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Autor: Profa. Vitor de Salles Painelli Colaboradores: Profa. Vanessa Santhiago Prof. Welliton Donizeti Popolim Nutrição Aplicada ao Esporte Professor conteudista: Vitor de Salles Painelli Bacharel em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) em 2010, mestre em Ciências em 2013 e doutor em Ciências em 2017. Ministra as disciplinas Medidas e Avaliações e Produção Técnico-Científica Interdisciplinar. Atualmente, conduz seu pós-doutorado no Grupo de Fisiologia Aplicada e Nutrição, pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Treinamento de Força da UNIP. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P147n Painelli, Vitor de Salles. Nutrição Aplicada ao Esporte / Vitor de Salles Painelli. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 212 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Macronutrientes. 2. Termorregulação e hidratação. 3. Recursos ergogênicos. I. Título. CDU 796:612.39 U507.11 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Bruno Barros Elaine Pires Sumário Nutrição Aplicada ao Esporte APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 METODOLOGIA DA PESQUISA EM NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE ..................................... 11 1.1 Ponto 1 – a amostra estudada ........................................................................................................ 11 1.2 Ponto 2 – o desenho experimental ............................................................................................... 13 1.2.1 Estudo transversal .................................................................................................................................. 13 1.2.2 Estudo/relato de caso ............................................................................................................................ 14 1.2.3 Estudo longitudinal crossover ........................................................................................................... 15 1.2.4 Estudo longitudinal de grupos paralelos ...................................................................................... 16 1.3 Ponto 3 – a qualidade do vendamento ....................................................................................... 16 1.4 Ponto 4 – o teste físico ...................................................................................................................... 18 1.5 Ponto 5 – a adequação do consumo alimentar....................................................................... 19 1.6 Ponto 6 – a acurácia da interpretação dos resultados ......................................................... 20 1.7 Ponto 7 – a declaração de conflitos de interesse ................................................................... 21 2 BIOENERGÉTICA E INTEGRAÇÃO METABÓLICA ................................................................................... 23 2.1 Sistema anaeróbio alático ................................................................................................................ 27 2.2 Sistema anaeróbio lático ................................................................................................................... 30 2.3 Sistema aeróbio .................................................................................................................................... 35 3 MACRONUTRIENTES – CARBOIDRATOS ................................................................................................. 40 3.1 Digestão e absorção dos carboidratos ......................................................................................... 42 3.2 Captação dos carboidratos pelos tecidos periféricos (músculo esquelético) .............. 44 3.3 Importância do carboidrato para o exercício físico ............................................................... 46 3.4 Suplementação de carboidratos – mecanismos de ação ..................................................... 49 3.5 Suplementação de carboidratos – efeitos sobre o desempenho aeróbio ..................... 51 3.6 Suplementação de carboidratos – efeitos sobre o desempenho de força .................... 52 3.7 Suplementação de carboidratos – efeitos centrais ................................................................ 54 3.8 Suplementação de carboidratos – recomendações ............................................................... 54 4 MACRONUTRIENTES – GORDURAS ......................................................................................................... 56 4.1 Digestão e absorção intestinal das gorduras ............................................................................ 59 4.2 Mobilização e oxidação das gorduras durante o exercício físico ..................................... 61 4.3 Fatores influenciadores da mobilização e oxidação das gorduras durante o exercício físico ............................................................................................................................................... 63 4.4 Estratégias nutricionais para otimizar a mobilização e oxidação de gorduras ........... 65 4.4.1 Cafeína ........................................................................................................................................................ 66 4.4.2 Carnitina ..................................................................................................................................................... 67 4.4.3 Taurina ......................................................................................................................................................... 69 4.4.4 Cromo .......................................................................................................................................................... 69 4.4.5 Forscolina ................................................................................................................................................... 70 4.4.6 Fucoxantina ............................................................................................................................................... 71 4.4.7 Ácido linoleico conjugado ................................................................................................................... 71 4.4.8 Chá verde ................................................................................................................................................... 72 Unidade II 5 MACRONUTRIENTES – PROTEÍNAS .......................................................................................................... 78 5.1 Digestão e absorção intestinaldas proteínas ........................................................................... 80 5.2 Destino dos aminoácidos e balanço proteico ........................................................................... 81 5.3 Necessidades e recomendações proteicas.................................................................................. 84 5.4 Influência da dose proteica .............................................................................................................. 87 5.5 Influência da distribuição proteica ............................................................................................... 89 5.6 Influência da fonte proteica ............................................................................................................ 91 5.7 Influência da combinação de proteínas com carboidratos ................................................. 93 5.8 Influência do timing ............................................................................................................................ 93 5.9 Aminoácidos livres versus proteínas inteiras ............................................................................ 95 6 MICRONUTRIENTES – VITAMINAS E MINERAIS .................................................................................. 96 6.1 Vitaminas ................................................................................................................................................. 97 6.1.1 Vitaminas lipossolúveis ........................................................................................................................ 98 6.1.2 Vitaminas hidrossolúveis ...................................................................................................................101 6.2 Minerais ..................................................................................................................................................106 6.2.1 Cálcio .........................................................................................................................................................107 6.2.2 Potássio .....................................................................................................................................................107 6.2.3 Magnésio ..................................................................................................................................................107 6.2.4 Fósforo .......................................................................................................................................................107 6.2.5 Sódio ..........................................................................................................................................................107 6.2.6 Zinco ..........................................................................................................................................................108 6.2.7 Iodo .............................................................................................................................................................108 6.2.8 Ferro ...........................................................................................................................................................108 6.3 Suplementação com vitaminas e minerais ..............................................................................108 6.3.1 Suplementação com ferro .................................................................................................................109 6.3.2 Suplementação com vitamina D .....................................................................................................111 6.3.3 Suplementação com cálcio ...............................................................................................................112 6.3.4 Suplementação com vitamina C e/ou E ......................................................................................114 Unidade III 7 TERMORREGULAÇÃO E HIDRATAÇÃO ...................................................................................................121 7.1 Produção de calor e aumento da temperatura interna durante o exercício .............124 7.2 Defesas do organismo contra o aumento da temperatura interna durante o exercício ....................................................................................................................................124 7.3 Influência da desidratação e hiponatremia sobre a performance .................................126 7.4 Estratégias para lidar com a elevação da temperatura interna ......................................127 7.5 Recomendações ..................................................................................................................................128 7.6 Temperatura dos repositores hídricos e desempenho .........................................................129 8 RECURSOS ERGOGÊNICOS ........................................................................................................................130 8.1 Suplementação de creatina ...........................................................................................................132 8.1.1 Classificação ........................................................................................................................................... 132 8.1.2 Protocolos de suplementação ........................................................................................................ 133 8.1.3 Efeitos sobre o desempenho físico ............................................................................................... 135 8.1.4 Efeitos sobre o desempenho esportivo ....................................................................................... 136 8.1.5 Efeitos sobre a função renal ............................................................................................................ 138 8.2 Suplementação de β-alanina ........................................................................................................140 8.2.1 Classificação ........................................................................................................................................... 140 8.2.2 Protocolos de suplementação ........................................................................................................ 143 8.2.3 Efeitos sobre o desempenho físico ............................................................................................... 145 8.3 Suplementação de bicarbonato de sódio .................................................................................150 8.3.1 Classificação ........................................................................................................................................... 150 8.3.2 Protocolos de suplementação .........................................................................................................151 8.3.3 Efeitos sobre o desempenho físico ................................................................................................151 8.3.4 Efeitos colaterais .................................................................................................................................. 152 8.4 Outros recursos potencialmente ergogênicos ........................................................................153 8.4.1 Suplementação de nitrato ............................................................................................................... 153 8.4.2 Suplementação de cafeína .............................................................................................................. 154 8.4.3 Suplementação de β-hidroxi-β–metilbutirato (HMβ) ......................................................... 158 8.4.4 Suplementação de glutamina ........................................................................................................ 160 9 APRESENTAