas de sinais, sua importân- cia para a educação dos surdos, as consequências psicológicas da recusa da Libras e outros tantos trabalhos acadêmicos. Muitos e muitos trabalhos prá- ticos também vêm sendo realizados por educadores, fonoaudiólogos, psico- pedagogos espalhados por todo o Brasil, buscando cada vez mais inserir a língua de sinais na vida das comunidades surdas. Porém, não existem ainda manifestações desse “pensar” em Libras livres do jugo colonialista do ouvinte. Uma das falas mais emocionantes nos discur- sos acadêmicos e/ou políticos em defesa da Libras é que a língua de sinais, enquanto língua natural, pode discursar filosoficamente, poetar, ironizar. Mas a realização desse discurso ainda não tem seu registro disponível organizada- mente. Não existem centros de cultura surda, nem videotecas para o arquiva- mento dessas manifestações. Fala-se sobre a Libras e sua potencialidade, mas a Libras, realizada pelos surdos, não está disponível para consulta… Existe no Rio de Janeiro um surdo (Nelson Pimenta) que lançou em 1999 um trabalho denominado Literatura em LSB: poesia, fábula, histórias infantis em vídeo, com produção e direção de profissionais americanos (o vídeo foi realizado nos Estados Unidos, onde o ator/criador participou de cursos de teatro e outros em várias ocasiões). A influência da cultura surda americana é facilmente notada, até mesmo no título do trabalho, que utiliza a termi- nologia LSB (Língua Brasileira de Sinais), seguindo os padrões “internacio- O fazer tradutório 49 nais”, em oposição à denominação tupiniquim Libras. Essa forte influência, evidentemente, não invalida ou deprecia o trabalho do surdo brasileiro, mas o aproxima sobremaneira de uma releitura de outro tipo de colonialismo... Mas essa discussão não nos interessa no momento. A situação dos surdos brasileiros enquanto minoria linguístico-culturalhoje pode ser resumida em sua luta para colocar a Libras no currículo das escolas para surdos, para ter sua língua reconhecida. O exercício da tradução pode acontecer de inúmeras maneiras, evidentemente. Uma primeira dife- renciação que deve ser discutida seria a oposição entre a tradução literal e a tradução “livre”. Um dos maiores teóricos sobre tradução no Brasil, Paulo Rónai (1987), defensor das traduções literais, aponta para a possibilidade de uma tradu- ção “ótima”, com a utilização do trabalho de vários tradutores em conjunto, ou com especialização/aprofundamento no tema ou autor a ser traduzido. No fundo dessa proposta está a busca da perfeição, do conceito de pureza, do original, do datado, do assinado. Do outro lado da trincheira estariam as chamadas “belles infidèles” francesas, que dominaram até o final do século passado. Traduções adaptadas ao gosto nacional, que muitas vezes corriam o risco de se transformar em narrativas, e não traduções propriamente ditas. O tradutor passa a ser coautor efetivo do texto, muitas vezes funcionando também como censor. O conceito de tradução cultural por si só rejeita o papel da origem en- quanto valor, já que pressupõe uma estrada de duas mãos em fluxo cons- tante. Assim, a possibilidade de interferência do tradutor existe e é espera- da. No caso dessa tradução realizada, por exemplo, quando Alice dentro do túnel ouve os passos apressados (pisadinhas) do Coelho se aproximando, a sugestão de Marlene foi a visualização da sombra das orelhas Coelho Branco, tremendo de nervoso. A opção de Marlene foi “ensurdecer” Alice e seus com- panheiros pelo texto afora. Em sua mente, mesmo quando isso não transpa- rece, a história de Alice é uma história de um mundo surdo, do seu mundo surdo. Mas também de um mundo de uma mulher carioca etc. etc. Ainda no início do texto, Alice discute consigo mesma sobre a questão da latitude e longitude, referindo-se à Inglaterra e Nova Zelândia. Marlene optou por falar sobre o Brasil e o Japão. E quando Alice descreve o sabor do líquido delicioso que a garrafa mágica continha (“um tipo de mistura de 50 O fazer tradutório torta de cereja, creme de ovos, leite e açúcar, abacaxi, peru assado, toffy e torradas quentes”), Marlene optou por traduzir por uma mistura de bolo de chocolate, bife e coca-cola. Por que não? Nessa tradução absolutamente datada, pelos motivos que já esmiucei, o texto se constituiu da maneira que relato. Em outra tradução, em outro momento, quem sabe? Não desejarão os surdos, talvez, uma tra- dução o mais fiel possível ao autor? Talvez não venha a ser uma opção dos surdos o conhecimento profundo de outras culturas? É evidente que ao se dar continuidade ao projeto de traduções culturais, quando da formação de uma equipe de profissionais para dar conta de uma pequena biblioteca de clássicos da literatura universal em Libras, por exemplo, outras variantes en- trarão em cena. O que realizamos nesse Alice no País das Maravilhas foi uma experiência laboratorial, nunca é demais repetir. O tradutor tem uma responsabilidade bastante grande, sua formação bi- língue e bicultural é imprescindível, seu nível educacional deve ser o suficien- te para dar conta da maioria das questões que são tocadas em qualquer tipo de literatura. Isso é inegável e não estou aqui defendendo que a tradução cul- tural permaneça sendo realizada da maneira que esta foi produzida. Porém, acredito que ela deverá ser conduzida primordialmente pelos surdos envolvi- dos, e como ela se desenvolverá não tenho condições de avaliar por hora. Dicas de estudo “O significado da tradução e a tradução do significado”, de Kanavillil Rajago- palan. Revista Letras, Curitiba, n. 56, p. 67-76, jul./dez. Editora UFPR, 2001. Dispo- nível em: <www.letras.ufpr.br/revista_letras/numeros/56.html>. O artigo traz discussões e contribuições feitas pelo autor em uma mesa-re- donda de mesmo título. Nele Rajagopalan trata do entrelace entre significado e tradução, e do significado da tradução. São, então, dois movimentos: como a tradução alcança o significado e qual o significado/papel/importância da tradução. Conversas com Tradutores: balanços e perspectivas da tradução, de organiza- ção de Benedetti e Sobral, publicado pela Parábola Editorial, 2003. O fazer tradutório 51 Como o título bem representa, o livro é uma coletânea de conversas sobre tradução que aborda seus aspectos teóricos e práticos no Brasil. De fácil leitura, apresenta as perspectivas de tradutores renomados e outros nem tanto, falando sobre a sua atuação e opções metodológicas. Atividades 1. Em sua tipologia sobre a tradução, Jakobson apresenta três tipos de tradu- ção: a intralingual, a interlingual e a intersemiótica. Com base nas definições tecidas pelo autor, é possível dizer que elas se entrelaçam, apresentam um fator em comum? Que fator comum seria esse e como ele se revela em cada tipo de tradução? 52 O fazer tradutório 2. Problematize a noção de fidelidade, apoiando-se nas reflexões elaboradas ao longo da aula, partindo da asserção de Gabel e Wheeler (2003, p. 217) de que “é importante que as traduções de poesia ao menos pareçam poesia, mesmo que muitos efeitos poéticos do original não possam ser representa- dos na tradução.” 3. Discorra sobre a noção de tradução domesticadora e a opção da tradutora surda, relatada por Ramos, de ensurdecer o Alice no País das Maravilhas, de modo a considerar as possíveis consequências dessa opção em termos de manutenção e criação de identidade, conforme problematizado na discus- são sobre tradução cultural. O fazer tradutório 53 Referências ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 1986. BASSNETT, Susan. Estudos da Tradução. Tradução de: FIGUEIREDO, Vivina de Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. CORRÊA, Mônica Cristina. Tradução e referências culturais. Cadernos de Tradu- ção, UFSC, 2009. GABEL, John B.; WHEELER, Charles B. A Bíblia como Literatura. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2003. JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. 8. ed. Tradução de: BLIKSTEIN, Izidoro; PAES, José Paulo. São Paulo: Cultrix, 1975. KOUROUMA, Ahmadou. Alá e as Crianças Soldados. Tradução de: NASCIMEN- TO, Flávia. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. RAMOS, Clélia Regina. Tradução Cultural: uma proposta de trabalho para surdos e ouvintes. Disponível em: <www.editora-arara-azul.com.br/pdf/artigo5.pdf>. Publicado em: 2000. Acesso em: 14 ago. 2010. RÓNAI, Paulo. A Tradução Vivida. Rio de Janeiro: Educom, 1976. _____. Escola de Tradutores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. 54 O fazer tradutório TRADUZIR. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. VENUTI, L. Escândalos da Tradução. Tradução de: PELEGRIN, Laurino et al. Bauru: EDUSC, 2002. Gabarito 1. O fator em comum entre os tipos de tradução estabelecidos por Jakobson se trata do ato de “traduzir” visto de maneira fundamental, em que algo precisa ser “dito”, preservando o conteúdo, significado, de maneira diferente daquela empregada no original. Característica revelada de diferentes, mas aparenta- das, formas nos três tipos de tradução. Inicialmente, os três lidam com “o que traduzir”, isto é, que parte do original interessa ser traduzida. Todas precisam pensar nas estratégias de “como traduzir” e em quão compreensível será o resultado de sua tradução, bem como devem lidar também com a questão de até que ponto podem e querem fazer “justiça” – equivaler – ao original. 2. A partir do excerto ofertado para discussão, o estudante deve abordar o fato de que equiparar “fidelidade” à correspondência completa entre original e tradução é uma leitura equivocada, até porque inalcançável, da desejada “fidelidade” de que falam os autores discutidos. Sobretudo, a “fidelidade” é um objetivo bastante flexível, seu alcance está no entremeio, no limite, entre “respeitar” o original e “considerar”o público-alvo e a própria natureza lin- guística do idioma para o qual traduz. Característica, ou empreendimento, que pode ser visto na recomendação feita por Gabel e Wheeler sobre, ao menos, deixar transparecer ao leitor-alvo que um dado gênero discursivo foi empregado, que uma palavra, às vezes mesmo sem tradução possível numa dada língua, possa ter mais força, mais conteúdo, do que a alternativa dis- ponível na língua de chegada, podendo o tradutor, então, tentar transportar isso de alguma outra forma em sua tradução. Finalmente, é desejável que o estudante reconheça que o conceito de “fidelidade” está atrelado ao conjun- to de concepções históricas, sociais e culturais de uma época, razão pela qual uma tradução pode ser considerada mais ou menos “fiel”. O fazer tradutório 55 3. Resposta mínima deve contemplar que a decisão tradutória tomada na ver- são em Libras de Alice no País das Maravilhas é domesticadora à medida que traz o original para dentro da cultura de seu público-alvo, apagando traços da cultura estrangeira. O que de modo algum deve ser tachado como nega- tivo, posto que se trata de uma alternativa possível de tradução. Além dis- so, o aluno deve ser capaz de reconhecer que a opção da tradutora surda acarreta um movimento de criação e afirmação, mais especificamente, da cultura surda em face à do ouvinte. Levando em conta que a cultura do ou- vinte – independente da língua – geralmente oprime o surdo – como ocorre naturalmente com qualquer cultura e língua que é majoritária frente à ou- tra –, a alternativa de tradução adotada representa também resistência a tal opressão e é fator que pode causar mudança no estado vigente em relação à cultura literária do surdo e do ouvinte. 57 O objetivo desta aula é construir, de maneira gradual, o entendimen- to sobre a tarefa do intérprete, sobre as características próprias aos tipos de interpretação, e como esses conceitos podem ser vistos na atuação do Intérprete de Língua de Sinais. Para cumprir tal objetivo, parte-se de uma discussão que se propõe mais geral sobre o ato interpretativo, sua origem e histórico até chegar à prática da interpretação em língua de sinais. No que consiste interpretar Entre as atividades mais antigas da história, com certeza encontra-se a interpretação. Os primeiros intérpretes foram os hermeneutas, que se pro- punham a traduzir a vontade divina para o povo. No entanto, a atividade de interpretação carece de documentação que explique sua trajetória ao longo dos séculos: Na Antiguidade, antes do Renascimento, os intérpretes raramente eram mencionados; uma possível causa para esse fato era a primazia dada ao texto escrito em relação à palavra oral. A posição social dos intérpretes pode também explicar sua omissão nos anais da história: híbridos étnicos e culturais, muitas vezes do sexo feminino, escravos ou membros de um grupo social desprezado, isto é, cristãos, armênios e judeus que viviam na Índia Britânica, esses intermediários não receberam nos registros históricos o tratamento devido. (ROSA, 2008, p. 109) Sob essa perspectiva, Rosa (2008) avalia que muito do conhecimento sobre o trabalho que os intérpretes realizaram no passado chegou até os dias atuais por meio de fontes tais como: cartas, diários, memórias e bio- grafias dos próprios intérpretes. O que os pesquisadores dos Estudos da Tradução apontam como consenso na história dos intérpretes – e também dos tradutores – é o fato de os primeiros intérpretes atuantes terem sido formados na prática. Na verdade, apesar da existência, atualmente, de cursos de formação para intérpretes e tradutores, muitos profissionais ainda começam na carreira por meio do “método” chamado pelos profis- sionais da área “de sink or swim, expressão em inglês que significa literal- mente ‘afogue-se ou nade’, e que se refere ao fato de que os intérpretes simultâneos eram colocados na cabine para interpretar sem que recebes- sem previamente qualquer treinamento formal” (PAGURA, 2003, p. 216). O fazer da interpretação Vídeo 58 O fazer da interpretação De modo geral e de forma a iniciarmos a discussão proposta para esta aula, pode-se dizer que o ato de interpretar envolve um processo cognitivo-linguísti- co, ou seja, estão implicadas no ato interpretativo capacidades linguísticas (que não deixa de ser uma capacidade cognitiva, porém mais específica) e capacida- des cognitivas mais gerais, como o armazenamento da informação na memória de curto prazo, por exemplo. Durante a interpretação, o intérprete estará diante de pessoas que apresentam intenções comunicativas específicas e que utilizam línguas diferentes. Assim, ele é completamente envolvido na interação comu- nicativa (social e cultural) que se estabelece entre dois “mundos”, com poder completo para influenciar o objeto e o produto da interpretação. Esse poder de pôr “realidades” diferentes em comunicação em tempo real – diferentemente da tradução escrita, a interpretação lida com seu público-alvo e com a língua de partida no momento exato da interação verbal, “tudo” tem de ser resolvido ali, perante os envolvidos no ato comunicacional e em tempo real – muitas vezes ganha uma aura de magia: Vista de longe, a tradução simultânea parece mágica. Vista de perto, parece loucura. O intérprete tem que ouvir e falar ao mesmo tempo, repetindo em outra língua palavras e ideias que não são suas, sem perder de vista o conteúdo, a intenção, o sentido, o ritmo e o tom da mensagem transmitida por seu intermédio. Não tem qualquer controle sobre a complexidade, a velocidade, a clareza ou a lógica do apresentador. [...] Precisa tomar decisões instantâneas, ininterruptamente. Precisa administrar uma comunicação silenciosa com um colega de cabine, trocando olhares e anotações, fazendo consultas a documentos e dicionários, retardando a tradução de alguns trechos até que o entendimento esteja completo. Como não bastasse, está a metros de distância do apresentador, impossibilitado de qualquer interrupção para esclarecimentos. Dá mesmo pra duvidar que seja possível. E, no entanto, é. (MAGALHÃES JUNIOR, 2007, p. 20) Em termos de procedimento, do que é preciso fazer no ato interpretativo, como se pode constatar no relato de Magalhães Junior (2007), o intérprete pro- cessa a informação dada na língua-fonte e faz escolhas lexicais, estruturais, se- mânticas e pragmáticas na língua-alvo que devem se aproximar o mais apropria- damente possível da informação dada na língua- fonte. Todavia, a atividade de interpretação é por demais dinâmica, exige, muitas vezes, não apenas conheci- mento das línguas ou boa capacidade para armazenamento de informação, mas também bom senso, jogo de cintura, rápida tomada de decisões e, sobretudo, autocontrole e calma, para lidar com situações tão adversas como a apontada por Magalhães Junior na prática da interpretação consecutiva: Um dignatário internacional pode pedir a palavra e deixar-se levar por cinco minutos, esquecido da necessidade de tradução. E enquanto isso o intérprete vai ficando amarelo, verde, azul, lilás e roxo, como aquele bonequinho do Super Mario que nada desesperado embaixo d’água tentando chegar à superfície. Quando a palavra finalmente lhe é passada, não adianta apelar. A estrela fez o show, e o intérprete agora que se vire. A depender do convidado, uma interrupção ou outra para esclarecimento talvez seja possível, mas alguém se arrisca a uma simpática cotovelada nas costelas do Comandante Fidel durante um de seus infindáveis discursos? Só se for você! (MAGALHÃES JUNIOR, 2007, p. 59) O fazer da interpretação 59 Como se não bastasse, o intérprete também precisa ter conhecimento téc- nico para que suas escolhas sejam apropriadas tecnicamente. Portanto, o ato de interpretar envolve processos altamente complexos. O que não significa que esta seja uma profissão impossível de se exercer com qualidade. A verdade é que por ser um fenômeno tão complexo, tão dinâmico, que coloca o profissional em confronto durante todoo tempo, ora com seu cliente, ora com o discurso a interpretar, ora com seus medos – alguns justificáveis e esperados, outros nem tanto –, o ato interpretativo é visto como algo no qual não se pode incorrer em erro, afinal, do desempenho do intérprete depende o de outras pessoas. Não se pode negar que o desempenho de outras pessoas (alunos, conferencistas, polí- ticos, empresários etc.) depende, até certo limite, do desempenho do intérprete. Contudo, tal como em outras profissões e também pelo fator humano, o risco do erro existe, erros atravessam o processo de comunicação entre as pessoas o tempo todo – independente de elas precisarem de um intérprete –, mas a pos- sibilidade do erro, ou melhor, a eventualidade do erro deve ser vista como uma oportunidade de aprender, de rever processos, tomadas de decisões e quaisquer outras atitudes que possam influenciar a desenvoltura do intérprete, sem perder de vista que o erro pode, e muitas vezes é, ser de responsabilidade de outro en- volvido no processo de interpretação (mais sobre esse assunto pode ser encon- trado no texto complementar desta aula), o conferencista, por exemplo. Quanto à possibilidade de erro inerente ao desempenho da função e aos medos que ela provoca, vale a pena, para além da discussão elaborada aqui, que você, estudan- te aspirante a intérprete ou já atuante na profissão, reflita sobre o seguinte: Se analisarmos bem os temores mais frequentes na mente de um intérprete iniciante, veremos que são, em sua maioria, sociais e circunstanciais, e não receios técnicos. [...] O problema, mais uma vez, reside em nosso desconhecimento, em nossa ignorância em relação ao que se espera de nós e até ao que de fato vem a ser tradução simultânea. Aqui, como na maior parte das circunstâncias da vida, a expectativa condiciona os resultados. Se eu imagino que todos esperam de mim um desempenho impecável, digno de uma máquina perfeitamente construída para substituir palavras e conceitos, trasladando-os com precisão a um outro universo semântico, sofro a cada pequena hesitação e ao primeiro lapso de memória ou pronúncia. Se imagino que não posso errar, e que todos estão ali na plateia para me julgar, crio um nível de tensão absurdo. No início da carreira, o que mais nos mete medo é o público. Quanto mais gente na plateia, pior. E se alguém vira a cabeça para trás, então, para procurar o intérprete dentro da cabine, aí aquele restinho de confiança que ainda resistia escorre pelo ralo. E bem podia ser um olhar de admiração! (MAGALHÃES JUNIOR, 2007, p. 64-65) Pelo exposto até aqui, você deve ter observado a dificuldade de se falar em interpretação sem associá-la a um tipo de interpretação – a simultânea ou con- secutiva. Isso porque, essas modalidades de interpretação demandam exigên- cias diferentes, levando a práticas diferenciadas do ponto de vista das condições de atuação, processos empregados na realização da atividade, entre outros. Por- tanto, agora a intenção é esclarecer, mais especificamente, no que consistem a interpretação consecutiva e a simultânea. 60 O fazer da interpretação Interpretação simultânea e interpretação consecutiva Para aprofundamento nas modalidades de interpretação, serão tratados aqui dois modelos teóricos. O primeiro, chamado de Teoria Interpretativa da Tradução, proposto por Danica Seleskovitch e seguido por Marianne Lederer, foi elaborado a partir de análises e considerações em torno da interpretação consecutiva; o outro, Teoria dos Modelos dos Esforços na Interpretação, proposto por Daniel Gile, foi construído tendo como objeto de estudo a interpretação simultânea. Em comum, ambos os modelos tentam chamar a atenção para a necessidade de interpretar em vez de meramente traduzir, ou seja: ressaltam a importância da construção própria do sentido na transposição do discurso oral de um idioma para outro. Antes do início da exposição, convém dizer que as considerações sobre esses dois modelos tomaram por base o estudo de Freire (2008) e são, portanto, releituras de uma leitura em particular, o que justifica a referenciação apenas desse autor, e não a dos autores dos originais. Conforme Freire (2008), as autoras da Teoria Interpretativa da Tradução consi- deram que o processo interpretativo envolve três etapas: � a fusão dos elementos do sentido linguístico com o conhecimento extra- linguístico para obter o sentido; � a desverbalização desse sentido à medida que ele surge; � a expressão espontânea desse sentido de modo linguístico (SELESKOVI- TCH; LEDERER, 1989, p. 21 apud FREIRE, 2008, p. 153). Essa teoria também é chamada de Teoria do Sentido por procurar alcançar o sentido expresso no discurso oral na língua de partida em vez do significado das palavras empregadas. Sob tal perspectiva, a tradução na língua-alvo é feita a partir do significado do discurso como um todo, e não a partir do significado de cada palavra. Na verdade, segundo Freire (2008), as autoras argumentam que para preservar o sentido/significado veiculado no discurso de partida os intér- pretes utilizam um recurso denominado pelas autoras de desverbalização que consiste em “memorizar o sentido do que foi dito sem supervalorizar a memo- rização das palavras com que esse sentido foi expresso. Assim, torna-se menos dificultosa e mais precisa a reprodução espontânea do sentido expresso no dis- curso oral em língua estrangeira na língua materna” (FREIRE, 2008, p. 154). O fazer da interpretação 61 Pode-se dizer, em outras palavras, que a Teoria Interpretativa encoraja os intérpretes a dissociarem as ideias das palavras usadas para dar forma a essas mesmas ideias. Isto é, uma ideia emitida numa língua-fonte não precisa encon- trar expressão na língua-alvo com as mesmas palavras empregadas na língua fonte. Daí as autoras afirmarem que: “O propósito da interpretação é apreender o que foi expresso em uma língua e transportar essa mesma realidade, ou sentido, de modo fidedigno em outra língua” (SELESKOVITCH; LEDERER, 1989, p. 21, grifo das autoras, apud FREIRE, 2008, p. 154). Esse processo de desverbalização de que falam as autoras conta com o au- xílio de outros elementos como o conhecimento prévio, que elas denominam por “complementos cognitivos”. Nesse sentido, conhecimento de mundo, do momento, do lugar, das circunstâncias nas quais um discurso é formulado, da memória do que foi dito anteriormente, do conhecimento de quem é o locutor e de quem são os ouvintes é o que permite que o intérprete receba a mensa- gem na língua de partida e a compreenda, construa para ele um sentido, mas um sentido que é antes uma ideia, um pensamento, não ligado a palavras es- pecíficas, e sim ao conteúdo, ao contexto da comunicação. Isso é o que se pode encarar como uma espécie de sentido formulado a partir de uma memória não verbal sobre o que foi dito, tratando-se este último recurso do conceito chama- do pelas autoras de contexto cognitivo. Esse recurso dá conta do fato de que ao ouvir ou ver vários minutos de um discurso o que o intérprete retém é a ideia do que foi expresso, uma ideia que não vem “formatada” em palavras, uma vez que “os intérpretes de formação empregam sua memória a respeito do que foi dito anteriormente para compreender as frases ao passo em que são enunciadas, pode-se inferir que, muitas vezes, as palavras ditas anteriormente perderam sua forma verbal” (FREIRE, 2008, p. 155). Dessa maneira, de acordo com as autoras, o intérprete ao transladar um discurso se pergunta sobre “o que significam estas palavras, esta frase, aqui e agora?” (SELESKOVITCH; LEDERER, 1984, p. 104-105, apud FREIRE, p. 158). Até aqui, foi exposto do que se trata e, minimamente, como ocorre a interpre- tação consecutiva, as capacidades mobilizadas para tal e como se manifestam. Agora, a atenção se volta à Teoria dos Modelos dos Esforços na Interpretação, de Daniel Gile, cujo ponto de apoio para o desenvolvimento foi o estudo da in- terpretação simultânea. De acordo com Freire (2008, p. 160), Gile apontaque há três esforços compreendidos no ato interpretativo: � esforço de audição e análise (no caso da Libras, esforço de visão e análise); 62 O fazer da interpretação � esforço de produção; � esforço da memória de curto prazo. Então, conclui-se que na interpretação simultânea o profissional deve enten- der o discurso em língua-fonte produzido pelo palestrante, reformulá-lo em um discurso equivalente na língua-alvo e armazenar em sua memória de curto prazo o que foi dito anteriormente. Quanto ao esforço de captar o discurso proferido pelo palestrante, Freire (2008, p. 168) observa, oportunamente, que: O intérprete deve ser capaz não só de relacionar os sinais linguísticos a seu próprio conhecimento de mundo como, também, de eliminar a ambiguidade que pode surgir de erros cometidos pelo palestrante em relação à correção gramatical (forma) e discursiva (conteúdo). O esforço de audição e análise não compreende a mera apreensão de um sentido que existe de per se, mas sim a reconstrução do sentido expresso em língua estrangeira na língua materna do intérprete. Quanto ao esforço de produção, diz-se que compreende operações que vão desde a representação mental da mensagem a ser apresentada, passando pelo planejamento do discurso a ser reproduzido, até a concretização desse planeja- mento. Esse processo, por sua vez, revela que as combinações entre as palavras de um idioma são muito diferentes das apresentadas em outro idioma. Daí o in- térprete ter de armazenar em sua memória de curto prazo, o terceiro esforço, as ideias e informações relevantes durante o evento de interpretação em que está envolvido, de forma que ele possa recuperar esse conteúdo sempre que isso for necessário ao entendimento do trecho a ser traduzido. Por fim, convém observar que deve haver o que Gile (apud FREIRE, 2008, p. 160) chama de coordenação, que, atuando paralelamente aos três esforços, desenvolve a tarefa de elemento moderador entre eles. Além disso, a discussão do estudo de Gile também é útil para os objetivos desta aula ao evidenciar a complexidade, a responsabilidade, as expectativas e a relação desigual entre o intérprete, o palestrante e o público, pois o profissional envolvido no ato de interpretação simultânea: � não controla a produção do discurso da mesma forma que o palestrante, já que é este quem dita o ritmo; � não pode ter, geralmente, o mesmo alcance de compreensão do assunto tratado se comparado ao público, posto que este, usualmente, se interes- sa por palestras e conferências que têm a ver com sua formação profis- sional, acadêmica, com seus anseios e experiências pessoais (comumente O fazer da interpretação 63 uma pessoa não vai a um congresso técnico sobre engenharia ambiental, por exemplo, se não tiver alguma afinidade com a área, o intérprete, com- parado a essa pessoa, pode possuir menor bagagem de conhecimentos e termos próprios da área); � deve contar com uma memória de curto prazo muito mais ampla do que a do palestrante e do público, haja vista que estes podem lançar mão de anotações a qualquer momento da palestra; e � deve ser capaz de coordenar de modo adequado a compreensão do dis- curso na língua-fonte até a produção do discurso na língua-alvo e a utiliza- ção da memória de curto prazo ao passar do estágio do que recebe (input) para o estágio do que produz (output) durante toda a interpretação. Claro que, na interpretação simultânea, se o intérprete puder ter acesso ao conteúdo da palestra antecipadamente, tanto melhor, pois poderá se preparar, estudando o texto, construindo seu significado, procurando equivalentes na língua-alvo dos termos empregados na língua-fonte. Já na interpretação con- secutiva, que envolve a interpretação de discursos/textos que não gozam do mesmo nível de planejamento dos empregados em palestras e conferências que implicam a interpretação simultânea, o profissional precisa se organizar, criar estratégias para, a cada turno de fala, poder usar em seu favor o momento de “intervalo”. Para concluir esta seção, cabe dizer que tanto interpretação simultânea quanto consecutiva exigem a mobilização de capacidades variadas, são tare- fas complexas, entremeadas de pormenores, mas que, no fim, dizem respeito a se poder “transpor” uma mensagem da forma mais fidedigna possível de uma língua a outra. Assim, por terem uma característica fundamental em comum, essas modalidades de interpretação se entrecruzam, pois uma, de certa forma, é evolução da outra, posto que os primeiros trabalhos de interpretação, por razões históricas, circunstanciais, de evolução de tecnologia e de objetivos persegui- dos, foram consecutivos. Muito posteriormente na história da humanidade é que se fez necessária a interpretação simultânea. Atualmente, esta predomina no cenário interpretativo, contudo, como relata Pagura (2003, p. 211), “a con- secutiva tem papel preponderante no treinamento de intérpretes simultâneos, uma vez que nesse modo se desenvolvem as técnicas que serão fundamentais para o desempenho da simultânea, tais como a capacidade de compreensão e análise do discurso de partida”. 64 O fazer da interpretação A (in)visibilidade do intérprete Até esta seção, falou-se do ato interpretativo e do intérprete de forma mais geral, abrangendo tanto intérpretes de línguas orais quanto de línguas de sinais. A partir daqui, o foco estará na atuação do Intérprete de Língua de Sinais, nas es- pecificidades de seu trabalho, nos desafios, enfim, nas características que justifi- cam um tratamento em separado para os Intérpretes de Línguas de Sinais. Para dar início à reflexão, resgata-se aqui um excerto da obra de Magalhães Junior já citado anteriormente nesta aula: “No início da carreira, o que mais nos mete medo é o público. Quanto mais gente na plateia, pior. E se alguém vira a cabeça para trás, então, para procurar o intérprete dentro da cabine, aí aquele restinho de confiança que ainda resistia escorre pelo ralo” (2007, p. 65, grifo nosso). Evidentemente, a primeira grande diferença entre intérpretes de línguas orais e de línguas de sinais é o canal de recepção e produção das línguas envolvidas. No primeiro caso, audição e aparelho fonador, no segundo, visão e o uso das mãos, do corpo. Se o canal de recepção das línguas de sinais é a visão, o Intérpre- te de Línguas de Sinais não pode se “‘refugiar’ dentro de uma cabine lá atrás”. Seu trabalho, devido à natureza da língua com que lida, o expõe à plateia o tempo todo. Durante todo o ato interpretativo o profissional está lá, sob o olhar de seu público. Como, então, falar de invisibilidade do intérprete? Em que sentido? É o que se pretende esclarecer. Para tanto, são empregadas aqui as reflexões tecidas por Andréa Silva Rosa (2008). Além da evidente visibilidade física do intérprete, se procura falar aqui de uma visibilidade que, em termos simples, se poderia definir como as marcas que o intérprete deixa no produto de sua interpretação/tradução, isto é, quanto do intérprete, de sua contribuição, pode ser visto na interpretação. Em princípio, partindo do senso comum, e de algumas vertentes mais literais de tradução, o esperado é que o intérprete seja invisível no resultado do ato interpretativo. Mas o desejo dessa invisibilidade, muito acalentado em traduções escritas de verten- te mais literal, se já é paradoxal na própria tradução escrita, da qual o público-al- vo recebe apenas o produto – o texto impresso ou digitalizado –, o que dizer da interpretação, em que o público “acompanha”, talvez intua, o processo de inter- pretação. Mais ainda, o que pensar sobre a interpretação em língua de sinais, na qual, além da presença corpórea, o intérprete – daqui por diante tratado apenas como ILS (Intérprete de Língua de Sinais) –“viabiliza a comunicação entre surdos e ouvintes, identificando-se com o orador, exprimindo- se na primeira pessoa” (ROSA, 2008, p. 115)? O fazer da interpretação 65 Tanto na tradução quanto na interpretação, é preciso, por vezes,que o tradu- tor ou intérprete, para lançar uma ponte entre duas culturas, explicite, ou mesmo explique, conhecimentos que não são comuns ao público da tradução ou inter- pretação. Na tradução escrita, o tradutor se utiliza de notas de rodapé, glossários e outros recursos. Na interpretação, esses esclarecimentos têm de estar ao longo do discurso traduzido, integrando-o, e não como um anexo. Alguns recursos usuais, geralmente bem-sucedidos na interpretação da Libras, consistem em empregar exemplos, estabelecer comparações, fornecer definições de termos ou palavras que se pressupõem como desconhecidas do surdo, tudo isso duran- te o fluxo interpretativo. No que diz respeito ao ILS, essa necessidade de esclare- cimentos é ampliada, já que o seu público-alvo, o surdo, muitas vezes não tem acesso ao patrimônio cultural, ao conhecimento e às informações veiculadas para os ouvintes – basta pensar, para se ter uma ideia, no quanto a programa- ção da televisão brasileira está adaptada para que surdos possam acompanhá-la integralmente, afinal, poucos programas, em horários específicos, detêm a fer- ramenta de closed caption (legenda oculta), quanto mais traduções em língua de sinais. Acontece, porém, que nesse processo de “explicitar” o intérprete deixa marcas, vestígios de sua presença. Isso é natural, inerente ao fenômeno de tra- dução e interpretação, mas há certos limites a se respeitar: O intérprete necessita fornecer pistas suficientes à interpretação e à reconstrução do sentido na língua de sinais, tendo o cuidado, entretanto, de não explicar excessivamente, para não restringir a compreensão dos surdos, além da preocupação em não deixar conceitos totalmente desvinculados, que vão dificultar ou até impedir o estabelecimento da coerência do discurso na língua de sinais, ou seja, na língua de chegada. (ROSA, 2008, p. 120) A autora cita um exemplo prático disso ao relatar o caso do uso do sinal de “inclusão” numa palestra, por não entenderem o conceito, por não o vincularem ao restante do conteúdo da palestra, muitos surdos interpelaram o intérprete sobre o significado do mesmo. O ILS, então, interrompeu o fluxo de interpre- tação para explicar o significado da palavra “inclusão” empregada pelo orador. Ao término da palestra, um surdo dirigiu ao palestrante uma pergunta relacio- nada ao tema da inclusão, empregando de forma correta o termo que acabara de aprender. Isso significa que, de um lado, a interrupção na interpretação foi positiva, pois ao se apropriar de um novo conceito o surdo pôde vinculá-lo ao universo de conhecimentos que já detinha e compreender a matéria, a ideia, da palestra. De outro lado, nas palavras da autora: Porém, dessa opção, advém um questionamento frequente: e o que o palestrante disse, durante o tempo em que o intérprete estava dando os devidos esclarecimentos sobre a palavra inclusão, os surdos perderam? Em meu ponto de vista, a minha resposta para essa situação específica é não. A perda estaria, a meu ver, em não compreenderem o contexto, a ideia da 66 O fazer da interpretação mensagem do orador, em não poderem expor a sua opinião sobre a sua própria educação, em não poderem estar incluídos pela palavra. O não esclarecimento ocasionaria uma suposta fidelidade e a ilusão de ser possível transmitir tudo, durante o ato interpretativo. (ROSA, 2008, p. 121) De forma a justificar a escolha com a qual o ILS se depara e saber que atitude tomar – até onde explicar o significado –, a autora lança mão da diferença esta- belecida por Humberto Eco (1987, p. 50, apud ROSA, 2008, p. 124) entre usar um texto e interpretá-lo: “Se há algo para ser interpretado, a interpretação deve falar de algo que deve ser encontrado em algum lugar, e de certa forma respeitado”. Nesse sentido, ao interpretar, se pressupõe que há um sentido pretendido pelo autor do discurso interpretado e esse sentido deve ser respeitado, contempla- do, alcançado. No uso de um texto, ou discurso, o sentido é estendido, não há a preocupação de respeitar uma coerência interna ao texto ou discurso original. Você, estudante, deve estar se perguntando “como serei fiel ao sentido preten- dido pelo autor do discurso interpretado?”. Pois saiba que essa é uma excelente questão, para a qual há, igualmente, uma ótima resposta. Embora o significado de uma mensagem seja construído pelo receptor da mesma e ainda que não haja nela apenas um sentido a desvelar, isso não faz com que não seja possível uma tradução que contemple o sentido pretendido pelo autor dessa mensagem. Afinal, o sentindo buscado pelo autor da mensagem, aquele que espera que seja alcançado, deixa pistas ao longo do discurso, pistas por meio das quais se pode confirmar se o sentido que está sendo construído se aproxima ou se distancia do sentido pretendido. Ou dito de outra forma, a inter- pretação/compreensão de uma parte do texto será válida se estiver de acordo com todo o texto/mensagem. É preciso, então, respeitar a coerência interna do discurso que se está interpretando, conforme explicação de Humberto Eco em- pregada por Rosa: [...] qualquer interpretação feita de uma certa parte de um texto poderá ser aceita se for confirmada por outra parte do mesmo texto, e deverá ser rejeitada se a contradisser. Neste sentido, a coerência interna do texto domina os impulsos do leitor, de outro modo incontroláveis. (ECO, 1993, p. 76, apud ROSA, 2008, p. 127) Um outro problema a considerar é quando se incorre em erro na interpreta- ção, seja ao se desviar do conteúdo pretendido pelo palestrante, seja ao empre- gar um termo técnico erroneamente, ou ainda omitir, por exemplo, numa des- crição detalhada sobre um objeto, um ou dois adjetivos. Como visto em outra passagem desta aula, erros são eventualidades, o que significa que podem e vão ocorrer. Além de aprender com os mesmos, é preciso ainda que o intérpre- O fazer da interpretação 67 te tenha discernimento para saber quando e como se corrigir. Não há receitas nem guias para tanto, o intérprete, como muitos outros profissionais, terá de aprender na prática, e também pela troca de experiência, quando e como se cor- rigir. Nesses momentos, é bom ter em mente que em uma interpretação podem haver erros gravíssimos, que comprometem o conteúdo interpretado, e erros perdoáveis, que não chegam a comprometer a qualidade do conteúdo do dis- curso interpretado. No caso de um erro gravíssimo, é responsabilidade ética do profissional se corrigir, sem perder de vista que, a depender da estratégia empregada, ele pode, às vezes, intencionalmente ou não, se eximir da culpa, incorrendo, da mesma forma, em falta de ética. Considere, por exemplo, uma situação de interpreta- ção em que você, estudante, é o cliente e não tem domínio da língua-fonte, não podendo, portanto, checar as informações recebidas do intérprete. Num dado ponto da interpretação, o intérprete sinaliza algo que equivaleria em português a “Perdão, na verdade, eu quis dizer problemas sociais, e não políticos.” Nesse momento, a quem você atribuiria essa correção? Ao intérprete ou ao palestran- te? A verdade é que não é possível saber. Esse é um caso em que o intérprete pode se eximir da culpa de um erro que pode ter sido dele. Em casos assim, o recomendado é encontrar ocasião oportuna durante a interpretação e se retirar do papel de primeira pessoa do palestrante e se corrigir na terceira pessoa: “o intérprete, na verdade, quis dizer problemas sociais e não políticos”. Essa saída de personagem é também uma manifestação de visibilidade, pois explicita que não há neutralidade possível nesse papel. Certamente, você deve estar pensando que não é tarefa fácil equilibrar-se entre a visibilidade e invisibilidade no discurso interpretado, e, de fato, não é. Todavia, a discussão empreendida aqui foi feita no sentido de que você, aspi- rante a intérprete ou intérprete, reflita sobre o fato de que não há invisibilidade possível, não totalmente, mas isso não acarreta que então o intérprete deva se deixarpresente ao longo da interpretação, extrapolando o sentido do original. A verdade sobre a (in)visibilidade do intérprete reside numa característica atribuí- da a muitas áreas da vida humana: o equilíbrio. E este só se busca na prática e na reflexão crítica sobre a prática. Claro, aprender com os erros e acertos dos outros profissionais de áreas afins também ajuda, por isso, a seguir, você encontra um texto complementar sobre quão feliz ou infeliz um intérprete pode ser em suas tentativas de (in)visibilidade. Boa leitura! 68 O fazer da interpretação O intérprete: de “mal necessário” a “salvador da pátria” Palestra proferida no evento comemorativo do Dia do Tradutor, 1.º de outubro de 2004 (QUENTAL, 2004) O tema que proponho desenvolver é a percepção do trabalho do intér- prete pelos atores envolvidos no processo: o cliente, os ouvintes, os colegas – mas também a imprensa, que, apesar de não fazer parte do processo de interpretação, também reflete seus ecos. Vejo essa percepção ao longo de um contínuo, cujos extremos seriam as ideias que coloquei no título: numa ponta o intérprete como sendo um mal necessário e, na outra, o intérprete como salvador da pátria – metáfora que será explicitada mais adiante. Parece-me que, bem ou mal, esse contínuo é a experiência de todos nós que trabalhamos no campo da interpretação de conferência, assim como da tradução, uma área profissional que, apesar das inegáveis diferenças, é objeto de percepções extremamente semelhantes: tradutores e intérpretes, todos nós já vivemos alguma situação em que nos sentimos em um extremo ou outro. Começando pela ponta do mal necessário, temos uma visão tradicional do tradutor que se manifesta através de algumas expressões, como traduttori traditori. Através desse jogo de palavras, o que está dizendo o senso comum? Que todo tradutor é inerentemente traidor. Que não há escapatória, pois o próprio traduzir implica em trair. Outra expressão clássica para se referir à tradução é les belles infidèles, “as belas infiéis”, ou seja, para ser bonita, a tra- dução tem que ser infiel; ou, quando a tradução é boa, significa que o tradu- tor foi infiel. São percepções que relativizam o papel do tradutor e diminuem sua importância. Outro exemplo dessa percepção é aquela frase atribuída ao escritor Robert Frost: “poesia é o que se perde na tradução”. Nessa definição, a tradução é usada para explicar aquilo que a linguagem tem de mais especial, a poesia, e essa coisa especial é justamente aquilo que se perde na tradução, justamente aquilo que a tradução não consegue capturar. Na interpretação, Texto complementar O fazer da interpretação 69 essa percepção aparece mais comumente com a expressão “mal necessário”. O intérprete é necessário, sem dúvida, mas é um mal porque, afinal, seria muito melhor não precisar de intermediários e estabelecer um canal de co- municação direto com a outra parte. É comum essa ideia aparecer a partir do ponto de vista do cliente, aquele que contrata e que paga. Todos nós já enfrentamos algum grau de dificuldade, na hora da negociação, por causa do custo. O cliente reluta em reconhecer a importância daquele profissional e, portanto, em aceitar pagar o valor justamente elevado daquela atividade. Isso pode ocorrer na hora da negociação, mas também durante o próprio evento. No caso de empresas que precisam realizar reuniões frequentes com estrangeiros, por exemplo, e em que se faz necessária a ajuda de intérpretes, é normal haver uma certa hostilidade por parte do cliente, com o qual somos obrigados a ter um contato estreito dada a natureza do evento. Outro ponto de vista seria o do próprio conteúdo, da língua, girando em torno da questão do erro, que já tive ocasião de discutir no trabalho “Ética profissional e erro em interpretação de conferência”, que apresentei no I Congresso Nacional de Tradução da Abrates. Refiro-me aos erros aos quais nós estamos sujeitos apesar de todo preparo e profissionalismo, erros que acontecem devido a uma série de circunstâncias, que tentei descrever no trabalho citado. É o caso de atos falhos decorrentes de expectativas frustra- das ou da interferência da nossa ideologia e das nossas circunstâncias pesso- ais; é o caso dos números, sempre um desafio para o intérprete; do discurso original truncado, complexo, pouco claro, com sotaque, dificultando a com- preensão; é a questão dos nomes próprios (de pessoas, produtos, empresas) que aparecem no discurso e que não foram fornecidos com antecedência. No caso dos oradores brasileiros, é comum o uso de termos em inglês com a pronúncia incorreta, mesmo quando a língua portuguesa tem equivalen- tes perfeitos, como aconteceu em um evento em que um dos participan- tes falava algo que soava como “mart” (market) para referir-se a “mercado”. Acredito que são todos tipos de erros que podemos tentar minimizar, mas é inegável que eles acontecem apesar de nossos esforços. O pior de todos é o jogo de palavras, justamente a “poesia” da interpretação, digamos assim, a parte mais surpreendente, a parte onde a forma assume papel de destaque para transmitir um conteúdo. E é justamente para perguntar sobre o jogo de palavras, a parte “divertida” da linguagem, que os participantes nos procuram no intervalo. Quem ainda não teve que responder à famosa pergunta: “Como você traduziu aquela expressão...” (e segue-se uma metáfora, um provérbio, 70 O fazer da interpretação um jogo de palavras, uma expressão idiomática)? E nós somos obrigados a responder que, nos poucos segundos que tínhamos para pensar, não foi possível recriar a forma, mas que o conteúdo foi transmitido – ou seja, reco- nhecemos que a graça se perdeu. Inevitavelmente a pessoa que perguntou fica desapontada. O terceiro ponto de vista é o do ouvinte, o usuário do serviço de interpre- tação. Ele também, em certas experiências, nos vê como mal necessário. Uma vez trabalhei em um evento de mulheres, em que foram discutidas questões, dificuldades e desafios relacionados à mulher. No final elas se reuniram em círculo, colocaram uma lata de lixo no meio e perguntaram a cada uma o que gostaria de jogar ali. Não faltaram ideias como “a injustiça”, “a discriminação” etc., até que uma delas disse: “eu quero jogar esses malditos fones que tive que usar a semana inteira, porque não aguento mais!”. Os fones, portanto, chegavam a ser um desconforto físico. Não era da tradução que ela estava se queixando, era do incômodo de ter que usar os fones por períodos pro- longados. Nós, que estamos acostumados, também nos cansamos, imagina quem não está... A esse propósito, uma vez tive uma experiência como usuária de interpre- tação que foi muito rica, pois me permitiu me colocar do outro lado. Foi uma palestra de um orador que tinha sido muito importante na minha formação acadêmica. Eu pertencia à comunidade que falava aquela linguagem, eu co- nhecia o jargão, mas a palestra foi em francês, uma língua que não domino perfeitamente, de modo que precisei da tradução simultânea. Pois sou obri- gada a confessar que a experiência de ser usuária de tradução simultânea foi extremamente desconfortável, eu simplesmente não me conciliei com os fones de ouvido, e fiquei me perguntando por quê. Afinal, a tradução estava correta de um modo geral, o conteúdo estava correto (como entendo um pouco de francês, pude conferir). Identifiquei alguns problemas pontuais de jargão, de terminologia, que talvez pudessem ser justificados por circunstân- cias específicas, mas não era esse o transtorno maior. O maior problema era a entonação. A interpretação saía com um tom absolutamente casual, desinte- ressado, distante. Para mim aquela era uma oportunidade única de ouvir um pensador brilhante, que, falando com ênfase e com paixão, demonstrava um sincero respeito pelo público, que reservou aquele tempo para ouvi-lo, que pagou antecipado para garantir sua vaga. Já para os intérpretes aquilo não passava de mais um evento, um trabalho como outro qualquer.Havia uma O fazer da interpretação 71 clara discrepância de interesses: para mim, como ouvinte, aquela era uma ocasião muito especial, e para eles era apenas mais um dia de um trabalho. A tradução simultânea, ali, foi para mim um mal necessário. E me causou des- conforto saber que eu também poderia estar naquele papel. Em compensação, tive outra experiência como usuária que foi redentora daquela experiência ruim e que me mostrou como é possível mudar esse papel. Dessa vez eu estava trabalhando num evento onde havia oradores ja- poneses que eram traduzidos consecutivamente para o português por uma colega. Eu e minha colega de cabine, então, precisamos da tradução para o português para poder verter para o inglês. Não pude cotejar o conteúdo com o original, por razões óbvias, mas posso afirmar que era absolutamente coerente e que o jargão e as siglas estavam corretos, o que passou, a nós e ao público, uma impressão geral de correção. Independentemente disso, porém, a grande diferença foi a ênfase, o envolvimento, o interesse e a ca- pacidade da intérprete de captar até o humor dos oradores, um desafio que facilmente se baseia no jogo de palavras. O discurso da intérprete era con- vincente e atraente, ela conseguiu de fato se apropriar do discurso, e é isso que fez a diferença. Além de melhorar a entonação, acredito que esse movi- mento de apropriação minimiza os erros, porque para se apropriar é preciso se envolver, e ao se envolver, alguns erros são naturalmente evitados. Na- quela situação, então, nós intérpretes nos sentimos salvos pela intérprete de japonês, o público agradeceu emocionado ao final, e essa gratidão efusiva é prova de que aquela intérprete não foi vista como um mal necessário. Não faltam exemplos de reações do público nesse mesmo tom. Uma vez eu e uma colega traduzimos um orador extremamente claro e expressivo, daqueles que encantam a plateia. Nós conseguimos nos apropriar do ritmo e da emoção de sua fala e, no final, enquanto ele era aplaudido de pé, uma pessoa no fundo da sala virou-se para a cabine para aplaudir a nós, numa clara demonstração de ter percebido a abrangência da nossa participação. Outra vez foi mais surpreendente. Era uma consecutiva, uma situação mais tensa, uma dinâmica mais difícil, e um assunto mais complexo: filosofia. Eu usei a estratégia de tentar me apropriar do discurso, mas no meio da con- ferência, por um problema de anotação, cometi um lapso e troquei o nome de um filósofo: em vez de “Hegel” falei “Heidegger”, um erro indiscutivelmen- te grave... As pessoas na mesa perceberam e me corrigiram imediatamente. Desculpei-me e segui em frente, me esforçando para manter a apropriação. 72 O fazer da interpretação No final julguei que aquele erro tinha estragado completamente o meu es- forço e, no entanto, para minha surpresa, as pessoas me procuraram para me agradecer efusivamente, o cliente se mostrou muito satisfeito, e depois ainda elogiou meu trabalho para outros colegas. Parece, então, que o meu enga- jamento chegou a compensar o erro, que passou a ser visto como um lapso passível de acontecer com qualquer um, “desculpável”, portanto, dentro do contexto maior de apropriação. Essa é, então, a outra ponta, a ponta de salvador da pátria, esse intérprete engajado, que brilha, que se apropria do discurso. Os tradutores também têm seu dia de salvador da pátria, como aconteceu com o colega Paulo Henriques Britto, a julgar por uma resenha publicada na revista Época de 02/08/2004. O livro em questão é Mason & Dixon, de Thomas Pynchon, autor americano sabidamente difícil de ler, que dirá de traduzir. Mas o foco parece estar tão concentrado na tradução – ou, como veremos, no tradutor – quanto no original, a começar pelo fato de que a resenha apresenta uma foto grande do tradutor, com uma foto bem menor do autor... É verdade que esse escritor vive recluso e não divulga fotos, de modo que supostamente só existe essa foto antiga do autor, mas mesmo assim chama atenção a escolha de publicar uma foto grande do tradutor, com uma foto 3x4 do autor embaixo. E a re- senha percorre um caminho curioso, um caminho muito semelhante a esse contínuo que descrevi, de mal necessário, de bela infiel, a salvador da pátria. Começa assim: “O tradutor é, acima de tudo, um infiel. Ele tem consciência de que deixa de fora a própria textura original da língua em que o texto foi redi- gido.” Após dizer que é um mal necessário, porém, a resenha passa a elogiar a tradução, avalia que “É um caso raro de tradução que acrescenta ao original” e finalmente conclui: “Trair às vezes vale a pena.” Trocando em miúdos: o tra- dutor traiu, mas o resultado ficou até melhor. Voltando para a interpretação, o caso emblemático do salvador da pátria aconteceu na viagem do presidente Lula para a Namíbia. Para quem não lembra, em 2003, Lula visitou a Namíbia, na África, como sempre acompa- nhado de seu intérprete oficial, o colega Sergio Xavier Ferreira, que, aliás, em fato inédito na história da República, tem o cargo de assessor especial do presidente. Ao saudar o presidente da Namíbia na chegada à capital do país, num discurso improvisado, Lula afirmou: “estou mais surpreso ainda porque quem chega a Windhoek não parece estar num país africano, ne- nhuma cidade é tão limpa e bonita [...]”. De acordo com o que foi noticiado O fazer da interpretação 73 na imprensa, o intérprete nessa hora gaguejou e interrompeu o presidente (atrapalhando seu discurso, a rigor) para dizer: “desculpe, presidente, não estou entendendo.” Mas, ao invés de criticar a interrupção, a imprensa disse que o intérprete ajudou o presidente a corrigir o que poderia se tornar uma gafe diplomática, ou seja, salvou a pátria... Finalmente, gostaria de concluir com mais um exemplo, que encontrei enquanto procurava o caso da Namíbia na internet. Trata-se de uma outra re- ferência ao trabalho do intérprete num contexto político. A notícia referia-se a um congresso onde discursou o político Miguel Arraes. O trecho diz assim: “Miguel Arraes também foi vaiado na abertura do Congresso de Jornalistas. Aliás, quando começou a falar, muitos colocaram o fone nos ouvidos. Os da terra também preferiram a fluência da intérprete à voz engrolada, entre pi- garros, do governador”. Casos como esse, em que o público prefere a voz do intérprete à do orador, não são raros – mais uma prova de que nem sempre o intérprete é um mal necessário. Às vezes ele salva a situação. Dicas de estudo Os Tradutores na História, de Delisle e Woodsworth, tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1995. A leitura da obra é recomendada para quem tem interesse em acompanhar o surgimento e a evolução dessa profissão. Embora foque o tradutor em seu título, o livro também conta com contribuições ao entendimento da atuação do in- térprete ao longo dos anos. O interessante no livro é sua divisão em temas ou áreas nas quais tradutores e intérpretes tiveram papel relevante: disseminação do conhecimento; desenvolvimento de literaturas nacionais, desenvolvimento das línguas nacionais, entre outros. Matéria da revista Aventuras na História intitulada “Malinche, a Judas mexi- cana”. Disponível em: <http://historia.abril.com.br/gente/malinche-judas-mexi- cana-473346.shtml>. O interesse reside no fato de ser um retrato histórico de quão antiga e, desde então e até hoje, fortuita é a profissão de intérprete. Também leva à reflexão com base em um caso verídico de como a interpretação pode influir na evolução ou não de uma civilização, em quanta responsabilidade ética o ato de interpretação implica. 74 O fazer da interpretação Atividades 1. Discuta no que consiste o ato de interpretar e a diferença que ele apresenta em relação ao ato tradutório. 2. Embora a interpretação simultânea seja uma espécie de evolução da con- secutiva, as duas práticas apresentam diferenças consideráveis do ponto de vista de sua execução. Com base no exposto sobre a Teoria do Sentido e so- bre a Teoria dos Modelos dosEsforços na Interpretação, discorra sobre as diferenças entre interpretação consecutiva e simultânea. O fazer da interpretação 75 3. Considere o excerto retirado do texto complementar: O pior de todos é o jogo de palavras, justamente a “poesia” da interpretação, digamos assim, a parte mais surpreendente, a parte onde a forma assume papel de destaque para transmitir um conteúdo. E é justamente para perguntar sobre o jogo de palavras, a parte “divertida” da linguagem, que os participantes nos procuram no intervalo. Quem ainda não teve que responder à famosa pergunta: “Como você traduziu aquela expressão...” (e segue-se uma metáfora, um provérbio, um jogo de palavras, uma expressão idiomática)? E nós somos obrigados a responder que, nos poucos segundos que tínhamos para pensar, não foi possível recriar a forma, mas que o conteúdo foi transmitido — ou seja, reconhecemos que a graça se perdeu. Inevitavelmente a pessoa que perguntou fica desapontada. (QUENTAL, 2004) Com base nele, usando-o como recurso argumentativo, discuta a noção de desverbalização do sentido formulado na língua-fonte e sua apresentação na língua-alvo, respeitando o significado do original. Referências FREIRE, Evandro Lisboa. Teoria interpretativa da tradução e teoria dos modelos dos esforços na interpretação: proposições fundamentais e inter-relações. Ca- dernos de Tradução, UFSC, v. 2, n. 22, 2008. Disponível em: <www.periodicos. ufsc.br/index.php/traducao/article/view/9279/9413>. Acesso em: 9 ago. 2010. MAGALHÃES JÚNIOR, Ewandro. Sua Majestade, o Intérprete: o fascinante mundo da tradução simultânea. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2007. 76 O fazer da interpretação PAGURA, Reynaldo. A interpretação de conferências: interfaces com a tradução escrita e implicações para a formação de intérpretes e tradutores. DELTA [on- line], 2003, v. 19, n. spe, p. 209-236. Disponível em: <www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=s010244502003000300013>. Acesso em: 27 ago. 2010. ROSA, Andréa Silva. Entre a Visibilidade da Tradução da Língua de Sinais e a Invisibilidade da Tarefa do Intérprete. Petrópolis: Arara Azul, 2008. QUENTAL, Raffaella de Filippis. O Intérprete: de “mal necessário” a “salvador da pátria”. publicado em: 2004. Disponível em: <www.sintra.org.br/site/index. php?p=c&id=18&codcat=13>. Acesso em: 27 ago. 2010. Gabarito 1. Resposta mínima deve reconhecer que embora tradução e interpretação se- jam processos interdependentes, esta requer do intérprete capacidades es- pecíficas que envolvem tanto o aspecto cognitivo quanto linguístico, como por exemplo, boa capacidade de uso da memória de curto prazo, boa ca- pacidade de processamento e análise da mensagem recebida, ser capaz de se ater à ideia do autor da mensagem, sem perder de vista o tom, o ritmo, a velocidade, as intenções discursivas etc. 2. Aqui o esperado é que o estudante apresente os três postulados básicos das duas teorias, cotejando-os de maneira a demonstrar distinções como: na interpretação consecutiva, mais do que na simultânea, o intérprete precisa, pela própria natureza do ato, reconstruir o discurso a partir da ideia nele vei- culada e a partir do contexto a que tal ideia estava associada na mensagem transmitida, o chamado processo de desverbalização. Já a interpretação si- multânea, mais do que a consecutiva, exige a tomada de decisões em ques- tão de segundos, sendo que o planejamento do discurso segue, basicamen- te, o ritmo imposto pelo palestrante. Na consecutiva, por haver um período entre a fala do palestrante e a do intérprete, há um pouco mais de tempo para planejar o discurso. O fazer da interpretação 77 3. Com base no excerto, o aluno deve argumentar que se o intérprete se pren- der à forma das palavras, ao desejo de usar palavras na língua-alvo “equiva- lentes” na língua-fonte, não conseguirá transmitir ao público o conteúdo da mensagem. Ater-se à ideia, uma ideia que não se prende a formas verbais, é um recurso muito útil para reconstruir sentidos da língua-fonte na língua- -alvo, sendo que a materialização desse sentido na língua-alvo não precisa se submeter a um ideal de correspondência entre forma e forma. Afinal, como aponta Quental, nos poucos segundos que o intérprete tem à disposição, não é possível recriar a forma, de modo a conseguir, por exemplo, na língua- -alvo o mesmo efeito – sonoro, estético – de um jogo de palavras produzido na língua-fonte, o que é possível garantir é o sentido. 79 A proposta deste capítulo é refletir sobre a necessidade de não apenas fazer uso das línguas envolvidas no processo de tradução – e isso já não é pouco –, mas também de conhecê-las em sua estrutura e funcionamento. Portanto, noções relativas à diferença entre saber uma língua e conhecer sua estrutura, ao que se entende por conhecer a estrutura de uma língua, ao contraste entre línguas orais e de sinais, aos desafios advindos da dife- rença de modalidades de línguas e do estabelecimento, ainda em curso, de uma variedade padrão da Libras são abordados com o fim de alcançar o propósito estabelecido. Diferença entre saber uma língua e conhecer sua estrutura A diferença entre saber uma língua e conhecer sua estrutura pode ser esclarecida, mais facilmente, por meio da metáfora da diferença entre um motorista e um mecânico. Um motorista pode usar muito bem seu carro sem conhecer como ele funciona por dentro, quais são as peças do motor, como elas trabalham em conjunto, como acontece o processo de arranque ou de frenagem. O bom motorista sabe que para parar seu carro precisa acionar o pedal da embreagem e do freio, não precisa saber o que ocorre sob o capô. Esse é o trabalho do mecânico, que é quem precisa ter o conhecimento sobre como funcionam os mecanismos de acionamento do freio e da arrancada, por exemplo, pois apenas por meio desse conhe- cimento poderá desempenhar seu trabalho: descobrir por que o carro não arranca, por que não freia etc. Pode haver um mecânico que não saiba conduzir um carro, embora isso seja bastante incomum, pois saber usar o carro e detectar as falhas em seu uso lhe dá indícios de onde procurar o problema de funcionamento, e é seu conhecimento técnico do funcionamento que lhe permitirá resolver adequadamente o problema. Poucos motoristas conhecem o funciona- mento de um carro a ponto de resolverem sozinhos os problemas que ele O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação Vídeo 80 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação pode apresentar, mas a questão é que o motorista não precisa conhecer o fun- cionamento da máquina no que não diz respeito ao seu uso. Assim é saber falar uma língua, sabe-se dela o que é necessário para “fazê-la andar”, para pô-la em uso. Conhecer a estrutura da língua é ir além do uso, é conhecer os mecanismos que possibilitam o uso. O trabalho do intérprete se compara ao do mecânico- -motorista, com a diferença crucial de que o intérprete tem, necessariamente, que saber usar-conduzir as línguas envolvidas na tradução. Por meio do saber a língua – o uso, o implícito –, o intérprete pode verificar dificuldades no processo de tradução e encontrar, através de seu conhecimento técnico, a solução. Com isso, percebe-se que ser usuário de uma língua dá ao indivíduo um co- nhecimento intuitivo sobre ela, conhecimento muito importante e útil, é ver- dade, mas que, sozinho, não é suficiente para exercer a função de tradutor e intérprete, que exige um conhecimento técnico, consciente e sistemático da língua a ser traduzida, interpretada ou ensinada. Discorrendo sobre o tema e empreendendo uma discussão em torno do tradutor ideal, no sentido daquele que se deveria ter à disposição – não entenda, estudante, “ideal” como “perfeito”, pois são conceitos muito diferentes –, e suas capacidades, Rónai afirma: Esse conhecimento sólido da própria língua, critério certo de toda educação humanística, consegue-se – já se vê – mediante a leitura atenta e contínua de bons autores,pela frequentação de livros inteligentes sobre o próprio idioma, pelo estudo incessante dos meios de expressão. [...] Em resumo, o tradutor deve conhecer a língua estrangeira o bastante para desconfiar de cada vez que a compreensão insuficiente de uma palavra ou de um trecho obscurece o sentido do conjunto. (RÓNAI, 1976, p. 10-11, grifo do autor) Entendida a diferença entre uso e conhecimento da língua, parte-se agora para a definição sobre o conhecimento da estrutura das línguas envolvidas, como pode ser alcançado e por que motivo é requerido. O domínio da estrutura linguística na tradução e interpretação Quadros (2007, p. 73) ao falar das competências exigidas do Tradutor e Intér- prete de Língua de Sinais arrola em primeiro lugar a competência linguística, de- finida pela autora como a habilidade de manipular com as línguas envolvidas no processo de interpretação, de modo a “distinguir as ideias principais das ideias secundárias e determinar os elos que determinam a coesão do discurso”. Domi- nar as línguas envolvidas, então, é a primeira condição necessária ao exercício da profissão. Mas esse domínio, como visto anteriormente, não se resume ao saber usar, é preciso conhecer a estrutura, o funcionamento das línguas. O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 81 É importante ter em mente que esse conhecimento não deve ser encarado como o domínio de uma série de estruturas e suas respectivas nomenclaturas. Ele deve permitir ao profissional analisar o uso que faz das línguas envolvidas na tradução para encontrar os pontos a melhorar em interpretações futuras, para descobrir soluções aos problemas encontrados durante o trabalho, deve ser útil como uma caixa de ferramentas é ao mecânico de que se falou antes. Para não ficar apenas no campo da argumentação sobre a utilidade do domí- nio da estrutura, apresenta-se, a seguir, alguns casos ilustrativos. Uma catego- ria linguística que costuma ser um fator complicador entre línguas, sejam quais forem, é a de tempo, pois cada língua recorta essa categoria de uma determi- nada maneira. Um exemplo entre línguas orais pode ser encontrado na tradu- ção do Present Perfect, do inglês, para o português. O Present Perfect é uma das formas do tempo presente em inglês que serve para expressar situações ante- riores (passadas em relação a um ponto de referência específico) mas relacio- nadas ao momento presente. Em português, não há um substituto formal para esse tempo. Não há, na língua portuguesa, um tempo verbal que substitua esse tempo verbal inglês preservando todos os significados que ele agrega. Ainda assim, o bom tradutor do inglês para o português sabe que, a depender do con- texto, a forma do Present Perfect pode ser traduzida para o pretérito perfeito sim- ples, para o presente, para o pretérito perfeito composto. Mas a escolha vai ser determinada pelo nível de entendimento que o tradutor possui sobre o tempo inglês e sobre as possibilidades de tradução desse tempo. Por exemplo, se o sig- nificado relevante, o qual foi destacado no contexto, é a relação com o momento presente, a melhor opção em português é o tempo presente. Por outro lado, se o destacado é uma situação com início no passado e ainda válida para o tempo presente, a melhor opção é o pretérito perfeito composto. Por fim, se a intenção é chamar mais a atenção para o fato de a situação ser anterior, ainda que man- tenha alguma relação com o momento presente, a possibilidade de tradução adequada é o pretérito perfeito simples. O sistema temporal também representa um desafio para os intérpretes du- rante a tradução do português para a Libras. Essa língua possui as três divisões básicas de tempo: passado, presente e futuro. Como nos outros sistemas tempo- rais de outras línguas, a Libras organiza a categoria de tempo a partir do momen- to presente como revela o excerto abaixo: [...] o sinalizante sempre está no momento presente, visto que o seu corpo está presente. Nesse sentido, as referências temporais são feitas a partir do eixo do corpo – para frente, indicando o futuro, para trás, referindo-se ao passado e, no centro, indicando o momento presente, que também representa o espaço neutro. (QUADROS; SOUZA, 2008, p. 176) 82 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação É possível depreender, então, que a Libras organiza seu sistema temporal com base nesses três momentos – futuro/tronco para frente, passado/tronco para trás, presente/tronco no centro –, correspondentes a três formas. Inicialmente, não se pode concluir que a Libras tenha subdivisões temporais para esses momentos aos quais corresponderiam outras formas de tempo. Nesse sentido, o passado, em português, pode ser subdividido, possuindo formas específicas para veicular essas subdivisões, já o mesmo não ocorre na Libras. Ela pode dar conta de re- lações temporais complexas, mas não possui formas na língua específicas para isso. Analise o seguinte caso em português e depois reflita sobre a Libras: Nos casamos muito jovens, eu era professora, ele estava desempregado, fora soldado por algum tempo, mas desistiu da carreira militar para se casar comigo. No enunciado acima, há pelo menos cinco situações diferentes que se distri- buem distintamente na linha do tempo. Como você pôde perceber, há referên- cia às situações de: casar jovem, ser professora, estar desempregado, ser soldado e desistir da carreira. Se lhe pedissem para organizar os fatos referidos no enun- ciado pela ordem de acontecimento, você chegaria a: 1. No passado, ele foi soldado. 2. No passado, ele desiste de ser soldado. 3. Ele fica desempregado. 4. No passado, entre o tempo de ele ser soldado e se tornar desempregado, ela era professora. 5. Quando ela era professora e ele desempregado, eles se casaram. A partir desse esquema, você pode compreender quantas relações complexas de organização temporal dos fatos o ser humano pode fazer. Disso, importa res- saltar o fenômeno de algumas relações serem codificadas em formas específicas de expressão. Por exemplo, para expressar que o fato de ser soldado é um fato passado anterior a outros fatos também passados (casar, desistir de ser soldado, ficar desempregado), a língua portuguesa possui a forma do tempo verbal de- nominada de pretérito mais-que-perfeito (fora soldado), que não encontra equi- valente formal na Libras. Entretanto, o bom conhecedor da língua portuguesa, ciente da organização temporal expressa por essa forma verbal, procurará, em sua tradução para a Libras, transportar o significado de que ser soldado é uma situação que precede todos os outros acontecimentos. O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 83 Com esses dois exemplos, você pode avaliar por si mesmo em que sentido o conhecimento da estrutura das línguas envolvidas é uma ferramenta auxiliadora no exercício da profissão. Como dito antes, esse conhecimento não deve ser do tipo classificatório – identificar e nomear estruturas –, e sim funcional – agir sobre os fatos da língua. Para além da estrutura, para além do já estabelecido nas gra- máticas, há ainda a variação e inovação linguística, exploradas na próxima seção. A questão da variação linguística e do neologismo em Libras Ter o conhecimento implícito e explícito de uma língua garante ao tradutor e intérprete sanar problemas das mais distintas ordens, inclusive os relacionados à variação e à inovação linguística. Estar muito bem aparelhado linguisticamente, seja via uso da língua, seja via seu estudo, possibilita ao profissional “desconfiar” das palavras que não conhece, das estruturas que lhe parecem atípicas. Descon- fiar do que não soa natural numa dada língua é um recurso instintivo que pode ser adquirido no uso e no estudo da mesma. Além de se preocupar com o que é ou não próprio da língua, o intérprete precisa estar atento ao que é da língua mas não de uma determinada variedade da língua que se está interpretando. “Como assim, variedadeda língua interpretada?”, você deve estar se perguntando. As línguas, além de serem diferentes entre si, apresentam diferenças, varia- ções em relação a elas mesmas. As variações numa mesma língua podem aconte- cer em níveis diferentes, no lexical, no fonético, no sintático, e serem derivadas de fatores como região, nível social do usuário, o público a quem o falante se dirige, a situação de comunicação – se formal ou informal – e ainda do funcionamento interno das regras da própria língua. A fruta tangerina, por exemplo, recebe dife- rentes nomes conforme a região do Brasil: “mexerica” ou “bergamota” em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, “mimosa” na capital paranaense. Em Santa Catarina, diferentemente do constatado no Paraná, há uma variação entre as formas “tu” e “você” conforme o nível de intimidade entre os envolvidos numa conversa. No nível sintático, é comum detectar a variação na marcação de plural na fala de pessoas em situação informal de comunicação ou na fala de pessoas com baixo nível de escolaridade: Eles são rebelde mesmo. Já variações como menino X minino se devem a regras fonéticas de funcionamento interno da língua. A Libras, enquanto língua viva e em plena evolução como o português, também 84 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação apresenta variações. Trata-se de uma variação regional da Libras, por exemplo, o sinal de “mãe” usado no Rio de Janeiro e o usado na região Sul. No Sul, o sinal de “mãe” é realizado pela junção dos sinais de “mulher” e “bênção”, no Rio de Janeiro o sinal é realizado com o dedo indicador tocando a lateral do nariz. Também existem na Libras variações no nível fonético, que envolve os pa- râmetros de formação de sinais. Nesse sentido, o sinal de “conhecer” apresen- ta pelo menos duas realizações possíveis. Numa, a mão em B toca o queixo de forma que a lateral exterior do dedo indicador entre em contato com o queixo, noutra o indicador, com a mão também em B, mas os dedos entreabertos, toca o queixo de forma que o contato é estabelecido pela ponta do dedo. IE SD E Br as il S. A . Essa variação não é específica de uma região, nem apresenta relação com o nível de escolaridade do sinalizante. Aparentemente, trata-se de uma variação individual, de uma maneira particular de sinalização de algumas pessoas, que altera um detalhe na formação do sinal, não implicando, contudo, mudança de significado. Sim, a variação também pode ocorrer de pessoa para pessoa como marca de individualidade, mas essa variação não deve representar obstáculo à comunicação entre sinalizadores de uma mesma comunidade de fala. Comunidade de fala é um conceito cunhado pela sociolinguística. Ele dá conta de que os falantes de um grupo compartilham traços linguísticos que os diferenciam de falantes de outros grupos; comunicam-se mais entre si do que com os outros; e compartilham normas e atitudes diante do uso da linguagem. O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 85 Na verdade, a variação linguística, independentemente do fator, geralmente não apresenta obstáculo à comunicação dos usuários de uma mesma língua, a maior parte das variações passa despercebida no dia a dia. Mas as variações no léxico – nas palavras, nos sinais – podem gerar ambiguidades, ou incompreen- são. Em relação à Libras, Avelar (2009) discute que em certos ambientes, como o de ensino-aprendizagem a distância, a variação de sinais presente na sinalização de professores e tradutores oriundos de diferentes partes do Brasil dificulta o entendimento dos alunos quanto aos conteúdos tratados. Esse é um caso de situação de comunicação formal, em que o desejado seria o emprego de uma variante padrão da Libras, ou ao menos que os sinais variantes fossem padroni- zados, em comum acordo, entre professores, tradutores e alunos. O problema da padronização também é discutido por Avelar (2009), que aponta ainda uma certa resistência por parte dos sinalizantes de sua pesquisa, pois cada um, em maior ou menor grau, defendia a sua identidade regional. O problema de uma varie- dade padrão da Libras é bastante complexo. Claro que há relatos, você mesmo, estudante, pode já ter vivenciado isso, sobre uma espécie de intolerância dos surdos quanto à variação regional de sinais, posto que ao se depararem com sinais variantes, embora entendam perfeitamente do que se trata, empreendem logo a “correção” do sinal. Porém, não se pode atribuir a essa resistência a “falta” de uma variedade padrão, já que o estabelecimento de uma variedade padrão em qualquer língua está diretamente relacionado à escrita. As formas de uma língua são cristalizadas e disseminadas por meio da escrita e estando a Libras ainda em processo de aperfeiçoamento e divulgação de sua escrita é difícil falar na existência, de fato, de uma variedade padrão dessa língua. Isso não significa, por outro lado, que a Libras seja apenas um conjunto de variedades linguísticas espalhadas pelo Brasil, significa apenas que, comparada às línguas com sistemas de escrita, ela ainda não possui um instrumento facilita- dor do processo de padronização, capaz de alcançar os usuários dessa língua em qualquer região do país, com uso mínimo de tecnologia – sem precisar de DVDs, por exemplo. Em sua atuação profissional, o intérprete deve levar em conta a questão da variação linguística. Deve fazer suas escolhas lexicais e de estrutura levando em conta o público para o qual se dirige, tomando como critério se as escolhas podem ou não dificultar a compreensão do público ou se a variação foi intencional na fala de quem está traduzindo, precisando, assim, ser respeitada. Sob tais circunstâncias, no contexto de sala de aula, se o professor está tratando justamente do tema da variação linguística, é evidente que as variações apre- sentadas pelo professor devem ser repassadas ao estudante surdo, pois há um objetivo específico, intencional, no uso das variantes. De forma diferente, numa 86 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação palestra que reúne surdos do Sul do Brasil para assistir a uma palestra sobre o tema “família”, na ocorrência da palavra “mãe”, por uma questão de bom senso, a sinalização mais adequada é aquela mais conhecida e usada pelo público, nesse caso, o sinal MULHER^BÊNÇÃO. Além da variação linguística, outra situação que exige a competência linguís- tica, técnica e o bom senso do intérprete é a criação de sinais, os neologismos. Sem dúvida, sinais podem e devem ser criados quando as necessidades de co- municação assim requererem, mas não de forma aleatória, sem discussão num grupo maior, envolvendo usuários fluentes da língua. O fenômeno do neologis- mo na Libras tem sido verificado, de modo mais evidente, no âmbito dos cursos de licenciatura e bacharelado em Libras. Por precisarem trabalhar com muitos conceitos e termos técnicos até então não vistos na Libras – por uma simples questão de não terem sido necessários –, professores, tradutores, intérpretes e alunos se veem cunhando novos sinais para se apropriarem dos conhecimentos produzidos pelas áreas da linguística, tradução, literatura etc. Ademais, os sinais criados precisam estar de acordo com os parâmetros de formação de sinais, res- peitando, assim, a estrutura interna da língua. O intérprete, sozinho, não tem como cunhar novos sinais, mas faz parte de sua responsabilidade estar atento, na medida do possível, às inovações conceituais e terminológicas que estão se estabelecendo em sua língua de trabalho. Por fim, a Libras, assim como as lín- guas orais, pode sofrer aumento de vocabulário, e consequente enriquecimento conceitual, também por meio de empréstimos de outras línguas de sinais ou da própria língua portuguesa escrita. Um exemplo de empréstimo da língua portu- guesa escrita é o N-U-N-C-A, cuja soletração recebeu um movimento próprio da Libras, passando a pertencer a essa língua. As implicações da modalidade de língua na tradução e interpretaçãoNão bastassem as dificuldades advindas do próprio ato de tradução quando as línguas são de uma mesma modalidade, isto é, quando língua-fonte e alvo são orais ou visuais, há ainda os desafios instaurados na tradução de línguas de modalidades distintas. No caso da Libras e da língua portuguesa, a primeira é de modalidade visual-espacial, e a segunda, oral-auditiva. Isso significa que a Libras apreende as coisas do mundo com base nas experiências visuais das comunida- des surdas, por meio das trocas culturais e linguísticas dessas comunidades. Já a língua portuguesa constitui-se baseada nos sons. Por ser uma língua visual-espa- O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 87 cial, a Libras apresenta uma sintaxe espacial. Isso significa, por exemplo, que pro- cessos anafóricos são estabelecidos por meio de pontos estabelecidos no espaço, a cada vez que o sinalizante volta a esse espaço preestabelecido está fazendo uso da anáfora. Em português, um dos recursos anafóricos são os pronomes. Então, numa frase como “você não respeita minhas ideias e eu não gosto disso”, o pro- nome “disso” estabelece uma relação anafórica com “você não respeita minhas ideias”. Também no campo dos processos sintáticos, a Libras emprega a estrutura tópico-comentário de uma forma mais recorrente do que na língua portuguesa. Um exemplo de estrutura tópico-comentário na Libras é o seguinte: <COMIDA>top EU GOSTAR MACARRÃO IE SD E Br as il S. A . IE SD E Br as il S. A . No caso acima, o tópico, assunto, retomado no discurso sobre o qual se falará, recebe como marca a elevação das sobrancelhas, por isso a representação <COMIDA>top. Ainda em relação à estrutura sintática, a estrutura de foco é em- pregada na Libras por meio de repetições sistemáticas, processo incomum na língua portuguesa. No campo intermediário, entre morfologia e sintaxe, a Libras não apresenta marcação de gênero. Ao falar em marcação, há que se distinguir marca formal de gênero, entendida como morfema, e referência ao gênero en- quanto significado. Mesmo não possuindo morfologia para gênero, a Libras é capaz de diferenciar a noção de masculino e feminino por outros recursos. Assim, a frase do português “João encontrou minha bolsa ontem” apresenta marca de gênero – morfologia própria para referir-se ao gênero – no pronome possessivo 88 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação “meu”, concordando com o substantivo “bolsa”. Numa tradução dessa frase para a Libras, o pronome possessivo ficaria sem a marca de feminino, antes presente no português, na verdade, ficaria sem marca nenhuma de gênero. Afinal, não se pode concluir que na ausência de marca de feminino restaria a de masculino. Em português, os falantes usam muitas expressões faciais, mas elas, diferen- temente da Libras, não desempenham um papel gramatical. Na Libras, por sua natureza visual-espacial, as expressões faciais, além de expressarem emoções, cumprem papéis como marcar se uma frase é interrogativa, exclamativa, im- perativa, afirmativa, o que em português é codificado através da entonação da frase. Também é possível marcar estruturas sintáticas como o condicional e a oração relativa. Ainda a marca de grau dos substantivos e adjetivos é composta por meio da expressão facial, como retratam os exemplos abaixo: IE SD E Br as il S. A . IE SD E Br as il S. A . IE SD E Br as il S. A . IE SD E Br as il S. A . IE SD E Br as il S. A . IE SD E Br as il S. A . Carrinho Coitadinho Carro Coitado Carrão Muito coitado O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 89 A diferença de modalidade da Libras requer, inclusive, uma escrita que não tenha base sonora. Todavia, escritas que não se pautam pelo som não são privi- légio das línguas de sinais. O japonês, a propósito, é uma língua de escrita que não se baseia no som, seu sistema de representação da língua é o ideográfico. Numa forma simplificada, isso significa que eles possuem símbolos que reme- tem às ideias e significados por eles pretendidos. O sistema de escrita da Libras se assemelha um pouco ao sistema japonês, posto que ambos lidam com uma representação da língua que não é guiada pelo som. No entanto, a Libras, devido às suas características visuais e espaciais, precisa codificar em sua escrita coisas como: configuração de mão, orientação, ponto de articulação, movimento e ex- pressão facial. Nesse caso, se bem pensado, pode-se dizer que a escrita de sinais segue um princípio fonológico à medida que representa os sinais com base nos cinco parâmetros de composição de sinais. Esclarecendo que fonológico é en- tendido como o nível onde as línguas possuem elementos distintivos, sejam eles sonoros ou visuais, que, sozinhos, não veiculam significado. Nesse sentido, o parâmetro movimento sozinho não atribui significado, da mesma forma que o fonema /b/ isolado também não, são apenas elementos distintivos que combi- nados com outros elementos distintivos da língua vão formar uma palavra ou sinal. A junção dos parâmetros configuração de mão em S, ponto de articulação no peito, orientação da palma na direção do peito, movimento circular e expres- são facial resultam no sinal SAUDADE. Justamente por procurar essa representa- ção baseada num princípio fonológico, a Libras se afasta da escrita do japonês, em que o sistema de representação não tem base fonológica. Até aqui, foram abordados alguns dos reflexos da modalidade de língua na estruturação da Libras, cabe agora discutir as implicações da diferente modali- dade nas condições de trabalho de tradutores e intérpretes dessa língua. A pri- meira questão, já que se trata de uma língua visual-espacial, diz respeito à expo- sição física dos intérpretes e tradutores ao verterem da língua portuguesa para a língua de sinais. Como os canais de recepção e produção são diferentes por conta de os surdos não terem a audição à disposição, eles não têm como checar a interpretação feita pelo intérprete. No caso de interpretação entre duas lín- guas de sinais, desde que se entenda razoavelmente a língua traduzida, o surdo pode checar o quanto de informação está recebendo e o nível de adequação da mesma. Isso também ocorre na interpretação de línguas orais, nas quais o público, com entendimento razoável da língua, pode conferir as informações re- cebidas pela interpretação. Contrastando com as interpretações de línguas orais, os intérpretes de lín- guas de sinais estabelecem um vínculo com os surdos através do olhar, depen- 90 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação dendo da disposição física dos participantes. Esse vínculo permite também o acesso a comentários e indagações durante a interpretação sem interferência direta no discurso do falante, uma vez que ao traduzir do português para a Libras o intérprete não interfere (não atrapalha) a fala do palestrante. Ademais, esse contato intenso leva a uma relação de confiança, que ultrapassa o nível profissio- nal. Até porque, para se manterem usando a Libras, praticando e aprendendo, os intérpretes precisam conviver com os surdos, pois não há outra forma de acesso a essa língua. Sob tal circunstância, Quadros (2007, p. 85) revela: Muitos surdos que apresentam trabalhos têm o seu intérprete particular e não aceitam outros profissionais por não confiarem em seu trabalho. Um profissional sem credibilidade certamente não será bem-sucedido. Diante dessas informações, considera-se fundamental que o intérprete reveja o seu processo de aquisição da língua de sinais e reflita sobre qual o seu desempenho na tradução e interpretação de uma para outra língua. Por isso é imprescindível considerar as diferenças suscitadas pela modalidade da língua no processo de domínio e interpretação da mesma sob pena de ser taxado como um profissional não confiável, despreparado, portanto, sem “uso” no mercado de tradução e interpretação da Libras. Não se deve desconsiderar,ainda, o fato de que línguas diferentes, a despeito da modalidade, fazem leitu- ras distintas da realidade, as quais se refletem no ato tradutório e interpretativo como você constatará a seguir. Tradução acarreta o recorte de uma realidade Para compreender por que a tradução é o recorte de uma realidade, é pre- ciso ter em mente o fato de o uso da língua ser um instrumento de recorte da realidade. Em outras palavras, isso significa que a realidade, ela mesma, é uma, mas a leitura feita dela pelas mais variadas culturas e línguas pode escolher real- çar certos aspectos, e não outros. Para ilustrar, pense numa realidade que pode ser considerada, ela mesma, como aplicável a qualquer ser humano: ter irmãos. Parece muito aceitável que ter irmãos é algo passível de acontecer a qualquer pessoa. Aqui no Brasil, as pessoas podem ter irmãos e irmãs, isto é, o falante do português chama o filho homem de seu pai de irmão e a filha mulher de seu pai de irmã. Esse recorte é feito pela língua portuguesa e muitas outras línguas (o inglês, o espanhol, o francês), mas não por todas as línguas. Há línguas, confor- me Malmberg (1976, p. 67): [...] que não conhecem os conceitos, tão naturais para nós, de irmão e irmã, mas os classificam, dando-lhes distintos nomes, entre “irmãos maiores” e “irmãos menores” (ou irmãs). [...] Há povos para os quais essa denominação de irmão, por si só, comporta uma imprecisão a que lhes é muito difícil habituarem-se quando têm que expressar-se em outra língua que não tem essa distinção. O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 91 Observe que a diferença não está nas coisas do mundo, mas na maneira como elas são apreendidas e categorizadas. Essas distinções, codificadas nas línguas, se revelam um verdadeiro desafio ao tradutor e intérprete no desempenho de sua função. Isso não leva, todavia, à conclusão de que é impossível dar conta das variações de recortes no translado de uma língua para outra. Chama a atenção, isso sim, para a necessidade de o profissional estar atento a que aspectos real- çados por uma dada língua-fonte transportar para a língua-alvo. A depender do contexto, do objetivo, não há prejuízo do sentido da mensagem como um todo em se traduzir algo que denomine “irmão maior” apenas por “irmão”, mas é tarefa do tradutor, por intermédio de seu bom senso e, principalmente, pelo domínio das línguas envolvidas, julgar quando isso é possível. Ao encontro desse posicio- namento, tem-se que: [...] todo texto é alguma coisa mais do que a simples soma das palavras que o compõem. O que devemos traduzir é sempre algo mais, isto é, a mensagem. E não há duas línguas que exprimam uma mensagem de certa complexidade de modo completamente igual. A língua A ora explicita algo que na língua B fica subentendido; ora deixa de exprimir, por óbvio, algo que naquela exige uma ou várias palavras. (RÓNAI, 1976, p. 48-49) O autor cita como exemplo disso o emprego de palavras não nocionais, sem sentido, que servem “apenas” como instrumentos gramaticais e que, em teoria, não oferecem problemas ao tradutor. Para ilustrar, Rónai toma o caso do artigo definido, “essa palavrinha tão inexpressiva [...]”. O problema estaria posto, segun- do ele, quando se traduz de uma língua-fonte sem essa categoria de palavra para uma língua-alvo possuidora do artigo definido. Assim é o caso de uma tra- dução do latim para o português. “Cada vez que num texto latino ocorre um substantivo o tradutor opta, ainda que inconscientemente, entre três soluções: fazendo-o preceder de artigo definido, ou indefinido, ou deixando-o sem artigo nenhum” (1976, p. 49). Além disso, o autor cita o caso de um filme francês cujo título teve que ser mudado pelo autor, obrigado pela censura. O título original “La femme mariée”, modificado para “Une femme mariée”, podia passar a ideia, segundo o censu- rador, de que todas as mulheres casadas praticavam o adultério pela presença do artigo definido “La”. Agora imagine, se isso pode ocorrer com o artigo, con- siderado por muitos como “sem sentido”, que outros problemas um tradutor ou intérprete não encontra no momento de pôr dois mundos em contato. Afinal, esse contato não é direto, é feito por meio do trânsito entre duas línguas. Como as línguas recortam o mundo ao seu redor de modos diferentes, também a tra- dução e interpretação é um recorte de mundo. Recorte à medida que precisa “descobrir” qual a mensagem central a ser passada, qual o significado preten- dido, e também deve eleger as formas (palavras, estruturas gramaticais, o tom) 92 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação Contrastes entre a Língua Brasileira de Sinais e a língua portuguesa (QUADROS, 2007, p. 68-71) [...] Estes dois trechos de tradução e interpretação simultânea do português para a Língua Brasileira de Sinais evidenciam a grande perda de informação durante o processo, bem como a distorção da informação em vários momen- tos. Não há observância da estrutura da língua de sinais em várias passagens, as escolhas lexicais são inadequadas e o conteúdo semântico é mudado, por exemplo: (1) ... TEMPERATURA DIMINUIR BAIXO FRIO MUITO C-I-L-I-C-A MUITO CO- LOCAR G-S MISTURAR (versão do intérprete) ... baixa temperatura, altas quantidades de celíaca, altas quantidades de gases nestas celíacas (versão em português) Na língua brasileira de sinais, a estrutura equivalente seria: (1a) ... T-E-M-P-E-R-A-T-U-R-A BAIXA, C-E-L-I-A-C-A ALTO, G-S ALTO IX<CELIACA> O intérprete escolheu o sinal DIMINUIR ao invés do sinal BAIXA, acres- centou a informação FRIO que não consta na versão original, não utilizou o anafórico para indicar que na celíaca havia altas quantidades de gases, modi- nas quais incrustar tal mensagem, sem perder de vista, contudo, o impacto que as escolhas da forma podem gerar sobre o conteúdo, como bem ilustra o caso citado por Rónai. A seguir, no texto complementar você pode refletir sobre o as- sunto desta aula em relação ao domínio da Libras e do português. Boa leitura! Texto complementar O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 93 ficando o significado da sentença dizendo que os gases se misturaram com a celíaca. Além disso, utilizou o sinal MUITO para indicar ALTO. Em quase todas as passagens encontram-se distorções graves desse tipo. Isso evidencia a falta de domínio das línguas utilizadas pelos intérpretes e a falta de habilidade em realizar a tradução e interpretação simultânea. Também foram observados acréscimos de informações. O intérprete faz uma interpretação do que está sendo dito e oferece explicações pessoais a respeito do conteúdo que está sendo ministrado pelo professor. Veja a se- guinte passagem: A medida que vai diminuin- do, começa a aumentar a quan- tidade dos outros. Olha aqui ó... Principalmente porque há ferros magnesianos. JUNTO SURGIR M-A-G-M-A-S TAMBÉM PEDRA G- R-A-N-I-T-I-N-0 <HN> POR CAUSA M-A-G-M-A-S TER MAIS MAIS SURGIR Q-U-A-R-T-Z-O C- I-L-I-C-A DIMINUIR DIMINUIR COME- ÇAR OUTRO AUMENTAR AUMENTAR C-I-L-I-C-A DIMINUIR 0 que são ferros magnesianos? Temos os minerais. Eu vou falar dos minerais magnos e feltono (?) Ferro M-A-G-N-E-S-I-A-N-0 au- mentar junto mais mais mais N-I-Q- U-E-L diminuir Vejam que nessa passagem, o intérprete tirou conclusões sobre o conteú- do ministrado pelo professor e ofereceu suas conclusões na língua-alvo. Outra constatação da pesquisa se refere à qualidade da interpretação. Na medida em que o tempo passa, se perde qualidade na interpretação. Os erros nas escolhas lexicais, os erros nas decisões quanto ao significado são progressivamente muito maiores após a primeira hora de interpretação simultânea. Um problema comum observado entre os intérpretes em sala de aula, principalmente após algum tempo de interpretação simultânea, embora tenha sido encontrado em alguns casos também no início da atuação, foi a simplificação das informações. A amostra de Amy evidencia esse aspecto: 94 O domíniodas línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação A medida que vai diminuin- do, começa a aumentar a quan- tidade dos outros. Olha aqui ó... Principalmente porque há ferros magnesianos. JUNTO SURGIR M-A-G-M-A-S TAMBÉM PEDRA G- R-A-N-I-T-I-N-0 <HN> POR CAUSA M-A-G-M-A-S TER MAIS MAIS SURGIR Q-U-A-R-T-Z-O C- I-L-I-C-A DIMINUIR DIMINUIR COME- ÇAR OUTRO AUMENTAR AUMENTAR C-I-L-I-C-A DIMINUIR 0 que são ferros magnesianos? Temos os minerais. Eu vou falar dos minerais magnos e feltono (?) Ferro M-A-G-N-E-S-I-A-N-0 au- mentar junto mais mais mais N-I-Q- U-E-L diminuir E o que eu tenho? TEM SINAL (SIGNIFICADO) MEU <HN> Aquilo que tem um significado para mim. O que não tem signifi- cado, eu não vou selecionar. ASPAS TEM SINAL MEU <HN> CO- LOCAR PEGAR COLOCAR PEGAR Como se forma isso? Então, como é? Eu já tenho um conhecimento prévio e adquiro um conhecimen- to novo. AGORA CONHECER NOVO PRECI- SA APRENDER MELHOR Essas amostras ilustram os seguintes problemas identificados no proces- so de tradução e interpretação da língua portuguesa para a língua de sinais: 1. omissão de informações dadas na língua-fonte; 2. acréscimos de informações inexistentes na língua-fonte; 3. distorções semânticas e pragmáticas em menor ou maior grau do con- teúdo veiculado na língua-fonte; 4. escolhas lexicais inapropriadas. Os comprometimentos gerados a partir destes problemas são tão gran- des que as questões estruturais ficaram em segundo plano. As estruturas lin- O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 95 guísticas utilizadas apresentam inadequações, mas o comprometimento no nível semântico é tão maior e as escolhas lexicais são tão equivocadas que inviabilizaram a análise no nível puramente estrutural. A existência de problemas dessa ordem evidencia que a necessidade de profissionalização do Intérprete de Língua de Sinais através de formação e qualificação permanente é urgente. Os intérpretes precisam de instrumen- talização formal para atuar nessa profissão. Dicas de estudo Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, editora Lexikon, 2008. Obra de referência sobre a norma culta do português do Brasil. Pode e deve ser usada como recurso de consulta e estudo para o melhor domínio das estru- turas da língua portuguesa. Língua de Sinais Brasileira: estudos linguísticos, de Ronice Müller de Quadros e Lodenir Becker Karnopp, editora Artmed, 2004. Embora se recomende a leitura de toda a obra, os capítulos de 2 a 4 se cons- tituem em valiosa ferramenta de estudo e consulta para o desenvolvimento do domínio das estruturas linguísticas da Libras, principalmente porque os exem- plos são dados em língua de sinais, e não apenas em glosas da Libras. Atividades 1. Discuta a necessidade de domínio das línguas envolvidas no ato interpreta- tivo e tradutório levando em consideração (1) distorções semânticas e prag- máticas em menor ou maior grau do conteúdo veiculado na língua-fonte e (2) escolhas lexicais inapropriadas identificadas por Quadros (2007) nas amostras de interpretação da língua portuguesa para a língua de sinais que serviram de base para o seu trabalho. 96 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 2. Discuta a diferença de marcação anafórica na Libras e no português e a que se deve tal diferença. 3. Com base no discutido na aula sobre variação linguística regional na Libras, qual seria o posicionamento adequado do tradutor e intérprete quanto ao uso de uma “variedade padrão”? O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 97 Referências AVELAR, Thaís Fleury. Entrevista com tradutores surdos do curso de Letras Libras da UFSC: discussões teóricas e práticas sobre a padronização linguística na tra- dução de Língua de Sinais. In: QUADROS, Ronice Müller de; STUMPF, Marianne Rossi (Orgs.). Estudos Surdos IV. Petrópolis: Arara Azul, 2009. MALMBERG, Bertil. A Língua e o Homem. Tradução de: LOPES, M. Rio de Janeiro: Nórdica Ltda., 1976. QUADROS, Ronice Müller de. O Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos. MEC, 2007. QUADROS, Ronice Müller de; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua de Sinais Brasi- leira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004. QUADROS, Ronice Müller de; SOUZA, Saulo Xavier de. Aspectos da tradução/en- cenação na Língua de Sinais Brasileira para um ambiente virtual de ensino: prá- ticas tradutórias do curso de Letras Libras. In: QUADROS, Ronice Müller de (Org.). Estudos Surdos III. Petrópolis: Arara Azul, 2008. RÓNAI, Paulo. A Tradução Vivida. Rio de Janeiro: EDUCOM, 1976. _____. Escola de Tradutores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. Gabarito 1. O esperado é que o aluno reconheça que essas falhas seriam mais facilmente evitadas se os profissionais tivessem pleno domínio das línguas envolvidas na interpretação. Pleno domínio que consiste em usar as línguas e conhecer como funcionam, sua estrutura, de forma a usar esses conhecimentos como instrumentos de trabalho, solucionando problemas. 2. O aluno, preferencialmente, deve mostrar os recursos empregados para o emprego da anáfora em cada língua e usar exemplos, reconhecendo que a diferença de recursos se deve à modalidade divergente de língua. No portu- guês, as relações anafóricas podem ser estabelecidas por meio de pronomes. Como no seguinte caso “Eu falei com Maria, ela me disse que estava tudo 98 O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação bem”, em que “ela” retoma “Maria”. Na língua de sinais, essa relação é estabe- lecida através do uso do espaço. A partir do momento que se estabelece uma posição no espaço para um referente, toda vez que for necessário retomá-lo o sinalizante volta àquele espaço preestabelecido. Assim, na Libras, o “eu” é referenciado no corpo do próprio sinalizante, e o “Maria” pode ser referencia- do à esquerda de seu corpo, no espaço neutro, assim, quando precisar falar de Maria novamente, o sinalizante apontará para a sua esquerda. 3. A resposta mínima deve contemplar o fato de a Libras ainda não ter o que se possa chamar, a rigor, de uma variedade padrão, mas que o desejável é que o intérprete leve em consideração que deve usar os sinais comuns à co- munidade de fala para a qual se dirige, empregando regionalismos só se o objetivo do palestrante estiver especificamente relacionado a eles, podendo ser alcançado apenas por meio do emprego dos mesmos. O domínio das línguas envolvidas no ato de tradução e interpretação 99 101 Não poucas vezes, estudante, você encontrou menções à tarefa do tra- dutor e intérprete como a de traduzir discursos, enunciados, aquilo que outro (palestrante, professor, médico, advogado etc.) profere. Até então, não se havia, contudo, discutido do que se trata o objeto de tradução e interpretação, não foi explicitado até aqui o que se entende por discursos, enunciados, sobre aquilo que tradutor e intérprete devem transpor para a língua-alvo. Esta aula traz como objetivo a compreensão da natureza em que se apresenta o objeto de trabalho do tradutor e do intérprete: os gêneros discursivos. Assim, ao longo deste texto, a intenção é levar você à reflexão sobre a adequação necessária da interpretação ao gênero discur- sivo, assim como estabelecer diretrizes para a realização dessa tarefa. De modo a alcançar o objetivo proposto, a problemática do gênero discursivo será apresentada sob a óptica bakhtiniana, base sobre a qual se desenvolverão as orientações para o trabalho prático de interpretação e tradução dos gêneros. O que é gênero discursivo O conceito de gêneros do discurso encontra-se inextricavelmente re- lacionado ao de enunciado, visto que Bakhtin concebe os gêneros do dis- curso como tipos relativamente estáveis de enunciado, elaborados con- soante as necessidades comunicativas advindas de diferentes interações sociais nos mais variados campos da atividade humana (esferassociais). O autor, ao se referir a tipos relativamente estáveis, tem em vista que os enunciados, por serem construídos historicamente, apresentam certa normatividade quanto a suas características, podendo, todavia, sofrer al- gumas modificações devido ao desenvolvimento ou surgimento de novas esferas sociais, a fim de cumprirem novas necessidades oriundas desse desenvolvimento. Daí a riqueza e a diversidade infinita dos gêneros dis- cursivos, pois, uma vez que são ligados às situações sociais de interação, qualquer mudança nessa interação gerará mudanças no gênero. Os diferentes gêneros discursivos a interpretar Vídeo 102 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar Segundo Bakhtin (2003, p. 262), nossas trocas comunicativas (interação verbal) se dão apenas por intermédio dos gêneros discursivos, posto que “[...] cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. Em outras palavras, isso significa que o discurso se apre- senta na forma de enunciados, que são sempre construídos conforme determi- nados gêneros. Cada gênero discursivo, por sua vez, vincula-se a uma determi- nada situação social de interação, dentro de uma esfera social; tem sua finalidade discursiva, sua própria concepção de autor e destinatário. Nesse sentido, [...] [a] vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal de seus participantes etc. (BAKHTIN, 2003, p. 282, grifo do autor) Nesse caso, ao se falar ou escrever algo, o autor do discurso, ao dar forma ou expressão a um tema, precisa partir de uma escolha primária: o gênero discur- sivo em que vai incrustar o seu tema. Essa escolha é balizada por vários fatores, como o próprio conteúdo a respeito do qual se pretende discorrer, chamado na teoria bakhtiniana de objeto do discurso. Certos temas são mais bem explorados dentro de determinados gêneros, que também são eleitos conforme o públi- co com o qual a interação verbal é estabelecida, bem como os objetivos perse- guidos na interação – expor, convencer, emocionar, justificar-se, interpelar etc. – e também são determinados pela esfera social em que a troca comunicativa ocorre. Um discurso de convencimento produzido na e para a esfera política não se apresentará no mesmo gênero discursivo de um discurso de convencimento produzido no campo da religião. Isso é o que se pretende dizer ao afirmar que a esfera social determina, também, o gênero discursivo. Do mesmo modo, na esfera política, um discurso de convencimento dirigido a líderes do governo não tomará a mesma forma de um dirigido a sindicalistas opositores ao governo. Com o exposto até aqui, pode-se dizer que os gêneros discursivos pertencem à esfera social na qual são produzidos, havendo, inclusive, a possibilidade de um dado gênero não se materializar em outras esferas, bem como não ser útil ao tratamento de determinado objeto do discurso. Na esfera do campo científico – é bom observar que dentro de cada esfera há subdivisões –, por exemplo, há diferentes gêneros que servem para o cumprimento de objetivos específicos, para o tratamento de determinados temas, que se dirigem a diferentes públicos. Nesse sentido, a diferença entre uma tese e uma resenha, não se considera aqui a resenha literária, pode, grosso modo, ser traçada de acordo com as caracterís- ticas do quadro a seguir: Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 103 Determinantes do gênero discursivo Tese Resenha Esfera social Acadêmico-Científica. Acadêmico-Científica. Objeto do discurso Conteúdo inovador, inexplora- do no campo do saber no qual a tese se insere. Conteúdo já explorado por outrem. Objetivo Comprovar uma hipótese científica e, claro, obter o título de doutor. Resumir, apresentar a ideia de um dado autor sobre um de- terminado assunto desenvol- vido em um livro, um artigo, uma tese, dissertação etc. Público O apreciador imediato de uma tese é a banca que a julga, além de considerar um leitor ideal, posterior, o autor da tese pre- cisa considerar como os seus leitores imediatos percebem o tema tratado, em que pon- tos pode haver conflito, como dissolvê-los. É um texto produ- zido, na maioria das vezes, na e para a academia. Avalia-se o autor em relação a quão bem conseguiu explorar o tema es- colhido, quão bem-sucedido foi na comprovação de sua hipótese. O leitor imediato de uma tese não tem como obje- tivo principal adquirir conheci- mento, mas antes julgar quão bem o autor da tese construiu conhecimento. Pode ser elaborada apenas como um trabalho de curso de graduação, em que o público é o professor avaliador, ou pode ser elaborada para divulgação de obra científica, lidando, nesse caso, com um público já iniciado no tema tratado, que tenha interesse no mesmo e cujo objetivo é avaliar não a resenha enquanto gênero ou o autor da resenha, mas deci- dir se o livro resenhado é inte- ressante para ele a ponto de querer lê-lo. O autor da rese- nha não constrói conhecimen- to, ele o torna conhecido, seu leitor tem como objetivo saber se esse conhecimento lhe inte- ressa ou não. Não se assuste, estudante, com afirmações como a de que um dos objetivos da tese é a obtenção do grau de doutor. Em termos práticos, isso é assim. Na esfera da produção do saber científico, para avançar em graus de “quão entendi- do” – especializado – alguém é em um assunto, é necessário passar pelas institui- ções de Ensino Superior e atender aos requisitos estipulados por elas. Não fosse a exigência de uma tese para a obtenção do título de doutor, possivelmente esse gênero discursivo não existiria. Isso está de acordo com o que diz Bakhtin ao afirmar que gêneros discursivos nascem e se modificam conforme as novas necessidades das esferas sociais. E se não houvesse o gênero tese, também não significa a impossibilidade de se tratar de assuntos inovadores na área da ciên- cia; há para isso o ensaio científico, que compartilha com a tese a característica de comprovação de uma hipótese, mas que se diferencia em aspectos como, por exemplo, público-alvo. 104 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar Voltando ao início dessa discussão, se Bakhtin concebe os gêneros do dis- curso como tipos relativamente estáveis de enunciado, isso implica que cada gênero apresenta formas de enunciação que lhes são típicas, dito de outro modo, apresenta formas linguísticas que devem corresponder de maneira ade- quada a seu projeto discursivo. O gênero, então, determina, em certa medida, o que se esperar em termos de construções sintáticas e de campo semântico das palavras empregadas. Sabendo que o gênero discursivo é o corpo e a vestimenta de uma ideia, uma identidade para o objeto do discurso, a pergunta que você deve estar fazendo é: o que isso tem a ver com o desempenho do meu trabalho na condição de tradutor e intérprete? Por que levar em conta o gênero discursivo na interpretação Por mais de uma vez, estudante, na leitura dos textos desta disciplina, você se deparou com a afirmação de que a tarefa do intérprete e tradutor é traduzir discursos, seja na forma oral ou na forma escrita. Isso significa que o objeto do discurso do intérprete é o discurso produzido por uma outra pessoa, um discur- so elaborado num gênero específico, com suas características e fins próprios. É preciso estar clara, então, a necessidade de respeito ao projeto discursivo construído pelo autor que está sendo traduzido. Sobre isso, convém apreciar o seguinte: [...] o tradutor é aquele que vai transformar e produzir significados, gerar formas recriadas na língua para a qual traduz. A tarefa neste caso é um refazer o texto numa outra voz; voz que faz ecoaremas significações culturais que trabalharam essa língua. Vale a pena saber algo sobre as convenções do tipo ou do gênero textual para saber traduzir o texto da maneira mais adequada. (ROSA, 2008, p. 103) Embora haja uma divergência de nomenclatura, gênero discursivo e gênero textual, em termos práticos, Rosa está se referindo à necessidade de levar em conta a identidade do discurso e mantê-la, na medida do possível, durante a interpretação. Vem em socorro dessa questão da identidade do gênero, o escla- recimento de Rodrigues: [...] para Bakhtin os gêneros também são formas de ação: na interação, eles funcionam como índices de referência para a construção dos enunciados, pois balizam o autor no processo discursivo, e como horizonte de expectativas para o interlocutor, no processo de compreensão e interpretação do enunciado (a construção da reação-resposta ativa). (RODRIGUES, 2004, p. 423) Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 105 É possível depreender que o gênero não só serve de referência para a constru- ção dos enunciados, determinando sua apresentação linguística, mas também faz com que o interlocutor crie expectativas que o auxiliam no entendimento do enunciado. Sob tal perspectiva, o intérprete precisa ter em mente que o interlo- cutor do gênero discursivo interpretado imaginado pelo autor não é ele, e sim o público para quem o intérprete traduz, daí o dever do intérprete de manter o discurso do autor no gênero escolhido por ele. É o conhecimento desse gênero que permitirá, primeiro ao intérprete, depois ao público-alvo, fomentar estra- tégias de compreensão sobre a mensagem recebida. Assim, por exemplo, uma ironia é entendida de forma diferente no bojo do gênero discursivo piada da- quela como é compreendida no gênero da carta de diplomacia, principalmente entre países cujas relações não são amistosas. Tudo isso leva à conclusão de que, para poder atuar bem na interpretação, o profissional precisa dominar, assim como o autor da mensagem traduzida, os gêneros do discurso de várias esferas, haja vista que “muitas pessoas que domi- nam magnificamente uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de gêneros de dadas esferas” (BAKHTIN, 2003, p. 284). Imagine-se, es- tudante, tendo de interpretar uma situação de defesa de tese, você não atuaria como na interpretação de uma discussão de ponto de vista ocorrida nos cor- redores da universidade. De modo similar, no campo religioso, interpretar uma parábola de Cristo não é o mesmo que interpretar uma carta/epístola a um dos discípulos de Jesus. Tendo consciência disso, são expostos nas seções a seguir alguns dos gêne- ros mais usuais nas esferas sociais em que a atuação do intérprete é requisitada. A ideia é fazer com que você se familiarize com esses gêneros de forma a poder usar esse conhecimento quando preciso for. Tendo em mente que seu processo de formação é contínuo e construído, validado, na prática, é recomendável que durante a leitura das definições e exemplos você reflita, estudante, sobre como respeitar, manter a identidade discursiva do gênero interpretado, como chegar ao ponto de fazer com que poesias, resumos, convites, pronunciamentos, contos infantis etc. sejam reconhecidos na língua-alvo como tais. Discursos da esfera científica Entende-se esfera como o campo da atividade humana em que a troca entre os indivíduos ocorre, onde se estabelecem as interações verbais, então a esfera científica abrange gêneros desenvolvidos no campo de atuação científico. Essa 106 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar denominação funciona, nesse caso, como um guarda-chuva, abrigando gêneros discursivos desenvolvidos nas mais diversas áreas de atuação científica. Tendo em vista que o intérprete de Libras é muito requisitado atualmente nas universidades, tanto em nível de graduação como pós-graduação, nesse mo- mento interessa tratar dos gêneros que circulam na universidade e que servem à investigação científica. Por uma questão de demanda, a discussão se focará nos gêneros discursivos orais, já que o intérprete precisa trabalhar muito mais com discursos orais do que com os escritos. O primeiro deles é o seminário. O seminário, geralmente, envolve mais de um aluno e consiste num trabalho de exposição sobre um livro, um filme, um artigo científico, em que se procu- ra destacar a ideia principal da obra, seus argumentos, seus pontos fracos. Para tanto, é preciso que o aluno empregue um discurso com início, meio e fim, com citações que demonstrem o que está sendo dito. Também é desejável que ele empregue expressões linguísticas mais próximas da variedade padrão, bem como que atrele seu discurso, o conteúdo dele, ao do autor da obra em discus- são no seminário. Usará, portanto, construções como: segundo o autor; para ele; conforme a ideia do texto; de acordo com o que o autor defende; o autor entende etc. É esperado, ainda, que em seminários os alunos sejam capazes de fazer relações com outros temas já vistos em aula, citando o nome do autor, ano da obra etc. Assim, ao interpretar um seminário, seja do português para a Libras ou o contrá- rio, o intérprete deve se esforçar para que fique claro que as ideias ali expostas não são do aluno, são, na verdade, a compreensão construída pelo aluno. Preci- sa, então, respeitar as marcas do discurso relatado, listadas acima. Conhecer a dinâmica de um seminário auxilia nas estratégias empregadas na interpretação. O segundo gênero a ser abordado é o debate. Nele, há uma ideia de parti- da, geralmente fornecida pelo professor, que precisa ser defendida ou criticada pelos alunos. Para tanto, eles podem empregar argumentos das mais variadas ordens, o de autoridade, que consiste em citar alguma pessoa que tenha um estudo sobre o tema ou dados de pesquisa de órgãos oficiais do governo, por exemplo; o baseado no senso comum das pessoas; pode apelar, inclusive, para crenças pessoais das pessoas envolvidas no debate, uma vez que a intenção é convencer. Expressões como: eu acredito; com base nos dados publicados; tendo em vista a teoria tal; é possível questionar a ideia; esse argumento não tem funda- mento; há contradição entre os argumentos apresentados; é preciso seguir a linha de raciocínio etc. são usuais em debates, que costumam ser muito mais dinâmicos do que seminários, exigindo muito do intérprete, que precisa se desdobrar para Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 107 dar conta de traduzir as réplicas àquilo que foi dito, e que também é necessário interpretar. O ideal é que num gênero como esse trabalhassem dois intérpretes, cada um interpretando um lado, o que defende e o que critica. Por fim, há de se tratar do gênero palestra. Ele extrapola o limite da sala de aula, envolve, muitas vezes, alunos de vários cursos, ou de níveis diferentes de um mesmo curso. O palestrante pode ser da instituição em que o intérprete tra- balha ou não. O gênero palestra consiste, fundamentalmente, numa exposição, que, a depender dos objetivos do palestrante e do evento no qual ela é apresen- tada, pode versar sobre um tema com base nas ideias do próprio palestrante, de- senvolvidas em pesquisa anterior; sobre um tema na óptica de um determinado teórico, por exemplo, a concepção de língua para Chomsky; sobre um tema na perspectiva de vários teóricos, por exemplo, a concepção de língua para Saus- sure, Chomsky, Humboldt, Bakhtin; ou ainda vários temas abordados na óptica de um teórico, por exemplo, língua, literatura e crítica literária no pensamento bakhtiniano; entre outras possibilidades. Aqui também há um discurso que será entremeado por citações, considerações do palestrante sobre o que está sendo abordado, além da própria exposição em si. Em comum entre todos esses gêneros, há pontos como a exigência de uma linguagem mais formal, que deve ser considerada; o fato de serem discursos pre- parados previamente e, consequentemente, teremuma versão escrita, a qual, de preferência, o intérprete deve ter acesso; de lidarem com a exposição de saberes, que é uma forma de construir e adquirir conhecimento, característica que justi- fica a importância de os intérpretes procurarem traduzir o que é dito no gênero em que é dito, pois a escolha de um dado gênero discursivo, como visto anterior- mente, não se dá aleatoriamente. Discursos da esfera literária Assim como a esfera científica recobre uma variedade de gêneros, o mesmo acontece com o campo literário. Ainda que se tenham poucos trabalhos nessa área, já que envolve a tradução de textos escritos para Libras, é interessante se acercar das possibilidades que podem ser encontradas também no trabalho reali- zado em universidades e escolas. Afinal, tal como os campos de atuação dos indi- víduos se entrecruzam, também alguns gêneros discursivos podem ser encontra- dos em contextos que não o de sua origem. Nesse sentido, não raro, intérpretes se veem às voltas durante uma aula de literatura, por exemplo, em que textos como poemas, crônicas, contos, romances, teatro, entre outros, são abordados. 108 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar Para o momento, considera-se mais proveitoso a análise de poemas, posto que estes são mais frequentemente citados na íntegra durante uma aula. Crôni- cas, contos, novelas, peças teatrais são geralmente comentadas, não há, também, como se apropriar da unidade de uma obra como um romance apenas por meio de um trecho. Os poemas – excetuando-se os épicos, como Os Lusíadas –, por sua extensão, se prestam mais facilmente a uma análise de um todo completo. O grande problema da tradução da literatura, aqui considerada somente em relação ao gênero poema, é que, enquanto a linguagem cotidiana busca a con- vergência, trabalhando no sentido da redução das diferenças, a fim de facilitar a comunicação, a literatura busca a divergência – sendo o campo por excelên- cia das individualidades, da busca do singular e do inaudito. Como a literatura busca a singularidade, a sua tradução não pode desconsiderar esse aspecto. É necessário, então, lidar com uma linguagem com características especiais na in- terpretação de poemas. Vale dizer que mesmo ao falar do gênero poema está-se ainda num nível abrangente, pois há diferentes gêneros no campo poético. Há sonetos, quadras etc. que são chamados de poemas de forma fixa, pois precisam respeitar certas regras de composição, como número de versos, estrofes, tipos de rima e também há poemas de forma livre, em que não se têm regras a seguir quanto ao limite de estrofes, versos, tipos de rima etc. A tradução de literatura é problemática porque muitos dos recursos estilísti- cos disponíveis numa língua não o são em outra, nem sempre é possível encon- trar equivalências para jogos de palavras, rimas, certas construções sintáticas. Mesmo assim, a função do intérprete é, ao menos, levar ao conhecimento do público-alvo da interpretação que o objeto do discurso se trata de uma poesia, que detém características linguísticas especiais. Não se pretende, com isso, dizer que o intérprete deve encontrar meios de reproduzir rimas em Libras, por exem- plo, mas sim se esforçar para manter, quando possível, a metaforização da lin- guagem, sua beleza, a emoção que percorre o poema. Nesse sentido, saber a diferença entre um poema modernista e uma epopeia é de uma ajuda inestimá- vel durante o processo de interpretação, pois o profissional sabe o que esperar, cria expectativas que o auxiliam na interpretação. Nesse caso, o intérprete pode formular hipóteses como: Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 109 Características esperadas quanto à forma, conteúdo e objetivos dos gêneros discursivos epopeia e po- esia modernista Epopeia Poema modernista Linguagem rebuscada Linguagem do dia a dia Tema: feitos heroicos, grandio- sos Tema: assuntos da vida coti- diana; problemas universais da humanidade, engajamento político etc. Uma narrativa extensa na for- ma de versos Sem forma fixa: pode ser em verso, ou não, narrativo ou não etc. A rima pode ocorrer ou não A rima pode ocorrer ou não Envolve uma espécie de elo- gio e narrativa de uma época, de uma nação, de um herói nacional Envolve reflexão sobre a vida, galhofa, ironias, língua etc. Sem experimentalismo esté- tico Experimentalismo estético Você percebe com isso, estudante, que uma das tarefas do profissional intér- prete, para o bom exercício de sua função, é ler tanto quanto puder, de forma a conhecer os diferentes gêneros a interpretar. Quanto mais conhecer, tanto melhor, pois nunca se sabe quando precisará interpretar levando em conta um gênero discursivo pouco usual. Discursos da esfera cotidiana Conforme Silvestri e Blanck (1993), pode-se falar de tipos específicos de rea- lização de gêneros da linguagem cotidiana somente onde existam formas de intercâmbio comunicativo cotidiano que sejam de algum modo estáveis, fixadas pelo hábito e pelas circunstâncias. Conclui-se, assim, que não se pode chamar de gênero discursivo a toda e qualquer conversação do dia a dia, é mister que elas sejam de algum modo estáveis, fixadas pelo hábito e pelas circunstâncias. 110 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar Pense no caso de apresentação de pessoas, há uma forma um tanto estável de apresentar pessoas desconhecidas, de fazê-las adentrar a um dado círculo social. Também apresentam formas fixadas pelo hábito a despedida, ao final de um encontro; um convite para participar de algum pequeno evento social ou mesmo um passeio; justificativa ao faltar a um compromisso etc. Se você pensar bem, conseguirá vislumbrar expressões típicas dessas situações interacionais que se constituem em gêneros da esfera cotidiana, tais como: esse é o fulano; ele trabalha há tantos anos na empresa tal; é um prazer conhecê-lo; o prazer é meu; nos vemos em breve; é sempre um prazer falar com você; você não pode falar; você não ir seria como uma desfeita; eu lamento; me desculpe pelo inconveniente; não foi minha intenção etc. Os gêneros da esfera do cotidiano são tão variados quanto as trocas comuni- cativas estabelecidas no dia a dia. Talvez por se tratar de discursos vivenciados a todo momento, sejam os que menor complexidade apresentam ao intérpre- te. Mesmo assim, requerem também apreciação do profissional. Imagine que você acompanha um cliente numa entrevista de emprego, ali ocorrerão enun- ciações, com construções sintáticas e vocabulário específicos, que não se veem em outras circunstâncias. O nível da linguagem a ser empregado nos gêneros da esfera cotidiana depende de com quem a interação social ocorre, onde e com que objetivo. Para concluir, cabe a observação de Quadros (2007, p. 80) sobre a visão a ser adotada pelo intérprete no desenvolvimento de seu trabalho, a interpretação, “uma visão que enfatiza o discurso, que entende que as pessoas usam a lingua- gem para fazer coisas e que sempre acontece com objetivos específicos através de convenções sociais, linguísticas, interativas e estilos conversacionais, deve ser considerada”. Portanto, a escolha dos gêneros não é mero detalhe, antes, de- termina e revela muito sobre as intenções discursivas do falante, que persegue objetivos específicos, por meio de estratégias discursivas específicas, adequadas ao seu público e ao contexto histórico vivenciado. Se o intérprete pretende ser fiel ao conteúdo do que traduz, um bom começo é tentar considerar as caracte- rísticas preservando-as, tanto quanto possível, do gênero discursivo eleito pelo autor para o projeto discursivo que tem em mente. Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 111 Texto complementar Os gêneros do discurso na perspectiva bakhtiniana (LIMA, 2009, s/p) A comunicação é indispensável para os seres humanos. Ela pode se dar por meio de diversas manifestações linguísticas, como a escrita, a oralida- de, os sons, os gestos, as expressões fisionômicas etc. Segundo Bakhtin, tais manifestações sãobastante diversificadas, pois estão relacionadas às muitas esferas da atividade humana. Bakhtin (1997, p. 290) trata do uso da língua nas atividades humanas: Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana [...] A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas [...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. Neste trecho podem-se perceber três conceitos principais: língua, enun- ciado e gêneros do discurso. Essas entidades, para Bakhtin, estão intimamente relacionadas, para o bom funcionamento da comunicação. As vastas varieda- des das esferas da atividade humana dão origem a vários gêneros do discur- so, que segundo Bakhtin resultam em formas-padrão “relativamente está- veis” de um enunciado, determinadas sócio-historicamente. Bakhtin vai mais além, ao referir que só nos comunicamos, falamos e escrevemos por meio de gêneros do discurso. Os gêneros estão no dia a dia dos sujeitos falantes, os quais possuem um infindável repertório de gêneros, muitas vezes usados in- conscientemente. Até nas conversas mais informais, por exemplo, o discurso é moldado pelo gênero em uso. Tais gêneros, segundo Bakhtin (1997, p. 282), nos são dados “quase da mesma forma com que nos é dada a língua mater- 112 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar na, a qual dominamos livremente até começarmos o estudo da gramática”. Os gêneros do discurso sofrem constantes atualizações ou transformações. A este respeito, Bakhtin (1997, p. 106) diz que “o gênero sempre é e não é ao mesmo tempo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo.” Essa passa- gem, de certa forma, explica o “relativamente estável”, pois, bem como a sociedade, os gêneros também se modificam para atender às necessidades dessa sociedade. Como, por exemplo, a carta, meio de comunicação bastan- te usado em épocas anteriores. Hoje, de certa forma, perdeu espaço para o e-mail, haja vista que a sociedade atual necessita de agilidade e rapidez na transmissão das informações; necessidade esta que a carta não é capaz de suprir. No entanto, a carta não deixou de existir. O que houve foi uma modi- ficação, uma atualização do gênero carta, para melhor atender à sociedade. A este respeito Bakhtin (1997, p. 284) diz que: Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. Sabe-se que os gêneros vão sofrendo modificações em consequência do momento histórico em que estão inseridos. Cada situação social dá origem a um gênero com suas características peculiares. Levando-se em consideração a infinidade de situações comunicativas e que essas só são possíveis graças à utilização da língua, pode-se perceber que infinitos também serão os gê- neros. Bakhtin relaciona a formação de novos gêneros ao aparecimento de novas esferas da atividade humana, com finalidades discursivas específicas. Essa imensa heterogeneidade fez com que Bakhtin propusesse uma primeira grande “classificação”, dividindo os gêneros do discurso em dois grupos: pri- mários e secundários. Os primários relacionam-se às situações comunicativas cotidianas, espontâneas, informais e imediatas, como a carta, o bilhete, o diá- logo cotidiano. Os gêneros secundários, geralmente mediados pela escrita, aparecem em situações comunicativas mais complexas e elaboradas, como o teatro, o romance, as teses científicas etc. Tanto os gêneros primários quanto os secundários possuem a mesma essência, em outras palavras, ambos são compostos por fenômenos da mesma natureza, os enunciados verbais. O que os diferencia é o nível de complexidade em que se apresentam. Segundo Bakhtin (1997, p. 281): Não há razão para minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e a consequente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado. Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 113 Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre o gênero do discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário (complexo). Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios... Além dos aspectos sócio-históricos, devem-se levar em consideração outros aspectos, como espaço e tempo, tratados por Machado (2008, p. 158-159): O gênero não pode ser pensado fora da dimensão espácio-temporal. Logo, todas as formas de representação que nele estão abrigadas são, igualmente, orientadas pelo espaço-tempo [...] O cronotopo trata das conexões essenciais de relações temporais e espaciais assimiladas artisticamente na literatura. Enquanto o espaço é social, o tempo é sempre histórico. Isso significa que tanto na experiência quanto na representação estética o tempo é organizado por convenções. Os gêneros surgem dentro de algumas tradições com as quais se relacionam de algum modo, permitindo a reconstrução da imagem espácio-temporal da representação estética que orienta o uso da linguagem: ‘o gênero vive do presente mas recorda o seu passado, o seu começo’, afirma Bakhtin. A teoria do cronotopo nos faz entender que o gênero tem uma existência cultural, eliminando, portanto, o nascimento original e a morte definitiva. Os gêneros se constituem a partir de situações cronotópicas particulares e também recorrentes por isso são tão antigos quanto as organizações sociais. Nesse trecho percebe-se a relação dos gêneros com o espaço e o tempo, característica que Bakhtin denomina cronotopos. O gênero não surge do nada, ele está ligado a uma origem cultural, delimitada por aspectos sociais que estão relacionados ao espaço, e toda cultura possui sua própria história relacionada ao tempo. Daí, o gênero, que nasce dentro de tal cultura, sofrer modificações de acordo com o espaço e tempo. Dicas de estudo Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin, de Carlos Alberto Faraco, Curitiba, Criar Edições, 2003. A leitura da obra é indicada para quem ainda não teve contato com o pen- samento bakhtiniano tanto quanto para quem já o conhece. Tal como indica o título, o trabalho centra sua atenção especificamente nas ideias linguísticas do círculo de Bakhtin, apresentando os seus integrantes e os projetos a que se dedicavam. 114 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar SOUZA, Saulo Xavier. Traduzibilidade poética na interface Libras-Português: aspectos linguísticos e tradutórios com base em “Bandeira Brasileira” de Pimenta (1999). In: QUADROS, Ronice Müller de Quadros; STUMPF, Marianne Rossi (Orgs.). Estudos Surdos IV. Petrópolis: Arara Azul, 2009. Nesse artigo, Souza expõe e avalia sua experiênciade traduzir para a língua portuguesa escrita o poema “Bandeira Brasileira”, cuja língua de partida é a Libras. É um ótimo exemplo de trabalho de tradução de gênero discursivo que prima pelo respeito à forma do original, tentando superar os obstáculos impos- tos também pela diferença da modalidade de língua. Atividades 1. Defina gêneros do discurso segundo a perspectiva bakhtiniana. 2. Tome como ponto de partida o excerto fornecido a seguir sobre a evolução dos gêneros discursivos e reflita como o surgimento do e-mail, em compara- ção à carta, é um gênero “novo e ao mesmo tempo velho”. Os gêneros do discurso sofrem constantes atualizações ou transformações. A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 106) diz que “o gênero sempre é e não é ao mesmo tempo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo.” Essa passagem, de certa forma, explica o “relativamente estável”, pois, bem como a sociedade, os gêneros também se modificam para atender às necessidades desta sociedade. Como, por exemplo, a carta, meio de comunicação bastante usado em épocas anteriores. Hoje, de certa forma, perdeu espaço para o e-mail, haja vista que a sociedade atual necessita de agilidade e rapidez na transmissão das informações; necessidade esta que a carta não é capaz de suprir. No entanto, a carta não deixou de existir. O que houve foi uma modificação, uma atualização do gênero carta, para melhor atender à sociedade. (LIMA, 2009, s/p) Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 115 3. Como visto durante a aula, alguns gêneros se prestam mais facilmente ao tratamento de determinados assuntos, cumprindo dados objetivos frente a um público-alvo específico. Tendo isso em mente, discuta por que razão o gênero artigo científico é mais adequado à divulgação dos resultados de uma pesquisa à comunidade científica do que o recurso de uma carta. 116 Os diferentes gêneros discursivos a interpretar Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. LIMA, Anderson. Os Gêneros do Discurso na Perspectiva Bakhtiniana. 2009. Disponível em: <http:\\recantodasletras.uol.com.br/artigos/1705374>. Acesso em: 14 set. 2010. QUADROS, R. M de. O Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos. MEC, 2007. RODRIGUES, Rosângela Hammes. A análise de gêneros do discurso na teoria bakhtiniana: algumas questões teóricas e metodológicas. Revista Linguagem em (Dis)curso, v. 4, n. 2, jan./jun., 2004. ROSA, Andréa Silva. Entre a Visibilidade da Tradução da Língua de Sinais e a Invisibilidade da Tarefa do Intérprete. Petrópolis: Arara Azul, 2008. SILVESTRI, Adriana; BLANCK, Guilhermo. Bajtín y Vigotsky: la organización se- miótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993. Gabarito 1. Resposta mínima deve contemplar que os gêneros discursivos são tipos re- lativamente estáveis de enunciados, os quais são construídos tendo como norteadores o tema do discurso, a esfera social em que são produzidos, o público a que se destina e o objetivo. 2. O aluno deve reconhecer que o e-mail é ao mesmo tempo novo e velho por- que, embora surgido recentemente, sendo possível apenas pelo avanço da tecnologia, guarda semelhanças com a carta. É novo porque sua forma de envio é diferente, chega quase que em tempo real a seu destinatário, apre- senta certas características peculiares de linguagem (abreviações, reduções, emoticons), suporte para uso de vídeos etc. Mas é velho porque apresenta ainda elementos como remetente e destinatário, expressão de saudação e de despedida, é datado, automaticamente, mas é datado, elementos presentes nas cartas. Assim como as cartas, os e-mails podem ser usados para fins pes- soais ou comerciais, e podem apresentar uma linguagem informal ou formal. Os diferentes gêneros discursivos a interpretar 117 3. Espera-se que o estudante analise o que foi solicitado levando em conta a melhor adequação do tema, esfera social, público-alvo e objetivo a ser alcan- çado. Nesse sentido, sua argumentação deve considerar que o gênero artigo científico é o adequado para o objetivo pretendido, pois por meio dele o es- tudo ganhará argumento de autoridade, já que publicado em revista própria da esfera científica alcançará maior número de pessoas em menos tempo, assegurará a autoria de quem fez o estudo, o que por carta não se pode ga- rantir. Na condição de gênero da esfera científica, o artigo científico suporta o tratamento de dados, sua análise, emprego de tabelas, gráficos, seções es- pecíficas para explicitar a metodologia e resultados da pesquisa, por exem- plo. Além disso, a carta é inapropriada, pois o indivíduo precisaria descobrir os destinatários a quem seu estudo interessaria; já o artigo científico, por ser publicado em revistas especializadas, alcança as pessoas interessadas no assunto sem maiores problemas. 119 Conforme Rosa (2008), a presença do Intérprete de Língua de Sinais (ILS) nas mais diversas áreas da sociedade representa um ganho para as comunidades surdas, que podem ter acesso a esses setores e interagir com eles por meio da garantia do respeito ao seu direito linguístico. Isso também é positivo para o próprio ILS, pois quanto mais se expandem as áreas de atuação das comunidades surdas, mais os intérpretes têm seu campo de atuação estendido. Nessa perspectiva, a proposta desta aula é traçar o panorama de áreas em que o ILS vem sendo mais requisitado, bem como identificar as exigências e características básicas de cada área, sem perder de vista, quando necessário, críticas sobre melhorias que ainda podem ser feitas nas áreas apontadas. Intérprete no contexto social Primeiramente, a ideia é olhar para os trabalhos da categoria num ho- rizonte mais aberto, denominado aqui genericamente de contexto social. Esta seção, então, é o espaço para expor generalidades e especificidades sobre o ILS, bem como para agrupar a explanação sobre a atividade em certos setores da sociedade. No Brasil, não são encontradas agências de Tradutores e Intérpretes de Língua de Sinais tal como de Intérpretes de Línguas Orais, porém essa é uma realidade que tende a mudar, considerando-se o processo ocorrido em outros países: Existem muitas semelhanças na atuação dos Intérpretes de Línguas Vocais (ILV) e dos Intérpretes de Língua de Sinais (ILS) e em alguns países a categoria reconhece-se como uma só, apenas tendo diferentes línguas de trabalho. É comum, nos Estados Unidos e na Europa, encontrarem-se agências em que são oferecidos os serviços de tradução e interpretação não só de línguas vocais como também da língua de sinais local. Entretanto, em países em que as pessoas surdas são vistas como incapacitadas ou prejudicadas em sua capacidade de tomar decisões, a interpretação de língua de sinais assume um caráter predominantemente caritativo e assistencial, um favor ou uma missão divina que pressupõe trabalho voluntário, sacrifício e abnegação. (PEREIRA, 2008, p. 140) Áreas de atuação Vídeo 120 Áreas de atuação Sobre as diferenças entre os Intérpretes de Línguas Vocais e de Línguas de Sinais, Rodríguez e Burgos1 (2001, p. 30 apud PEREIRA, 2008, p. 140) apresentam o seguinte quadro: Quadro1 – Diferenças entre Intérpretes de Línguas Vocais e Intérpretes de Língua de Sinais Intérpretes de Línguas Vocais Intérpretes de Línguas de Sinais 1. Interpretam de/para as línguas orais. 1. Interpretam de/para alguma língua de sinais. 2. Seus clientes são pessoas ouvintes de dife- rentes entornos geográficos. 2. Seus clientes são pessoas surdas e ouvintes do mesmo entorno geográfico. 3. Seu campo de trabalho limita-se, normalmente, a encontros internacionais. 3. Seu campo de trabalho é tão amplo quanto as necessidades comunicativas e de informa- ção de seus clientes. Além dessas características, Pereira (2008) aponta que uma grande diferença na atividade profissional entre os intérpretes dessas duas modalidades de língua encontra-se no fato de que os ILS atuammuito mais em instituições de ensino, o que praticamente não se vê em relação aos intérpretes orais. A autora também apresenta um quadro comparativo sobre os campos de atuação desses profis- sionais que é citado a seguir (RODRÍGUEZ; BURGOS, 2001, p. 30 apud PEREIRA, 2008, p. 141): Quadro 2 – Diferenças na atuação de Intérpretes de Línguas Vocais e In- térpretes de Língua de Sinais Intérpretes de Línguas Vocais Intérpretes de Línguas de Sinais 1. Tradução escrita. 1. Educação. 2. Conferência. 2. Trâmites e acompanhamento. 3. Trâmites e acompanhamento. 3. Conferência. 4. Educação. 4. Tradução escrita. Também acontece de o ILS apresentar atuações diferenciadas conforme o cliente ou as circunstâncias de para quem está interpretando. São apresentadas a seguir algumas categorias diferenciadas de atuação do ILS, todas retiradas de Pereira (2008, p. 142-144): 1 RODRÍGUEZ, Esther de los Santos; BURGOS, Maria del Pilar Lara. Técnicas de Interpretación de Lengua de Signos. Barcelona: CNSE, 2001. Áreas de atuação 121 Interpretação relé (relais/relay) – existe entre línguas vocais, mas é distintiva no caso em que, por exemplo, uma palestra em inglês seja interpretada diretamente para a Libras e só então para a língua portuguesa. Nesse caso o ILS é o intérprete relé. Intérprete tátil – chamado, no Brasil, de guia-intérprete para pessoas surdo-cegas que utilizam a língua de sinais tátil. Se o mediador estiver utilizando outras técnicas para surdo- -cegos como, por exemplo, desenhar na palma da mão as letras do alfabeto latino ou tocar nas falanges de acordo com o sistema braille, então não se trata de uma interpretação interlíngue, mas sim de uma transliteração. Intérprete surdo – uma pessoa surda pode atuar normalmente como intérprete entre duas línguas de sinais. No caso em que uma pessoa surda não é falante competente da Libras e um ILS não consegue estabelecer um entendimento com ela, pode ser chamada outra pessoa surda que por meio gestual consiga uma comunicação primária, mas satisfatória. Não se trata, nesse caso, de uma interpretação interlíngue, e sim de uma comunicação gestual ou mímica. Comunicador pidgin2 – nesta categoria está o uso do português sinalizado em que o léxico da língua de sinais é encaixado na estrutura da língua vocal, gerando, inclusive, a criação de sinais artificiais para suprir a equivalência literal entre as duas línguas. Espelhamento – quando um intérprete, ao invés de interpretar, copia a sinalização de outro intérprete. Esse é o caso em que, por motivos de localização no espaço, a plateia surda tem que se posicionar em diversos locais onde não seja possível a visualização de somente um intérprete. Duplicador ou replicador vocal – é chamada assim a pessoa que duplica a fala vocal de outra pessoa para deficientes auditivos que não se sentem proficientes ou confortáveis com a língua de sinais. Não é uma interpretação interlíngue, pois o duplicador posiciona-se de frente para a pessoa deficiente auditiva e, literalmente, reproduz, na mesma língua, tudo o que ouve, com uma articulação cuidadosa. Esses são alguns papéis que o ILS pode acabar desempenhando, mas nem todos consistem propriamente numa tradução entre línguas. São, na verdade, atuações em que o profissional procura facilitar o acesso ao código linguístico. Pereira aponta que em alguns países a classificação das atividades desem- penhadas pelo ILS é muito elaborada. Nos Estados Unidos, por exemplo, há um órgão de registro e supervisão da atuação do ILS atuante nesse país, existindo, para tanto, duas grandes áreas de classificação, subdivididas em várias catego- rias (2008, p. 144): � Certificação Nacional de Intérprete (National Interpreter Certification – NIC). � Certificado de Interpretação e Certificado de Transliteração (Certificate of Interpretation – CI and Certificate of Transliteration – CT). � Intérprete Surdo Certificado (Certified Deaf Interpreter – CDI). � Certificado de Transliteração Oral (Oral Transliteration Certificate – OTC). � Intérprete Educacional (Educational Certificate – Ed: K-12). � Certificado de Especialista Legal/Jurídico (Specialist Certificate: Legal – SC:L). 2 Termo usado para designar sistemas de comunicações criados a partir da mistura de duas ou mais línguas. Por não apresentar uma estrutura interna própria, tampouco falantes nativos, os pidgins não são considerados línguas, mas sistemas de comunicação. 122 Áreas de atuação Essas são apenas algumas titulações que exemplificam a complexidade de categorização da atuação do ILS nos Estados Unidos. Segundo a autora, como o Brasil não possui uma entidade ou órgão de classe nacional que certifique ou valide um plano de carreira, não há no país uma classificação detalhada dos campos de atuação do ILS. Apenas uma divisão simples que leva em conta o nível de formação do profissional (PEREIRA3, 2003 apud PEREIRA, 2008, p. 144-145): � naturais ou empíricos – pessoas bilíngues em português e Libras que “atuam” como intér- pretes, porém sem nenhuma instrução formal para a profissão; � validados – pessoas que atuam como intérpretes naturais e recebem, por meio da aprova- ção em um teste, um certificado provisório (validação) para trabalharem como ILS; ou � certificados – aqueles que cursaram algum tipo de formação mais elaborada, normalmen- te promovida em parceria com a Feneis. O objetivo é que cada vez mais os ILS caminhem para uma situação em que todos sejam certificados, até porque o projeto de lei (PLC 325/2009) que regulamenta a atuação do intérprete no Brasil foi aprovado pelo senado em julho de 2010, preven- do que o ILS possa atuar se cumprir uma das três exigências listadas a seguir: � curso superior de tradução e interpretação com habilitação em Libras (Língua Portuguesa); � nível médio, com formação em cursos (obtida até 22 de dezembro de 2015) de educação profissional reconhecidos pelo sistema que os credenciou, ou cursos de extensão universi- tária, ou cursos de formação continuada, estes dois últimos promovidos por instituições de Ensino Superior e instituições credenciadas por Secretarias de Educação; � certificação de proficiência, sendo que a mesma será fornecida até o dia 22 de dezembro de 2015 pela União, que, diretamente ou por intermédio de credenciadas, promoverá, anu- almente, exame nacional de proficiência em Tradução e Interpretação de Libras – Língua Portuguesa. Daí é possível depreender que, uma vez sancionado pelo presidente, a partir de 2015 serão reconhecidos como ILS apenas os que obtiveram certificação de nível médio até aquele ano e os formados em curso superior para interpreta- ção e tradução da Libras. As já famosas provas de certificação de proficiência (realizadas pelo ProLibras), como documento que permite a atividade do ILS, serão extintas após 2015. Assim, o caminho inevitável e desejável é a formação e capacitação desses profissionais. Além disso, o projeto prevê a elaboração de uma norma específica que estabelecerá a criação de Conselho Federal e Con- selhos Regionais responsáveis pela aplicação da regulamentação da profissão, em especial da fiscalização do exercício profissional, já que ainda não existem agências reguladoras da profissão no Brasil. Agora que você conhece um pouco mais sobre a atuação e titulação do ILS, está apto a considerar alguns aspectos da atividade em diferentes setores da sociedade. 3 PEREIRA, Maria Cristina Pires. Profissionalização e formação de intérpretes de Libras. Revista da Feneis, Rio de Janeiro, ano III, n. 18, p. 26-28, 2003. Áreas de atuação 123 Na área da saúde, não é incomum o ILS acompanhar o surdo em consultas mé- dicas, exames laboratoriais ou mais complexos, partos etc. Ali, o seu papel é auxi- liar o cliente a relatar ao médico seus sintomas, queixas e dúvidas, e intermediar as recomendações que o médico fará ao paciente. De acordo com Rosa (2008, p. 153), o “acesso aos serviços de saúde e às orientações corretas evita os costumeiros usos indevidos damedicação, pela incompreensão da prescrição médica”. Como rara- mente os familiares acompanham o surdo em idade adulta a consultas médicas, a demanda de interpretação nesse contexto social acaba sendo significativa. O problema é que muitas vezes esse tipo de trabalho ainda é visto como “voluntário”. Tem ficado a cargo do bom senso as combinações entre surdo e ILS sobre esse tipo de trabalho. Aliás, geralmente os surdos optam por chamar intérpretes que já co- nheçam, com quem tenham afinidade e confiança, de forma a se sentirem seguros para “expor” sua vida íntima. Outro serviço de interpretação encarado como um “favor”, tendo em vista a sua peculiaridade e o nível de intimidade envolvido, é a interpretação durante o uso do telefone: [...] ainda que já existam leis para a instalação de telefones públicos para surdos TDD, o uso do intérprete para intermediar as conversas telefônicas é bem mais comum do que se pode imaginar ou supor. Essas intermediações ocorrem quando os surdos desejam avisar seus familiares sobre alguma eventualidade; marcar consultas; obter informações diversas; ou até mesmo combinar encontros com surdos de outras regiões ou associações. Não é incomum estarem dois intérpretes ao telefone intermediando a conversa entre dois surdos. (ROSA, 2008, p. 152-155) Em vários contextos sociais, o trabalho do ILS permite que surdos e ouvin- tes se comuniquem, que haja compreensão e parceria entre eles. Nesse sentido, Rosa (2008, p. 155) avalia: Esse foi o grande ganho da comunidade surda: a abertura para a inclusão social, com a presença da língua de sinais e, consequentemente, do intérprete. Entretanto, o benefício para os ILS não ocorre na mesma proporção, pois geralmente, em quase todos esses lugares, com exceção da sala de aula, a presença do ILS acontece de forma voluntária. Principalmente em delegacias, audiências públicas e serviços de saúde. Intérprete no contexto educacional Tendo em vista a política de inclusão vivida no contexto educacional brasilei- ro e a oficialização da Libras como língua natural e oficial do surdo, a presença do intérprete em sala de aula passou a ser um direito do surdo estipulado em lei. Assim, a educação é a grande área de atuação do ILS, sendo ele, a partir dela e nela, reconhecido como o profissional que é. Os benefícios do intérprete na sala de aula se encontram sintetizados na citação a seguir: 124 Áreas de atuação Quando se insere um Intérprete de Língua de Sinais na sala de aula abre-se a possibilidade do aluno surdo receber a informação escolar em língua de sinais através de uma pessoa com competência nessa língua. Ao mesmo tempo, o professor ouvinte pode ministrar suas aulas sem preocupar-se em como passar a informação em sinais, atuando em sua língua de domínio. Na medida em que a condição linguística especial do surdo é respeitada, aumentam as chances de ele desenvolver-se e construir novos conhecimentos de maneira satisfatória, em contraponto a uma “inclusão escolar” sem qualquer cuidado especial. (LACERDA4, 2000a apud LACERDA; POLETTI, 2004, p. 1) Lacerda e Poletti (2004) citam uma pesquisa feita nos Estados Unidos em que o objetivo foi examinar as instruções e recomendações contidas em manuais ela- borados para orientar a atuação dos ILS nas escolas. Nessa pesquisa, descobriu-se que muitos intérpretes faziam uso de pidgin, ou variações locais, e não da Língua de Sinais Americana (ASL). Isso não se deve a uma possível má formação dos intér- pretes. Na verdade, é algo que o ILS precisa fazer ao se deparar com uma clientela que não domina bem a língua de sinais para bem de ser compreendido. Com o passar do tempo, o esperado é que os alunos surdos que não dominam a língua de sinais desenvolvam seu vocabulário e estrutura gramatical, alcançando o uso da língua de sinais oficial de seu país. A pesquisa apontou ainda que: Em relação à recepção e interpretação da mensagem, os autores discutem que vários surdos referem não entenderem boa parte do que o intérprete traduz, mas que preferem a sua presença, apesar das dificuldades, porque sem ele acompanhar as aulas é ainda pior. Além disso, indicam que as necessidades dos alunos nem sempre são claras para os intérpretes. Em relação ao papel do intérprete em sala de aula, verifica-se que ele assume uma série de funções (ensinar língua de sinais, atender a demandas pessoais do aluno, cuidados com aparelho auditivo, atuar frente ao comportamento do aluno, estabelecer uma posição adequada em sala de aula, atuar como educador frente a dificuldades de aprendizagem do aluno) que o aproximam muito de um educador. (LACERDA; POLETTI, 2004, p. 3) Por conta dos muitos papéis desenvolvidos pelo ILS em sala de aula, alguns pesquisadores defendem que ele deveria fazer parte da equipe educacional. Contudo, Lacerda e Poletti (2004) indicam que considerar o ILS como educador o afasta de seu papel primordial, o de interpretação, gerando polêmicas sobre quais seriam suas funções em sala de aula. Com relação a isso, a posição assu- mida por Lacerda e Poletti (2004), bem como por Quadros (2007), é a de que o intérprete não é o responsável por ensinar o aluno surdo, não é ele quem deve planejar, organizar e avaliar o processo de ensino-aprendizagem do surdo. Esse é o papel do professor. Cabe ao intérprete apenas ser o canal de comunicação entre o professor, colegas ouvintes e o aluno surdo. Claro, não se pode deixar de apontar que é preciso que o ILS colabore com o professor, e este com aquele; é preciso que haja sugestões em ambas as direções, para que se promova o 4 LACERDA, C. B. F. de. A criança surda e a língua de sinais no contexto de uma sala de aula de alunos ouvintes. Relatório Final FAPESP, Proc. n.º 98/02861-1, 2000a. Áreas de atuação 125 objetivo principal da inclusão do aluno surdo: a condição de aprender, sempre da melhor maneira possível. O trabalho de intérprete no contexto educacional é mais complexo do que muitos supõem, pois: [...] este ambiente de trabalho se constitui num espaço diferenciado que requer formação e suporte técnico, nem sempre desenvolvidos apenas com a prática. Tal capacitação envolve conhecimento sobre o processo ensino-aprendizagem, sobre a formação de conceitos e a construção de conhecimentos, além da formação linguística implicada no trabalho de interpretação. (LACERDA; POLETTI, 2004, p. 6) Intérprete na Educação Especial, na Educação Básica regular e no Ensino Superior No âmbito da educação, o intérprete, grosso modo, pode atuar na Educação Especial, na Educação Básica regular e no ensino superior. A intenção aqui é que você se familiarize com os principais aspectos dessas áreas de atuação. Contudo, por se tratar do grande mercado de trabalho para os ILS atualmente, um maior destaque será dado ao exercício da profissão na Educação Básica regular. Na Educação Especial, considerando aqui as escolas para surdos, o intérpre- te muitas vezes desempenha um papel que não é o de intérprete, mas sim o de educador ou auxiliar pedagógico. Entre suas tarefas está ensinar – principal- mente aos surdos filhos de ouvintes – e desenvolver o uso da Libras e da língua portuguesa escrita. Isso dentro de uma proposta de educação bilíngue, em que a Libras, naturalmente, é a primeira língua e a língua portuguesa escrita é a se- gunda língua. Outra face da Educação Especial é a possibilidade de inclusão do aluno surdo na rede de ensino regular, introduzida pela reforma na lei sobre a educação brasileira (Lei 9.394/96), a qual estabelece que as crianças portadoras de necessidade especial devem ser atendidas, preferencialmente, pela escola regular. Embora garantida por lei e já tendo políticas públicas a seu favor, im- plementar satisfatoriamente a inclusão do aluno surdo não tem sido tarefa fácil: [...] diante do contexto escolar em que vivemos, esse processo de integração/inclusão, por mais bem elaborado que seja, tem apresentado dificuldades em sua implantação pela instituição escolar. Ou seja, mesmo dianteda obrigatoriedade gerada pela política educacional atual, muitos educandos surdos encontram-se à margem da escola. Alguns estão “incluídos” em classes regulares e poucos conseguem permanecer no sistema. (MACHADO, 2002, p. 14) Realmente, por mais que a lei regulamente a questão da inclusão de alunos portadores de necessidade especial, o Brasil ainda está distante de poder 126 Áreas de atuação relatar histórias de sucesso em todos os níveis de ensino e regiões. Em cida- des de médio a pequeno porte, não é difícil encontrar alunos surdos “incluí- dos” no ensino regular, mas que não têm o apoio do intérprete em sala de aula. Ficam sem base para trabalhar tanto o aluno quanto o professor na falta desse profissional, já que, até 2005, não se exigia a presença de Libras no currículo dos cursos de licenciatura. Essa situação nem sempre, como se poderia supor, é culpa do Estado. Ainda existem muitos pais (ouvintes) que não aceitam o uso da Libras, esperam “normalizar” os filhos, ou simplesmente desconhecem a importância do acesso à Libras o quanto antes, deixando de levar seus filhos aos centros de ensino onde o Estado ou Município disponibiliza ensino regular (Fundamental e Médio) com a presença de intérpretes em aula e também com a sala de recursos – local onde são preparados materiais adequados a cada aluno segundo sua necessidade especial e também onde os estudantes podem en- contrar apoio pedagógico para suprir suas dificuldades quanto ao conteúdo e atividades abordados em sala. Lacerda e Poletti parafraseiam um relato de Teruggi que fala de uma experi- ência bem-sucedida de inclusão de alunos surdos: [...] experiência de uma escola regular que assume vários alunos surdos e procura implementar uma prática inclusiva bilíngue na pré-escola e no Ensino Fundamental, em uma escola pública italiana. Os intérpretes têm um papel fundamental e apontam que as crianças surdas ao entrarem na escola conhecem pouco a língua de sinais e que os intérpretes precisam estar atentos para usar uma língua que seja acessível a elas. Essa realidade vai se modificando à medida que as crianças vão ampliando seus conhecimentos em língua de sinais, e o intérprete deve ir modificando sua produção. Outro ponto importante é a atuação do intérprete frente às relações da criança surda com seus pares ouvintes, suas atitudes podem favorecer ou dificultar os contatos e a integração efetiva do aluno surdo. (LACERDA; POLETTI, 2004, p. 5) No estudo empreendido por Lacerda e Poletti, há também o relato, por parte dos intérpretes, de que falta uma formação mais adequada à realidade que en- frentam, percebendo apenas a partir da reflexão e autocrítica sobre a sua prática os erros e acertos que cometem. Ferreira5 (2002 apud LACERDA; POLETTI, 2004, p. 5-6), por sua vez, traz a experiência vivida por uma intérprete que acompa- nhou um grupo de alunos surdos no Ensino Médio, em uma sala especial, e que apontou requisitos e problemas como: [...] a tarefa de posicionar-se entre duas línguas que exige um amplo conhecimento das línguas- -alvo; a constância dos improvisos utilizados, para poder possibilitar o acesso à informação, indicando a necessidade de se repensar os recursos pedagógicos empregados; a falta de conhecimento teórico do intérprete frente a algumas disciplinas o que dificulta seu trabalho e a aprendizagem dos alunos; o reconhecimento dos alunos surdos de seu trabalho, pois sem sua atenção e colaboração, o intérprete não consegue desempenhar sua tarefa adequadamente; e fundamentalmente a clareza na definição de papéis, pois ele se vê obrigado a desempenhar 5 FERREIRA, G. E. O Perfil Pedagógico do Intérprete de Língua de Sinais no Contexto Educacional. Dissertação (Mestrado). Unipac, Bom Des- pacho, Minas Gerais, 2002. Áreas de atuação 127 tarefas que nem sempre lhe dizem respeito, pois se espera que ele seja um recurso mecânico de comunicação que não censura e nem transforma as informações, mas que, na realidade, precisa atuar como educador, muitas vezes. Convém observar que o sucesso do trabalho do intérprete no âmbito escolar depende de muitos fatores externos a ele: a recepção e colaboração do professor; o perfil do aluno surdo, sua idade, a depender da idade do aluno, podem haver conflitos quanto a manter o foco na interpretação, por exemplo; lidar com os ruídos na sala, com a curiosidade e a intervenção dos outros alunos, entre outras coisas. A despeito de tudo isso, atualmente, atuar no ensino especial ou no regu- lar são formas asseguradas por lei de executar a profissão e que apresentam uma grande demanda por profissionais. As escolas, principalmente da rede pública, vêm melhorando o processo de ingresso de intérpretes da Libras, dando mais segurança para o intérprete não só quanto ao processo seletivo, mas também quanto à permanência no cargo durante o período de vigência do contrato, bem como a certeza da remuneração. Essas vantagens também são vistas no Ensino Superior, no qual o intérprete já tem atuação garantida. Entretanto, não é fácil tomar conhecimento das condições de atuação, os requisitos e problemas en- frentados, pois “[o] levantamento de publicações sobre a interpretação de Libras no campo educacional revela poucas produções que, em geral, remetem à atu- ação do intérprete em sala de aula do Ensino Fundamental.” (LACERDA6, 2002; QUADROS7, 2006 apud MARTINS, 2008, p. 1). De acordo com Martins (2008, p. 6), em relação às condições de trabalho no Ensino Superior, “os intérpretes de Libras têm se deparado com tipos variados de contratos de trabalho, sem o estabelecimento de um piso salarial e de direi- tos trabalhistas para essa categoria”. Conforme a autora, dos profissionais que fizeram parte da pesquisa (29 intérpretes atuantes no Ensino Superior), 50% são contratados efetivos, 25% são contratados autônomos, 21% como prestadores de serviço temporário e 4% como estagiários. Das experiências e relatos que se podem observar no dia a dia, o esperado é que os intérpretes contratados no Ensino Superior tivessem titulação maior do que o nível em que atuam, mas a realidade é que muitos apresentam apenas o nível médio e um certificado de proficiência em interpretação em nível superior. Além disso, durante os anos de graduação, tal como no Ensino Fundamental, o ILS precisa interpretar conteú- dos que nem sempre compreende, num nível mais complexo. Se por um lado o cliente entende melhor o papel e o objetivo de um intérprete em sala, por outro 6 LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. O intérprete educacional de língua de sinais no Ensino Fundamental: refletindo sobre limites e possibili- dades. In: LODI, Ana Claúdia B.; HARRISON, Kathryn M. P.; CAMPOS, Sandra R. L. de et al. (Orgs.). Letramento e Minorias. Porto Alegre: Mediação, 2002. 7 QUADROS, Ronice Müller. Políticas Linguísticas e Educação de Surdos em Santa Catarina: espaço de negociações. Caderno CEDES, v. 1, n. 1, São Paulo: Cortez; Campinas: Caderno Cedes, maio/ago. 2006, v. 26, n. 69, p. 141-161. 128 Áreas de atuação se veem em conflito porque sempre há desconfiança, quando o aluno vai mal, de que o problema está na interpretação. A verdade é que em todos os campos de atuação o intérprete precisa ser capacitado para trabalhar, deixando de contar apenas com sua intuição, bom senso (que sempre ajuda, mas não resolve tudo) e a observação de erros seus e de colegas (aprender a partir dos próprios erros e dos alheios é positivo, acontece em outros aspectos da vida, mas, no caso do intérprete, esse “sistema de aprendizado” é levado ao limite). Intérprete na área jurídica Até o momento não se encontram pesquisas sobre a atuação do ILS na área jurídica, apenas rápidas menções. Isso é compreensível, tendo em vista que a atuação nesse campo é pequena se comparada a outras áreas. Aqui também não se exige do intérprete formação específica, além do domínio da Libras, para o trabalho. Na maior parte das vezes, o intérprete chamado para prestar serviços ao surdo, seja emdelegacias ou tribunais, é conhecido dele, motivo pelo qual acaba não recebendo pelo trabalho prestado. Sobre essa área em específico, Rosa (2008, p. 153) menciona que: [...] nas audiências jurídicas, é possível ao surdo, na condição de réu ou vítima, expor a sua versão dos fatos. E responder com maior clareza às perguntas que lhe são dirigidas pelas autoridades. A presença do ILS no judiciário é bem recente, e normalmente o juiz, quando está diante desse profissional, se refere normalmente a ele, não se dirigindo nem ao surdo e tampouco ao advogado, quer o surdo seja a vítima, quer seja réu – prática incomum, em se tratando de audiência com ouvintes, mesmo quando estes são estrangeiros. Convém lembrar que nesse tipo de trabalho a ética e a discrição vêm lado a lado ao domínio da língua, a responsabilidade envolvida é muito grande, pois, muitas vezes, pode-se tratar de pôr em risco a liberdade do surdo. Há que se ter muito cuidado para não assumir uma postura protetora e tampouco uma postu- ra descompromissada com o cliente num momento tão delicado. Intérprete religioso Existe, entre os profissionais que não atuam ou não atuaram no meio religioso, um certo preconceito para os que atuam ou atuaram nele. Para os que não conhe- Áreas de atuação 129 cem o histórico dessa área, é comum o pensamento de que os intérpretes que aí atuam não têm capacidade para o ato de interpretação e que muito do que fazem não passa de português sinalizado. No entanto, é possível arriscar que, excetu- ando os intérpretes que são filhos de surdos, os profissionais oriundos do meio religioso são os que geralmente apresentam maior habilidade interpretativa, com vocabulário amplo, flexíveis no ato interpretativo, à medida que o exercício de in- terpretação numa igreja exige do intérprete a tradução dos mais variados gêneros do discurso. Nem todas as igrejas apresentam o trabalho de interpretação, ainda mais quando se localizam em cidades que não são de grande porte ou capitais. Ainda assim é possível apontar que: Entre a enorme diversidade de instituições religiosas que se ocupam dos surdos, nos parece que quatro possuem um papel histórico de indubitável destaque; quais sejam, a Igreja Católica, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil, a Testemunhas de Jeová e a Igreja Batista” (ASSIS SILVA, 2006, p. 47). Conforme Assis Silva (2006), a Testemunhas de Jeová, já a partir da década de 1980, no estado do Rio de Janeiro, foi a pioneira na formação de intérpretes. No entanto, desde o final dos anos 1990, essa instituição vem produzindo materiais em Libras e realizando seus encontros em Libras, quando há surdos envolvidos. Com isso, o papel do intérprete vem se tornando desnecessário dentro dessa ins- tituição. O autor também relata o papel histórico da Igreja Luterana do Brasil no processo de formação de intérpretes, bem como o pioneirismo da prática de inter- pretação, iniciada, segundo relatos coletados pelo autor, no final dos anos 1970, em Campinas, por meio de missionários norte-americanos. Com relação à experi- ência batista em formação e atuação de intérpretes, o autor chama a atenção: Para além do pioneirismo, a experiência batista se destaca por uma série de outras razões. Foi sobretudo essa experiência que fez da atividade missionária com surdos sinônimo de interpretação e liderança de Ministério8. Por conta disso, embora o objetivo fundamental do trabalho missionário seja “converter” surdos para o cristianismo, indiretamente, essa instituição se tornou uma grande formadora de intérpretes em diferentes regiões do Brasil. Acampamentos e encontros pluridenominacionais e oficinas do pastor Marco Antonio Arriens [...] fizeram com que essa prática se desdobrasse para todo o campo religioso brasileiro, não ficando restrita ao âmbito batista. [...] As experiências protestantes com surdo citadas, batista e luterana, e os seus desdobramentos pentecostal, neopentecostal e adventista, são formadoras por excelência de um modelo de intérprete que parece ter se desdobrado para a esfera secular. (ASSIS SILVA, 2006, p. 49, grifo nosso) Se se considerar que o relato do autor é datado de 2006, essa pode ser con- siderada uma realidade bastante recente. Atualmente, já existem muitos cursos 8 O Ministério a que o autor se reporta é o “Ministério com Surdos”, departamento existente em muitas igrejas evangélicas para organizar os traba- lhos de interpretação durante os cultos, aulas dominicais e encontros de estudo bíblico. 130 Áreas de atuação de formação para intérpretes, acontecendo de, às vezes, o intérprete formado no meio secular, isto é, fora de instituições religiosas, atuar no contexto religioso. Claro, uma crítica a ser feita é que nesse âmbito o trabalho do intérprete é visto como um dom, como um meio de o indivíduo agradar a Deus, o que faz com que, mais uma vez, a atuação do intérprete não seja remunerada. Outro fato que chama a atenção nesse contexto de atuação, é que os intérpretes atuam nas igrejas que frequentam, em que professam sua fé, descaracterizando, por um lado, o caráter de profissão de sua atuação, motivo pelo qual são rechaça- dos por outros intérpretes. O ideal seria que o profissional pudesse atuar como tal e receber por seus serviços, mas isso implica em outras questões de ordem moral, ética, que são de responsabilidade apenas do próprio intérprete e da instituição onde atua. Por motivos como os arrolados anteriormente, e ainda os vistos na primeira seção, é que o contexto educacional acaba sendo a principal, mais segura e reco- nhecida área de trabalho para o intérprete. Portanto, a seguir, no texto complemen- tar, você encontra uma reflexão sobre o trabalho de intérpretes na rede regular de ensino por meio da política de inclusão dos alunos com necessidades especiais. Texto complementar A política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva e a educação dos alunos surdos (DUTRA, 2008, s/p) A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação In- clusiva (MEC/2008) tem como objetivo assegurar a participação e a apren- dizagem aos alunos com deficiência, transtornos globais de desenvolvimen- to e altas habilidades/superdotação nas escolas comuns de ensino regular, atendendo o princípio constitucional da igualdade de condições de acesso e permanência na escola e continuidade de estudos nos níveis mais elevados de ensino. De acordo com esse objetivo, a Educação Especial é definida como uma modalidade transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, que atua de forma complementar ou suplementar ao ensino regular, disponibilizando Áreas de atuação 131 serviços e recursos para as atividades de atendimento educacional especiali- zado e a promoção da acessibilidade nos ambientes processos educacionais. Entre as áreas de atuação da Educação Especial destacam-se as ações vol- tadas para processo educacional dos alunos surdos, contemplados nos últi- mos anos com o fortalecimento das políticas inclusivas desencadeadas pelo Ministério da Educação, os sistemas de ensino, para a formação de docentes e demais profissionais, para a produção de materiais didáticos e pedagógi- cos e para a expansão de estudos na área, especialmente no que tange ao uso e à difusão da Língua Brasileira de Sinais (Libras). O direito que os alunos surdos têm à matrícula na rede regular de ensino determina que as escolas devem organizar-se para atender às diferenças linguísticas, assumindo novas responsabilidades no desenvolvimento do processo educacional. Portanto, esta organização da política pública na perspectiva da educação inclusiva traz o acúmulo das conquistas dos movi- mentos sociais, das pesquisas desenvolvidas pelas universidades e das ex- periências das escolas que promovem o acesso e a aprendizagem de todos os alunos no ensino regular. Para viabilizar a ampliação do acesso e a qualidade do processo educacio- nal, o desenvolvimento inclusivo das escolas possibilita a construção de uma proposta pedagógica deeducação bilíngue, tornando-se condição necessária para a superação da concepção e organização de espaços educacionais para os alunos surdos, de forma segregada, em razão da diferença linguística. A proposta curricular de educação bilíngue deve contemplar as experiên- cias visuais, o uso e o ensino da língua de sinais e da língua portuguesa, os livros didáticos acessíveis, a aprendizagem da Libras pela comunidade escolar, bem como a interação entre alunos surdos e ouvintes, para o desenvolvimen- to linguístico, cultural e pedagógico, no mesmo ambiente educacional, consi- derando que fazem parte de uma sociedade e que compartilha de elementos e criações culturais de surdos e ouvintes, bem como de conhecimentos e va- lores éticos, políticos e sociais, construídos individual e coletivamente. Na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclu- siva destaca-se a orientação da proposta de educação bilíngue para que, devido à diferença linguística, o aluno surdo esteja com outros surdos em turmas comuns do ensino regular, favorecendo a não discriminação e a interface das diferentes culturas e constituição de espaços que valorizam as diferenças. 132 Áreas de atuação Essa trajetória e concepção, desencadeada pela Secretaria de Educação Especial desde 2003, conduziu a ação no MEC para a constituição e coorde- nação do Grupo de Trabalho, que após intenso debate com os representantes das instituições públicas de educação e dos movimentos sociais, resultou no Decreto 5.626/2005, que regulamenta a Lei 10.436/2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras. O Decreto constitui um marco da política educacional do nosso país, tendo um papel preponderante nesse processo que envolve as dimensões relacionadas à garantia dos direitos dos alunos, à formação dos professores, à gestão escolar e à qualidade da educação. A partir da regulamentação da lei de Libras, a oferta do ensino de Libras, como direito dos alunos surdos, passa a ser a diretriz que norteia os sistemas de ensino para a garantia do acesso à comunicação e à informação no proces- so educacional, garantida mediante a implementação da Libras e da Língua Portuguesa na modalidade escrita para surdos. O conhecimento de duas ou mais línguas e o convívio com as diferenças de todos na escola e na comuni- dade constituem um conjunto de competências e experiências que aproxi- mam a prática docente das necessidades de aprendizagem dos alunos. A formação de professores altera a perspectiva clínica e passa a dar ênfase ao enfoque pedagógico que modifica sua atuação e lhe permite tomar as decisões quanto ao processo educacional, dando respostas às di- ferenças dos alunos. O ensino da Libras e a língua portuguesa na modali- dade escrita, como parte da formação dos alunos surdos, deve ser ofertado nas escolas em que estão matriculados, constituindo o atendimento edu- cacional especializado. Conforme o Decreto 6.571/2008, considera-se atendimento educacional especializado o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e peda- gógicos organizados institucionalmente, prestado de forma ou suplementar à formação dos alunos no ensino regular. Esse atendimento deve integrar a proposta pedagógica da escola, envolver a participação da família e ser rea- lizado em articulação com as demais políticas públicas. Portanto, os sistemas de ensino devem organizar turmas abertas a alunos surdos e ouvintes, viabilizar a formação de professores, disponibilizar serviços de tradutor e intérprete de Libras/língua portuguesa e ofertar o atendimento educacional especializado nas salas de recursos multifuncionais da própria escola. Esse atendimento poderá, extraordinariamente, ser realizado em centro Áreas de atuação 133 educacional especializado, que constitua serviços de apoio às escolas regula- res, no âmbito da formação e da produção de materiais didático-pedagógicos. A evolução da política de Educação Especial pode ser observada na am- pliação do número de alunos surdos na Educação Básica e Superior nos úl- timos anos e na valorização profissional dos professores de Libras, que pas- saram a fazer parte da comunidade escolar. No Brasil, os dados do Censo Escolar/INEP/2007 registram a matrícula de 64 150 alunos surdos ou com de- ficiência auditiva na Educação Básica. Os indicadores do Censo da Educação Superior/2005 apontam 2 428 alunos, representando um avanço de mais de 50% em três anos, e nos dados obtidos no Censo da Educação Superior/2006 foram registradas 2 595 matrículas de alunos surdos ou com deficiência au- ditiva em cursos presenciais. O Brasil destaca-se porque tem uma política educacional inclusiva, que provoca, também, mudanças na estrutura da Educação Superior pela intro- dução da Libras como disciplina obrigatória em todos os cursos que formam professores e fonoaudiólogos, bem como para a oferta de cursos de licencia- tura e de bacharelado em Libras. Entre as principais ações nesta área, destacam-se: 1. a implementação do ProLibras – Exame Nacional para Certificação de Proficiência no ensino da Língua Brasileira de Sinais e para Certifica- ção de Proficiência em Tradução e Interpretação de Libras/Língua Por- tuguesa, realizado anualmente pelo MEC/INEP, em todos os estados, desde 2006, obtendo 1 380 profissionais certificados para o ensino de Libras e 1 480 profissionais para a tradução e interpretação da Libras; 2. a criação do Curso de Pedagogia Bilíngue – Libras/Língua Portuguesa, no Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES, em 2005, que se tornou referência como primeiro curso superior bilíngue para a forma- ção de professores surdos e ouvintes; 3. a implantação do Curso Superior de Letras com Licenciatura em Língua Brasileira de Sinais/Libras e de Bacharelado em Tradução e Interpreta- ção de Libras, em 2006 e 2008, respectivamente, por meio da parceria entre o MEC e a Universidade Federal de Santa Catarina com polos em 30 instituições públicas de Ensino Superior, na modalidade a distância, para mais de 1 000 alunos; e 134 Áreas de atuação 4. a implantação dos Centros de Formação de Profissionais da Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez – CAS, implementado em parceria entre o MEC e todos os estados, com equipamentos e recur- sos para a oferta dos cursos de formação de professores, a produção de material bilíngue e o atendimento educacional especializado. O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) fortalece as políticas educacionais voltadas para a educação dos alunos surdos por meio dos se- guintes programas: 1. Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais que visa apoiar os sistemas de ensino na institucionalização da oferta do atendimento educacional especializado nas escolas da rede pública de ensino e disponibilização de recursos para a promoção do acesso ao currículo; 2. Programa de Formação Continuada de Professores na Educação Es- pecial, que oferta cursos de extensão, aperfeiçoamento e especiali- zação nas áreas do atendimento educacional especializado. Para esse programa, foram credenciados cinco cursos para a formação de 2 500 professores para atuar no contexto educacional inclusivo da educação de alunos surdos. Esses cursos estão sendo desenvolvidos na Universi- dade Estadual do Pará (UEPA); na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); na Universidade Federal de Uberlândia (UFU); na Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília); na Universidade Federal do Amazo- nas (UFAM); e na Universidade Estadual de Maringá (UEM); 3. Programa Incluir: Acessibilidade na Educação Superior, iniciado em 2005, promove o fomento à criação de núcleos de acessibilidade nas institui- ções federais de Educação Superior com vistas à eliminação das barrei- ras físicas, pedagógicas, e nas comunicações, garantindo as condições de acesso e permanência dos alunos com deficiência na Educação Superior. Com relação aos avanços para a acessibilidade, destacam-se os progra- mas do livro didático e paradidático desenvolvidospelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e do Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE), foram distribuídos os clássicos da literatura em Libras, os dicionários ilustra- dos trilíngues – Libras/Português/Inglês – o livro didático de alfabetização Áreas de atuação 135 acessível em Libras, e também a produção da coleção de livros nas disci- plinas de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Geografia e História em Libras, destinados aos alunos com surdez dos anos iniciais do Ensino Funda- mental, que começará a ser distribuída no próximo ano. A ampliação dos títulos em Libras, distribuídos pelo programa, vem aten- der a necessidade de acesso aos materiais didáticos disponibilizados a todos os alunos e sua utilização pelos alunos surdos na língua que lhes possibilite maior facilidade para compreensão e interpretação. Por meio dessas ações os sistemas de ensino passam a ter referenciais para atender à diferença lin- guística dos alunos surdos nas classes comuns de ensino regular. A partir do Decreto 6.571/2008, que institui o atendimento educacional especializado, as ações são consolidadas com o estabelecimento da política de financiamento, não mais definida exclusivamente em razão do ingresso do aluno no sistema de ensino, mas a partir da disponibilização dos serviços da Educação Especial. Desse modo, o valor do Fundo Nacional de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Magistério (FUNDEB), destinado aos alunos matriculados nas escolas comuns de ensino regular, passa a ser dobrado, quando estes também estiverem matriculados no aten- dimento educacional especializado, no turno oposto ao da escolarização. Sem perder de vista os desafios a serem enfrentados pelos sistemas de ensino que ainda estão aprendendo a valorizar as diferenças, a reconhecer a singularidade de cada aluno, a possibilidade de construção de uma identifi- cação positiva com a Libras contribuirá para a conquista de espaços educa- cionais, sociais e culturais que fortaleçam a inclusão dos alunos surdos. Dicas de estudo INSTRUÇÃO NORMATIVA 008/2008 – SUED/SEED – Estabelece normas para a atuação do profissional Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais – Libras/Língua Portuguesa (TILS) nos estabelecimentos de ensino da rede públi- ca estadual do Paraná. Embora esse documento se destine a regular as normas de atuação do TILS nos departamentos de ensino da rede pública estadual do Paraná, ele serve 136 Áreas de atuação como ponto de apoio e orientação para os profissionais que atuam em outros estados e, porventura, ainda não possuem documento equivalente. Além disso, sua leitura é indispensável aos que pretendem atuar como intérprete educacio- nal no estado do Paraná. Modelo bilíngue e bicultural (p. 147-153), de Maria Cristina Pereira. Seção de artigo científico. Interpretação interlíngue: as especificidades da interpretação de língua de sinais. Cadernos de Tradução – UFSC, v. 1, n. 21, p. 135-156, 2008. A leitura é recomendada para todos que desejam se inserir no mercado de trabalho e ficar a par do modelo de intérprete que os clientes procuram, obser- vando, claro, os pontos em que certas atitudes precisam ser revistas. Atividades 1. Explique o que são intérpretes naturais ou empíricos, validados e certificados. 2. Por que o trabalho no contexto educacional é mais complexo do que se su- põe? Áreas de atuação 137 3. Por que os ILS que atuam no contexto religioso sofrem preconceito dos que não atuam e por que razão tal preconceito não se fundamenta? Referências ASSIS SILVA, César Augusto. Da missão à profissão: produzindo novas experiên- cias da surdez. In: ENCONTRO DE PROFISSIONAIS TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS DO MATO GROSSO DO SUL, 2, 2006, Campo Grande - MS. Anais... Campo Grande: APILMS, 2006. v. 1. p. 46-56. DUTRA, Claudia Pereira. A política de educação especial na perspectiva da educa- ção inclusiva e a educação dos alunos surdos. Revista Virtual de Cultura Surda e Diversidade, 3. ed., nov. 2008. Disponível em: <http://editora-arara-azul.com. br/novoeaa/revista/?p=128>. Acesso em: 1 nov. 2010. LACERDA, Cristina B. F. de; POLETTI, Juliana E. A escola inclusiva para surdos: a si- tuação singular do intérprete de língua de sinais. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 27, 2004, Caxambu. Anais... Rio de Janeiro: ANPEd, 2004. Disponível em: <www. anped.org.br/reunioes/27/gt15/t151.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2010. MACHADO, Paulo César. A Política de Integração/Inclusão e a Aprendizagem dos Surdos: um olhar do egresso surdo sobre a escola regular. Dissertação (Mes- trado em Psicopedagogia) – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação de Surdos, Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis, 2002. Disponível em: <http://wiki.ifsc.edu.br/mediawiki/images/d/dc/A_politica_integracao_in- clusao_dissert.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2010. 138 Áreas de atuação MARTINS, Diléia Aparecida. Formação e trabalho do Intérprete de Libras na Edu- cação Superior: primeiras aproximações. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 31, 2008, Caxambu. Anais... Rio de Janeiro: ANPEd, 2008. Disponível em: <www. anped.org.br/reunioes/31ra/2poster/GT15-4728--Int.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2010. PEREIRA, Maria Cristina. Interpretação interlíngue: as especificidades da inter- pretação de língua de sinais. Cadernos de Tradução, UFSC, v. 1, n. 21, p. 135- 156, 2008. QUADROS, Ronice Müller de. O Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. 2. ed. Secretaria de Educação Especial; Brasília: MEC; SEESP, 2007. ROSA, Andréa Silva. Entre a Visibilidade da Tradução da Língua de Sinais e a Invisibilidade da Tarefa do Intérprete. Petrópolis: Arara Azul, 2008. Gabarito 1. Resposta mínima deve contemplar que essas são as classificações para o ILS conforme o seu nível de formação. Nesse sentido, intérpretes naturais ou em- píricos são pessoas bilíngues em português e Libras que “atuam” como intér- pretes, porém sem nenhuma instrução formal para a profissão. Os validados são pessoas que atuam como intérpretes naturais e recebem, por meio da aprovação em um teste, um certificado provisório (validação) para trabalha- rem como ILS. Já os intérpretes certificados são aqueles que cursaram algum tipo de formação mais elaborada, normalmente promovida em parceria com a Feneis (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos). 