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2 1ª Edição © Copyright 2020 by Nutrição Avançada Publicações Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida, total ou parcialmente, por quaisquer métodos ou processos, sem autorização do detentor do copyright. NUTRIÇÃO AVANÇADA PUBLICAÇÕES Av. do Batel, 1230 • Batel • Curitiba-PR Diretor Geral: Ney Felipe Fernandes Revisão Técnica e Arte: Guilherme Bonnes Revisão Gramatical e Ortográfica: Mariana G. Mitsui Catalogação na Fonte FERNANDES, Ney Felipe; HALUCH, Dudu. Nutrição e Fisiologia Low Carb - utilizando a ciência contra a carbofobia / Ney Felipe Fernandes, Dudu Haluch - Curitiba: Nutrição Avançada Publicações, 2019. 210 p.; 14,8x21 cm ISBN 978-65-89416-01-2 4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 09 .................................................................................... PARTE 1 • NEY FELIPE FERNANDES CAPÍTULO 1 VOCÊ ENGORDOU PORQUE COMEU POUCO! 13 .............................. 1.1 Nutrição, a ciência dos alimentos 14 ................................................. 1.2 Estamos lutando uma guerra atrapalhada 18 .................................... 1.3 Calorias são muito importantes. Mas não são tudo 22 ...................... CAPÍTULO 2 NÃO COLOQUE TODOS OS CARBOIDRATOS NA MESMA CESTA (E NEM AS GORDURAS) 31 ........................................................................ 2.1 PDC (Partido dos Defensores dos Carboidratos) x PDG (Partido dos Defensores das Gorduras) 35 ................................................................... 2.2 Comparando Gorduras 36 .................................................................. 2.3 Gorduras Pró e Anti-Inflamatórias 38 ................................................. 2.4 Carboidratos também não são todos iguais 51 ................................. CAPÍTULO 3 FRUTAS 59 ............................................................................................... 3.1 O que são frutas? 60 .......................................................................... 3.2 Frutas não são somente frutose 63 .................................................... 3.3 Nutrigenômica das Frutas 71 ............................................................. CAPÍTULO 4 MICROBIOTA, AVEIA E FEIJÃO 85 ........................................................ 4.1 A Microbiota 87 .................................................................................. 4.2 Feijão 94 ............................................................................................. 4.3 Aveia 96 .............................................................................................. 5 CAPÍTULO 5 DIÁLOGOS COM UM CARBOFÓBICO 105 ........................................... PARTE 2 • DUDU HALUCH CAPÍTULO 6 A INSULINA ENGORDA? FISIOLOGIA DE BOTECO LOW CARB 117 . 6.1 FISIOLOGIA DA INSULINA E DO GLUCAGON 118 ........................... 6.2 A SENSIBILIDADE À INSULINA INFLUENCIA NA PERDA DE PESO? 124 6.3 A INSULINA ENGORDA? 128 ............................................................. 6.4 WHEY ESTIMULA MAIS A INSULINA QUE O PÃO BRANCO! 130 .... 6.5 HORMÔNIOS: VILÕES OU MOCINHOS? 132 ................................... CAPÍTULO 7 TAPIOCA X BACON: PORQUE QUEIMAR GORDURA NÃO SIGNIFICA PERDER GORDURA! 135 ....................................................................... 7.1 CARBOIDRATOS 136 ......................................................................... 7.2 LIPÍDIOS (GORDURAS) 140 ............................................................... 7.3 CARBOIDRATO COMO “NUTRIENTE ESSENCIAL” 146 ................... 7.4 ALIMENTOS IMPEDEM A PERDA DE GORDURA? 149 .................... 7.5 PORQUE QUEIMAR GORDURA NÃO SIGNIFICA PERDER GORDURA! 153 ........................................................................................ 7.6 VALE A PENA ZERAR CARBOIDRATOS? 157 ................................... CAPÍTULO 8 DÉFICIT CALÓRICO EMAGRECE, NÃO IMPORTA O QUE VOCÊ COMA! 161 ............................................................................................... 8.1 BALANÇO ENERGÉTICO 162 ............................................................ 8.2 CONTAR CALORIAS É IMPORTANTE? 165 ....................................... 8.3 EXISTEM ALIMENTOS ENGORDANTES? 167 ................................... 8.4 COMER AÇÚCAR ATRAPALHA A PERDA DE GORDURA? 170 ........ 8.5 DÉFICIT CALÓRICO EMAGRECE, NÃO IMPORTA O QUE VOCÊ COMA! 172 6 CAPÍTULO 9 CETOSE, JEJUM E EMAGRECIMENTO 175 ......................................... 9.1 METABOLISMO DE LIPÍDIOS 176 ...................................................... 9.2 CETOGÊNESE E DIETA CETOGÊNICA 179 ....................................... 9.3 POR QUE A CETOSE NÃO OTIMIZA A PERDA DE GORDURA? 185 9.4 A CETOGÊNESE NÃO ACELERA O METABOLISMO 187 ................. 9.5 A GORDURA QUEIMA EM UMA CHAMA DE CARBOIDRATOS? 188 .. 9.6 O JEJUM INTERMITENTE AUMENTA A PERDA DE GORDURA? 190 .. CAPÍTULO 10 TÓPICOS ESPECIAIS SOBRE DIETA LOW CARB 195 ......................... 10.1 FISIOLOGIA LOW CARB 196 ........................................................... 10.2 HIPERTROFIA MUSCULAR EM DIETA LOW CARB 98 .................... 10.3 LOW CARB ATÉ QUE PONTO? 201 ................................................. 10.4 COMER FREQUENTEMENTE X JEJUM INTERMITENTE 203 ......... 10.5 DIETA LOW CARB NO TRATAMENTO DO DIABETES 205 .............. CONCLUSÃO 209 .................................................................................... 7 8 Introdução Ney Felipe Fernandes Se estamos utilizando, ultimamente, o termo Terrorismo Nutricional, então é preciso fazer como fazemos contra o terrorismo real: combatê-lo. Estamos em guerra, então? Talvez sim. No entanto, neste tipo de guerra, a arma que usaremos é a arma mais nobre que uma pessoa pode portar consigo: o conhecimento. Você não entraria em um campo de batalha sem saber o que fazer nele, certo? Minha teoria é de que existem duas coisas que fazem com que os carbofóbicos gritem: ganância e ignorância (ou os dois juntos). Eu não descarto que tenha gente que acredite mesmo que a frutose encontrada nas frutas realmente cause cirrose. Para essa pessoa, esse livro vai marcar um novo horizonte. No entanto, eu acredito que, para a maioria dos carbofóbicos, há uma vontade inerente de querer se destacar na multidão. Ser moderado não vende. Não te destaca. 9 Repare ainda que não atacamos a low carb enquanto abordagem e, sim, o carbofóbico. Não há nada de errado em uma abordagem low carb. Porém, com a carbofobia há, pois é fruto da ignorância. O momento é delicado. Pessoas acreditando em terra plana, movimento antivacina e gente que nunca leu um artigo renomado falando mal de carboidrato trocam a ciência por frases de impacto e memes da internet. Tudo isso ao meu ver é ganância. Ganância não só de dinheiro. Ganância de ego. E a ganância é a ambição que ficou bêbada e burra. Mas se sua ambição é informar as pessoas, desmistificar abobrinhas que falam da nutrição, então estamos bem sintonizados em termos de ambição. Não precisamos fazer com que a outra pessoa aceite nosso ponto de vista, afinal, acredito que Deus deu o livre arbítrio para as pessoas terem seus próprios méritos e, se a pessoa quer se manter na escuridão, paciência. No entanto, para iluminar os demais, eu preciso primeiro iluminar a mim mesmo. E eu iluminando a mim mesmo... eu ilumino o mundo. 10 PARTE 1 NEY FELIPE FERNANDES 11 12 CAPÍTULO 1 VOCÊ ENGORDOU PORQUE COMEU POUCO! 13 1.1 Nutrição, a ciência dos alimentos A Nutrição é fantástica. E eu sinto muito por quem não consegue vê-la na sua plenitude. Algumas pessoas acham que Nutrição é só calcular macros. Outros ainda acham que não precisa calcular nada, basta que ajuste questões comportamentais e está tudo certo. Outros ainda acham que Nutrição eficiente é fazer o paciente gastar dinheiro com exames caros de nutrigenética.Outros ainda não conseguem passar uma dieta sem entupir o paciente de fórmulas manipuladas. Outros pensam que para ser um bom nutricionista, você tem que ter uma bioimpedância cara no consultório. Tudo perfumaria. Vou ser curto e grosso: nada disso é Nutrição. Tudo isso pode ser seu modo de clinicar (que aqui não estou dizendo se é errado ou certo). Nutrição é a ciência dos alimentos. É a ciência que estuda a relação dos humanos com os alimentos. Se você quer usar essas ferramentas no consultório, pode usar. Só saiba que isso é a cerejinha do bolo (mas para ter cereja no bolo, é preciso que haja um bolo primeiro, certo?) 14 Qual o alimento que tem a maior quantidade de zinco do mundo? Qual a fruta com o maior índice de pectina? Qual a diferença do licopeno do tomate para o da melancia? Teria algum alimento que teria todas (ou praticamente todas) as vitaminas? Ingerir fibra solúvel com cálcio ajuda ou atrapalha? Ingerir aveia com ômega 3 ajuda ou atrapalha? Quais alimentos possuem mais solanina e, por isso, exigem certo cuidado na prescrição? Qual o flavonoide que só conseguimos encontrar no açaí? Quais são os principais polifenóis do azeite de oliva? Como aumentar a vitamina D do paciente sem que seja pelo sol ou cápsulas e só na raça (com comida)? Agora, cá entre nós: quantas perguntas dessa você, que é nutricionista, conseguiu responder? Por que eu te perguntei isso? Para mostrar que sou inteligentão? Talvez. Meu ego não é flor que se cheire também. Mas talvez seja para escancarar o quanto nós, nutricionistas, nos distanciamos do nosso objeto de estudo principal: o alimento. Reduzimos a Nutrição a calorias, números, periodizações, fórmulas manipuladas. E os alimentos vão ficando ali, quietinhos de lado. Cabisbaixos talvez. Mas aí eu te pergunto: se nós, nutricionistas, não entendermos de alimentos, quem mais vai entender? O advogado? O engenheiro? 