Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Daniela Santos Rocha Introdução A síndrome de abstinência alcoólica (SAA) é o conjunto de manifestações causadas pela suspensão abrupta do consumo de álcool em pacientes com uso crônico deste, levando a um conjunto de sinais e sintomas específicos. DSM: Repetição de problemas decorrentes do uso do álcool que levam a prejuízos e/ou sofrimento clinicamente significativo, cuja gravidade varia de acordo com o número de sintomas. • Depende de vários fatores, como predisposição genética, experiências ambientais provocativas, contexto social, história farmacológica e outros, o consumo de álcool pode se tornar compulsivo e um comportamento aditivo pode evoluir. É uma condição comum que afeta de 8 a 15 milhões de pessoas nos Estados Unidos, com cerca de 500.000 episódios anuais de abstinência alcoólica e cerca de 79.000 mortes anuais relacionadas ao álcool. Outras estimativas concluem que o álcool é responsável por: • 50 a 85% dos homicídios. • 60% das agressões sexuais. • 57% das agressões familiares. • 64% dos incêndios e queimaduras. • 30 a 50% das mortes no trânsito. • 39% das ocorrências policiais. • 20 a 30% dos suicídios. Etiologia e Fisiopatologia A fisiopatologia da SAA é complexa e não totalmente conhecida. Ocorre provavelmente por um desequilíbrio da liberação e atividade de neurotransmissores e seus receptores. INGESTÃO AGUDA: leva inicialmente a uma liberação de opioides endógenos, causando euforia e reforço para o uso contínuo, seguido por uma ativação dos receptores inibitórios GABA tipo A (que causam efeitos sedativos e ansiolíticos, alteração da coordenação) e inibição dos receptores excitatórios glutamato tipo NMDA (N-metil D-aspartato) (causando sedação, intoxicação e distúrbios cognitivos). USO CRÔNICO DO ÁLCOOL: ocorrem alterações no número e na função dos receptores, como uma resposta compensatória aos efeitos depressores do álcool. Assim, há uma diminuição (“down-regulation”) dos receptores GABA tipo A e um aumento (“up- regulation”) dos receptores glutamato tipo NMDA. RETIRADA ABRUPTA DA INGESTÃO DE ÁLCOOL: nesses indivíduos que apresentam essa adaptação crônica, leva a um estado de desequilíbrio entre receptores excitatórios e inibitórios, o que leva ao estado de hiperexcitabilidade característico da síndrome de abstinência alcoólica. (Liberação de neurotransmissores excitatórios, noradrenalina e dopamina-como evidenciado pelo aumento de catecolaminas detectado nesses pacientes). • Taquicardia • Hipertensão, • Náuseas e vômitos • Midríase • Tremores pela facilitação da neurotransmissão muscular • Febre. AUMENTO DO HORMÔNIO HIPOTALÂMICO LIBERADOR DE CORTISOL (CRF): aumento secundário de cortisol e outros hormônios adrenais. O uso sustentado de álcool apresenta maior risco que o uso por curtos períodos. Síndrome de Abstinência Alcoólica Daniela Santos Rocha PACIENTES COM SAA COM FREQUÊNCIA: apresentam outras condições associadas, responsáveis pela interrupção do seu consumo habitual de álcool. • Trauma craniano • Quadros infecciosos, gastrointestinais ou cardiovasculares, entre outras. Além disso, o uso abusivo de álcool pode estar associado a outras complicações como hepatite alcoólica, pancreatite aguda e encefalopatia de Wernicke-Korsakoff. Achados Clínicos O principal achado de história é o da cessação ou redução do consumo de álcool. • Costumam ter início algumas horas após a interrupção do consumo de álcool, mas isso é muito dependente do padrão de consumo prévio. O diagnóstico da SAA exige uma história de interrupção do uso de álcool e pelo menos dois dos seguintes sintomas: • Hiperatividade autonômica (taquicardia > 100 bpm ou sudorese; hipertensão pode ocorrer, mas não é critério). • Tremores de mão. • Insônia. • Náuseas e vômitos. • Alucinações visuais, táteis ou auditivas. • Ansiedade. • Agitação. • Crises convulsivas (tônico-clônicas generalizadas). É necessário para o diagnóstico ainda que esses sintomas causem prejuízo funcional, social ou em relação à sua capacidade laboral e que não sejam justificados por outra condição médica. O uso de benzodiazepínicos pode retardar o aparecimento da síndrome e que em alguns bebedores pesados, a simples diminuição da ingesta é o suficiente para desencadear sintomas de abstinência. Na maioria dos casos o curso é benigno, com resolução dos sintomas em 2 a 3 dias. SINTOMAS MENORES • Tremores, ansiedade, cefaleia, anorexia e palpitações. Podem ainda ocorrer sintomas gastrointestinais como náuseas e vômitos, anorexia e dispepsia que ocorrem por retardo do esvaziamento gástrico associado a aumento da atividade autonômica, além de aumento de temperatura. As convulsões associadas à síndrome de abstinência ocorrem de 12 a 48 horas após a última ingesta alcoólica, mas podem ocorrer mesmo 2 horas após ingestão alcoólica. • Crises tônico-clônicas generalizadas em geral como crise única, embora possam ocorrer até seis crises convulsivas, principalmente em pacientes que não recebem benzodiazepínicos no início do tratamento. A alucinose alcoólica não deve ser considerada como sinônimo de delirium tremens. Usualmente ocorre de 12 a 48 horas após a última ingestão de álcool, e não costuma ser associada com a alteração de sensório, importante característica de pacientes com delirium tremens. • Geralmente são alucinações visuais, mas podem ocorrer também alucinações auditivas e táteis, atingindo até 25% dos pacientes com síndrome de abstinência; a alucinose alcoólica se resolve em 24 a 48 horas de sua instalação. O delirium tremens é a manifestação mais grave da SAA, que pode ocorrer dentro de 48 a 96 horas após a última ingesta de álcool e dura na maioria dos casos 3 dias, mas pode persistir por até 14 dias. Suas manifestações incluem: • Desorientação e confusão mental importantes. • Extrema agitação com necessidade na maioria dos casos de restrição mecânica. • Tremores grosseiros. • Instabilidade autonômica, com taquicardia importante, aumento de pressão arterial (PA) e alterações hidroeletrolíticas. • Ideação paranoide. • Acentuada resposta a estímulos externos. • Alucinações usualmente visuais, mas podem ocorrer outros tipos de alucinações, incluindo até mesmo as auditivas. Daniela Santos Rocha Exames Complementares O diagnóstico da síndrome é clínico e exige a exclusão de diagnósticos, como infecções, exemplo da meningite, e crise tireotóxica, entre outras condições. Os exames necessários incluem: • Hemograma. • Glicemia. • Ureia, creatinina, sódio, potássio, magnésio, cálcio. • Enzimas hepáticas. • Tempo de protrombina. • Amilase e lipase. • Eletrocardiograma. • Radiografia de tórax. • Urina tipo 1. • Dosagem da concentração sérica de álcool (pouco disponível e raramente necessária). • Gasometria arterial (em casos moderados a graves). • CPK (em casos moderados a graves). • TC de crânio. • Culturas (conforme indicação clínica se suspeita de infecção associada). A tomografia é indicada apenas em pacientes confusos, com convulsões parciais ou convulsões generalizadas reentrantes, história de trauma cranioencefálico (TCE), déficit neurológico focal no exame físico ou primeiro episódio convulsivo. Outros exames complementares, como coleta de líquido cefalorraquidiano, têm indicação conforme a apresentação clínica. Avaliação A monitorização próxima e repetida desses pacientes é necessária e o uso de escalas objetivas pode auxiliar o tratamento. Avaliar e monitorar a terapêutica Diagnóstico Diferencial Quadros que podem cursar com agitação psicomotora e alteração do estado mental. Nesse caso, quadros de delirium e seus potenciais fatores precipitantes, como infecções e alterações metabólicas, são diagnósticosdiferenciais obrigatórios. • Hipoglicemia é sempre um diagnóstico obrigatório de se excluir com a glicemia Daniela Santos Rocha capilar em todos os pacientes com quadros de alteração do nível de consciência. • Quadros psiquiátricos devem ser descartados, bem como abstinência por outros tipos de substâncias, como benzodiazepínicos e opioides. • Associada a um fator como infecções, trauma ou outras condições, que interrompem o consumo de álcool ou que predispõem ao aparecimento da síndrome de abstinência Encefalopatia de Wernicke-Korsakoff pode ser uma condição associada, mas também tem de ser considerada como diagnóstico diferencial. • Associada a deficiência de tiamina, sendo caracterizada por confusão mental, ataxia e oftalmoplegia; uma de suas principais causas é o alcoolismo crônico. • A tiamina é uma enzima envolvida em múltiplas fases do metabolismo energético e suas necessidades são maiores em momento de maior demanda, como após infusão de glicose. Por esse motivo, pode precipitar-se a encefalopatia de Wernicke em pacientes com história importante de etilismo. Além da tríade clássica, outros sintomas da encefalopatia de Wernicke-Korsakoff incluem disfunção vestibular (vertigem e outras tonturas, perda auditiva, zumbido, alterações do equilíbrio corporal, distúrbios da marcha e quedas) e neuropatia periférica (Formigamento nas extremidades; Sensação de queimação nos braços e pernas..) Tratamento Os pacientes idealmente devem ser alocados em local tranquilo e com pouco barulho. Orientação constante pela equipe ajuda o paciente a melhorar mais rapidamente, sendo restrição mecânica necessária na maioria dos pacientes com delirium tremens, mas devendo ser evitada quando possível. DESIDRATAÇÃO E DISTÚRBIOS HIDROELETROLÍTICOS: hidratação vigorosa. • Salina fisiológica e uma reposição de 1 a 2 litros ao dia é realizada rotineiramente, podendo a necessidade de reposição chegar até 5 litros ao dia. SUSPEITA DE ENCEFALOPATIA DE WERNICKE- KORSAKOFF deve ser realizada profilaxia com tiamina. • A dose de tiamina recomendada é de 100-200 mg IM 1 a 2 vezes ao dia; apesar de a tiamina oral não ser recomendada para tratamento da síndrome de Wernicke, profilaxia em dose de 100 a 300 mg oral ao dia pode ser utilizada. REPOSIÇÃO DE MAGNÉSIO É CONTROVERSA. Sabe-se que a hipomagnesemia é frequente em etilistas; seu uso na abstinência alcoólica não teve benefício em um estudo, porém caso seus níveis estejam baixos, a reposição de 1 a 2 g diluídos em 100 mL de salina fisiológica é recomendada. Alguns autores recomendam ainda a reposição de ácido fólico. BENZODIAZEPÍNICOS: Abstinência leve a moderada pelo escore CIAW, um benzodiazepínico pode ser prescrito de horário por poucos dias; • Diazepam, por exemplo, 5 a 10 mg via oral a cada 6/6 ou 8/8 horas, com ajustes após as primeiras doses de forma que o tratamento possa ser realizado ambulatorialmente. As doses são rapidamente diminuídas (5 mg ao dia) nos próximos dias até descontinuação da medicação. ABSTINÊNCIA GRAVE: > 20 pontos na classificação CIAW, benzodiazepínico é parenteral, com doses iniciais de diazepam de 5 a 10 mg IV lentamente. Dependendo da resposta, pode-se repetir várias vezes, a cada 15/15 minutos ou 30/30 minutos. O objetivo é deixar o paciente calmo, levemente Daniela Santos Rocha sedado, evitando deixá-lo rebaixado (aumenta o risco de complicações e aspiração). PACIENTES IDOSOS deve-se tomar cuidado com sedação excessiva. Outra opção é o lorazepam em dose de 2-4 mg IV, repetida a cada 15 a 20 minutos, conforme a necessidade. O lorazepam pode alternativamente ser utilizado via IM; Alguns autores recomendam o uso de uma dose inicial maior de benzodizepínico, como 20 mg de diazepam, e repetir a cada 2 horas. Esse esquema diminuiria o risco de convulsões, não é recomendado. TRATAMENTO AMBULATORIAL, um esquema sugerido de benzodiazepínicos oral poderia ser: • Diazepam 20 mg a cada 6 a 12 horas ou oxazepam 30 mg 6/6 horas no D1. • Diazepam 10 mg 6/6 ou oxazepam 30 mg 8/8 horas no D2. • Diazepam 10 mg 12/12 horas ou oxapepam 30 mg 12/12 horas no D3. • Diazepam 10 mg à noite ou oxazepam 30 mg à noite no D4. ABSTINÊNCIA GRAVE E CAPAZES DE INGERIR POR VIA ORAl, pode-se alternativamente iniciar com lorazepam (1 a 4 mg) ou diazepam (5 a 10 mg) de 1/1 hora e espaçamento progressivo das doses, de acordo com as reavaliações. DELIRIUM TREMENS, o uso de benzodiazepínicos pode não ser suficiente para sedar o paciente. Pode ser necessário o uso de midazolam endovenoso contínuo, com dose inicial de 5 mg em bolus e depois 2 mg por hora com adequação da dose. É necessária nesses casos a monitorização respiratória intensiva. NEUROLÉPTICOS, apesar de diminuírem o limiar convulsivo, podem ser usados em associação com os benzodiazepínicos em pacientes extremamente agitados e com muitas alucinações, especialmente após as primeiras 24 a 48 horas da abstinência, quando diminuem as chances de convulsão. • A olanzapina em dose inicial de 10 mg ou o haloperidol em doses de 5 mg IM são opções, e as fenotiazidas devem ser evitadas. • Crises convulsivas na síndrome de abstinência alcoólica são geralmente autolimitadas. Benzodiazepínicos, fenobarbital e propofol são opções em pacientes com estado de mal epiléptico. Fenitoína é ineficaz nestes pacientes. DELIRIUM TREMENS REFRATÁRIO ao tratamento com benzodiazepínicos, pode-se utilizar o fenobarbital ou principalmente o propofol. O propofol age abrindo os canais de sódio na ausência de GABA e pode antagonizar os efeitos de aminoácidos excitatórios. Esses pacientes precisam nesse caso ser intubados e colocados em ventilação mecânica. Em relação às duas opções: • Fenobarbital: dose de 120 a 360 mg EV que pode ser repetida a cada 15 a 20 minutos até controle de sintomas. Em um estudo, uma dose única de fenobarbital associado com lorazepam foi relacionada a diminuição de internação em UTI (8% vs. 25%). • Propofol: doses variando de 5 a 100 µg/kg/min. Apesar de melhorar sintomas, maior tempo em ventilação mecânica. Outras Medidas para o Tratamento Outras medidas podem ser utilizadas para o tratamento da SAA, entre elas: • BETABLOQUEADORES: podem reduzir algumas manifestações da abstinência do álcool como taquicardia e tremores. Não há evidências de redução de convulsões e podem piorar delirium; não são recomendados de rotina. • ANTICONVULSIVANTES: não são uma opção rotineira. Essas medicações não são eficazes para profilaxia de crises convulsivas nesses pacientes; e a difenilhidantoína, em particular, não deve ser utilizada. A carbamazepina pode ser utilizada em pacientes com sintomas leves a moderados de abstinência alcoólica em dose de 600 a 800 mg ao dia. Outra opção é a gabapentina iniciada em dose de 300 mg a cada 6 horas, que é descontinuada continuamente em 4 dias. Daniela Santos Rocha Indicações de Internação, Terapia Intensiva e Seguimento • Pacientes com SAA com escore CIWA > 20 pontos têm indicação de internação hospitalar, já os pacientes com pontuação entre 16 e 20 pontos têm a sua indicação de internação hospitalar individualizada. • Pacientes com manifestações associadas graves, em particular delirium tremens, têm indicação de internação em UTI. Idade > 40 anos e abastinência grave, condições cardíacas associadas, rabdomiólise, distúrbios hidroeletrolíticos graves, instabilidade hemodinâmica, lesão renal aguda, infecções graves, delirium tremens prévio são condições que devem levar à consideração de alocar o paciente em UTI. • Os pacientes com crise leve devem ser seguidos ambulatorialmente quando em desmame de benzodiazepínicos; e a todos pacientes deve ser oferecido encaminhamento para tratamento de abuso e dependência do álcool.
Compartilhar