2. Resposta do aluno deve considerar que o exercício dessa função requer formação específica, sendo que a capacitação do profissional deve envol- ver aspectos sobre o processo ensino-aprendizagem, sobre a formação de conceitos e a construção de conhecimentos, além da formação linguística implicada no trabalho de interpretação. 3. O preconceito existe porque para os que não conhecem o histórico dessa área é comum o pensamento de que os intérpretes que aí atuam não têm capacidade para o ato de interpretação e que muito do que fazem não passa de português sinalizado. No entanto, muitos profissionais capacitados fo- ram formados no meio religioso e apresentam boa habilidade interpretativa, Áreas de atuação 139 com vocabulário amplo, sendo flexíveis no ato interpretativo, à medida que o exercício de interpretação numa igreja exige do intérprete a tradução dos mais variados gêneros do discurso. 141 A proposta desta aula é munir você, aspirante a intérprete ou intér- prete, de orientações práticas para o desenvolvimento da atividade de in- terpretação e tradução. Na medida do possível, a exposição contemplará práticas desenvolvidas especificamente para a tradução e interpretação de línguas visuais. Todavia, é bom lembrar que devido à escassez desse tipo de orientação, muito do que será discutido aqui advém de práticas e dicas pensadas para tradução e interpretação de línguas orais. Além disso, o conteúdo com o qual você se depara neste texto é um apanhado de riquezas e minúcias encontradas em obras de referência do ponto devista teórico e prático sobre tradução e interpretação. O texto está organiza- do por modalidades de atuação – interpretação simultânea, consecutiva e tradução, sendo que a cada seção são apresentadas dicas e sugestões gerais que se direcionam para propostas específicas encontradas na lite- ratura consultada, à disposição nas referências bibliográficas. Para finalizar a proposta desta aula, alguns temas com os quais você já se deparou são pormenorizados ou apresentados sob outra perspectiva; afinal, você per- ceberá, quiçá “aceitará”, que, de fato, um profissional de interpretação e tradução se faz na prática, na sua e por meio do relato de outros, motivo pelo qual esta aula procura aproximar você, estudante, do relato de outros profissionais, de suas práticas, suas dificuldades e suas soluções, nunca acabadas, sempre em construção, sob constante revisão. Estratégias para a interpretação simultânea Em primeiro lugar, é de suma importância dizer que ninguém nasce in- térprete. Na verdade, há poucas profissões para as quais se precisa nascer predisposto, se é que isso existe. Talvez na área desportiva, na qual certas qualidades fisiológicas e biológicas significam vantagens indiscutíveis, talvez em profissões que exijam destreza manual impecável (cirurgias neurológicas, desarmamento de bombas etc.), entre alguns outros poucos Práticas de tradução e interpretação em Libras Vídeo 142 Práticas de tradução e interpretação em Libras casos. No mais, e talvez até mesmo nestas, as capacidades requeridas podem ser aprendidas ao longo da vida, durante o processo de formação, e podem ser treinadas e aperfeiçoadas a qualquer momento: “[...] a interpretação simultânea é uma habilidade treinável. Você, eu e qualquer pessoa motivada temos, po- tencialmente, chance de nos tornar excepcionais intérpretes. Não acredite em quem lhe disser o contrário” (MAGALHÃES, 2007, p. 198). Isso, acredite, é a mais pura verdade. Não se quer dizer que chegar a ser intér- prete seja um processo fácil, pois não é. É preciso muito investimento pessoal, financeiro, de tempo, é preciso paciência, perseverança, estudo, preparo, auto- crítica, saber relevar aos outros e a si mesmo. No caso do Intérprete de Língua de Sinais, o ILS, esse processo é ainda mais árduo. Pense sobre quantos cursos de formação ou aperfeiçoamento de intérpretes você tem notícia, sobre a disponi- bilidade de cursos de língua de sinais, sobre em como poder participar de uma imersão em uma língua de sinais, analise ainda os instrumentos de consulta à disposição do intérprete e tradutor dessa modalidade de língua. É, não é nada fácil, mas a boa notícia é que não se trata de tarefa impossível, apenas é preciso reconhecer que o Intérprete de Língua de Sinais ainda tem um bom caminho a construir quanto à produção de conhecimentos teóricos e práticos. Não existe caminho pronto a ser perseguido, existem certos direcionamentos oriundos da experiência que os intérpretes orais podem compartilhar com o ILS. Vale lembrar que mesmo a interpretação oral, historicamente mais praticada e aceita como profissão há mais tempo, dispõe de pouco material organizando o conhecimen- to, teórico ou prático, que tal atividade demanda. Na interpretação simultânea em línguas orais, a cabine de interpretação é dividida por dois profissionais. Esse é um modelo que vem se tentando adotar na interpretação em Libras, principalmente em palestras, simpósios, encontros de grande porte e de longa duração. Na área educacional, em nível de pós-gra- duação, tem-se notícia de que a divisão da interpretação é uma prática de insti- tuições federais. A presença de dois intérpretes no período de aula, em todos os níveis de educação, em qualquer instituição de ensino, é o ideal a ser alcançado, principalmente do ponto de vista do ILS e da própria qualidade da interpretação. Ora, um período de aula compreende quatro horas de interpretação, período durante o qual o ILS terá de verter, na maioria das vezes sozinho, conteúdos os mais variados possíveis, sem ter o apoio de um colega para tomar notas, ajudar em alguma decisão vocabular e, evidentemente, sem poder se “desligar” da in- terpretação durante essas quatro horas. Assim, sempre que possível, o recomen- dado é que trabalhem em sistema de parceria dois intérpretes. Práticas de tradução e interpretação em Libras 143 Voltando à área de interpretação de conferências, mas também não desconsi- derando a educacional, o ILS precisa estar apto a transitar por diferentes campos do saber, pois cada evento exigirá dele um conhecimento específico, daí deriva as afirmações de Magalhães (2007, p. 203-204) de que “[...] a busca por conteúdo deve ser objeto da mesma dedicação que se emprega no desenvolvimento das línguas” e “[...] tão importante quanto a cultura histórica e científica, o conheci- mento clássico ou formal, é a contemporaneidade da informação.” Estar a par do que se passa no país, no exterior, das discussões em voga, ter um conhecimento eclético, ainda que geral, pode representar o diferencial entre uma interpretação bem-sucedida ou malsucedida, pois tais informações e conhecimentos podem representar uma base onde apoiar a compreensão de determinados conteúdos, termos técnicos, fazer relação entre as ideias expostas pelo orador etc. O esperado, o desejado, é que, tanto na tradução simultânea quanto na conse- cutiva, o texto a traduzir seja colocado previamente à disposição do intérprete – o que por si só não garante que ele tenha acesso à compreensão dos conteúdos ali apresentados, daí a necessidade de estar sempre investindo em “acumular” co- nhecimentos e informações, para que se tenha um conhecimento prévio de onde partir. Ter acesso ao texto antecipadamente não representará a boia de salvação do intérprete, posto que muitos oradores se afastam do texto entregue e optam por improvisar. Numa situação dessas, ajuda refletir sobre a analogia proposta por Magalhães (2007) e extrair dela dicas para a atuação e solução de conflitos. De forma a explicar no que consiste a interpretação, o autor constrói uma analogia entre o ato de passar compras num caixa de supermercado e o proces- so de interpretação. Suas considerações tomam por base a interpretação simul- tânea e a consecutiva; neste momento será tratada da analogia correspondente à interpretação simultânea e a próxima seção se ocupará da comparação relativa à interpretação consecutiva. Na comparação proposta, o comprador é o palestrante, a lista de compras é o roteiro da apresentação, que se modifica conforme a necessidade ou carac- terística do conferencista e do seu público. A operadora de caixa é a intérprete, responsável pelo processo de tradução. Durante a analogia, o autor observa que o comprador-palestrante pode ser organizado e respeitar a lista-roteiro com seus objetivos preestabelecidos, se- guindo uma sequência lógica. Mas também pode ser impulsivo, passando de um assunto a outro, redefinindo a prioridade das ideias preestabelecidas e usando de improvisação. Os produtos a passarem pela operadora de caixa correspon- 144 Práticas de tradução e interpretação em Libras dem ao discurso do palestrante, assim ela os vai recebendo (palavras, frases, uni- dades de pensamento) conforme o comprador os coloca na esteira do caixa: 1 litro de leite 1 pote de margarina 8 pães 4 cervejas 3 pacotes de fralda 1 pote de margarina 2 litros de leite 2 cervejas 4 frascos de xampu 1 pacote de biscoitos 1 frango congelado 1 lata de Nescau 5 quilos de arroz 1 refil para barbeador 1 pacote de biscoitos Meio quilo de batatas (MAGALHÃES, 2007, p. 48) Magalhães (2007) observa que, atualmente, com o scanner instalado no caixa, essa operação ficou muito mais fácil. No entanto, quando não havia esse recurso, era preciso registrar cada item manualmente. Para tanto, a pessoa responsável por essa tarefa (a intérprete na analogia do autor) podia alterar um pouco a se- quência dos itens, de forma a organizá-los segundo algumcritério, quantidade por exemplo. Nesse processo, ela faria algumas pausas para poder agrupar os produtos de acordo com o critério escolhido, faria o registro deles e os passa- ria ao empacotador na nova ordem estabelecida. Pelo critério da quantidade, a caixa-intérprete juntaria os dois potes de margarina, as seis cervejas, os dois pacotes de biscoito e os três litros de leite. Poderia também agrupar os itens con- forme o seu peso, registrando os mais pesados primeiro, que seriam os primeiros a serem acomodados no pacote, evitando que danificassem produtos mais leves ou frágeis, que ficariam por último. Trazendo tal estratégia para o campo linguístico, Magalhães esclarece: Numa situação linguística, essas acomodações equivaleriam a esperar a conclusão de algumas frases, até se ter certeza da intenção pretendida pelo autor. Além de eventuais hesitações do palestrante, é comum, no caso de línguas como o inglês, que os adjetivos venham à frente do substantivo, forçando o intérprete a esperar a conclusão de uma série por vezes longa de qualificadores até saber do que se está falando [...]. (MAGALHÃES, 2007, p. 49) Práticas de tradução e interpretação em Libras 145 As noções exploradas até aqui, conhecimento do mundo – também chama- do de conhecimento prévio –, organização do discurso numa sequência lógica, estratégias para passar o conteúdo adiante com o mínimo de perda e com o máximo possível de otimização da informação, são abordadas, ampliadas e es- quematizadas no artigo científico intitulado “Coerência textual, conhecimento do mundo e intertextualidade: implicações na interpretação simultânea”, de Edson Lopes. Do artigo, foca-se aqui como buscar uma sequência lógica na fala do palestrante e como construir uma interpretação que se coaduna com o con- teúdo explorado pelo orador e que seja coerente enquanto “novo” discurso que é tecido. Busca-se, portanto, entender o processo de construção da coerência textual da interpretação, que leva ao público-alvo reconhecer nela uma unidade de sentido, com algo a comunicar, algo esse alcançável, passível de ser enten- dido, reconstituído a partir da coerência textual interna apresentada na versão elaborada pelo intérprete. Inicialmente, Lopes (1998) aponta que o discurso de partida pode carecer de sentido e coerência interna, exigindo que o intérprete empregue estratégias para encontrar informações que supram os vazios existentes na estruturação lógica do texto ou na memória do intérprete. As consequências das dificuldades de compreensão podem, às vezes, ser maquiadas no Texto de Chegada (TC) na IS1, mas tal recurso traz prejuízos ao sentido do texto que podem ser incongruentes. O exercício da ética e a busca da fidelidade fazem com que o intérprete procure aplicar todos os esforços para evitar esses percalços. (LOPES, 1998, p. 391) Um dos esforços apontados por Lopes é a procura por uma interpretação que se paute não apenas nas informações recebidas do palestrante, mas também nas circunstâncias que envolvem o ato interpretativo. Assim, identificar o pú- blico para o qual se interpreta, seu possível aporte teórico sobre o assunto, os objetivos de estar ali assistindo àquela palestra, e não outra, o conhecimento que tem da cultura de partida etc. é útil para estabelecer quais conteúdos, cons- truções sintáticas, palavras, até mesmo nome de lugares, podem representar um obstáculo para que o público construa coerência a partir do discurso do intér- prete. O exemplo fornecido por Lopes tem a ver com a tradução para o inglês de uma passagem em que se fala dos esforços do Itamaraty para tentar convencer o governo americano a comprar aviões de treinamento militar da Embraer. O autor apresenta três versões possíveis para a mensagem proferida pelo orador e em seguida avalia a elaboração do discurso de chegada conforme os conheci- mentos que o intérprete supõe que o público-alvo compartilhe: 1 No original, sigla usada para fazer referência à interpretação simultânea. 146 Práticas de tradução e interpretação em Libras Na opção 1, ele teria classificado o público como suficientemente informado do significado de “Itamaraty”. No segundo, ele identifica o público como parcialmente conhecedor da função daquele organismo e, para compensar esse conhecimento parcial do público, identifica o citado órgão como parte da administração governamental brasileira encarregada de relações exteriores. Na terceira opção, ele identifica o público como leigo no assunto de relações internacionais (ainda que a nível de conhecimento de jornal) e explicita todos os elementos do texto, colocando-o numa mesma estrutura (frame) onde se podem encontrar outros itens tais como Foreign Office, Quay d’Orsay, Itamaraty, State Department etc., tendo como hiperônimo o significado “órgão nacional encarregado de relações exteriores”. O processamento da informação recebida pelo intérprete ativou diferentes frames. O conteúdo desses frames faz parte da massa de conhecimento que uma pessoa possui e que pode estar constantemente ativa e receptiva a novas informações. As inferências são feitas pelo receptor permanentemente com base no seu conhecimento prévio, fator sem o qual não existirá a compreensão. (LOPES, 1998, p. 398) Outro exemplo explorado pelo autor diz respeito ao uso de palavras-conceitos no texto-fonte que só existem na língua de partida, posto que são relacionadas a histórias cultural, social e política do país, as quais para os falantes nativos são vo- cábulos corriqueiros, cotidianos, mas que se simplesmente transliteradas ou ainda traduzidas, quando possível, não significam nada para o público-alvo da interpre- tação, posto que tais conceitos não fazem parte do seu esquema cognitivo. Mais uma vez a ilustração parte de uma tradução do português para o inglês, da qual seguem abaixo dois casos extraídos da lista apresentada pelo autor: Política do “Café com Leite” – “Coffee and Milk Policy”, a policy of joint action in political and economic terms between the States of São Paulo and Minas Gerais, in the 1930´s; the former was the main coffee producer and the latter the main milk producer2. (LOPES, 1998, p. 400) Politicagem – the actions of politicians that are meant either to gain prestige and other advantages or to show that they are working3. (LOPES, 1998, p. 400) Lopes (1998) aponta que um dos primeiros problemas em relação a esse tipo de termo é o tempo que demanda sua interpretação (que exige uma explicação) em relação ao tempo empregado no discurso do palestrante, fazendo com que o intérprete possa perder informações enquanto ainda está ocupado na tentativa de tornar tais expressões compreensíveis para o público. Essa situação foi viven- ciada durante o Seminário Internacional Valores, Cultura e Saúde Reprodutiva da Mulher, sendo que a solução proposta, dadas as circunstâncias, consistiu em: [...] utilizar os intervalos entre palestras para fornecer aos estrangeiros informações que lhes permitissem atualizar suas estruturas cognitivas, um procedimento que não satisfaz plenamente, mas que, nas circunstâncias, foi muito apreciado, conforme se expressaram alguns dos participantes estrangeiros. (LOPES, 1998, p. 401) Além dessa estratégia específica para o caso ilustrado, o autor recomenda, como procedimento mais global e prévio, com o objetivo de evitar essa dis- 2 “Política do Café com Leite”, uma política de ação conjunta em termos políticos e econômicos entre os estados de São Paulo e Minas Gerais, nos anos 1930; o primeiro foi o principal produtor de café enquanto o segundo, principal produtor de leite. 3 “Politicagem”, as ações dos políticos que objetivam ou ganhar prestígio e outras vantagens ou mostrar que estão trabalhando. Práticas de tradução e interpretação em Libras 147 tância entre o conhecimento compartilhado pelos envolvidos na interpretação simultânea: [...] a ampliação consciente e planejada, por parte do intérprete, da principal peça do processo, os seus próprios frames para queestes se aproximem o máximo possível em conteúdo daqueles do palestrante e do público. Essa ampliação deverá dar-se não apenas em termos de conhecimento específico (terminologia, fraseologia e processos – scripts), mas também em termos de outros fatores de “conhecimento do mundo” (origem e formação do palestrante, idiossincrasias etc.) que proporcionarão maior possibilidade de produção de um discurso mais coerente. (LOPES, 1998, p. 407) Até aqui se tratou da compreensão atrelada ao conhecimento de mundo, de como o intérprete pode contribuir para que seu público-alvo construa sentido. Agora interessa abordar como o intérprete processa o discurso que recebe, como atribui significado e coerência ao que lhe chega de modo que possa proporcio- nar a produção de um discurso mais coerente, conforme indicado por Lopes. Nesse sentido, o autor declara que: As estratégias para o armazenamento e para a recuperação de informações que são aplicáveis no aprendizado em geral podem ser muito úteis ao intérprete. Lloyd4 (1995, p. 32) explica que (1) o ensaio, (2) a organização, (3) a elaboração e (4) a busca sistemática (cf. LLOYD, 1995, p. 32) são estratégias que visam a facilitar esses esforços. (LOPES, 1998, p. 411) Segundo o autor, o ensaio tem a ver com nada mais que a simples repetição dos termos ou expressões que devem ser fixados até que estejam memoriza- dos, passando da memória de trabalho para um dispositivo de armazenagem de mais longo prazo. Já a organização é responsável por determinar o que tem de ser memorizado, categorias específicas, tais como substantivos, adjetivos, sinônimos, antônimos, vegetais, máquinas etc., de acordo com as preferências individuais e as próprias características do que necessita ser fixado. A elabora- ção, por sua vez, consiste num mecanismo de fixação e recuperação que analisa os elementos compartilhados pelos itens a serem fixados (sons, imagens etc.), enquanto a busca sistemática procura tirar vantagem dos processos mnemôni- cos com os mesmos fins das técnicas anteriores. Essas estratégias dependem, é claro, da disponibilização do texto antecipadamente. Estratégias para a interpretação consecutiva Voltando à analogia de Magalhães, agora a relação comprador, compras, caixa e empacotador é explorada do ponto de vista da interpretação consecuti- va. Nessa modalidade, segundo o autor, o conteúdo é empurrado em bloco para o empacotador, sendo que a caixa-intérprete só poderá proceder a operação de 4 LLOYD, P. Cognitive and Language Development. Leicester: BSP Books, 1995. 148 Práticas de tradução e interpretação em Libras registro depois de os itens já estarem empacotados e longe de suas vistas. Nesse caso, o autor explica que se a caixa não tomou nota dos itens conforme iam sendo postos na esteira, ela precisará se lembrar, usar sua memória, para poder organizar o lote. Para tanto, ela poderá organizar os produtos não só pelo critério da quantidade e do peso, mas também por categorias que facilitem a memoriza- ção, resultando numa lista como a proposta por Magalhães (2007, p. 52-53): 8 pães 2 potes de margarina 3 litros de leite 1 lata de Nescau 2 pacotes de biscoitos 5 quilos de arroz Meio quilo de batatas 1 frango congelado 3 pacotes de fralda 4 frascos de xampu 1 refil para barbear 6 cervejas Nessa lista, a caixa-intérprete não só organizou os produtos pela quantida- de, mas também procedeu uma separação funcional dos itens: artigos matinais (pão, margarina, leite, Nescau e biscoito), alimentos básicos de origem vegetal e animal (arroz, batata e frango), artigo infantil (fralda), itens de higiene (xampu e barbeador) e supérfluos (cerveja). No caso específico da interpretação, o autor observa que há uma sutileza a mais: Como aprendem logo cedo os intérpretes, os sinônimos na verdade não existem. Toda palavra, ainda que listada em dicionário como sinonímia perfeita para outra, de outro vernáculo, carrega consigo uma carga emocional, um sentimento que varia de país para país, de cultura para cultura. Varia também conforme o conjunto de valores do próprio intérprete. Portanto, há sempre alguma diferença de tensão5 a compensar, e melhor seria classificar o intérprete não apenas como transformador, mas como um bom estabilizador de voltagem. (MAGALHÃES, 2007, p. 54) 5 A tensão a que o autor se refere aqui é em analogia à voltagem elétrica. Em passagem anterior de seu livro, Magalhães (2007, p. 45) compara, em situação ideal, o trabalho do intérprete com o de um transformador de energia: “Entra 110, sai 220. Entra 220, sai 110. Entra espanhol, sai português. Entra português, sai espanhol. Como a comunicação é um processo dinâmico, a situação envolve mais que a mera substituição de palavras.” Práticas de tradução e interpretação em Libras 149 Magalhães traz à tona o caso dos sinônimos pois argumenta que ao final da in- terpretação consecutiva (a compra registrada em bloco), “[...] no recibo entregue ao comprador, os itens da lista de compra podem aparecer com o nome diferen- te. Nescau, por exemplo, pode constar como ‘achocolatado em pó’, muito embora não esteja errado perde um pouco em especificidade (substituição por item ge- nérico)” (MAGALHÃES, 2007, p. 54). Além de perda em especificidade, pode haver erro conceitual, substituindo-se, por exemplo, margarina por manteiga, e a gra- vidade do erro sempre vai depender do caso. Isso não significa, todavia, que o recurso de empregar palavras pertencentes ao mesmo campo semântico ou de generalizar não sejam válidos na interpretação consecutiva, há, apenas, que se ter cautela e não esquecer que não existe isenção total no processo de interpre- tação, mesmo que não haja a intenção de interferir: “Num nível muito profundo, pré-verbal, não somos senhores de nossas escolhas vocabulares. Somos reféns, muitas vezes, de nossas fixações e neuroses” (MAGALHÃES, 2007, p. 55). Estratégias para a tradução de textos escritos Segundo Rónai (1987, p. 17), “só uma pequena fração de leitores são capazes de ler no original as grandes obras universais; os demais, forçosamente, devem lê-las em tradução”. Razão pela qual o tradutor deve se esforçar em oferecer ao leitor um “produto” de qualidade, à altura do original, fiel dentro do conceito de fidelidade que procura não se distanciar do original mas que reconhece a impor- tância de respeitar o conhecimento do público-alvo. Para tanto, o autor sugere ainda que o tradutor aprenda e aprimore sua profissão estudando, analisando as traduções feitas por outros, comparando linha por linha entre original e tra- dução (1987, p. 20), sendo que edições bilíngues são ideais para esse objetivo. Essas dicas gerais podem e devem ser consideradas pelo tradutor ao elaborar uma tradução de uma língua oral para uma língua de sinais. Para dar conta mais especificamente da tradução do português para a Libras, são trazidas aqui as considerações de Ramos (2000, p. 1), para quem: Quando se fala em tradução de uma língua escrita, em sua modalidade literária, para a Libras, que é manifestação de uma língua na modalidade “fala/oral”, há que se pensar sob outros critérios que não aqueles encontrados na bibliografia sobre tradução disponível, que privilegia a tradução escrita/escrita ou oral/oral. A partir dessa perspectiva, a autora empreendeu pesquisa em que a Libras era a língua-alvo da tradução tentando evidenciar a possibilidade de se proce- der num trabalho de tradução textual de uma obra literária, não apenas um re- contar de história, mas uma criação autêntica de tradução. Para dar conta de tal 150 Práticas de tradução e interpretação em Libras projeto, a autora trabalha com a premissa de que “o conceito de tradução cultural por si só rejeita o papel da origem enquanto valor, já que pressupõe uma estra- da de duas mãos em fluxo constante. Assim, a possibilidade de interferência do tradutor existe e é esperada” (RAMOS, 2000, p. 9). A proposta de tradução de que fala a autora trata-se da versão para crianças de Alice noPaís das Maravilhas, trabalho efetivado pela autora, ouvinte e Intérprete de Libras, e a tradutora surda. Conforme Ramos (2000), ficou acordado entre as duas pesquisadoras que, mesmo sendo Ramos a representante do saber institucional, era a tradutora surda a responsável pelas decisões finais com relação ao texto em Libras. Essa tem se tornado uma prática usual e recomendável na tradução de textos escritos para Libras porque permite que a construção da compreensão do texto seja elaborada em parceria, com o ouvinte auxiliando o surdo na apro- priação de termos, construções e metáforas próprias da língua oral. Ao tradutor surdo, cabe a adaptação de tais conteúdos de modo que sejam compreendidos pelo público surdo, evidentemente essa tarefa cabe ao tradutor surdo porque ele conhece, compartilha dos mesmos valores culturais do público-alvo. Outro relato de experiência sobre prática de tradução escrita muito interes- sante é o encontrado em Quadros e Souza (2008) que apresentam algumas prá- ticas de tradução experimentadas entre os tradutores/atores6 surdos do curso de Letras Libras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), considerando o contexto de ensino e aprendizagem do Ambiente Virtual de Ensino e Aprendi- zagem (AVEA). Como os textos-base das disciplinas são escritos em língua por- tuguesa e a língua de instrução do curso é a Libras, o texto de cada disciplina ganha uma versão em Libras para ser disponibilizada aos estudantes. Tomando esse processo como ponto de partida, os autores apresentam alguns exemplos de traduções na língua de sinais avaliando-os segundo critérios como “efeitos de modalidade” e “fidelidade”. Do trabalho dos autores, serão destacadas as estraté- gias de tradução elaboradas e acordadas entre os tradutores/atores surdos. De acordo com Quadros e Souza (2008), algumas soluções tradutórias ado- tadas pela equipe de tradutores/atores surdos estão sendo construídas a partir das próprias práticas de tradução, uma vez que a equipe de tradução do curso de Letras Libras busca soluções considerando teorias e métodos dos Estudos da Tradução que poderiam ser implantados nas práticas tradutórias do portu- guês escrito para a Língua Brasileira de Sinais. Um problema enfrentado coti- dianamente, segundo os autores, é a definição permanente de terminologias em sinais para dar conta dos conteúdos de ensino explorados no curso. Assim, 6 Esse termo tradutor/ator é usado pelos autores para se referirem à impossibilidade de separar o texto de sua expressão corporal em sinais. Práticas de tradução e interpretação em Libras 151 durante as reuniões da equipe de tradução, são levadas às reuniões palavras em língua portuguesa que surgem nos textos-fonte a fim de serem identificadas so- luções tradutórias para a Língua Brasileira de Sinais, incluindo nesse conjunto os termos técnicos, termos comuns e neologismos presentes nesses textos. O primeiro exemplo prático apontado foi o uso da palavra isoglossas na disci- plina de Sociolinguística: Uma proposta de solução desse questionamento foi utilizada da seguinte maneira pelo tradutor/ator surdo: primeiramente, ele se utilizou da estratégia da transliteração apresentando o termo por meio do alfabeto manual da Libras, a palavra isoglossas. Logo em seguida, ele se valeu da repetição do sinal de comunidade em Libras dentro do seu espaço de sinalização para fazer a correspondência em nível de solução tradutória desse termo próprio do contexto teórico da Sociolinguística. (QUADROS; SOUZA, 2008, p. 185) Em seguida, os autores avaliam que uma das alternativas muito comuns entre tradutores para solucionar problemas de adequação terminológica é recorrer a dicionários monolíngues e bilíngues. No entanto, essa estratégia não é comum entre os tradutores/atores, já que os dicionários existentes em Libras são muito restritos e contêm um número muito pequeno de termos. Tendo isso em mente, a melhor alternativa é: [...] a troca de ideias com os seus pares e, às vezes, a busca por termos existentes em outras línguas de sinais, optando-se, em alguns casos, pelo empréstimo linguístico de outra língua de sinais, normalmente a Língua de Sinais Americana (ASL) ou a Língua de Sinais Francesa (LSF). (QUADROS; SOUZA, 2008, p. 185) Ainda considerando as peculiaridades de se traduzir um texto escrito para a Libras, os autores tratam da necessidade de uma escrita intermediária entre esta e a língua portuguesa que sirva de ponto de apoio para a memorização e orga- nização do conteúdo a ser traduzido: Outro aporte em nível de métodos de trabalho é a busca por um modelo de escrita que consiga representar os sinais. Nesse sentido, a equipe de tradutores/atores surdos começou a vivenciar “ao vivo” os conflitos tradutório-processuais de “ler o texto em português, memorizando os significados deste para expressá-los na língua de sinais”, ou seja, “sinalizar/encenar” diante da câmera. O uso da memória de textos longos é inviável. Assim, há a necessidade de “ler o texto na estrutura da língua de sinais com palavras do português”, ou seja, fazer uso de uma interlíngua escrita, uma espécie de “glosa” em português do texto na língua de sinais, para apoiar a memória da tradução sinalizada. (QUADROS; SOUZA, 2008, p. 186) Pelo relato de Quadros e Souza (2008), os tradutores/atores surdos empre- gam esse produto interlinguístico – as “glosas” – para filmarem sua versão em Libras. Essas “glosas” têm se transformado ao longo das atividades de tradução. Nesse processo de transformações, devido à incompatibilidade de algumas pa- lavras do português, que não servem para representar algum sinal, símbolos para representar os sinais têm sido desenvolvidos: 152 Práticas de tradução e interpretação em Libras Isso tem sido muito comum para o uso de dêiticos, que, na língua de sinais, são associados à apontação para diferentes pontos estabelecidos no espaço. Esse recurso também tem sido usado para representar o uso de classificadores, que são recorrentes à Língua Brasileira de Sinais e articulados com configurações de mãos específicas, que representam sinais incorporando várias informações, entre elas: aspecto, modo, número e pessoa, além de poderem apresentar ainda conteúdos descritivos; tudo isso, em um único sinal. (QUADROS; SOUZA, 2008, p. 187) Por fim, para garantir a qualidade, fidelidade e coerência na tradução apre- sentada, os autores relatam a presença de outro tradutor durante as filmagens, cujo papel é produzir um retorno (feedback) “ao vivo” sobre o processo tradutó- rio, tanto em relação aos aspectos teóricos quanto aos objetivos previamente acordados por toda a equipe de tradutores/atores surdos. Esse retorno precisa ser feito “ao vivo” para que os possíveis problemas possam ser revistos e solucio- nados antes da edição das filmagens, posto que após edição o processo de revi- são da tradução é bastante difícil. Afinal, por se tratar de imagens, não se podem fazer alterações pontuais em uma única passagem do texto como seria possível numa versão escrita; as correções, sempre que necessárias, precisam ser feitas numa tomada inteira de filmagem, o que implica gravar tudo de novo, editar mais uma vez e ainda correr o risco, segundo os autores, de não ter um texto bem acabado do ponto de vista da fluência e do encaixe entre uma tomada e outra. Também é função do segundo tradutor “acompanhar as soluções tradu- tórias sugeridas pelo tradutor/ator surdo durante todo o processo e intervir no caso de surgir quaisquer faltas de clareza ou ‘ruídos’ nos textos traduzidos para a língua de sinais”. Quadros e Souza (2008, p. 206) terminam sua exposição com uma considera- ção que não poderia deixar de ser reiterada aqui: “os estudos sobre as técnicas e os processos envolvidos na tradução de um texto escrito para um texto visual- -espacial precisam continuar sendo investigadas”. Limites da atuação do intérprete Como visto até aqui, o trabalho de tradução e interpretação é árduo, exige estudo, preparo, prática, entretantas outras coisas. Porém, acima de tudo, o tra- balho de interpretação exige saber reconhecer os limites da atuação, até onde se pode ir tanto na formulação, reconstituição de um discurso, quanto no contato e interação com o cliente: O ILS trabalha em variadas circunstâncias, precisando ser capaz de adaptar-se a uma ampla gama de situações e necessidades de interpretação da comunidade surda, situações às vezes tão íntimas quanto uma terapia, sigilosa como delegacias e tribunais, ou tão expostas como salas de aulas e congressos. (ROSA, 2008, p. 115) Práticas de tradução e interpretação em Libras 153 Nessas circunstâncias, mesmo quando o ILS conhece todas as palavras apro- priadas, o ato interpretativo exige uma reação tão imediata que não há tempo para pensar: faltam segundos, os sinais certos são lembrados uma frase mais tarde, quando já não adiantam mais. Por essa razão, a prática, o treino, se possível diário, o contato com a comunidade surda são aliados do ILS, porém, segundo Rosa (2008), nem sempre esse profissional tem consciência da necessidade de atualização de assuntos gerais. Essa espécie de acomodação tem a ver, na pers- pectiva da autora, principalmente com a concepção assistencial, de muitos ILS, de que se o surdo tiver alguma informação em Libras já lhe é suficiente. Sobre o que a autora avalia: “é em parte compreensível que o trabalho do ILS ainda esteja relacionado ao voluntariado. A presença do ILS não é considerada um direito de cidadania, e sim um ato de benevolência às pessoas ainda consideradas defi- cientes” (ROSA, 2008, p. 119). Num outro extremo, contrária a essa atitude assistencialista, mas tão preju- dicial quanto ela, está a crença de que por assumir um papel de militante em busca dos direitos do surdo, a autoria do enunciado traduzido é do ILS, e não do surdo. É como se as pessoas ignorassem o fato de que o surdo sinalizou e criou seu próprio texto, o qual ganhou expressão oral através da figura do intérprete. “Essa atitude evidencia a desqualificação que se faz dos surdos, no que se refere a sua capacidade de compreensão do assunto tratado; ao mesmo tempo, o in- térprete é desqualificado ao ser colocado no lugar do trapaceador ou traidor” (ROSA, 2008, p. 122). Além desses fatores, Rosa (2008) aponta outros, objetos das seções anterio- res, que limitam a atuação do intérprete: Se o orador não tiver um domínio da própria língua (português) e/ou do assunto, que lhe possibilite expressar com clareza as suas ideias, ou seja, se a mensagem for emitida em condições desfavoráveis na língua de partida, dificilmente será compreendida pelo ILS. Frequentemente, essa situação gera embaraço para o ILS e para os surdos, pois estes percebem a insegurança do próprio intérprete. Nesses casos, os surdos tendem a interromper a interpretação e a pedir esclarecimentos. Nessas situações, quando a plateia percebe que não está sendo realizada uma interpretação coerente, é comum atribuir o fracasso ao ILS (às vezes esse fracasso é mesmo da responsabilidade do próprio intérprete). E haverá outros que irão atribuir a não compreensão do assunto à falta de capacidade da comunidade surda, reforçando o conceito da suposta incapacidade do surdo. A responsabilidade pelo fracasso será julgada segundo a concepção que as pessoas presentes têm sobre surdez, sobre a interpretação e sobre comunidades surdas. Entretanto, nunca se questiona o próprio orador, pois este já está revestido de imunidade (é falante da língua majoritária, possui legitimidade institucional para falar – em geral, possui algum título que o autoriza a estar na posição de palestrante ou professor/educador). (ROSA, 2008, p. 122) Muitas dessas limitações, como dito acima, foram tratadas nas seções ante- riores, com sugestões e estratégias para o dia a dia do ILS. Todavia, não se pode 154 Práticas de tradução e interpretação em Libras As dificuldades da ação interpretativa vivenciadas pelos intérpretes de Libras na cidade do Recife (COSTA, 2009, p. 13) A atualidade brasileira adotou o modelo inclusivista como modelo de so- ciedade. As políticas públicas ditam preceitos que se fossem efetivamente cumpridos levariam as pessoas com necessidades especiais, e nesse caso es- pecífico, os surdos, a condições de superação das dificuldades que seriam im- pressas naturalmente ao seu desenvolvimento. Portanto, o desafio proposto para esta pesquisa foi estudar a participação do intérprete de Libras a partir de seus relatos. Entendemos que o trabalho se constitui uma peça fundamen- tal para que esse aluno surdo possa receber as informações propostas em sala esquecer que o modo como o ILS entende que deva ser, eticamente, seu papel também influencia no produto final da interpretação, que pode ser mais próxi- ma ou mais distante do discurso original: Caso o ILS considere a língua transparente e possível de codificar um único sentido no discurso, esse intérprete realizará o seu trabalho da forma mais literal possível e, desse modo, já estará agindo sobre o discurso, pois ignorar informações que seriam necessárias para a compreensão da mensagem pelo surdo. O que lhe importa, nesse caso, é a língua em si, e não a compreensão e apropriação do surdo pelo assunto exposto. Em contrapartida, há aqueles que, partindo dos pressupostos de que a sua compreensão é a mais correta, realizam uma interpretação totalmente aleatória em relação à fala do locutor ouvinte, criando seu próprio texto. [...] O abuso na interpretação é um fator complicador para a comunidade surda, justamente pela sua especificidade e sua história de exclusão social. [...] A palavra é evanescente, a interpretação escapa a provas. A menos que esteja sendo filmado diariamente, o intérprete de língua de sinais tem total “liberdade” para atuar, ou seja, é de sua escolha e decisão interpretar a aula ou fazer uso dela para proveito seu. (ROSA, 2008, p. 124) Com relação a tal atitude, a autora é assertiva ao declarar que o compromis- so do intérprete não é apenas o de transladar conteúdos de português para a Libras, mas também, na sua condição de instrumento humano, o de respeitar as expectativas do cliente. Partindo disso, o texto complementar desta aula traz o relato de uma pesquisa realizada no Recife que trata, na perspectiva de intérpre- tes educacionais, das contribuições que a interpretação pode dar à educação de surdos e dos obstáculos ao longo do processo. Boa leitura! Texto complementar Práticas de tradução e interpretação em Libras 155 de aula, através da língua de sinais, uma vez que a língua de instrução que circula, nas diversas escolas, é a língua portuguesa. Assim, tentando respon- der ao objetivo proposto, foi possível constatar que os intérpretes atuam com muito empenho exercendo sua atividade interpretativa em condições, muitas vezes, adversas, uma vez que a permanência de alguns desses fatores não depende de sua participação. Eles tentam criar condições para resgatar a co- municação entre o professor da disciplina e o aluno surdo, embora ainda não tenham conseguido chegar a um patamar desejado que facilite sua ação. O modelo bilíngue adotado foi devidamente implementado na perspectiva de atingir os padrões de qualidade esperados para o seu desenvolvimento, nos levaram às seguintes conclusões:1) que os intérpretes de Libras pesquisados consideram que sua contribuição para o desempenho escolar do aluno surdo ocorre permanentemente. No entanto, a superação das dificuldades identifi- cadas depende essencialmente da adoção de medidas que tragam a chance- la dos órgãos públicos, tais como: dificuldade para interpretação sem conhe- cimento específico, falta de parceria com o professor da disciplina etc., fatores estes que influenciam diretamente no ato de interpretar. Apesar disso, colo- cam-se sempre com uma participação bastante consistente e positiva, dife- rentemente do que alguns teóricos do tema consideram; 2) em relação à me- lhoria da interação, surdo X ouvinte, constatamos que ele consideraainda deficitária devido ao fato de, muitas vezes, a comunicação na sala de aula se restringir unicamente ao intérprete de Libras. Segundo ele, quase não existe nenhuma comunicação dirigida diretamente ao professor regente, e muito menos aos colegas, trazendo como principal obstáculo, à resistência dos pro- fessores para aceitar a presença da língua de sinais circulando também em sala de aula; 3) outro obstáculo importante que aparece está no fato de que a escola regular, que ainda “fracassa” na educação dos alunos “normais”, e, ao receber alunos com necessidades especiais, nem sempre os reconhecem como de sua responsabilidade, embora lhe sejam atribuídas pelos documen- tos oficiais do Ministério da Educação (BRASIL, 2001; 2002). Esse problema torna-se bastante complexo, já que a escola, tradicionalmente monolíngue, não se dispõe a responder às demandas apresentadas pela condição linguís- tica e sociocultural, específicas, quando falamos em surdez; 4) outro fato de- tectado através dos comentários dos sujeitos são os critérios de formação dos professores e intérpretes que seguramente vão interferir no desempenho do aluno surdo, pela falta de compreensão desses profissionais sobre como atuar nesses casos. Entre os entrevistados que tinham mais estudos, ou seja, sujei- tos com pós-graduação, identificamos que, na medida em que alcançavam 156 Práticas de tradução e interpretação em Libras outro patamar de estudos, sentiam-se mais confiantes, mais seguros no exer- cício de sua atividade. Parece ser possível afirmar, nesse caso, que essa forma- ção ainda é incipiente pelo fato de não trazer alguns pontos indispensáveis para o exercício da função de intérprete, que seguramente vai além do domí- nio de Libras. Além disso, a noção que a escola tem sobre o papel do intérpre- te de Libras educacional é bastante distinta do que se constituiria sua real atuação através de uma formação geral boa, além da formação linguística, fundamentos da Pedagogia utilizados em sala de aula, entre outros. Podemos ainda comentar que os intérpretes, em muitos casos, atuam de forma inapro- priada, distante da proposta inclusiva sugerida pelo MEC (BRASIL, 2006), prin- cipalmente, pela falta de estrutura para subsidiar sua tarefa. Essa falta de es- trutura vai desde a questão de espaço físico, sua participação na vida escolar como um todo, tais como fazer parte de reuniões, planejamentos escolares etc. Na percepção deles, esse isolamento a que são lançados prejudica, dema- siadamente, sua tarefa, pois a interação com os professores tem que existir para que seja possível a consolidação de sua proposta. Ele é quem deve pro- curar romper essa barreira, pois os demais participantes da escola nunca en- contram tempo para algum diálogo. Aliado a isso, sente que há uma desvalo- rização sobre sua participação. Na realidade, os intérpretes que fizeram parte dessa pesquisa avaliam sua participação no desempenho dos alunos como sendo muito boa, considerando as condições de que dispõe. Entendemos que consideram que apesar de trabalhar em ambiente pouco motivante, desde sua acomodação física até a não existência do conhecimento prévio dos assuntos das diversas disciplinas que deverão ser trabalhados, aliados a grande dificuldade de compreender todos os assuntos que circulam em sala de aula (ninguém domina todos os assuntos). Portanto, a deficiência de sua formação, a pouca divulgação para a escola sobre o papel que deve desem- penhar a ausência de critérios para a localização do quantitativo de alunos, por profissional em cada sala, segundo os entrevistados, demandam novas formas de adaptação para realizar esse trabalho. Como uma turma com 32 alunos surdos e oito ouvintes, nas condições já descritas, poderá atuar produ- tivamente? Esse ponto não é tão simples quanto pode parecer, pois o profes- sor regente é certo, tem posição central, enquanto que o intérprete fica espre- mido em algum espaço da situação. Seria necessário um planejamento feito conjuntamente com esse professor e/ou outros elementos da escola, a fim de articular melhor essa questão, eliminando alguns desses problemas. Uma outra pergunta decorrente de sua presença como único profissional: os intér- pretes educacionais podem interpretar todos os assuntos mesmo que não os Práticas de tradução e interpretação em Libras 157 compreendam? Durante a realização das entrevistas, alguns comentaram que quando não sabem e/ou compreendem determinados assuntos, nesse caso, param a interpretação e dizem aos alunos que não estão compreenden- do e que vão perguntar depois para o professor. Um deles, especificamente, informou que quando não entende o assunto, não faz a interpretação, e, nesse caso, como fica o aluno? No entanto, nem sempre há garantias que o professor possa ajudar na superação dessa dificuldade, portanto, alguns as- suntos podem não ter a clareza necessária para que o aluno se aproprie do assunto. Nesse caso, as dificuldades vão se acumulando para novos assuntos decorrentes de anteriores. Mesmo assim eles continuam avaliando sua parti- cipação como produtiva, pois tentam utilizar todos os recursos de que dis- põem e/ou procuram outros meios para ajudar na superação dos obstáculos que vão surgindo. Pudemos identificar ainda a posição dos professores, que colocam, segundo eles, os alunos surdos na sua grande maioria como apre- sentando muitas deficiências na sua formação apesar de se encontrar em níveis de ensino mais elevados. Mesmo assim continuam apresentando de- sempenho aquém do que se pode desejar. Ao mesmo tempo, não temos ar- gumentos para dizer que sua ação tem sido produtiva. Ao contrário, as críticas ainda são muito severas, e de fato, como já afirmamos, que os resultados dessa participação ainda não se fizeram sentir. Diante dessas reflexões, nota- mos que a inclusão do intérprete de Libras ainda é uma proposta de difícil execução. No entanto, pudemos verificar que através de suas experiências diárias estão construindo um processo de inserção na atividade educacional que lentamente começa a ser reconhecida. O exercício de uma atividade pro- fissional deve ser delimitado por critérios, não trabalhar improvisando, ajus- tando, sem ter segurança de que se está na direção certa. As reflexões feitas pelos próprios intérpretes, na sua grande maioria, nos ajudam a compreender sua posição. Acreditamos que essa pesquisa contribuiu para trazer esclareci- mentos sobre as questões decorrentes da participação desse profissional considerado, para muitos, o “salvador da pátria”, o elemento novo para facili- tar a comunicação entre surdos e ouvintes. Uma outra face da medalha foi mostrada oferecendo espaço para que os intérpretes pudessem falar sobre si mesmos. Fazer uma autocrítica mais contundente sobre seu desempenho de- manda algum tempo de exercício. As instituições escolares se dão por satisfei- tas no momento em que abrem espaço para a inclusão desse profissional em algumas salas onde existam surdos. Mas, não basta apenas essa “contratação”, é preciso que sejam observados inúmeros outros aspectos que darão suporte ao exercício dessa atividade. A circulação da língua de sinais deveria ser esti- 158 Práticas de tradução e interpretação em Libras mulada, destacando ainda a interação constante com o professor da discipli- na, pois o conhecimento dos temas que estão sendo abordados nas aulas é fator relevante para o êxito da atividade interpretativa. Ser “profissional”, acima de tudo, agindo com honestidade, responsabilidade e ética, representa um caminho promissor. Dicas de estudo Grupos de discussão dos Intérpretes de Língua de Sinais na internet: <http://br.groups.yahoo.com/group/interpretesdelibras/>. <http://br.groups.yahoo.com/group/brasils/>. É importante, desde cedo, estar conectado aos assuntos e discussões em voga na profissão em que se pretende atuar. Participar de grupos de discussões como esses possibilita isso e ainda o contato com relatos de experiências de colegas de profissão, aoportunidade de interagir com os mesmos e pedir-lhes dicas práticas, sugestões de leituras, cursos, entre tantas outras coisas. Alice no País das Maravilhas, tradução do Inglês para o português por Clélia Regina Ramos e do português para a Libras por Marlene Pereira do Prado, Wanda Quintanilha Lamarão e Clélia Regina Ramos, Editora Arara Azul, 2002. (Livro com tradução em português e CD-ROM com tradução em Libras). A ideia é que você, estudante, além de desfrutar do prazer estético que essa leitura pode lhe proporcionar, utilize esse livro empregando a técnica de estudo relatada por Rónai, na qual se vai comparando a tradução com o original, vendo as soluções encontradas, aprendendo a traduzir a partir daí e pensando que outras alternativas de tradução seriam possíveis. Tal exercício contribuirá para que você se inteire sobre as construções próprias da Libras, enriqueça seu voca- bulário e descubra estratégias para sua atuação diária. Práticas de tradução e interpretação em Libras 159 Atividades 1. Discuta, segundo Lopes (1998), sobre as dificuldades que o emprego de ex- pressões que só existem na língua de partida, corriqueiras aos falantes nati- vos dessa língua, podem representar para a interpretação simultânea. 2. Defina as estratégias de ensaio, organização, elaboração, busca sistemática e justifique por que são úteis à interpretação simultânea. 160 Práticas de tradução e interpretação em Libras 3. Explique, tomando Rosa (2008) por base, de que forma a maneira como o ILS entende que deva ser seu papel influencia no produto final da interpretação. Referências COSTA, Karla Patricia Ramos da. As dificuldades da ação interpretativa vivencia- das pelos intérpretes de Libras na cidade do Recife. In: 17.º COLE, 2009, Cam- pinas. Anais... Disponível em: <www.alb.com.br/anais17/txtcompletos/sem03/ COLE_1484.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2010. LOPES, Edson. Coerência textual, conhecimento do mundo, intertextualidade: implicações na interpretação simultânea. Cadernos de Tradução, UFSC, v.1, n. 3, 1998. MAGALHÃES, Ewandro Junior. Sua Majestade, o Intérprete: o fascinante mundo da tradução simultânea. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. QUADROS, Ronice Müller de; SOUZA, Saulo Xavier de. Aspectos da tradução/en- cenação na Língua de Sinais Brasileira para um ambiente virtual de ensino: prá- ticas tradutórias do curso de Letras Libras. In: QUADROS, Ronice Müller de (Org.). Estudos Surdos III. Petrópolis: Arara Azul, 2008. RAMOS, Clélia Regina (2000). Tradução Cultural: uma proposta de trabalho para surdos e ouvintes. Disponível em: <www.editora-arara-azul.com.br/pdf/artigo5. pdf>. Publicado em: 2000. Acesso em: 14 ago. 2010. RÓNAI, P. Escola de Tradutores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1987. ROSA, Andréa Silva. Entre a Visibilidade da Tradução da Língua de Sinais e a Invisibilidade da Tarefa do Intérprete. Petrópolis: Arara Azul, 2008. Práticas de tradução e interpretação em Libras 161 Gabarito 1. Embora alguns termos sejam usados diariamente e bem compreendidos en- tre os falantes de uma dada língua, para os estrangeiros, mesmo que haja tradução possível, são incompreensíveis, não se ligam a seu conhecimento de mundo, por isso é preciso, mais que traduzir a palavra, explicar ao pú- blico-alvo o que ela significa. Isso, aponta Lopes, demanda mais tempo de interpretação em relação ao tempo empregado no discurso do palestran- te, fazendo com que o intérprete possa perder informações enquanto ainda está ocupado na tentativa de tornar tais expressões compreensíveis para o público. 2. O ensaio consiste na repetição dos termos ou expressões que devem ser fixados até que estejam memorizados, passando da memória de trabalho para um dispositivo de armazenagem de mais longo prazo. A organização é a responsável por determinar o que tem de ser memorizado, categorias específicas, tais como substantivos, adjetivos, sinônimos, antônimos, vege- tais, máquinas etc. A elaboração tem a ver com um mecanismo de fixação e recuperação que analisa os elementos compartilhados pelos itens a serem fixados (sons, imagens etc.), enquanto a busca sistemática procura tirar van- tagem dos processos mnemônicos com os mesmos fins das técnicas ante- riores. Essas estratégias são úteis à interpretação simultânea porque possi- bilitam o armazenamento e recuperação de informações, de forma que o intérprete possa construir um discurso mais coerente. 3. O aluno deve identificar que dependendo de como o intérprete entenda que seja seu papel, o produto final da interpretação pode ser mais próximo ou mais distante do discurso original. Assim, conforme Rosa, se o ILS considerar apenas a língua em si e julgar que ela é transparente e capaz de codificar um único sentido, acabará perdendo informações necessárias à compreensão do surdo. Por outro lado, se o ILS assumir que a sua compreensão é a mais correta, acabará por produzir um discurso muito distante do original, produ- zindo seu próprio texto. 163 Para esta aula, a ideia é estabelecer o tão desejado vínculo entre prática e teoria no campo da tradução e interpretação em Libras. Para tanto, você tomará conhecimento de práticas de interpretação que tomam por base teorias formuladas para a tradução, refletirá sobre o caminho de formação do Intérprete de Língua de Sinais, iniciado de maneira fortuita, na prática diária, mas que já ganha sistematização teórica, olhando para um futuro em que o intérprete busca formação específica para a afirmação de seu trabalho na condição de profissão, e não na de ato de caridade social. Como as teorias da tradução se revelam na prática da interpretação Para iniciar a discussão e reflexão desejadas nesta seção, cumpre apre- sentar a seguinte afirmação: É da teoria, ou da teorização, que derivam as práticas conscientes, lúcidas, capazes, a qualquer tempo, de se justificarem, de se defenderem, de se imporem [...] Da teorização nasce a conscientização (awareness). É a partir da conscientização que se faz uma prática verdadeiramente profissional, não escolar. (AUBERT1, 2003, p. 14-15 apud ROSA, 2008, p. 137) Do excerto é possível depreender que é a teoria que organiza a experi- ência, possibilitando a recuperação de informações valiosas, a criação de argumentos, principalmente, para justificar as escolhas feitas por cada in- térprete, escolhas irremediavelmente diferentes de intérprete para intér- prete. Portanto, nessa perspectiva serão apresentados a seguir trechos de entrevistas com intérpretes de Libras, coletadas por Rosa (2008), os quais serão associados às teorias de tradução que os fundamentam ou que po- deriam solucionar os problemas neles contidos. Intérprete 1: Eu me preocupo com os dois, mas há casos que necessito ser “infiel” para ser bem compreendida. Muitas vezes o orador pode procurar contextualizar sua fala de modo que, ao passar para a língua de sinais, o processo intercultural se choque, realidades completamente diferentes e nesse momento eu prefiro ser compreendida. 1 AUBERT, F. H. Introdução. In: BENEDETTI, I. C.; SOBRAL, A. (Orgs.). Conversas com Tradutores: balanços e perspectivas da tradução. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação Vídeo 164 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação Na verdade, busco trabalhar juntas a fidelidade e compreensão, tenho consciência do compromisso ético com minha profissão, mas ainda é muito complicado esse tipo de conciliação. J. (SP) (ROSA, 2008, p. 166-167) Intérprete 2: [...] Em ser compreendida. Tenho conhecimento da diferença existente entre língua de sinais e português. Assim, para mim, o mais importante é o que o surdo compreenda, mesmo que para isso eu tenha que explicar muitas coisas que para os ouvintes seja sabido. M. (SP) (ROSA, 2008, p. 167) Intérprete 3: Quando estou interpretando, minha maior preocupação é... interpretar! Sempre o bom senso é o melhor e o mais difícil de ser conseguido: ser fiel sem serliteral e ser compreendida sem deturpar (acrescentando ou omitindo). Esse é o grande desafio. Dependendo da clientela, posso pender mais para ser fiel (surdos esclarecidos com bom conhecimento linguístico e cultural) ou ser compreendida (surdos que há pouco tempo têm contato com a LS ou têm dificuldades cognitivas/linguísticas). A palavra-chave é BOM SENSO! M. (RS) (ROSA, 2008, p. 169) A observação que a autora faz sobre os relatos é de que “mesmo não tendo conhecimentos teóricos sobre os Estudos da Tradução, a opção que os ILSs fazem são as mesmas que a maioria dos tradutores” (ROSA, 2008, p. 172). Nesse sentido, o objetivo a partir daqui é explicitar a relação entre essas opções com algumas das teorias da tradução desenvolvidas no campo dos Estudos da Tradução. Aubert (1994) afirma que a tradução envolve, no mínimo, dois tipos de com- petências, a saber: (i) competência linguística e (ii) competência referencial. Suas reflexões foram elaboradas tendo em mente a prática de tradução (isto é, tradu- ção de textos escritos), mas elas podem ser aplicadas à interpretação (tradução de textos orais), já que lidam com competências presentes em ambas as modalida- des de tradução. A competência linguística diz respeito ao domínio dos códigos linguísticos que estão em contato durante a tradução ou interpretação, incluindo o entendimento, por parte do profissional, de questões ligadas ao léxico, sintaxe, morfologia etc. É importante salientar que essa competência deve ser desenvol- vida para as duas línguas em contato: a língua que para o tradutor/intérprete é estrangeira – L2 – e aquela que lhe é “materna”, L1. Essa afirmação não traz uma informação que possa ser considerada como do conhecimento de todos, posto que o domínio da língua materna é, normalmente, deixado de lado. Isso porque muitos consideram esse conhecimento desnecessário, já que acreditam que ser falante nativo de uma língua faz com que a pessoa saiba sobre ela tudo de que precisa. Contudo, isso não é verdade, uma vez que o falante, para ser tradutor/ intérprete, precisa ter um saber especializado sobre as línguas com as quais tra- balha. Além disso, é bom alertar que, embora a competência linguística seja fun- damental para o exercício da profissão, apenas o conhecimento dos dois códigos não é suficiente. Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 165 Já a competência referencial, segundo Aubert (1994), consiste no desenvol- vimento da capacidade de buscar conhecer e se familiarizar com os referentes2 dos diversos universos em que uma atividade de tradução/interpretação pode ocorrer. Assim, por exemplo, mesmo um bom profissional da tradução pode não ter competência referencial em relação à área da medicina para poder traduzir um manual de medicina, porém, ele pode e deve aprender a buscar esse conhe- cimento por meio de estratégias específicas. O autor faz ainda uma distinção entre a situação ideal e a situação real da reação de tradutores/intérpretes com suas respectivas competências. A situação ideal seria que o intérprete tivesse domínio excelente dos códigos e referências tanto da língua-fonte quanto da língua-alvo, mas a realidade é que sempre há um desequilíbrio entre essas com- petências em ambas as línguas envolvidas na interpretação. É por conta desse desequilíbrio que muitos erros são cometidos: Acredito que o principal erro é aquele cometido contra a língua para a qual se está traduzindo: erros gramaticais, erros de sintaxe, erros de vocabulário. O trabalho do tradutor tem de ser perfeito em termos desse tipo de correção [...]. O segundo tipo de erro é cometido contra o sentido do texto. Muitas vezes, o tradutor erra porque diz uma coisa diferente do que diz o original. Mas aqui chegamos àquela questão crucial: traduzir é interpretar. Como a interpretação de um será sempre diferente da de outro, esta é a dimensão mais ampla e mais difícil de avaliar da tradução. (BARBOSA3, 2003, p. 65 apud ROSA, 2008, p. 172) É nessas situações que o intérprete precisa optar por, como indicam os ex- certos de 1 a 3, entre ser fiel e ser compreendido, podendo, para tanto, omitir ou acrescentar informações, expressões. A omissão ou acréscimo, em si mesmo, não representa maior ou menor fidelidade, erro grave ou não, tudo depende do resultado obtido, resultado que já pode ser equacionado pela proposta de Gile (1995), apresentada no texto complementar desta aula. Agora, a proposta é en- tender que tipos de informações podem ser adicionadas ao discurso original. Em um dos pontos de seu estudo, Gile (1995)4 se concentra nos ganhos de informação. A esta o autor chama de Informação Secundária, já a informação expressa no núcleo da Mensagem (M) é chamada de Informação Primária. O objetivo do autor, então, é classificar os tipos de Informação Secundária, che- 2 A noção de referente pode ser melhor compreendida ao se pensar na concepção de signo linguístico. Um signo é formado por um significado (conceito) e um significante (a palavra empregada para representar o conceito) e está ligado ao referente, que é o objeto real (ou uma realidade abstrata) a que o signo se refere. Assim, o signo “gato” é formado pela palavra escrita “gato” e pelo conceito de gato (um animal de quatro patas, mamífero, da família dos felinos, de porte pequeno), sendo que qualquer pessoa poderá apontar no mundo real o referente desse signo, isto é, o animal gato. 3 BARBOSA, H. G. Entrevista. In: Conversas com Tradutores: balanços e perspectivas da tradução. BENEDETTI, I. C.; SOBRAL, A. (Orgs.). São Paulo: Parábola Editorial, 2003. 4 GILE, Daniel. Basic Concepts and Models for Interpreter and Translator Training. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1995. O conteúdo desenvolvido aqui sobre os ganhos de informação toma como base a proposta de tradução de Bartholamei Junior & Vasconcellos (2008), desenvolvida para fins didáticos. 166 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação gando a três categorias diferentes: (i) Framing Information (FI) (Informação Con- textualizadora); (ii) Linguistically Induced Information (LII) (Informação Induzida por questões Linguísticas); (iii) Personal Information (PI) (Informação Pessoal). A primeira categoria trata de informações que são acrescidas ao texto de partida para auxiliar o leitor de chegada a compreender conceitos, expressões, que são específicos da língua-fonte. Trata-se de acrescentar informações que contextu- alizem a mensagem de forma que ela possa ser compreendida. Desse modo, a FI é adicionada, consciente ou inconscientemente, para ajudar o receptor da M a entender a mensagem a partir das formulações verbais. Essa é uma das razões pelas quais textos de chegada (traduzidos) tendem a ser mais longos do que textos de partida. A segunda categoria de Informação Secundária, (LII), dá conta de informações que são adicionadas ao núcleo da mensagem por questões linguísticas. Assim, na tradução ou interpretação de uma língua para outra há a necessidade de que certos elementos sejam acrescentados de forma que a tradução/interpretação resultante respeite o sistema linguístico da língua de chegada. Nesse caso, as mudanças não são fruto de uma decisão do tradutor/intérprete; na verdade, elas são “exigências” oriundas do próprio sistema linguístico para o qual se traduz. Com isso, esse tipo de informação é adicionada para que se produza um texto (escrito ou oral) que será aceito, do ponto de vista linguístico, pelo público-alvo. A terceira categoria de Informação Secundária, (PI), tem relação com o estilo do tradutor/intérprete. Tratam-se, nesse sentido, de informações que são acres- cidas à mensagem núcleo por questões particulares envolvendo o profissional da tradução, podendo abranger informações relacionadas com a personalidade do mesmo, seu nível de conhecimento de mundo, ou ainda com suas pressu- posições quanto ao grau de conhecimento do leitor de seu texto em relação ao tópico em questão.O fato é que cada um desses tipos de informações secundá- rias é usado pelos intérpretes para se fazerem compreender pelo surdo, indican- do que têm consciência não apenas de seu compromisso com a fidelidade ao original, mas também com a compreensão de seu cliente. Aspectos importantes para a formação do intérprete de Libras Nesta seção são explorados alguns pontos a serem perseguidos pelos intér- pretes em geral e pelo Intérprete de Língua de Sinais em sua formação, que se Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 167 constituem, inclusive, como requisitos para o exercício da profissão. A primeira necessidade que se impõe a qualquer intérprete é o domínio de pelo menos duas línguas: Não há bom intérprete que não domine pelo menos duas línguas. No futuro, você poderá incluir outras, as chamadas línguas passivas, ou seja, línguas a partir das quais você é capaz de interpretar. Isso não fará de você um intérprete necessariamente mais competente, mas aumentará sua segurança e sua empregabilidade, na medida em que o torna mais versátil. (MAGALHÃES, 2007, p. 201-202) Além das duas línguas de trabalho, conforme assinala Magalhães, é recomen- dável que outras línguas sejam aprendidas, pois além dos benefícios apontados acima, o intérprete poderá dispensar o relé5, não dependendo mais do traba- lho de outros e evitando o risco de cometer erros em sua interpretação porque houve erro na interpretação relé, o chamado efeito dominó. Ainda em relação aos aspectos necessários aos intérpretes em geral, Maga- lhães ressignifica a concepção de leitura que um intérprete precisa ter, desen- volver e praticar: Entenda que sua capacidade de leitura deve ir além dos livros. Aprenda a ler os gestos, a entonação da voz de seus companheiros de expedição. Vá além das línguas. “Quem não compreende um olhar tampouco compreenderá uma longa explicação”, lembra-nos o poeta Mário Quintana. Aprenda a interpretar fatores externos e ambientais, elementos verbais e não verbais apreensíveis pelos cinco sentidos. (MAGALHÃES, 2007, p. 202-203) Observe que a leitura de livros não é descartada por Magalhães, apenas há a ênfase para o fato de que a leitura não se restringe a isso. O ato de ler é atri- buir significado, construí-lo a partir do que chega até você e da bagagem que você possui para dialogar com o que lhe chega. O significado não é um produto, estático, passivo, à espera de ser descoberto, ele é construção, processo ativo, que envolve o objeto a conhecer e o sujeito que conhece. Essa concepção de leitura pode e deve ser empregada a todos os fatores que circundam a situação de interpretação, não há por que o intérprete se restringir a construir significado apenas a partir de palavras, sinais. No que diz respeito à formação de Intérpretes de Línguas de Sinais, Rosa (2008), recorrendo ao que estabelece a Coordenadoria Nacional para Integra- ção da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), diz que para o exercício dessa profissão são necessários três requisitos básicos: conhecimento sobre a surdez, domínio da língua de sinais e bom nível de cultura. O primeiro requisito tem re- lação com a forma como o intérprete vê o surdo e como isso pode influenciar sua prática interpretativa. Se o intérprete encara a situação do surdo sob a perspec- 5 Quando é necessário interpretar a partir de outra interpretação da língua-fonte, ou seja, há uma língua intermediária entre a língua-fonte e a língua-alvo. 168 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação tiva da deficiência, que precisa ser tratada, “curada”, atuará de forma assistencia- lista, considerando-se um “ajudador” do surdo, e não um profissional. Por outro lado, se o surdo for visto como um indivíduo com língua e cultura diferentes, o intérprete assumirá o papel de profissional da tradução/interpretação, responsá- vel por mediar a comunicação entre culturas e línguas diferentes. A questão do domínio da língua de sinais é ponto pacífico entre os que pre- tendem se tornar ILS, embora nem todos os aspirantes tenham o nível de flu- ência necessário, todos sabem da necessidade de domínio da língua-alvo. Essa mesma consciência, no entanto, não se verifica no que diz respeito ao domínio da língua portuguesa: Uma questão bastante ignorada na formação de Intérpretes de Língua de Sinais é o quanto esse profissional deveria conhecer a língua portuguesa; talvez seja pelo fato de: a) o não reconhecimento do direito do cidadão surdo ter um profissional competente; b) a imagem desqualificada e assistencial do ILS – qualquer um serve; c) a LS é concebida como um código de segunda ordem em relação ao português – qualquer um que fale português e conheça os sinais também serve. (ROSA, 2008, p. 135) Essa realidade precisa ser desconstruída para o bem da profissão e para o bem do surdo enquanto cliente que tem direito ao acesso da informação da ma- neira mais adequada, plena e coerente possível. O ILS deve compreender que a ascensão da profissão está atrelada à ascensão do surdo em todas as esferas sociais – só existem profissionais de interpretação onde a interpretação é neces- sária, sendo que a necessidade da interpretação se relaciona com as atividades, os contatos pessoais e profissionais vivenciados pelo cliente, e se manter na pro- fissão demanda contribuir para que os objetivos do cliente sejam alcançados na situação de interpretação (entender uma aula, se atualizar num simpósio, defender-se perante a Justiça, tornar a realidade do surdo conhecida, conhecer as instruções no primeiro dia de trabalho etc.). Como se não bastassem esses motivos, uma boa interpretação em Libras é inviável se o intérprete não enten- der e conhecer bem a língua de partida, o português; da mesma forma, não se pode esquecer que também a interpretação da Libras para a língua portuguesa é exigida desse profissional. Saber dos aspectos importantes na formação do ILS é fundamental para a reflexão de como esse profissional se constitui e de como se deseja que a sua formação se dê, tarefa para a próxima seção. Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 169 Como se constitui um intérprete Como você deve saber, estudante, muitos Intérpretes de Línguas de Sinais se constituíram, se tornaram intérpretes de maneira fortuita. Não tinham, em sua maioria, a intenção de serem profissionais, apenas se interessavam pela língua e cultura dos surdos, aprendendo-as no dia a dia, em contato com a comunidade surda. Levando esse fator em consideração, Rosa (2008, p. 140, grifo da autora) afirma que até muito recentemente a história dos intérpretes apresentava dois locais de formação: “a igreja e os lugares públicos frequentados por surdos. [...] e ser reconhecido como intérprete depende da legitimação desse papel por um grupo de surdos”. Assim, não são poucos os relatos de intérpretes que começaram suas traje- tórias por serem amigos, parentes ou auxiliadores dos surdos no contexto reli- gioso, e, quando menos esperavam, sem se dar conta, estavam interpretando para os surdos. A concretização do papel de intérprete, independentemente da intencionalidade, dava-se por meio da aceitação dos surdos em nomeá-lo como tal. Atualmente, existem os cursos de certificação da Feneis (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos) e o ProLibras, mas, em última análise, tal como considera Rosa (2008), trata-se da institucionalização do crivo da comu- nidade surda em relação ao intérprete, já que tais certificados atestam apenas a fluência na língua de sinais. Claro que isso resolve, em termos de emergência, a situação dos profissionais no Brasil, já que os cursos para formar intérpretes e mesmo os cursos de Libras surgiram apenas há alguns anos: Vale lembrar que a oferta de cursos de língua de sinais com instrutores surdos é bem recente; na cidade de Campinas, especificamente, esses cursos começaram a ser divulgados em 1999. Anteriormente a esse período, os cursos de língua de sinaiseram oferecidos por ouvintes que já realizavam trabalhos em instituições religiosas. Normalmente, os cursos eram oferecidos gratuitamente. (ROSA, 2008, p. 133) Mesmo com a criação de cursos próprios para o ensino da Língua de Sinais, Rosa (2008) chama a atenção para o fato de que a maior parte dos profissio- nais fluentes em Libras são aqueles que mantêm contato com a comunidade surda para além dos espaços das instituições de ensino e formação: associações de surdos, eventos, pontos de encontro dos surdos – shoppings, terminais de ônibus etc. Contudo, não pode ser esquecido o papel fundamental dos dicioná- 170 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação rios de Libras desempenhado no acesso e desenvolvimento da língua, entre os quais Rosa (2008) cita dois em formato de CD-ROM6 e um dicionário impresso7, ilustrado. Neste último, produzido na USP e composto por dois volumes, podem- -se encontrar quatro entradas para uma palavra: em português, em inglês, em Libras e na escrita de sinais. É classificado por Rosa (2008, p. 134) como “uma obra gigantesca, indispensável a todos os intérpretes”. Esses instrumentos de aprendizagem, sua produção, seu uso, refletem a rea- lidade de que ao se colocar na sua condição de profissional, “o intérprete de língua de sinais tende a pesquisar sobre a sua atuação e a não se limitar à apren- dizagem decorrente da prática” (ROSA, 2008, p. 131). Além desses materiais téc- nicos, o profissional desejoso por aperfeiçoar sua língua de sinais pode recorrer a vídeos, CDs-ROM, em língua de sinais, produzidos por surdos do Instituto Na- cional de Educação de Surdos (INES), pela LSB Vídeo, pela Editora Arara Azul, entre outras empresas e instituições que trazem coletâneas de histórias infantis, fábulas, clássicos da literatura nacional e universal. Com esses materiais, o ILS pode entrar em contato com formas específicas da Libras empregadas na tradu- ção de gêneros literários, pode comparar as traduções aos textos em português e enriquecer o vocabulário, as estruturas gramaticais etc. Claro, essas alternativas para que o indivíduo se constitua enquanto intér- prete não eliminam a necessidade de convivência com os surdos, pois assim “o ILS desenvolve o seu conhecimento de sinais, que excede os seus aspectos formais e que abrange os usos sociais dela (expressões idiomáticas, trocadilhos etc.) que dela são constituídos” (ROSA, 2008, p. 135). Afinal, a interpretação em Libras corresponde à interpretação oral, uma vez que se trata do uso da língua na condição de fala, e não de escrita. Sob tal circunstância, o intérprete deve ser capaz de interagir naturalmente, fazendo uso também das expressões próprias e específicas da Libras do dia a dia. Saber quando empregar que formas, quais termos técnicos, qual a melhor estrutura sintática, como verter determinadas passagens é uma questão de decisão. Uma questão de poder decidir, entre os conhecimentos que possui, aquele que representa a solução para o problema encontrado; e também uma questão de poder detectar que, por vezes, a solução não está entre os seus conhecimentos e precisa ser buscada. É disso que trata a seção a seguir. 6 Dicionário Digital da Língua Brasileira de Sinais – versão 1.0, Secretaria de Educação Especial-SEESP-MEC-INES, 2002 e o Dicionário de Libras Ilustrado – Governo do Estado de São Paulo, junho de 2002. 7 CAPOVILLA, Fernando César, RAPHAEL, Walkiria Duarte; MAURICIO, Aline Cristina (Eds.). Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira. Vol. I e II: Sinais de A a Z. Ilustração de: Marques, Silvana. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 171 Tomadas de decisões frente a situações problemas A intenção desta seção é explorar a tarefa tradutória como um processo de tomada de decisão, o que exige do tradutor e intérprete a capacidade de identi- ficar, definir e estruturar o problema de tradução com o qual se depara, poden- do, a partir daí, estabelecer estratégias com o fim de solucionar tal problema. Em outras palavras, ao se deparar com um problema durante o ato interpretativo ou tradutório, para poder resolvê-lo é preciso que o profissional saiba identificar o que exatamente representa um obstáculo a sua tradução, único meio para deci- dir que estratégia empregar em prol da dissipação do mesmo. Desse modo, evi- dencia-se a necessidade dos profissionais da tradução saberem falar sobre suas ações de maneira sistematizada, consciente, para que possam desenvolver seu autoconhecimento enquanto profissionais e assumir responsabilidades pelos processos de identificação e solução de problemas na tradução e interpretação. A primeira coisa a considerar é que os problemas não tendem a ser os mesmos para todos os intérpretes e tradutores, cada um terá seu problema a resolver, sendo que ele pode coincidir ou não com o problema de outro. Nesse caso, apenas o próprio sujeito que traduz pode delimitar o que se constitui como um obstáculo a sua interpretação. Delimitação que implica poder estruturar verbal- mente do que se trata o problema, poder trazer para o plano da consciência o que precisa ser resolvido, posto que isso é condição necessária para que o intér- prete possa lançar mão de uma estratégia específica de tradução. Aqui são apontados dois entre os muitos tipos de problemas com os quais você pode se deparar durante uma tradução ou interpretação: compreensão de palavras na língua-fonte (nem sempre todos os termos estão no dicionário) e retextualização na língua de chegada, isto é, você pode ter compreendido uma frase ou expressão, mas pode ficar em dúvida sobre como expressá-la na lín- gua-alvo. Imagine, então, que você se depara com um problema relacionado à compreensão. Nesse caso, você precisa encontrar estratégias de compreensão do termo empregado, um passo para isso é pensar: “O que eu posso fazer para compreender isso?” Dependendo da situação, numa tradução de texto escrito para a Libras que será filmada, para a qual é possível preparar antecipadamente um esboço de tradução, você pode procurar pelo termo em dicionários mono- língues da língua-fonte, em enciclopédias, pode procurar na internet, perguntar 172 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação a tradutores mais experientes etc. No caso de uma interpretação simultânea, na qual, geralmente, não há tempo para esses tipos de consultas, você pode tentar alcançar o significado do termo considerando o contexto no qual ele ocorre, levando em conta o assunto do discurso interpretado, os objetivos, o público, todas essas são pistas que podem ajudar a construir o significado de um termo a partir do contexto. Interpretar é tomar decisões, e a boa decisão depende não do volume de informações disponíveis, mas de nossa capacidade de extrair o máximo de significado mesmo da menor fatia de realidade. Isso é particularmente importante diante de limitações como tempo, processamento e conteúdo. (MAGALHÃES, 2007, p. 188) Ter conteúdo linguístico e cultural “de sobra” é uma medida preventiva para não se correr o risco de estar a todo tempo na corda bamba sobre como ex- pressar algo na língua-alvo. Nesse tocante, as estratégias geralmente consistem em usar a datilologia, sendo que alguns intérpretes apenas soletram o termo – como se o surdo pudesse, apenas a partir disso, alcançar o significado do termo na Libras –, outros, cientes de que a soletração por si mesma não colabora no caso de termos desconhecidos, soletram o termo, explicam o que significa, e o soletram novamente para reforçar que a palavra soletrada corresponde à expli- cação dada. Essa última estratégia, mais do que a de apenas soletrar, apresenta a vantagem, a depender do nível de conhecimento do público, de o intérprete acabar recebendo de algum surdo na plateia o sinal adequado ao que precisa expressar. Por fim, o bom intérprete há que ter sempre em mente que “[...]o ob- jetivo final da interpretação é comunicar” (MAGALHÃES, 2007, p. 55). Texto complementar Técnicas de tradução/encenação da Libras no AVEA do curso (QUADROS; SOUZA, 2008, p. 177-182) No contexto apresentado, algumas soluções tradutórias adotadas pela equipe de tradutores/atores surdos estão sendo construídas a partir das pró- prias práticas de tradução. Essa equipe de trabalho foi formada recentemen- te dentro do curso de Letras Libras, pois, inicialmente, não se tinha a consci- ência de que os textos em língua de sinais resultantes das “filmagens” (como Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 173 era considerado inicialmente) consistiam em textos traduzidos. A partir dos problemas encontrados nos textos produzidos, bem como na complexidade para se chegar a um bom texto, foi percebido o acontecimento de processos tradutórios. Assim, a equipe passou a ser constituída enquanto equipe de tradução. Paralelamente, uma atividade de tradução de textos sobre a língua de sinais no inglês para o português estava acontecendo, seguindo um método de trabalho altamente sofisticado (QUADROS; VASCONCELLOS, 2008). A partir disso, a equipe de tradução do curso de Letras Libras passa a buscar soluções, considerando teorias e métodos dos Estudos da Tradução que poderiam ser implantados nas práticas tradutórias do português escrito para a Língua Bra- sileira de Sinais. As técnicas estão sendo concebidas e testadas a partir de práticas e reflexões teóricas. Todo o trabalho está focado na melhoria da dinâ- mica de tradução dentro das diversas instâncias do AVEA desse curso, tendo em vista também a urgência em nível de prazos de finalização dos textos tra- duzidos para disponibilização ao público-alvo, ou seja, os estudantes. Então, nesse momento, apresentamos as etapas nas quais se desenvolve- ram as atividades tradutórias, incluindo algumas “soluções”, que se transfor- mam em técnicas no dia a dia dos tradutores/atores. Dessa forma, comentaremos dois trabalhos norteadores dessas práti- cas e atividades tradutórias, ou seja, Gile (1995) e Cokely (1992) e, por fim, descreveremos de maneira geral a rotina tradutória vivenciada pela equipe, exemplificando isso com base nas traduções de textos de uma determinada disciplina do curso de Letras Libras, valendo-nos do recurso das glosas com símbolos como amparo de nossas atividades tradutórias. [...] Considerando o leque de teorias e métodos disponíveis no nível de Estudos da Tradução, qual(is) seria(m) a(s) vertente(s) ou modelo(s) teóri- co-metodológico(s) que poderia(m) servir de amparo para o conjunto de práticas de tradução/encenação desenvolvida pela equipe de tradutores/ atores surdos? Destarte, uma das demandas fortes que surgiram depois de consultas prévias aos tradutores/atores surdos foi a fidelidade na tradução. Em relação a isso, por diversas vezes emergiu o histórico conflito tradutório de se tra- 174 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação duzir “‘palavra por palavra’ ou ‘significado por significado’” (MUNDAY, 2001). Como já mencionado, Magalhães e Alves (2006) perceberam que esse tipo de problema surge entre tradutores novatos. Aos poucos, o grupo passou a compreender o quanto era importante a tradução dos sentidos. Diante disso, tornou-se um desafio traduzir significados de uma língua escrita com textos também disponibilizados aos alunos para uma língua visual-espacial, a língua de instrução do curso. Como evitar o português sinalizado? Como ter o português “por perto” de nossa tradução em Libras sem deixar de lado o nosso objetivo de gerar ensino e aprendizagem com o que traduzimos? Em uma tentativa de responder a essas inquietações da equipe, fomos ao encontro das ideias discutidas por Gile (1995) em seu texto Basic Concepts and Models for Interpreter and Translator Training (ou Modelos e Conceitos Bá- sicos para o Treinamento de Tradutores e Intérpretes). No terceiro capítulo, ele discute a respeito da “Fidelidade na Tradução e Interpretação” (1995, p. 49) e, depois de algumas considerações iniciais em torno do trabalho de traduto- res e intérpretes, Gile apresenta seu modelo de composição de um texto na língua-alvo. Para ele, um texto produzido na LA é composto de uma série de elementos diferentes de forma que, didaticamente, teríamos este diagrama (GILE, 1995, p. 61): TLText = M + Fl + Lll (of SL) + Lll (of TL) + Nesse diagrama, temos que “TL Text” pode ser traduzido como “Texto pro- duzido na língua-alvo”, ou, simplesmente, “Texto na LA”. O “M”, que vem de message, encontra em “Mensagem” uma possível solução tradutória. Já o “FI”, em inglês, constitui uma abreviatura para Framing Information e, em portu- guês, poderia ser traduzido como “Bagagem de Informação do Emissor” (BI). Os termos “LII (of SL)” e “LII (of TL)” correspondem, em inglês, a Linguistically Induced Information (of Source Lange) e Linguistically Induced Information (of Target Language), os quais, em português, poderiam corresponder, respecti- vamente, à Informação “Induzida Linguisticamente conforme a Língua-Fon- te (IIL[LF])” e “Linguisticamente conforme a Língua-Alvo (IIL[LA])”. Por fim, o modelo de Gile traz a “PI”, ou seja, a Personal Information (ou, em português, a “Informação Pessoal [IP]”). Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 175 Assim, uma possível solução tradutória desse modelo pode ser proposta: Texto na LA = M + Bl + llL [da LF] + llL [da Por extenso, seria possível termos a seguinte leitura: “um texto produzido na língua-alvo é composto de vários elementos, tais como: mensagem, ba- gagem de informação do emissor, informações induzidas linguisticamente conforme a língua-fonte e a língua-alvo, como também as informações pes- soais do tradutor”. Gile nos trouxe um modelo que ilustra a preocupação tradutória em torno do quesito (in)fidelidade, preocupação essa com presença constante em meio ao conjunto de atividades e práticas tradutórias em Libras. Então, com- preender que existe uma “equação” aplicável ao trabalho já em andamento constitui um elemento facilitador para a equipe que, agora, poderia dispor de um amparo teórico em nível de Estudos da Tradução. Além disso, os traduto- res/atores poderiam ter a oportunidade de começar a enxergar suas soluções tradutórias como sendo algo plural, ou seja, algo que é resultado de um con- junto de elementos que, um a um, têm seu papel durante o processo. Quando relembramos as primeiras reuniões para a aplicação prática desse modelo proposto por Gile, recordamos as colocações enunciadas pelos tra- dutores/atores em relação ao que vinham traduzindo no nível de conteúdos programáticos de ensino do curso de Letras Libras, como também das excla- mações que eles mesmos faziam logo após perceberem por si mesmos que os elementos do modelo com o qual estavam começando a se familiarizar eram consonantes. Isso os deixava mais tranquilos e amparados para segui- rem traduzindo, porque, a partir de então, eles tinham em mente tanto o objetivo do processo tradutório – o qual era gerar ensino e aprendizagem do conteúdo traduzido para o AVEA do Letras Libras – quanto o modelo de fidelidade tradutória do texto produzido na LA, bem como outras estratégias como a explicitação e a transliteração. Gile (1995, p. 62) considera pertinente a “explicitação” nas práticas tradu- tórias, por tornar os textos-alvo mais claros. Em relação ao contexto em língua de sinais vivenciado pela equipe de tradutores/atores, ficou claro para eles 176 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação que fazer uso de uma linguagem marcada de elementos de explicitação não viria a constituir um fator de empobrecimento do processo tradutório prota- gonizado por eles. As experiências trocadas com a equipe de tradutores do material sobre língua de sinais (QUADROS; VASCONCELLOS, 2008) também contribuíram nesse sentido, pois o fato de introduzir “notas de tradutores” in- corporadasao texto foi entendido como uma decisão de qualquer tradutor que está relacionada com o contexto da tradução. No caso dos textos do curso de Letras Libras, em que o texto na Língua Brasileira de Sinais passa a ser o texto na língua de instrução, é fundamental submeter o texto original ao texto na língua de sinais. A decisão, portanto, é de inclusão de informações que sejam fundamentais na organização do sentido no texto na língua de sinais, que teve sua origem em um texto no português. A construção discursiva na Língua Brasileira de Sinais apresenta uma estratégia muito recorrente: o uso de exemplos para explicar conceitos. Na construção discursiva do português, isso não é muito comum. Mesmo assim, os textos na língua de sinais passaram a integrar algumas explicações, ainda que essas não estivessem explicitadas na LF, como se fossem “notas de rodapé” do tradutor incorporadas no texto na língua de sinais. Isso poderia ser um link dentro do texto escrito, uma vez que estamos lidando com um ambiente de ensino virtual, no entanto, ainda não encontramos uma solu- ção para conectar isso tudo dentro do texto sinalizado. Finalmente, no texto de Isham (1998, p. 231-235) – o verbete sobre In- terpretação de Língua de Sinais da Enciclopédia de Estudos da Tradução (BAKER; MALMKJAER, 1998) – também é discutido sobre o uso da estraté- gia da transliteração, ou seja, transpor uma palavra, letra a letra, de uma língua oral (como o português, por exemplo) para uma língua de sinais (como a Libras). Esse recurso, que para boa parte da equipe de traduto- res/atores era conhecido como “empréstimo linguístico,” passou a ser mais um elemento embasado teoricamente em nível de Estudos da Tradução, o qual, quando houvesse necessidade, poderia ser utilizado no decorrer do processo tradutório. [...] Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 177 Dicas de estudo Traduzir com Autonomia – estratégias para o tradutor em formação, de Fábio Alves, Célia Magalhães e Adriana Pagano (Ed.). São Paulo: Contexto, 2000. A obra apresenta alguns mitos que os iniciantes na profissão de tradutor pre- cisam enfrentar e propõe estratégias que levam os tradutores a tomar decisões autônomas e conscientes em relação ao seu trabalho. Uma Leitura da Tradução de Alice no País das Maravilhas para a Língua de Sinais, de Clélia Regina Ramos, 2000. Tese (Doutorado). Disponível em: <http://www. editora-arara-azul.com.br/cadernoacademico/006_tesecleila.pdf>. A leitura serve de exemplo de tradução de texto escrito para a Libras, apre- sentando teorias da tradução que fundamentaram o processo e servindo de base de estudo para métodos e soluções tradutológicas no tocante à tradução de textos escritos para a Libras. Atividades 1. Apresente e discuta o modelo de composição de texto na língua-alvo. Uti- lize, para tanto, a fórmula traduzida por Quadros e Souza (2008) no texto complementar. 178 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 2. Em que aspecto o modelo desenvolvido por Gile é útil à prática cotidiana dos tradutores/atores surdos, conforme relato de Quadros e Souza (2008)? 3. Correlacione os tipos de informações secundárias adicionadas à mensagem núcleo de um discurso, definidos por Gile, e a estratégia de “explicitação” nas práticas tradutórias, para tornar os textos-alvo mais claros, também aborda- da por Gile e tratada no texto complementar desta aula. Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 179 Referências AUBERT, Francis Henrik. As (In)Fidelidades da Tradução: servidões e autono- mia do tradutor. Campinas: Unicamp, 1994. BARTHOLAMEI JUNIOR, Lautenai Antonio; VASCONCELLOS, Maria Lucia. Estudos da Tradução I. 1. ed. Florianópolis: CCE/UFSC, 2008. GILE, Daniel. Basic Concepts and Models for Interpreter and Translator Training. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1995. MAGALHÃES, Ewandro Junior. Sua Majestade, o Intérprete: o fascinante mundo da tradução simultânea. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. QUADROS, Ronice Müller de; SOUZA, Saulo Xavier de. Aspectos da tradução/en- cenação na Língua de Sinais Brasileira para um ambiente virtual de ensino: prá- ticas tradutórias do curso de Letras Libras. In: QUADROS, Ronice Müller de (Org.). Estudos Surdos III. Petrópolis: Arara Azul, 2008. ROSA, Andréa Silva. Entre a Visibilidade da Tradução da Língua de Sinais e a Invisibilidade da Tarefa do Intérprete. Petrópolis: Arara Azul, 2008. Gabarito 1. A partir da fórmula traduzida por Quadros e Souza (2008) é possível dizer que um texto produzido na língua-alvo é composto de vários elementos, tais como: mensagem, bagagem de informação do emissor, informações induzi- das linguisticamente conforme a língua-fonte e a língua-alvo, como também as informações pessoais do tradutor. A mensagem é o núcleo do discurso que deve ser veiculado, a bagagem do emissor lhe permite acrescentar infor- mações secundárias para contextualizar a mensagem ou então são incluídas informações de cunho pessoal. Informações também podem ser acrescidas para fazer a acomodação linguística durante a retextualização do texto para a língua-alvo. 2. Segundo os autores, Gile elaborou um modelo que ilustra a preocupação tra- dutória em torno do quesito (in)fidelidade, preocupação essa com presença constante em meio ao conjunto de atividades e práticas tradutórias em Libras. 180 Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação Então, compreender que existe uma “equação” aplicável ao trabalho já em an- damento constitui um elemento facilitador para a equipe que, agora, poderia dispor de um amparo teórico no âmbito dos Estudos da Tradução. Além disso, os tradutores/atores poderiam ter a oportunidade de começar a enxergar suas soluções tradutórias como sendo algo plural, ou seja, algo que é resultado de um conjunto de elementos que, um a um, têm seu papel durante o processo. 3. Resposta mínima do aluno deve considerar que as estratégias de explicita- ção, quando entram em jogo, trazem para o texto produzido na língua-alvo informações secundárias, mais especificamente as informações ditas contex- tualizadoras (bagagem do tradutor) e de cunho pessoal, já que as de acomo- dação linguística são uma exigência do processo tradutológico em si, e não uma escolha que o intérprete pode optar por tomar ou não. Uma ponte entre as teorias da tradução e a prática de interpretação 181 183 A sociedade atual é conhecida como a sociedade da informação, não raro é possível encontrar menções sobre a era da informação em rádio, televisão, publicidade impressa, livros etc. A verdade é que nunca antes na história da humanidade as informações e conhecimentos foram tão acessíveis a todos. Existem muitos aparelhos, as tecnologias de comuni- cação, que permitiram a democratização da informação tal como ela é vi- venciada hoje. Todavia, em termos de registro e disseminação do conhe- cimento, a escrita foi a primeira grande invenção tecnológica na área da comunicação. Todo povo, cultura, que deseja ter seu legado passado adiante, não apenas para as próximas gerações, mas para os próximos povos, no mesmo local ou em outros pontos geográficos, não pode prescindir de um siste- ma de registro de sua língua. Portanto, nesta aula, você vai entender a ne- cessidade de uma escrita para as línguas de sinais, conhecer dois sistemas de grafia para essas línguas aplicados à Libras e refletir sobre a relação e utilidade dos mesmos para a tradução e interpretação em Libras. Escrita de língua de sinais para quê? Sobre a origem das línguas, há muitas teorias, todas igualmente hipo- téticas, algumas míticas. O fato é que os seres humanos as têm, por sécu- los, milênios, sem se poder precisar quando se deu sua origem. Também se assume que, desde essa origem, as línguas (ou a língua, já que existem os que defendem a hipótese de uma única língua como ponto de origem para as outras) evoluíram, modificaram-se, espalharam-sepor continen- tes, ganharam diferentes formas de expressão e registro. Se a língua é o que permite a troca social entre os homens, a organização do pensamento e a categorização do mundo à sua volta, o seu registro foi que possibilitou o avanço das civilizações tais como são conhecidas hoje. Esse registro tra- ta-se de uma evolução tecnológica, por assim dizer. Afinal, a escrita não é uma evolução da língua, embora contribua para o seu desenvolvimento. Escrita de língua de sinais Vídeo 184 Escrita de língua de sinais A escrita, na verdade, é, ao mesmo tempo, um mecanismo simples mas so- fisticado de representação da língua. No ocidente, prevaleceram as escritas alfa- béticas, isto é, que representam a língua a partir da abstração de seus sons. É o caso do português, em que os grafemas1 representam os fonemas da língua. A vantagem desse tipo de representação é a redução dos elementos necessários para a codificação da língua. Mas para que codificar uma língua? Uma das res- postas possíveis é: Ao fornecer um registro secundário e perene do ato linguístico primário e transitório, a escrita permite a reflexão sobre o conteúdo da comunicação, sobre as coisas do mundo e o que delas sabemos. Enquanto registro perene, promove também a segurança e consolida o contrato social. (CAPOVILLA et al., 2001, p. 1.491) Por registro secundário, os autores chamam a atenção para o fato de que a escrita é posterior à língua falada. Também está implicado no excerto acima que a língua na modalidade falada (seja a oral ou a visual, já que a oposição aqui é em relação à modalidade escrita) é evanescente, passageira, enquanto a escrita é permanente. Sob tal perspectiva é que os autores afirmam que: Agrupamentos que não têm registro escrito da própria língua não têm dela o domínio necessário para articular, de modo sólido e seguro, seu desenvolvimento cultural e organização social. Permanecem sem a união da organização central efetiva e sem tradições ou memória, dependentes de feudos dispersos e de intermediários para obter informações transitórias, instáveis e vulneráveis a distorções e boatos. (CAPOVILLA et al., 2001, p. 1.491) Assim, o papel de unificar as pessoas de um dado território e num certo perío- do de tempo, geração após geração, moldando a identidade de um povo é mais bem cumprido pela escrita do que apenas pela língua falada. Não se pode perder de vista também que um sistema de símbolos gráficos só é uma representação eficaz da língua, uma escrita de fato, se for capaz de representar e transmitir todo e qualquer pensamento (DEFRANCIS2, 1989 apud CAPOVILLA et al., 2001). Ora, as comunidades surdas brasileiras, enquanto detentoras de uma língua e uma cultura particular, precisam de um sistema de escrita eficiente das línguas de sinais que lhes sirva para a comunicação diária, para a comunicação entre surdos e ouvintes, para tirar do plano do transitório suas ideias, valores, produ- ções artísticas, entre tantas outras coisas. Ter acesso a uma escrita da própria língua significa inclusive a possibilidade de maior desenvolvimento cognitivo da criança, que poderá ser alfabetizada em sua primeira língua, sem precisar da intervenção do português escrito; significa ter condições necessárias para um ensino bilíngue, pois a criança poderá aprender o português escrito a partir da es- crita de sinais; significa poder produzir conhecimento técnico, científico, cultural 1 Uma ou duas letras que representam um fonema. Por exemplo, em português o fonema /x/ pode ser representado pelos grafemas ch ou x. 2 DEFRANCIS, John. Visible Speech: the diverse oneness of writing systems. Honolulu: Hawaii Press, 1989. Escrita de língua de sinais 185 etc. em sua própria língua e democratizar tais conhecimentos; significa poder ter acesso às produções culturais de outras comunidades (surdas e ouvintes) por meio da tradução de textos escritos para textos escritos; significa também uma alternativa de sistema de notação linguística para o estudo científico comparati- vo das línguas de sinais, entre tantos outros usos. Entendido por que uma escrita de sinais é necessária, a seguir discute-se no que consiste uma escrita de sinais e sua abrangência. Natureza e abrangência da escrita em língua de sinais De acordo com Rosa (2008), os surdos constituem grupos linguísticos em todos os países, mas isso não ocorre em função de migração ou etnia. Na verda- de, os surdos constituem grupos linguísticos por serem falantes de uma língua espaço-visual, que é sua primeira língua: “A língua de sinais anula a deficiência e permite que os surdos constituam, então, uma comunidade linguística minori- tária diferente, e não um desvio da normalidade. Com a língua de sinais o surdo toma a palavra” (SKLIAR3, 1999, p. 142 apud ROSA, 2008, p. 55). No Brasil, há pessoas surdas em todos os estados, sendo possível observar a organização das mesmas por meio da criação de associações de surdos por todo o país, dando origem a diferentes comunidades surdas brasileiras. Como o Brasil é um país de extensão continental, seria de se supor que cada comuni- dade surda brasileira detivesse uma língua de sinais diferente da outra, em que a diferença fosse maior ou menor em razão da distância geográfica. Mas não é essa a realidade que se constata no diálogo entre surdos de diversas regiões brasileiras. Há, claro, algumas variações regionais, tal como no português falado, mas a língua de sinais empregada pelos surdos do Nordeste é perfeitamente compreensível para os surdos do Sul, assim como o português falado no Sudeste do país é perfeitamente compreensível para os falantes do Norte. No caso do português, percebe-se mais facilmente as razões para a “unifor- midade” linguística, já que seus usuários entram em contato com variedades di- ferentes do português e também com o português padrão o tempo todo, por meio do rádio, televisão, livros, cartazes, outdoors, nas trocas comunicativas em viagens etc. No caso da Libras, o que vem assegurando essa “uniformidade” são principalmente dois fatores: (i) os encontros e eventos nacionais promovidos 3 SKLIAR, C. (Org.). Atualidade da Educação Bilingue para Surdos. Porto Alegre: Mediação, 1999. 186 Escrita de língua de sinais constantemente, em que os surdos interagem, aprendendo e ensinando sinais regionais, e (ii) a atuação das escolas de surdos, como o INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos), por exemplo, que publicaram dicionários digitais da Libras, os quais não se restringiram à cidade do Rio de Janeiro, posto que foram levados para outras cidades e estados para servir de instrumento de ensino para os surdos e ouvintes interessados na Libras. Esse retrato não é o retrato atual, mas é uma situação que pode ser conside- rada como recente. Há atualmente um avanço significativo no que diz respeito ao ensino da Libras e na forma de contato entre surdos de diferentes regiões – tecnologias como conversa por vídeo, videoconferência, CDs-ROM com histórias em Libras, bem como cursos a distância para o ensino da língua e para a forma- ção de professores e intérpretes de Libras. Tem-se ainda o Dicionário Ilustrado Enciclopédico Trilíngue, de Fernando César Capovilla, que apresenta sinais das mais variadas regiões do Brasil. No entanto, o que ainda se encontra em proces- so de implementação, que favoreceria ainda mais a padronização da língua e seu registro – seja para servir de instrumento do conhecimento ou de objeto do conhecimento –, é uma escrita de sinais. A função de uma escrita para línguas de sinais é basicamente a mesma para línguas orais: representar a língua por meio de uma organização gráfica, em que símbolos gráficos codificam (no sentido de código mesmo) os elementos funda- mentais da língua a ser representada. Isso quer dizer que a escrita das línguas de sinais procura representar seu elemento visual da mesma forma como a escrita das línguas orais representa seu sistema sonoro. Como mencionado anteriormente, o português apresenta umaescrita alfa- bética, mas há outros tipos de escrita, como as ideográficas4. Inicialmente, no caso de línguas visuais, você pode pensar que o sistema alfabético não seja uma boa opção, já que alfabeto remete a letras e os sinais das línguas visuais não são compostos por aquilo que comumente se entende ser uma letra. Por isso, é bom esclarecer desde já que o termo alfabético surge realmente da possibilidade de representar línguas por meio de letras (grafemas), mas a característica que in- teressa desse sistema é que as letras são um tipo de símbolo convencionado, cada uma delas codificando um fonema (som distintivo dentro da língua), que conforme sua organização representa as palavras de uma língua. Elemento este a partir do qual é possível formar frases e com elas textos. Numa escrita de sinais, os símbolos convencionados não são letras, mas ele- mentos pictóricos que codificam os parâmetros que formam os sinais: configura- 4 O sistema de escrita Kanji, do japonês, é ideográfico, assim como os hieróglifos egípcios. Escrita de língua de sinais 187 ção de mão, ponto de articulação, orientação da palma da mão, expressão facial, tipo de contato, entre outros elementos visuais importantes para a constituição e reconhecimento dos sinais. Com isso, a escrita alfabética de uma língua visual é tão possível e eficiente quanto a de uma língua oral, compartilhando com esta, inclusive, a possibilidade de poder ser usada para codificar qualquer língua de sinais, sendo necessário apenas uma conformação do sistema à ortografia de cada língua – no caso das línguas orais, pense que a escrita alfabética representa línguas como o inglês, francês, italiano, alemão, espanhol etc. Em relação à sua facilidade de uso, ensino e aprendizagem, convém destacar que: A escrita alfabética é um sistema gerativo que possibilita ler qualquer palavra nova. Ela permite a autoaprendizagem pelo leitor. O processo aos poucos contribui para criar uma representação ortográfica (correta grafia) de cada palavra, que será então lida pela rota lexical, o que acontece com as palavras já bem conhecidas e que aparecem com frequência (exemplo, coca-cola). (STUMPF, 2005, p. 30) Como se não bastasse isso, o domínio da escrita permite o desenvolvimento de atividades específicas, próprias da sociedade letrada atual. Nunca é demais lembrar que numa sociedade letrada os que não dominam o código escri- to sofrem exclusão social, ficando à margem das oportunidades de emprego, saúde, educação, sendo privados do exercício de uma cidadania plena. E mais especificamente, para os surdos, uma escrita de sinais significa: [...] uma habilidade que pode nos dar muito poder de construção e desenvolvimento de nossa cultura. Pode nos permitir também muitas escolhas e participação no mundo civilizado do qual também somos herdeiros, mas do qual até agora temos ficado à margem, sem poder nos apropriar dessa representação. Durante todos os séculos da civilização ocidental, a escrita própria fez falta para os surdos, sempre dependentes de escrever e ler em outra língua, que não podem compreender bem, vivendo com isso uma grande limitação. (STUMPF, 2002, p. 63) Em resposta a esse desejo, necessidade e direito linguístico e cultural dos surdos, dois sistemas alfabéticos de escrita vêm sendo trabalhados e aperfeiçoa- dos, no Brasil, para representar a Libras. A seguir, você encontra uma explanação básica sobre cada um deles, onde surgiram, como se estruturam, exemplos isola- dos e em texto. O objetivo não é que você aprenda essas escritas por meio dessa breve explicação, mas apenas que se familiarize e seja capaz de formular suas pró- prias hipóteses ao se deparar com essas escritas em suas situações de trabalho. Escrita de língua de sinais A explanação aqui ofertada toma como base o artigo de Mariângela Estelita, publicado no livro Estudos Surdos II, em 2007, no qual a autora sintetiza os prin- 188 Escrita de língua de sinais cípios da escrita de língua de sinais (ELiS) e relata o processo de aplicação dessa escrita por um grupo de alunos surdos, o que resultou em algumas alterações na proposta. Esse sistema é descrito por sua criadora, Estelita, como um siste- ma alfabético e linear. Alfabético por representar os elementos constitutivos da língua, e linear por apresentar os símbolos um após o outro, numa sequência. A autora esclarece que o sistema foi criado em sua pesquisa de mestrado, em 1997, e que tem passado por aperfeiçoamentos sugeridos por colegas surdos e ouvintes, e também em função de suas próprias reflexões linguísticas. Nesse sentido, a estrutura do sistema apresentada pela autora é a de 2007, sendo que ela contextualiza seu leitor sobre a origem de sua invenção. [...] tive a oportunidade de ir aos EUA como intérprete (de inglês) e conheci a Gallaudet University, em cuja biblioteca me internei por três dias, nutrindo-me da riqueza dos materiais sobre línguas de sinais reunidos em um só lugar. Lá, em 1997, conheci os trabalhos de Stokoe (1965) e de Valérie Sutton (1981) e soube então que eu não alimentava um sonho solitário. Muni-me de muitos livros e voltei para finalizar meu mestrado. Estudei a proposta de ambos os autores e identifiquei meu trabalho com a percepção dos parâmetros demonstrada na pesquisa de Stokoe (1965). [...] Devo reconhecer, portanto, que a ELiS tem base no sistema de Stokoe (1965), que é uma base alfabética, ou seja, uma tentativa de representação gráfica de cada fonema da língua. (ESTELITA, 2007, p. 214-215) Segundo a autora, no trabalho em conjunto com os surdos, acontecido em janeiro de 2007, as modificações realizadas foram apenas nos níveis fonológico e morfológico, ou seja, na criação de novos quirografemas (símbolos para repre- sentar os sinais) e na combinação de alguns deles. Também se discutiu, nesse encontro, as vantagens e desvantagens da escrita alfabética, o que se ganha e o que se perde com esse tipo de sistema. Às vezes desejamos detalhar bem as configurações de mão, ou o movimento e ficamos felizes com a mudança que fazemos, ainda que temporariamente, pois em outras situações queremos o contrário. Há vezes em que diminuímos o nível de detalhamento, e acabamos simplificando demais, o que dificulta a leitura. E ficamos assim, a balancear detalhamento e simplificação em nossas discussões. (ESTELITA, 2007, p. 215) Em relação à estrutura propriamente dita da ELiS, a autora destaca sua na- tureza de base alfabética, linear e organizada a partir dos parâmetros dos sinais propostos por Stokoe (1965), a saber, configuração de mão, ponto de articulação e movimento. Os símbolos representativos desse sistema também são denomi- nados de letras como no alfabeto latino, ou como quirografemas, ou seja, uni- dades mínimas (-ema) escritas (graf-) dos quiremas (quiro-), uma nomenclatura específica para a escrita dos elementos das línguas de sinais, e sua disposição, linear, é feita da esquerda para a direita. Escrita de língua de sinais 189 A ELiS privilegia a escrita de quatro parâmetros: Configuração de Dedos5 (CD), Orientação da Palma (OP), Ponto de Articulação (PA) e Movimento (MOV), sendo que a ordem em que os parâmetros são escritos é sempre a mesma para cada sinal: configuração de dedos, orientação da palma, ponto de articulação e movi- mento, com o detalhe de que o parâmetro movimento deve ser omitido quando for ausente no sinal. A seguir, você encontra exemplos da representação de cada um desses parâmetros e uma sucinta explicação sobre eles. As configurações de dedos se subdividem em dois subgrupos: polegar e demais dedos. As representações dos seus quirografemas – símbolos que codifi- cam o parâmetro em questão – com os respectivos significados são: Quadro 1 – Representação das configurações de dedos Polegar Fechado: polegar dobrado em todas as suas articulações. Curvo: polegar dobrado apenas na primeira articulação. Paralelo à frente: polegar estendido à frente da palma, paralelamente a ela. Perpendicular à frente: polegar estendido