15 Pior.... Quem vai acabar se apossando da nossa profissão? O médico? O profissional de educação física? O farmacêutico? Faz quanto tempo que você não estuda as propriedades de um alimento de maneira quase obsessiva? Não adianta nada você saber o nome de todas as enzimas do ciclo de Krebs se não sabe para que serve um brócolis! No primeiro dia de aula do meu doutorado, minha professora de Bioética deu uma definição sobre reducionismo que achei sensacional: reducionismo é quando se toma a peça de um mecanismo pelo mecanismo todo. Em outras palavras: é como se eu dissesse a você que o motor de um carro é o carro todo. Ou, ainda, que basta você colocar o motor de uma Ferrari em um Fusca que o Fusca será igual à Ferrari. Como vemos isso dentro da Nutrição? Acho que o reducionismo mais comum é o que fazem com a frutose e sempre dou o exemplo do nitrogênio das proteínas. Dinamites também têm nitrogênio. Logo, ingerir proteína deveria ser um perigo para seu corpo, afinal, dinamites explodem e, provavelmente, seu corpo poderia facilmente explodir. 16 Parece exagero meu, não é? Mas ilustrando assim fica muito fácil visualizar a ignorância de quem faz terrorismo com a frutose das frutas. Mas eu vou falar de frutas na hora certa, no capítulo certo. Por enquanto, eu gostaria de me ater a este tema: a Nutrição enquanto a ciência que liga homens aos alimentos. Portanto, qualquer guru fitness que apareça afastando pessoas dos alimentos deve ser combatido (claro, com educação e com ciência). Não precisamos, também, nos tornar os paladinos da verdade. Devemos expor com ciência as contradições desses pseudo- especialistas e deixar a vida fazer o resto. Digo isso porque este livro é, antes de tudo, uma arma. Uma arma (pacífica) para que você tenha argumentos para fazer contra aqueles que vão procurar de tudo quanto é jeito empobrecer a nossa profissão. 17 1.2 Estamos lutando uma guerra atrapalhada Segundo Drewnowski (1), um dólar compra 150 kcal de alimentos in natura. Esse mesmo um dólar consegue comprar até 800 kcal de alimentos ultraprocessados. No Brasil, o consumo de alimentos ultraprocessados pode chegar a 30% da ingestão energética (2) e, conforme o gráfico abaixo, quanto mais habitantes de um país consomem alimentos ultraprocessados, mais aumentam os índices de sobrepeso e obesidade (3). 18 Portanto, quando digo que estamos em uma guerra atrapalhada, é porque os veganos mais radicais possíveis possuem algo em comum com os paleo mais radicais: o consumo de alimentos in natura. Isso mesmo: os maiores consumidores de carboidratos e os menores consumidores de carboidratos têm algo (benéfico) em comum: eles pregam pelo consumo de alimentos in natura. Logicamente, estou t irando dessa l ista os extremistas como os carnivoristas (que só consomem carne e desprezam vegetais) e também os crudivoristas (os que acham que uma dieta tem que ser somente de frutas frescas e alimentos não submetidos à cocção). Com esses, a gente não discute. A gente reza por eles! Acho importante aqui resgatar um conceito básico de Nutrição que é a densidade energética (DE), que significa dividir as calorias dos alimentos pelos gramas da sua porção. Para ilustrar, vamos fazer uma comparação: um alimento que um carbofóbico não comeria (melancia), um alimento ultraprocessado (Nutella) e um alimento que alguém "low carb" comeria (ovo). Peço que olhe com atenção a tabela abaixo: 19 Então, veja que briga atrapalhada. O ovo, por mais calórico que seja (e aqui temos que lembrar os “lipofóbicos"), não chega nem aos pés de um creme de avelã. E, antes que você argumente que é covardia eu pegar a melancia, você pode testar com qualquer fruta. O próprio abacate, que todos consideram calórico, vai ter uma densidade energética de 1,6. O leite condensado tem 3,25. Como a matemática não mente, imagino que as coisas vão clareando na sua cabeça: o que está engordando as pessoas é essa enxurrada de calorias que entra na corrente sanguínea das pessoas sem fibras, sem fitoquímicos e de uma vez só. E que, pior de tudo, em poucas horas vai deixar as pessoas com fome novamente. Por isso, não é exagero meu quando digo que matar a fome com comida ultraprocessada é o mesmo que beber água do mar para matar a sede! Quando eu digo que quem engordou comeu menos do que quem emagreceu, estou me referindo, literalmente, 20 ao ato de comer, ou seja, mastigar. O alimento tem que dar trabalho para seu corpo. Tem que exigir mastigação, secreção de enzimas, peristalse. Tem algo mais ancestral do que isso? Tem algo mais “paleo” do que pegar um alimento (seja uma fruta ou um bife) e ficar mastigando ele? Isso não acontece quando ingerimos um milk shake de mil calorias. Isso não acontece quando comemos hambúrgueres com carnes ultraprocessadas. Isso só acontece quando ingerimos alimentos. Para eu consumir as mesmas calorias de uma lata de leite condensado (1300 kcal), eu teria que comer mais de 70 cenouras. Ou, ainda, somar um quilo de morango + um quilo de melancia + um quilo de uvas. Ou, ainda, um chocolate Snickers tem a mesma quantidade de carboidrato que um quilo de melancia. Acredite em mim: comer mais é o segredo para emagrecer. Mas o que acontece com o nosso corpo quando ingerimos alimentos ultraprocessados? É o que vamos ver a seguir. 21 1.3 Calorias são muito importantes. Mas não são tudo Imagine o seguinte: você foi convidado para ir a uma cidade que fica a 100 Km de distância de onde você está. Como você vai até lá? Quando eu te digo "100 Km”, você já tem uma noção mental de que 100 Km não são 10 Km e nem 1 Km. Portanto, você já pensa: precisarei ir de carro. Certo? Então, quando eu te falo de 100 kcal, você sabe que é diferente de 1000 kcal, certo? Calorias são importantes, mas não são tudo. Calma. Vou explicar melhor. Acontece que existem duas estradas para você chegar nessa cidade que fica a 100 Km de onde você está. Umaé uma estrada recém restaurada, bem pavimentada. A outra é uma estrada de chão, abandonada. Pergunto: estamos falando de 100 Km (100 kcal). Faz diferença para a saúde das suas costas ou, ainda, para a integridade do seu carro a estrada que você vai escolher rodar os 100 Km? Bom, se você entendeu essa analogia, você entendeu minha opinião sobre calorias. São importantes, mas não são as únicas variáveis a se levar em conta. Assim como os 100 Km. São importantes, mas como (se é 22 a pé ou de carro) ou o tipo da estrada, também serão importantes nessa decisão. Transpondo isso para a Nutrição, o que quero dizer é o seguinte: existem nutrientes que vão chegar ao seu destino (a célula) de qualquer maneira. Um grama de carboidrato de alimento ultraprocessado vai ter a mesma função no ciclo de Krebs que um grama de carboidrato de alimento in natura. Não é essa a questão. A questão é o estrago que ele vai fazer até chegar na sua célula. Percebe? E esse estrago aparece, dentre outras formas, na aderência da dieta a longo prazo. É muito mais fácil seguir uma dieta de 1500 kcal de alimento in natura do que 1500 kcal de alimento ultraprocessado (estou aqui desprezando a variável microbiota). Uma coisa parece estar clara para mim: o corpo humano não parece gostar muito de muita glicose entrando rapidamente na corrente sanguínea. Quando muita caloria entra muito rápido na circulação sanguínea, temos estresse mitocondrial, inflamação, aumento de produtos de glicação avançada (4), sem contar as coisas que já sabemos sobre índice glicêmico. Não, índice glicêmico não engorda ninguém, porque já entendemos que o que engorda é você consumir mais 23 energia do que gasta (perceba aqui a diferença entre eu falar "comer mais do que gasta” para “consumir mais energia do que gasta”). Em um estudo (5), 10 indivíduos saudáveis jovens, após jejum noturno, foram submetidos a uma ingestão de 50 g de carboidratos, sendo: Dia 1: 50 g de glicose Dia 2: 50 g de pão Dia 3: 50 g de macarrão Insulina, Glicemia, inflamação (através de dosagem de NF-kB) e estresse oxidativo mensurados em 0, 1, 2 e 3 horas após a ingestão: 24 Pico de glicose maior com a glicose. Em segundo lugar, pão, e veja que o macarrão integral nem gerou pico de glicose. Veja que a glicemia do macarrão tende, no final das 3 horas, estar mais elevada que a glicemia do pão e da glicose, ou seja, a saciedade dessa pessoa estará melhor (o corpo não vai detectar que falta glicose no sangue). 25 Mas não se engane. Se falamos de pico de insulina, o pão branco fez pico maior, ou seja, no primeiro gráfico a glicemia do pão só deu mais baixa do que a glicose porque ele estimulou mais a insulina (e essa, por sua vez, tirou a glicose do pão da cena). 26 Perceba, ainda, o pico de NF-kB (inflamação e estresse oxidativo) causado pela glicose e pelo pão após o consumo. Não estou querendo fazer terrorismo. O que estou querendo dizer é que, cronicamente, isso vai colocando as pessoas em um looping de desregulação endócrino- metabólica e isso se mistura com as emoções e então está feita a bagunça! Lembre-se sempre disso: todas as refeições devem ser o mais lenta possível para que promovam saciedade e estabilidade glicêmica e, ainda, façam teu corpo gastar mais calorias já no processo digestivo. 27 Então, não nos enganemos: ao culpar alimentos pela obesidade, estamos sendo míopes. Sejam alimentos "high carb” ou “low carb", se estivermos falando de alimentos in natura, será muito difícil que esses tenham a densidade energética de um alimento ultraprocessado. Hoje em dia, culpar ou reverenciar demais um alimento é ser reducionista. Como bem apontou Esposito et al (6), "um dos mais importantes avanços da ciência nutricional nas últimas décadas é a mudança (de importância) de nutrientes isolados para padrões dietéticos”. Somos resultados dos hábitos. E falo isso para que você não brigue comigo se um dia me ver comendo um fast-food. Mas te confesso: esse tipo de comida não sacia minha fome igual a uma pratada de arroz e feijão. Falando em arroz e feijão (irei falar mais das leguminosas no capítulo específico), o que me deixa mais chateado é isso: terrorismo com arroz e feijão. Eu sempre digo que alertar a população quanto ao exagero de consumo de ultraprocessados não é terrorismo nutricional. Isso é um serviço de utilidade pública. Mas, colocar medo nas pessoas e fazer elas terem receio de comer feijão ou aveia, é, sim, terrorismo. Além, é claro, de estar colocando um adesivo na testa: “Eu não estudo. Eu não me atualizo. Eu nunca li nada sobre aveia (ou feijão) e microbiota”. Para mim (opinião pessoal), as causas dessa confusão são duas: ignorância e/ou ganância. Quando eu 28 sou ignorante, não conheço, não estudei e saio por aí falando coisas erradas (comparando a frutose presente em alimentos com a presente em produtos alimentícios) tenho certa culpa. Mas, quando faço isso, propositalmente, para me “diferenciar” no mercado, aí você, além de estar fazendo um desfavor para a Nutrição, está comprometendo a sanidade mental das pessoas! Pensemos nisso.... 29 Referências 1) Drewnowski A, Darmon N. Food choices and diet costs: an economic analysis. J Nutr 2005; 135: 900-4. 2) Louzada ML, Baraldi LG, Steele EM, et al. Consumption of ultra- processed foods and obesity in Brazilian adolescents and adults. Prev Med. 2015;81:9-15. doi:10.1016/j.ypmed.2015.07.018 3) Monteiro CA, Moubarac JC, Levy RB, Canella DS, Louzada MLDC, Cannon G. Household availability of ultra-processed foods and obesity in nineteen European countries. Public Health Nutr. 2018 Jan;21(1):18-26. doi: 10.1017/S1368980017001379. Epub 2017 Jul 17. PMID: 28714422. 4) Kim, Y., Chen, J., Wirth, M. D., Shivappa, N., & Hebert, J. R. (2018). Lower Dietary Inflammatory Index Scores Are Associated with Lower Glycemic Index Scores among College Students. Nutrients, 10(2), 182. https://doi.org/10.3390/nu10020182 5) Dickinson S, Hancock DP, Petocz P, Ceriello A, Brand-Miller J. High- glycemic index carbohydrate increases nuclear factor-kappaB activation in mononuclear cells of young, lean healthy subjects. Am J Clin Nutr. 2008;87(5):1188-1193. doi:10.1093/ajcn/87.5.1188 6) Giugliano D, Esposito K. Mediterranean diet and cardiovascular health. Ann N Y Acad Sci. 2005;1056:253-260. doi:10.1196/ annals.1352.012 30 CAPÍTULO 2 NÃO COLOQUE TODOS OS CARBOIDRATOS NA MESMA CESTA (E NEM AS GORDURAS) 31 Gostaria. antes de prosseguir, deixar uma coisa bem clara: não tenho nada contra uma abordagem low carb. Eu mesmo já a utilizei comigo quando competi no fisiculturismo e. vira e mexe. utilizo com algum paciente em uma periodização. Repare na sutileza do título deste e-book: ele é uma arma intelectual para ser usada contra carbofóbico ou carboterroristas (acabei de inventar esse kkk). Digo isso de antemão porque a minha dieta. em geral. consiste em. no máximo. 40% de carboidrato. Eu também não sou um carbólatra (acabo de inventar outro termo, eu acho). Eu acredito no equilíbrio das coisas. Igualmente, acho um absurdo quando alguém se pronuncia falando mal de frutas, aveia, arroz e feijão. Retomando a frase de Esposito et al (1) que citei no capítulo anterior: "um dos mais importantes avanços da ciência nutricional nas últimas décadas é a mudança (de importância) de nutrientes isolados para padrões dietéticos”. Essa frase será o fio condutor deste capítulo. Uma vez que eu percebo que o contexto é mais importante do 32 que uma variável isolada, as coisas ficam bem mais claras. Então pense comigo: se é reducionista o pensamento de atribuir um milagre ou um mal a apenas um alimento (e não ao contexto dietético), não é mais reducionista ainda atribuir milagre ou mal a um macronutriente isolado? É como se eu falasse pra você "olha, estou vendendo um carro turbo por5 mil reais" e você me pergunta “ah, legal, é um Mini Cooper?” e eu digo “não, é um Marea". Eu sei que o exemplo é exagerado. Mas pense comigo: se algo quase instintivo seu quer saber sobre o (contexto do) carro turbo, imagine com alimentos! Isso ocorre no treinamento físico também. Se uma pessoa chega para um treinador e pergunta “fazer supino é bom para desenvolver os peitorais?", a primeira resposta seria: "sim”. Porém, esse supino precisa estar inserido em um contexto tecnicamente coerente. Se eu fizer uma repetição de supino a cada quinze dias, eu não vou ter nenhuma evolução do meu peitoral. Como, também, se eu fizer uma hora de supino todo santo dia sem descanso, também vou ter um problema sério com meus peitorais e posso até lesionar eles. E, também, posso muito bem desenvolver meus peitorais sem fazer uma série sequer de supino (por alguma limitação articular nos deltoides, por exemplo), no entanto, eu faço crossover, flexão no chão e assim por diante. 33 Veja aqui, nessa modesta alegoria, a importância do contexto. Palavras sem contexto são só palavras. Palavras com contexto geram frases, significados, aprendizados. A mesma energia atômica que faz uma usina nuclear funcionar e gerar progresso pode fazer a raça humana desaparecer. Isso que significa contexto. Quando eu digo “carboidrato engorda”, eu sou aquele mesmo aluno que diz “se não tiver supino no treino, o peito não cresce, afinal eu li que supino é bom para peito" e, sim, concordo com você se você está achando meus exemplos pueris até, mas é assim que tem que ser a argumentação. Puxar para outras leis biológicas que conhecemos antes de chegar dando voadora nos carbofóbicos. Mas fique tranquilo, nos capítulos posteriores você terá um pouco mais de ciência (e de voadora também). Mas é preciso te fortalecer a base argumentativa. 34 2.1 PDC (Partido dos Defensores dos Carboidratos) x PDG (Partido dos Defensores das Gorduras) A beleza da vida é a diversidade. Perceba que a diversidade é uma lei. Poderia existir apenas um tipo de flor, um tipo de fruta, um tipo de animal. Talvez, não teríamos chegado ao ponto que chegamos se não houvesse diversidade. Eu, como acredito em Deus, penso na abundância de material genético que o Criador permitiu que existisse para que o mundo fosse perfeitinho. Se você não acredita em Deus, pense, então, na beleza da Natureza por ela própria. Pense que foi justamente a diversidade de nutrientes, cores, aromas que nos permitiu, desde identificar se um alimento é bom para o consumo, quanto gostar mais ou menos de um determinado alimento. Por que eu estou fazendo essa digressão aqui? Para dizer para você não ser um lipofóbico também. Temos que cuidar para que a Nutrição não seja uma disputa de torcidas de futebol ou pior ainda: de política. O PDC (Partido dos Defensores de Carboidrato) versus o PDG (Partido dos Defensores da Gordura). 35 Isso não é Nutrição. Isso é paixonite. E paixonite, já aprendemos na adolescência, costuma nos cegar e não durar muito. Então, não tratemos a Nutrição como seu time de futebol, ou partido político ou (pior ainda) como seu primeiro "amor”. Ao contrário de nós, que somos teimosos às vezes, a Nutrição precisa evoluir! 2.2 Comparando Gorduras O fato de entendermos que gorduras são macronutrientes, mas não são todas iguais, faz com que um leque de conhecimento seja aberto. Por exemplo: na ilha de Creta, a taxa de infartos (fatais e não fatais) é de 26 ocorrências para cada 10.000 habitantes (2). Creta é uma ilha grega que tem o segundo menor consumo de gordura saturada no mundo (que gira em torno de 8%), mas que tem um alto consumo de gordura monoinsaturada (MUFA). Já no norte da Finlândia, temos a população com o maior consumo de gordura saturada do mundo, e eles possuem uma taxa de infarto de 1.074 ocorrências para cada 10.000 habitantes (2). Me diga, então, se o problema é a gordura ou o tipo de gordura, afinal, você vai perceber que os países com menor taxa de infarto do mundo são os que têm maiores consumos de carboidratos e gorduras monoinsaturadas. 36 Se formos falar, então, do consumo de ômega 3 pela população exposta à dieta mediterrânea, a luta fica ainda mais desigual. O que falar, então, da suplementação de ômega 3 (gordura), atenuando os efeitos pró-inflamatórios de uma dieta alta em gordura mediado pela beta-arrestina na ativação do NLRP3 inflamassoma (3)? Pare para pensar no que estou afirmando: gordura desinflama excesso de gordura! Só depende do tipo! Então, é por essas e outras que temos que, imediatamente, desenvolver um olhar qualitativo para a dieta e não ficar apenas nas gramagens. Às vezes, algum estudante vem para mim e pergunta: “Ney, mas o que você acha de uma dieta 50-30-20”(se referindo a carbo-proteína- gordura). E eu, geralmente, já devolvo com uma pergunta: "De qual carbo estamos falando? De qual gordura estamos falando?" Se, conforme o estudo (4) que mostrei em outro capítulo, o efeito no estresse oxidativo é diferente se eu comparar 50 g de carboidratos vindos do pão, do macarrão ou da glicose, então será que é só uma questão de gramas? Não é uma questão somente de gramas. Claro, como já falei, precisamos ter nortes numéricos em uma dieta. Mas eles não são tudo. Se nos basearmos 37 unicamente por números, vamos cair no erro que falei lá trás: sermos reducionistas com a Nutrição. 2.3 Gorduras Pró e Anti-Inflamatórias À medida que vamos estudando, portanto, entendendo a Nutrição, nossos horizontes deixam cada vez mais claro que um alimento não pode ser medido por ter ou não um nutriente. Na Nutrição, parece que aprendemos desde acadêmicos a julgar as coisas somente por serem essenciais ou não essenciais, como se essa fosse a única régua para medir a capacidade de um alimento de ser saudável ou não. E esse é, talvez, o discurso mais falacioso de quem é carbofóbico: “não existem carboidratos essenciais”. Veja bem, acompanhe comigo meu raciocínio: já entendemos que a gênese das maiores causas de morte do mundo são estresse oxidativo e inflamação, certo? Então, o excesso de ômega 6 (que é um ácido graxo essencial) está relacionado com o aumento de inflamação (5). Já o excesso de ômega 9 (que NÃO É essencial), está relacionado à diminuição desses indicadores (6). Será que o problema é ser essencial ou problema está no excesso das coisas? Portanto, precisamos urgente nos atualizar e 38 entender “the big picture” para não ficar repetindo esse discursinho sobre essencial x não essencial. Vamos falar um pouquinho das gorduras. Existem várias maneiras de você classificar uma gordura. Essenciais ou não essenciais (como pufas x mufas, conforme já falamos), por tamanho da cadeia de carbonos (ácidos graxos de cadeia curta, média, longa), por grau de saturação (saturado, insaturado), pelo alinhamento dos hidrogênios nessa instauração (insaturado trans, insaturado cis) e assim por diante. Em aula, e para dar um “tempero” mais funcional, eu as classifico como pró ou anti-inflamatórias. Sendo assim temos: Pró-Inflamatórias: ● Gorduras Saturadas ● ômega 6 Anti-Inflamatórias: ● ômega 3 ● ômega 9 39 E, antes de prosseguir, quero repetir um ponto importante: não podemos medir um alimento por um único nutriente. Falo isso porque depois você vai ver que o ovo tem gorduras saturadas e ômega 6 e vai demonizar o ovo (vai ser um lipofóbico), ignorando suas proteínas de alto valor biológico e ignorando que o ovo é um dos poucos alimentos de origem animal que possui compostos bioativos (possui os carotenoides luteína e zeaxantina). Temos que cuidar (muito) para não cair em outro extremo! E, lembre-se, também, de que a questão do ômega 6 está muito mais relacionada ao seu excesso diante dos níveis de ômega 3 do que qualquer outra coisa. Porém (como tudo nessa vida tem o tal do porém), se a sua dieta é à basede ovo, eu realmente me preocuparia. O problema, novamente, não é o ovo e, sim, a falta de diversificação (nosso corpo não evolui comendo apenas ovo e, na verdade, uma ampla gama de dieta só dá certo porque, justamente, ao longo dos anos, fomos sendo expostos aos mais variados tipos de dieta). Mas, sim, temos que cuidar do perfil como um todo da gordura que comemos. Coisa que essa galera carbofóbica não faz. Para eles, é preciso ingerir "gorduras boas” e aí, meu amigo, minha amiga, eles colocam tudo no mesmo balaio: bacon, abacate, peixe! 40 E isso não tem nada a ver, conforme veremos a seguir. Por primeiro, lembre do que eu falei da diferença de Creta e do norte da Finlândia, ainda neste capítulo. Se quiser, volte a ler essa parte: são duas sociedades com alto consumo de gordura, só que uma é de MUFAS (azeite de oliva) e possui baixíssima incidência de infarto, e a outra é de gorduras saturadas e possui alta incidência de infarto. Mas, agora, eu queria deixar um pouco de lado os estudos populacionais e analisar os alimentos em si. Lembrando que divido as gorduras em pró e anti- inflamatórias. Gorduras Pró-Inflamatórias Você não precisa ir muito longe no Pubmed ou ser um perito técnico para descobrir que as gorduras podem influenciar de maneira substancial nosso grau de inflamação basal. Sendo bem direto, as gorduras que mais podem alterar nossa inflamação e ter algum impacto na nossa longevidade são os ácidos graxos ômega 6 e as gorduras saturadas. Embora ambas façam isso, elas atuam por mecanismos diferentes. 41 Os ácidos graxos saturados vão atuar pela via dos TLR ou Toll Like Receptor. São receptores com cascata de reações que desembocará na ativação do NfKB (7). O NfKB, por sua vez, irá migrar para o núcleo (pois, afinal, é um fator de transcrição) e, consequentemente, irá aumentar a produção celular de mediadores pró-inflamatórios (por exemplo, a interleucina-6). Não faz muito tempo, acreditava-se que os ácidos graxos saturados se ligavam diretamente aos TLR4. No entanto, esse caminho hoje é um pouco mais elucidado e, de qualquer forma, ficou evidenciado que, sim, eles têm papel relevante na ativação da inflamação (8). A ação dos ômega 6 (ácido linoleico) é um pouco diferente. Uma vez que o ácido araquidônico (o eicosanoide do ômega 6) é precursor de leucotrienos e tromboxanos pares (pró-inflamatórios), ele acaba, digamos, “roubando” matéria-prima para a formação de tromboxanos e leucotrienos ímpares (que são anti-inflamatórios). Os ômega 3, por exemplo, são substratos de tromboxanos e leucotrienos ímpares. O esquema que eu faço para gravar isso é sempre lembrar que o número 6 é par e o 3 é ímpar. E é esse estilo de mediadores que eles influenciam. Gorduras Anti-Inflamatórias Como já falei anteriormente, se olharmos as gorduras pelo aspecto pró ou anti-inflamatórias, ser essencial ou não é apenas um detalhe. Por que veja bem, 42 MUFAS (ácidos graxos monoinsaturados) são anti- inflamatórios. No entanto, não são ácidos graxos essenciais. E, alguns PUFAS (como já falei do ômega 6) são essenciais. No entanto, o desbalanço de ômega 6 para ômega 3 da nossa dieta ocidental é que nos predispõe a uma condição pró-inflamatória e, não, o ômega 6 em si. Veja abaixo, a relação entre ômega 3 e ômega 6 de alguns alimentos que comemos: Referência: Martin et al, 2006. 43 Não podemos demonizar o ômega 6. Temos que focar na relação entre os ômegas. Esse, sim, deveria ser nosso foco. Essa relação, embora possa variar entre os países (conforme mostra essa outra tabela abaixo), deve ser o verdadeiro enfoque da nossa prescrição nutricional, pois, embora as diretrizes possam variar entre os países, uma coisa é certa: chegar na relação 30, 40 ou até 50 para 1 (de ômega 6 para ômega 3), representa para nosso organismo uma dieta completamente desequilibrada. E, essa razão desbalanceada entre ômegas é bem fácil chegar em uma dieta carbofóbica visando um high-fat de qualquer forma. 44 Referência: Martin et al, 2006. Mas, se é verdade que alguns ácidos graxos podem desencadear respostas inflamatórias, outros podem evitá- las. E não apenas isso. Vamos ver estudos mostrando (6) a importância do ácido oleico na saúde mitocondrial. Outros estudos (9) nos mostrarão que uma sobrecarga prévia (antes da refeição) 45 de ômega 9 suprime o apetite. Efeito esse não observado com ácidos graxos saturados. E, já que estamos falando tanto em contexto da dieta, também se torna prudente pensar no contexto do alimento em si. Isso, em Nutrição, tem um nome técnico: matriz alimentar. O nutricionista que teve isso em faculdade já olha diferente para o alimento porque ele sabe o conceito de matriz alimentar. Quem não é da Nutrição e acha que entende de Nutrição porque sabe contar macros não vai ter essa visão. Vamos pegar um alimento fonte de ômega 9 como o azeite de oliva. Portanto, a matriz alimentar do ômega 9 em questão é o azeite de oliva. O azeite de oliva é 80% ômega 9, então é uma boa matriz de ômega 9 para estudarmos. Ele traz no seu “pack” mais de 30 tipos de polifenóis, triterpenóides e vitamina E. Bacon não tem polifenóis nem triterpenoides. Não estou falando para você nunca mais comer bacon. Estou tentando dizer que 100 kcal vindo do bacon não é a mesma coisa que 100 kcal vindo do azeite de oliva. No azeite de oliva, destacam-se, ainda, alguns polifenóis que eu gosto muito de estudar: - Tirosol - Hidroxitirosol 46 - Oleuropeína - Oleocanthal Esse combo de polifenóis faz com que o azeite de oliva seja um alimento polivalente. As pesquisas que envolvem o impacto desses polifenóis na gênese de doenças crônicas não transmissíveis são inúmeras, basta procurar com vontade que você vai achar referências dos seus benefícios em cardiopatias, resistência à insulina, Alzheimer, Parkinson, dentre outras (10). A tabela abaixo mostra alguns estudos que já demonstraram a ação do hidroxitirosol em doenças neurodegenerativas in vivo. 47 Fonte: Rodríguez-Morató et al, 2015. E não podemos, é claro, falar de gorduras boas sem falar do ômega 3. A figura abaixo mostra um pouco do alvos moleculares do ômega 3: 48 FONTE: Ney Felipe Fernandes O ômega 3, bem como suas frações (seus eicosanoides), possue uma ampla gama de ação molecular. Só que, mais uma vez, eu insisto: não estamos querendo curar nenhuma doença com ômega 3. É importante frisar isso para que o estudante não pense que estamos 49 endeusando determinado composto bioativo. Sabe por quê? Porque mais uma vez: é preciso olhar o quadro todo. É preciso olhar a dieta toda. Alguns alunos me perguntam se é melhor comprar um ômega 3 com mais EPA do que DHA ou se é válido o vegetal (por exemplo, encontrado na linhaça, na chia). Eu sempre respondo o seguinte: quando falamos em prevenção, estamos falando de tempo de exposição. Se você for pensar em cápsulas, sabe que talvez seu paciente vai usar por determinado período, depois não usará mais. Porém, se modificarmos o paladar dele e o ensinar a fazer um bolinho ou panqueca com chia ou, ainda, uma granola caseira, provavelmente (se você conseguir deixar isso gostoso), ele sempre vai procurar esse tipo de comida. As funções do ômega 3 já estão bem documentadas pela ciência e fugiria do propósito deste capítulo esmiuçar demais isso. Lembro aqui que a ideia é mostrar para o leitor que as gorduras não são todas iguais e não fazer um dossiê sobre ômega 3. Mas, dentre os mecanismos mais importantes, eu citaria esses da figura. Vou ser sucinto: seu receptor de membrana está associado a proteínas G (elas possuem esse nome porque são ligadoras de GTP quando ativadas) e as de número 120 influenciam diretamente comunicações 50 celulares que restauram a sensibilidade à insulina (16). Gordura saturada não faz isso. O ômega 3 atua em um dos sistemasmais complicados de inflamação, que é a via do NLRP3- Inflamassoma. Essa via deixa a célula virada em uma bagunça. Portanto, enquanto o ômega 3 suprime a atividade dessa via (11), (adivinhem?), as gorduras saturadas ativam essa via (12). E, por fim, ativação dos PPAR. Os PPAR ou receptores ativados por proliferadores de peroxissomos são uma família de fatores de transcrição que, uma vez se ligando ao ômega 3, podem aumentar a oxidação de gordura, diminuir a expressão de SREBP, dentre outros efeitos que teriam profundo impacto no perfil lipídico do nosso paciente e, dentre todos os tipos de ácidos graxos, o ômega 3 parece ser o melhor ativador dos PPAR (13). 2.4 Carboidratos também não são todos iguais Na verdade, a resposta para essa questão é: depende. Eu digo depende porque o certo seria não avaliar um alimento por um único nutriente (que é basicamente o que estamos tentando fazer neste livro). Se formos pensar que, no final das contas, a sua célula vai utilizar glicose, o seu corpo meio que vai querer 51 que todo carboidrato vire glicose. Porém, o maior erro é confundirmos o macronutriente com o alimento. Como já falei exaustivamente aqui e em rede social, temos que considerar primeiro o Padrão Alimentar para, depois, avaliar a Matriz Alimentar para, só depois, chegar na Composição Nutricional (carboidratos, fitoquímicos, etc). Mas o que eu estou querendo dizer com isso? Veja a figura abaixo: FONTE: Ney Felipe Fernandes 52 Nesta figura, está o maior aprendizado que eu quero deixar neste livro: jamais julgue um alimento pela presença (ou não) de carboidratos. Primeiramente, como vimos no capítulo 1, temos que entender o padrão alimentar das pessoas. O padrão alimentar dita tudo. Vamos pensar em duas situações para ilustrar: uma de um indivíduo que adora comer açúcar puro e outra de um indivíduo que adora brócolis. São dois alimentos completamente diferentes, certo? No entanto, o indivíduo que consome açúcar puro consome 5 g, às vezes 10 g, por dia junto com o cafezinho. Mas, todo o resto da dieta dele é um padrão de dieta mediterrânea. Ou seja, ele acorda e come um cacho de uva, coloca azeite de oliva no almoço e janta apenas salmão grelhado. Seu único defeito é colocar 10 g de açúcar por dia no café. O outro indivíduo ama brócolis. Quer alimento mais saudável que brócolis? Além de ser carregado de fibras e minerais, possui glicosinolatos e indol-3 carbinol com inúmeras propriedades antitumorais. O brócolis é o ponto de encontro dos paleos, dos bodybuilders e dos veganos, não tem como você falar mal de brócolis (pois nem carboidrato tem). No entanto, este indivíduo que ama brócolis come de desjejum uma pratada de cereais matinais açucarados, almoça MCDonald's, à tarde come sorvete e à noite ele “zera carbo” e come carne com brócolis. 53 Adianta alguma coisa? Então, quando falamos de padrão alimentar, falamos disso. Eu extrapolo, propositalmente, nesses exemplos para que o aprendizado fique óbvio. E quando falamos de matriz alimentar? Matriz alimentar significa o contexto em que o nutriente se encontra. Veja bem: uma coisa é a frutose imersa em produtos alimentícios ultraprocessados (sem fibras, sem fitoquímicos, sem minerais) e a outra é a frutose em uma pêra. Para você ter ideia, para ter a frutose de um xarope de frutose, eu teria que comer pelo menos 20 pêras. E, mesmo assim, se eu fosse teimoso e consumisse 20 pêras, eu teria menos frutose sendo absorvida do que uma colherada de xarope puro. Entende a importância da matriz alimentar? Então, não se analisa uma dieta de uma pessoa com base em um único alimento e, muito menos, com base em um único nutriente. Simples assim! E, por fim, já que estamos falando em não classificar gorduras como todas iguais, gosto de citar o estudo de Soriguer et al (14), em que os caras analisaram os hábitos alimentares de 613 pessoas por 6 anos e verificaram que os indivíduos que consumiam cronicamente azeite de oliva 54 (rico em ômega 9) eram mais saudáveis e tinham menos prevalência de obesidade que indivíduos que consumiam óleo de girassol (rico em ômega 6). Eu faço questão de citar esse tipo de estudo porque uma coisa é analisar a célula ou fazer um estudo com 20, 30 pessoas. Outra coisa é um estudo com 600 pessoas por 6 anos. A tabela abaixo mostra os resultados. 55 Referências 1) Giugliano D, Esposito K. Mediterranean diet and cardiovascular health. Ann N Y Acad Sci. 2005;1056:253-260. doi:10.1196/ annals.1352.012 2) Martínez-González MA, Gea A, Ruiz-Canela M. The Mediterranean Diet and Cardiovascular Health. Circ Res. 2019 Mar;124(5):779-798. doi: 10.1161/CIRCRESAHA.118.313348. PMID: 30817261. 3) Yan Y, Jiang W, Spinetti T, et al. ômega 3 fatty acids prevent inflammation and metabolic disorder through inhibition of NLRP3 inflammasome activation. Immunity . 2013;38(6):1154-1163. doi:10.1016/j.immuni.2013.05.015 4) Dickinson S, Hancock DP, Petocz P, Ceriello A, Brand-Miller J. High- glycemic index carbohydrate increases nuclear factor-kappaB activation in mononuclear cells of young, lean healthy subjects. Am J Clin Nutr. 2008;87(5):1188-1193. doi:10.1093/ajcn/87.5.1188 5) Innes JK, Calder PC. ômega 6 fatty acids and inflammation. Prostaglandins Leukot Essent Fatty Acids. 2018 May;132:41-48. doi: 10.1016/j.plefa.2018.03.004. Epub 2018 Mar 22. PMID: 29610056. 6) Rehman K, Haider K, Jabeen K, Akash MSH. Current perspectives of oleic acid: Regulation of molecular pathways in mitochondrial and endothelial functioning against insulin resistance and diabetes. Rev Endocr Metab Disord. 7) Kawai T, Akira S. Signaling to NF-kappaB by Toll-like receptors. Trends Mol Med. 2007 Nov;13(11) :460-9. do i : 10.1016/ j.molmed.2007.09.002. Epub 2007 Oct 29. PMID: 18029230. 8) Lancaster et al. Evidence that TLR4 Is Not a Receptor for Saturated Fatty Acids but Mediates Lipid-Induced Inflammation by Reprogramming Macrophage Metabolism. Cell Metab. 2018 May 1;27(5):1096-1110.e5. doi: 10.1016/j.cmet.2018.03.014. Epub 2018 Apr 19. PMID: 29681442. 56 9) Lawton CL, Delargy HJ, BrocKman J, Smith FC, Blundell JE. The degree of saturation of fatty acids influences post-ingestive satiety. Br J Nutr. 2000 May;83(5):473-82. PMID: 10953671. 10) Rodríguez-Morató, J.; Xicota, L.; Fitó, M.; Farré, M.; Dierssen, M.; De la Torre, R. Potential Role of Olive Oil Phenolic Compounds in the Prevention of Neurodegenerative Diseases. Molecules 2015, 20, 4655-4680. 11) Yan Y, Jiang W, Spinetti T, et al. ômega 3 fatty acids prevent inflammation and metabolic disorder through inhibition of NLRP3 inflammasome activation. Immunity . 2013;38(6):1154-1163. doi:10.1016/j.immuni.2013.05.015 12) Reynolds CM, McGillicuddy FC, Harford KA, Finucane OM, Mills KH, Roche HM. Dietary saturated fatty acids prime the NLRP3 inflammasome via TLR4 in dendritic cells-implications for diet-induced insulin resistance. Mol Nutr Food Res. 2012;56(8):1212-1222. doi:10.1002/mnfr.201200058 13) Edwards IJ, O'Flaherty JT. ômega 3 Fatty Acids and PPARgamma in Cancer. PPAR Res. 2008;2008:358052. doi:10.1155/2008/358052 14) Soriguer F, Almaraz MC, Ruiz-de-Adana MS, et al. Incidence of obesity is lower in persons who consume olive oil. Eur J Clin Nutr. 2009;63(11):1371-1374. doi:10.1038/ejcn.2009.65 15) Martin, Clayton Antunes, Almeida, Vanessa Vivian de, Ruiz, Marcos Roberto, Visentainer, Jeane Eliete Laguila, Matshushita, Makoto, Souza, Nilson Evelázio de, & Visentainer, Jesuí Vergílio. (2006). Ácidos graxos poliinsaturados ômega 3 e ômega 6: importância e ocorrência em alimentos. Revista de Nutrição, 19(6), 761-770. 57 58 CAPÍTULO 3 FRUTAS 59 3.1 O que são frutas? As frutas são, de longe, os alimentos mais injustiçados pelos carbofóbicos. A história de que frutose (das frutas) causaria cirrose se assemelha a um terraplanismo nutricional. Quando as pessoas falammal de frutas, imediatamente, elas estão colocando um adesivo na própria testa escrito “EU NÃO SOU UMA PESSOA QUE SE ATUALIZA”. E, como o propósito deste livro é te dar argumentos para refutar essa galera, eu precisarei embasar algumas coisas no que tange a essa classe de alimentos que chamamos de frutas. A fruta (o termo científico correto é fruto) existe com um único objetivo: disseminar a espécie. No entanto, não se engane. Não estou falando da nossa espécie. Estou falando da espécie da própria fruta. A fruta te usa para que você e outros animais espalhem as sementes dela através das suas fezes pela floresta. Chamamos, popularmente, de fruta (no feminino) aquela parte de tecidos que varia em consistência, odor, cor que envolve as sementes de uma determinada planta. O fruto é 60 uma estrutura desenvolvida a partir do ovário de uma flor fecundada. Às vezes, também chamamos de fruta algo que nem é fruto (por exemplo, a parte da maçã que comemos é um pseudofruto, pois o fruto é só a parte que circunda a semente). E, qual a diferença entre fruto e legume? Basicamente, nenhuma. Na verdade, os legumes nada mais são do que frutos salgados (beterraba, tomate, chuchu) e as frutas são frutos mais doces. Por que precisamos saber disso? Para nos situarmos e, pelo menos enquanto estivermos entre colegas, sabermos do que estamos falando. É importante, pelo menos, sabermos os termos técnicos das coisas em nossa profissão. Lembro do meu cunhado, que é engenheiro civil, me contando que não existe "barra de ferro”, pois ferro é um mineral e, na verdade, toda barra de ferro é, na verdade, uma barra de aço. Não existe chão de cimento. Cimento faz parte do concreto que está no chão ou, ainda, construir uma “casa de material”, quando, na verdade, toda casa é feita de algum material (algumas pessoas chamam casa de material uma casa que não foi feita de madeira). 61 Mas tudo bem se o servente de pedreiro que começou agora sua vida na construção falar dessa forma ou algum outro trabalhador que, infelizmente, não teve como receber estudos. Mas já imaginou engenheiros usando esses termos? Você deixaria ele construir a sua casa ou o prédio que você vai morar? Pense nisso! Se queremos que a Nutrição seja respeitada como todas as outras áreas, temos que nos dar o respeito. Estou aqui dando um exemplo, pueril até, sobre o que é uma fruta ou legume, mas vejo, infelizmente, nutricionistas trocando os termos. Falando prega cutânea, em vez de dobra cutânea, falando que temos probióticos no nosso intestino (quando, na verdade, probiótico é só quando é na forma de suplemento), falando, ainda, sobre alimentos nutracêuticos (quando, na verdade, nutracêutico é só quando o alimento vira produto/cápsula/ etc.). Mas, principalmente, acho que o nutricionista deveria se aproximar mais do seu objeto de trabalho: o alimento. Não precisa saber tudo, mas saber algumas coisas sobre os alimentos é legal. Saber quando surgiu o café, da onde vem o chocolate ou que o cara que inventou o Tang fazia sabão em pó antes de desenvolver "alimentos”. 62 3.2 Frutas não são somente frutose Falando em conceitos que devemos usar, vamos lembrar de um conceito técnico bastante abordado neste livro: a matriz alimentar. Matriz alimentar é o alimento em que o nutriente em questão está aderido. Se eu estou falando do resveratrol, é correto eu afirmar que a uva é matriz alimentar do resveratrol. Se eu estou falando de ômega 9 do azeite de oliva, estou falando que a matriz alimentar deste óleo é o azeite de oliva. A Nutrição não se faz com macro ou micronutrientes. A Nutrição não se faz com fitoquímicos. A Nutrição se faz com a matriz alimentar toda. Claro, a não ser que 100% da sua ingestão seja de manipulados ou cápsulas. E, sim, por um capricho da natureza, a maioria dos alimentos possui biodisponibilidade alimentar melhorada quando ocorre a ingestão do nutriente junto à sua matriz alimentar e não isolada. Em uma meta-análise recente, os autores verificaram que o consumo elevado de azeite de oliva resultou em redução de 28% dos eventos cardiovasculares e 40% de AVC. Efeito esse não observado quando o ácido 63 oleico (ômega 9) foi ingerido de maneira isolada (1). Em outro estudo (2), os autores verificaram que a capacidade de estimular proteínas relacionadas à biogênese mitocondrial (UCPs) foi superior no suco de uva comparado ao resveratrol em cápsulas. Tempos atrás, f iz um post comparando o reducionismo das frutas com o Marea Turbo. Retirei o post porque curto muito zoeira, mas quando baixa o nível, eu retiro, mesmo (só fiz isso uma outra vez quando o assunto foi política). Mas vou colocar o post aqui, já que estamos entre amigos: Imagine o seguinte: Você saiu com seu Mini Cooper turbo zero Km louco pra fazer aquele "bate-volta" esperto para a praia. Mas antes você pensou "a felicidade só é real quando compartilhada", então você chamou seu amigo para dar junto esse rolê. Seu amigo. no entanto. o advertiu "cara, que besteira você fez... Comprou um carro turbo." Você, sem entender, ainda segurando a chave do Mini Cooper, perguntou "como assim?" Ele, então, te disse: 64 "Carro turbo não presta. Eu tive um Marea Turbo que só me deu dor de cabeça." Você tenta explicar pra ele que o problema não é ser turbo ou não, e que o problema é o contexto do carro (na verdade, como você é inteligente, ensina ele que qualquer carro da FIAT Turbo, não é motivo de orgulho). Mas ele não te ouve… Decide não viajar com você, pois ele tem medo de se incomodar. Você achou essa história absurda? Já imaginou se esse seu amigo fosse estudado no assunto… Um Engenheiro Mecânico Automotivo? Não seria mais bizarro ainda? Pois é, às vezes, temos que extrapolar os exemplos, elevá-los ao absurdo pra você entender quão bizarro é um médico que estudou, que se dedicou, que passou horas lendo Guyton, reduzir as frutas tudo à frutose. Reduzir um alimento a um macronutriente. D e i x e m o s d e r e d u z i r o a l i m e n t o a u m macronutriente. Deixemos de reduzir uma dieta a um único alimento. Deixemos de reduzir padrões alimentares à dieta. 65 Não seja um ex-dono de Marea! Nada contra Mareas também. Embora o Mini Cooper também seja um “carro-bomba”, eu quis comparar justamente o Marea com outro carro-bomba para ver que mesmo entre os carros-bomba existem diferenças. Coloquei essa imagem também: 66 O exemplo é exagerado, é esdrúxulo e extrapola, não é? Mas é assim que temos que pensar. Isso é quase um koan budista. A nossa mente chacoalha e você entende completamente o que eu estou querendo dizer. Tempos atrás, atendendo uma médica que tinha medo de comer arroz, eu falei algo mais ou menos assim: "Vamos fazer de conta que você precise de 1200 kcal para ficar viva. No entanto, eu só vou te fornecer 400 kcal por dia. E essas calorias serão 100% de arroz. O que vai acontecer? Você vai engordar?" Ela então disse: "impossível engordar, vou emagrecer e morrer de fome”. E então ela entendeu. Parece que acendeu uma lâmpada. Ela sorriu e eu falei: “então você acabou de entender que o que engorda é o superávit calórico, não o arroz”. Nenhum alimento engorda (pelo mesmo motivo que nenhum alimento emagrece). Claro, alguns alimentos fontes de proteínas, fibras ou até polifenóis vão alterar nosso metabolismo pós-prandial e alterar assim a energia que entra. Mas, mesmo assim, no final das contas, é déficit. A beleza da Nutrição, no entanto, é saber fazer a dieta quando não se precisa mais fazer déficit! 67 Com a evolução das indústrias alimentícias (e a degeneração da nossa saúde), nossos produtos alimenticios foram buscando cada vez mais custarem menos para a indústria. Conta básica de administração: quanto mais barato for a matéria-prima, maior a margem de lucro. Ou seja, quanto mais barato um produtocustar para uma empresa, mais a empresa pode lucrar em cima, ou investir dinheiro em outras coisas. O problema é que essa conta fica perigosa quando estamos falando de produto feito para as pessoas colocarem no seu organismo. Porque as coisas que começam a colocar nos produtos são realmente baratas, mas não são saudáveis. Simples. Então, nesse cenário, o xarope de frutose de milho aparece na indústria para adoçar os mais diversos produtos: refrigerantes, balas, geleias, sucos de caixinhas, guloseimas em geral. A frutose cuja capacidade é maior que a da sacarose para adoçar as coisas. E, vemos então, uma criançada toda viciada em produtos açucarados. Na verdade, nosso caso de amor com o açúcar é bem antigo. É até ancestral. E temos exemplos até de animais que comem mel. Mas isso seria assunto para uma outra hora. 68 O que quero pontuar aqui é que uma coisa é a frutose encontrada nos produtos alimentícios, outra é a frutose das frutas. Sim, são a mesma molécula de frutose. Mas pera lá. Pensa comigo: 20 g (1 colher de sopa de xarope de frutose) tem de 15 g a 18 g, aproximadamente, de frutose. 100 g de pêra tem 2 g de frutose. Preciso me estender mais? Para bom entendedor, meia palavra basta, como dizem. Claro que, uma quantidade absurda de frutose, entrando no organismo, vai agredir o corpo. O corpo “não entende” o que é essa enxurrada de frutose, afinal, ele evoluiu tendo frutose de uma maneira diluída e menos concentrada. Quando você ingere frutas você tem: - Vitaminas - Fibras - Minerais - Fitoquímicos - Água -Frutose 69 Quando você ingere xarope de frutose você tem: - Frutose Percebe? Não fica claro como pode esse medo bizarro de fruta? Vou repetir (novamente) o exemplo do nitrogênio da proteína: Sabemos que as proteínas são macronutrientes que se diferenciam de outros macronutrientes (como a gordura e o carboidrato) por conterem nitrogênio. Oras… Nitrogênio tem na dinamite. Portanto, comer proteína poderia explodir você, não? Lógico que não! Não é estupidez ter medo de peito de frango porque tem o mesmo nitrogênio da dinamite? Sim. Por isso que é estupidez ter medo de comer frutas porque elas têm frutose! E fim de papo!!! 70 3.3 Nutrigenômica das Frutas Em 1990, houve uma força tarefa de muitos países, conhecida como Projeto Genoma Humano. Com um financiamento de 50 bilhões de dólares, tal projeto, que só foi concluído em 1995, mapeou nosso DNA por completo. Surge, então, mais recentemente nos anos 2001 e 2002, o conceito das ômicas em Nutrição. Essas ciências "ômicas” juntas denominaram-se Nutrição Molecular (3). De maneira bem resumida e objetiva: quando estamos falando de Nutrição Molecular, estamos falando principalmente de: Epigenética: nossos genes podem ser silenciados (deixando de expressar uma proteína, por exemplo), mas não alteramos o DNA propriamente dito. Apenas, como eu sempre digo, “mandamos um gene ficar quietinho” através de metilações, acetilações etc. Nutrigenética: entender como alterações nos meus genes (principalmente os SNPs) que fazem com que um indivíduo responda de maneira diferente a um alimento ou, ainda, produza mais ou menos mitocôndrias do que seu amiguinho. Nutrigenômica: a palavra chave aqui é FATOR DE TRANSCRIÇÃO. A Nutrigenômica estuda “o caminho” que o alimento faz até o DNA. É complicado estudar isso? 71 Lógico… E por isso que existe tanta gente falando de Nutrição com aquele adesivo de ignorante na testa! Basicamente, então, quando falamos de Nutrição Molecular, falamos dessas três: epigenética, nutrigenética e nutrigenômica. Faço questão de usar a linguagem bem sucinta e clara porque sei que muitos nutris ainda não conseguiram entender as diferenças entre essas ciências. Não por culpa deles, mas porque têm "educadores" que parecem que fazem questão de complicar a coisa. Agora que entendemos o que é uma matriz alimentar, visto que o conceito já está bem definido aqui neste livro, posso afirmar o seguinte: as frutas são uma matriz alimentar cheia de alvos nutrigenômicos, ou seja, elas possuem alguns nutrientes que “tocam” de alguma forma nosso DNA. E “tocam" de forma boa, porque de forma ruim até fast-food toca! Segundo Kaput e Rodriguez (4), poderíamos resumir os conceitos básicos de nutrigenômica em: ● Nutrientes e compostos bioativos agem sobre o nosso genoma, alterando nossa expressão gênica; ● Em circunstâncias específicas e em indivíduos específicos, a alimentação pode ser o fator-chave no desenvolvimento de determinadas doenças; 72 ● A alimentação atua em genes relacionados às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT); ● O grau que a alimentação influencia (ou não) na saúde do indivíduo depende, também, da sua particularidade genética; ● Intervenções dietéticas baseadas nos conhecimentos dos alimentos e nutrientes, bem como nas variantes genéticas, podem prevenir e/ ou reduzir o risco das DCNT. Algumas frutas possuem fitoquímicos, outras possuem gorduras (como o ômega 9 da azeitona já abordado no capítulo 2) que podem agir beneficamente em nosso DNA. Quando falamos em fitoquímicos, os três grupos são: ● Polifenóis ● Glicosinolatos ● Carotenoides 73 Polifenóis Em geral, nossa ingestão é de 100mg/dia de polifenóis (5), o que ainda é baixa. Os polifenóis são compostos que se caracterizam por uma estrutura de benzeno com uma hidroxila e podem ser divididos, de maneira simplificada, em: - Flavonoides (catequinas, antocianinas, quercetina etc.) - Não Flavonoides (resveratrol, lignanas etc.) Existem muitos polifenóis na natureza (estima-se que mais de 8.000). No entanto, cumpre nos atermos aos mais acessíveis e/ou estudados pela comunidade científica e pertinentes à nossa cultura. A tabela abaixo ilustra melhor: 74 Lembra-se dos fatores de transcrição, a palavra chave que mencionei faz pouco neste capítulo? Pois é, geralmente, em linhas gerais, os polifenóis vão agir estimulando a migração de fatores nucleares “do bem", como o Nrf2, conforme muito bem ilustrado por Done e Traustadóttir (6) na figura abaixo. Done e Traustadóttir (2016) 75 Os polifenóis também agem bloqueando a migração de fatores de transcrição “do mal”, como o Nfkb, conforme demonstram Goszcz et al (7) na figura abaixo, agindo, por tanto, nos mecanismos mais pr imár ios que desencadeiam a inflamação e o estresse oxidativo. Goszcz et al (2017) Os polifenóis apresentam, ainda, uma interação muito importante com a nossa microbiota (as bactérias 76 boas do nosso intestino), de modo que essa relação parece ser bivalente, ou seja, o povoamento de bactérias que eu tenho em meu intestino influencia no meu metabolismo de polifenóis, ao mesmo passo que a minha ingestão de polifenóis modula o tipo de bactérias que eu vou encontrar no meu intestino (8). E tudo isso acaba se refletindo com um ganho absurdo de qualidade de vida, que faz com que o alvo direto seja as DCNTs, a maior causa de morte do mundo. A figura abaixo ilustra essa tríplice relação. FITOQUÍMICOS INTESTINODCNT 77 Carotenoides Existem, aproximadamente, 600 carotenoides documentados. No entanto, apenas 50 destes possuem atividade pró-vitamina A e apenas 14 foram detectados no sangue de humanos. A meia vida dos carotenoides difere também. Geralmente, é extensa, visto serem compostos bioativos lipofílicos, e podem variar de 12 dias, como o Licopeno e o Beta-Caroteno, até 60 dias, como a Luteína e a Zeaxantina. Os carotenoides também alteram o comportamento do Nrf2, aquele fator nuclear responsável pela nossa defesa antioxidante. No entanto, alguns deles possuem um comportamento bem específico. O licopeno, por exemplo, age modulando a ação da enzima 5 alfa redutase, enzima essa responsável pela conversão de testosterona em DHT. O licopeno está envolvidona melhora de quadros de câncer de próstata (9). Geralmente, associamos carotenoides com frutas apenas, mas a luteína e a zeaxantina (que não possuem atividade pró-vitamina A) são encontradas nos ovos e na chia. Os carotenoides são compostos bioativos versáteis e, o melhor de tudo, possuem uma meia vida relativamente longa, o que faz a gente refletir sobre quão desnecessário é se tornar ortoréxico na ingestão desesperada de certos 78 componentes, pois levam dias para diminuir sua dosagem no plasma. Digo isso porque vejo alunos estudarem sobre o licopeno, aí fazem dele um medicamento, forçando a ingestão diariamente como se isso que fosse fazer a diferença. O ideal é sempre variar o carotenoide. E como isso é feito no dia a dia? Simples, hoje eu consumo cenoura na salada, amanhã como um mamão no café da manhã, depois de amanhã como melancia, e assim por diante. A tabela abaixo mostra as principais fontes de carotenoides. FONTE: Adaptado de USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) Perceba, nessa singela tabelinha, o embasamento científico do que nós, nutricionistas, sempre falamos: 79 mantenha seu prato o mais colorido possível. Perceba como é na abóbora que vamos encontrar mais alfa- caroteno. E beta-caroteno será na batata doce e, embora a cenoura tenha menos dos dois, ela parece ser bem interessante por ter uma quantidade boa de ambos. Quando falamos de licopeno, aí entra novamente o amor da minha vida: a melancia. Ela tem mais licopeno do que o próprio tomate (que é bom, também, mas que, geralmente, é a referência de licopeno que usamos). Abóbora e brócolis vão ter mais luteína e zeaxantina, e mamão beta- criptoxantina. Como veremos adiante, alguns carotenoides também poderão ser encontrados na chia também. Glicosinolatos Os glicosinolatos estão presentes nas brássicas e podem ser divididos em: Sulforafanos e Indol-3 Carbinol. 80 FOTO: Brássicas (couve-flor, couve de Bruxelas, repolho, brócolis etc.) De todos os compostos bioativos, são eles que possuem maior atividade anti-carcinogênica. As substâncias bioativas das brássicas precisam da ação da enzima mirosinase para serem liberadas da estrutura das plantas. A mirosinase só é ativada mediante danificação desse tipo de vegetal. Em outras palavras: mastigue-as bem! O indol-3-carbinol apresenta atividade de metilação do DNA (10). Metilar o DNA é uma característica de mecanismos epigenéticos, ou seja, age modulando a genética, permitindo ou não que um determinado gene se expresse. O indol-3-carbinol também pode promover o 81 equilíbrio da relação testosterona-estrogênio por mecanismo ainda pouco elucidado (10). 82 Referências 1) Schwingshackl, L., Hoffmann, G. Monounsaturated fatty acids, olive oil and health status: a systematic review and meta-analysis of cohort studies. Lipids Health Dis 13, 154 (2014). https://doi.org/ 10.1186/1476-511X-13-154 2) Cardoso, L. et al. “Grape Juice, Red Wine, Resveratrol and Exercise, In the Expression of FNDC5 and UCP2 in Cardiac and Skeletal Muscles of Wistar Rats Submitted To High-Fat Diet.” (2017). 3) Sales, N.; Pelegrini, P.; Goersch, M. Nutrigenomics: Definitions and advances of this new science. J. Nutr. Metab. 2014, 2014, 202759. 4) Kaput J, Rodriguez RL. Nutritional genomics: the next frontier in the postgenomic era. Physiol Genomics. 2004;16(2):166-177. Published 2004 Jan 15. doi:10.1152/physiolgenomics.00107.2003 5) Arabbi PR, Genovese MI, Lajolo FM. Flavonoids in vegetable foods commonly consumed in Brazil and estimated ingestion by the Brazilian population. J Agric Food Chem. 2004;52(5):1124-1131. doi:10.1021/ jf0499525 6) Done, A.J. e Traustadóttir, T. Nrf2 mediates redox adaptations to exercise. Redox Biol. 2016 Dec; 10: 191–199. 7) Goszcz, K. et al. Bioactive polyphenols and cardiovascular disease: chemical antagonists, pharmacological agents or xenobiotics that drive an adaptive response? British Journal of Pharmacology (2017) 174 1209–1225 8) Chaplin, A. et al. “Resveratrol, Metabolic Syndrome, and Gut Microbiota.” Nutrients vol. 10,11 1651. 3 Nov. 2018, doi:10.3390/ nu10111651 83 https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2213231716301860%23! https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5078682/ 9) Holzapfel, N. P. et al. “The potential role of lycopene for the prevention and therapy of prostate cancer: from molecular mechanisms to clinical evidence.” International journal of molecular sciences vol. 14,7 14620-46. 12 Jul. 2013, doi:10.3390/ijms140714620 10) Chinni, S., Li, Y., Upadhyay, S. et al. Indole-3-carbinol (I3C) induced cell growth inhibition, G1 cell cycle arrest and apoptosis in prostate cancer cells. Oncogene 20, 2927–2936 (2001). https://doi.org/10.1038/ sj.onc.1204365 84 https://doi.org/10.1038/sj.onc.1204365 https://doi.org/10.1038/sj.onc.1204365 CAPÍTULO 4 MICROBIOTA, AVEIA E FEIJÃO 85 Eu não sei o que acontece, mas vez ou outra, um alimento é o vilão da vez. O ovo já foi demonizado por ter colesterol. O pão já foi demonizado por ter glúten e, ultimamente (pasmem), estão descendo a lenha na aveia. Mas o mais engraçado é o barulho que os ignorantes fazem. Uma vez alguém me disse que a burrice é a barulhenta. Infelizmente, hoje vejo que isso é verdade. Mas como diria Luther King, o que preocupa mesmo é o silêncio dos bons. E esse livro é para acabar com o seu silêncio. Frequentemente, vemos o feijão também ser colocado como um alimento “que engorda" e, por isso, vamos falar também neste capítulo dessa maravilha que é o feijão. Teremos um capítulo especial para a parte argumentativa (através de perguntas capciosas) e, por isso, não quero queimar a largada aqui. Vamos lembrar que esse livro é, antes de tudo, uma arma para esclarecer o leitor para que ele também possa argumentar com as suas próprias palavras. 86 4.1 A Microbiota Podemos dizer hoje, tranquilamente, que um ecossistema habita em nós. Os estudos mais recentes (1) nos dizem que temos entre 2 a 20 milhões de genes microbianos habitando nosso corpo. E é válido lembrar que isso é um número que pode chegar a 100 vezes mais do que a quantidade de genes que tem o ser humano (que é de 19.000). Se o número de DNA externo (das bactérias) é tão (ou mais) imenso que o número de DNA interno, então, chegamos à inevitável conclusão de que, no mínimo, é preciso escolher bem esses companheiros que irão partilhar a nossa jornada aqui na Terra. É uma máxima filosofal: diga-me com quem andas e eu te direi quem és. Certo? Como espírita, aprendi desde criança sobre a questão da sintonia. Você, acreditando em espírito ou não, há de convir comigo que os semelhantes se atraem. Por exemplo: você detesta futebol e churrasco. É bem difícil que você vá, sistematicamente, todo domingo se reunir com alguns amigos para jogar bola e fazer churrasco, certo? Você detesta sertanejo. É muito difícil você se reunir toda sexta com o pessoal que gosta de sertanejo. 87 Assim como você se sente bem quando está com amigos que treinam, se alimentam bem ou amam a Nutrição. Por isso que dizemos que nos sentimos “em casa”. As ideias batem, ninguém vai te achar estranho por não se entupir de fast-food e assim por diante. Eu falo isso porque acredito que tem tudo a ver com biologia. Acredito que as leis divinas que governam o macro governam o micro. A coisa começa no nível atômico, afinal, não aprendemos desde cedo na escola que os átomos precisam ter afinidades químicas para o "encaixe” correto? Não precisam ser iguais, mas precisam ser afins. Eu sei que é uma digressão que, se olhada de maneira rápida, parece não ter nada a ver com o livro, mas te digo: tem. Então, lembra que falamos de Padrão Dietético antes? Pois é. Se na maioria das vezes, você se alimenta bem e hoje decidiu sair para comer uma pizza regada à maionese e catchup, tudo bem. Se vocêquiser, pode até pedir onion rings antes do hambúrguer do sábado à noite. Tudo bem. Não fique noiado com isso. A questão que estamos levantando aqui é o consumo sistemático dessas porcarias. 88 Já está bem documentado (2) que o Padrão Western (baixa ingestão de fibras, alta ingestão de gorduras saturadas, álcool, fast-food e excesso de carnes) leva as pessoas a desenvolverem um povoamento anormal de bactérias no trato digestivo. Por que isso acontece? Lei das afinidades. Se naquela lanchonete só tem açaí, você só vai encontrar pessoas que gostam de açaí comendo ali, certo? Se na outra lanchonete só tem pastel, você só vai encontrar pessoas que gostam de pastel ali. Não espere ver pessoas que gostam de pastel frito na lanchonete de açaí, nem pessoas que gostam de açaí na lanchonete de pastel frito. Portanto, em outras palavras, eu estou lhe pedindo para cuidar com o tipo de lanchonete que você é para as bactérias que habitam o seu intestino. E nesse sentido, os alimentos fontes de fibras solúveis (como aveia) e insolúveis (como o feijão) são ótimas lanchonetes para se abrir! Volto a insistir: nós, nutricionistas, precisamos entender melhor a relação alimento x ser humano para que possamos refutar com argumentos simples e atualizados esses terroristas que tomam conta da nossa área. Só perdemos com o reducionismo. Todos perdem. 89 Alguns carbofóbicos vão alegar que dá para se ter uma microbiota saudável comendo apenas vegetais. Sim, dá, sim. Mas o que eu quero refutar não é isso. O que eu quero refutar é que: alguns dos alimentos que contêm carboidratos podem possuir maior capacidade de fermentação do que os vegetais. E é por isso que eu vou falar do feijão aqui. O feijão vermelho, por exemplo, pode chegar a ter até 50% do seu carboidrato como amido resistente (6) e, talvez, os carbofóbicos não saibam, o amido resistente é capaz de aumentar a produção de butirato de maneira muito mais eficaz do que outras fibras (6), conforme mostra a figura abaixo: 90 FONTE: Pereira, 2007. Não é o propósito deste livro ser um livro que trate de intestino, mas rapidamente, devemos revisar algumas coisas antes de prosseguir: primeiro, os ácidos graxos de cadeia curta são gerados pelo metabolismo de bactérias 91 benéficas. Portanto, ocorre quase que uma transdução aqui. Conforme mostra a figura abaixo, a nossa microbiota recebe amido e o transforma em ácido graxo de cadeia curta. Esse mesmo ácido graxo vai ter efeitos locais e sistêmicos. Vamos ver, por exemplo, que o acetato, um 92 ácido graxo de apenas dois carbonos, pode promover duas coisas benéficas para quem quer emagrecer: reduzir o apetite (7) e estimular a via da AMPK (8). A AMPK é uma quinase (proteína) importantíssima na translocação de GLUT-4 para a membrana da célula. Mecanismo esse importantíssimo na absorção da glicose que o paciente diabético do tipo II tem corrompido. Estou dizendo aqui para o paciente diabético se entupir de feijão para curar diabetes por meio da AMPK? Lógico que não. O que estou querendo dizer é que, se você já tem caso de diabetes na família e você não ajuda seu futuro com seus hábitos alimentares, você pode começar hoje a se cuidar. E sim, você pode começar a se cuidar comendo leguminosas. Elenquei aqui alguns alimentos que são saudáveis para nossa microbiota e que, frequentemente, são atacados em redes sociais: aveia (virou moda falar mal de aveia) e feijão (já recebi pacientes que tiveram seu feijão retirado da dieta até por outros nutricionistas). Bora lá? 93 4.2 Feijão Que o feijão é fonte de ferro e proteínas, todos sabem. No entanto, isso não parece ser suficiente para convencer os carbofóbicos. Eles vão alegar que a carne é mais rica em ambos. Pois bem, então se puder, te desafio a encontrar uma carne ou até um vegetal que tenha até 50% dos seus carboidratos sendo amido resistente. Vamos ignorar o efeito do amido resistente na produção de ácidos graxos de cadeia curta pelas nossas bactérias. Vamos fazer de conta que isso nem existe. É tudo fake news! Porém, só o fato de o amido resistente diminuir o índice glicêmico de uma refeição, bem como o esvaziamento gástrico da mesma, poderia ser outro fator que deveria ser levado em conta. A figura abaixo ilustra bem isso. Do lado esquerdo temos uma refeição sem amido resistente. Do lado direito, com o amido resistente. 94 FONTE: Pereira, 2007. No entanto, para o carbofóbico, eu sinto informar: o amido resistente é um dos maiores produtores (senão o maior) produtor de outro ácido graxo de cadeia curta: o butirato. O butirato é um dos mais importantes ácidos graxos de cadeia curta produzido pela nossa microbiota. Seus benefícios vão desde redução de inflamação sistêmica (tão importante em um paciente obeso, por exemplo), quanto 95 ações epigenéticas que impactarão, também, em outros tipos de doenças, como as doenças neurodegenerativas (3). Veja a figura abaixo. FONTE: Bourassa et al (2016) 4.3 Aveia Eu não sei qual foi a viagem astral que as pessoas tiveram nos últimos meses que elas voltaram para a Terra colocando a aveia como vilã. Não vou colar aqui neste livro, por motivos óbvios (porque não quero me complicar), mas 96 teve “médico” que fez post descrevendo os malefícios da aveia. Vê se pode uma coisa dessas! Tá cheio de produto alimentício ultraprocessado (e eu faço questão de frisar que são produtos) fazendo mal para as nossas crianças e os caras estão preocupados com aveia! É como se você culpasse o Batman pela zona de Gotham City e não o Pinguim! A aveia, mais precisamente, o farelo de aveia, como se já não bastasse ser uma matriz nutricional excelente, é rico em beta-glucana. Como demonstra a tabela abaixo, o farelo de aveia (oat bran) é o segundo maior produtor de butirato e parece ser um dos maiores produtores de acetato. 97 FONTE: Bourassa et al (2016) Como eu falei, a aveia é um alimento funcional porque oferece algo além dos macros e micronutrientes (que, diga-se de passagem, são muito bem distribuídos nesse rico alimento). E, na verdade, é isso que faz um alimento funcional ser funcional: ter algo a mais. A aveia e a cevada são os alimentos mais ricos em beta-glucana, conforme mostra a tabela abaixo: 98 FONTE: Wood, 1997 E, se algum terraplanista desconsiderar toda a carga funcional que a aveia traz, bem como seu potencial na produção de ácidos graxos de cadeia curta, a simples matriz alimentar, ou seja, o alimento como um todo faz, com que tenhamos uma resposta glicêmica menor, o que impactará em redução de glicemia e posterior redução de apetite! Em 2016, Steinert e colaboradores (5) conduziram um estudo interessante: 10 indivíduos (5 homens e 5 mulheres) foram submetidos ao seguinte protocolo: Dia 1: Água + 50 g de carboidratos vindos de 120 g de pão branco 99 Dia 2: Água + 4,5 g de farelo de aveia + 50 g de carboidratos vindos de 120 g de pão branco Dia 3: Água + 13,6 g de farelo de aveia + 50 g de carboidratos vindos de 120 g de pão branco Dia 4: Água + 27,3 g de farelo de aveia + 50 g de carboidratos vindos de 120 g de pão branco O farelo de aveia, sendo 44% fibra (50% beta-glucana). O resultado na glicemia foi esse: FONTE: Steinert et al (2016) 100 Perceba que isso é muito animador. Porque temos aí um resultado a curto prazo. Mesmo que você não esteja nem aí para essa história de microbiota, uma coisa é fato: o prêmio pela ingestão de um alimento você já recebe na hora. E veja que diferença na glicemia aos trinta minutos após a ingestão de aveia antes de consumir pão branco. Agora, imagine: como seria se nem tivesse o pão branco? Como seria se a alimentação das pessoas fosse exclusivamente por carboidratos assim, integrais e saudáveis? São perguntas que precisamos fazer para nós mesmos. Mas existem,
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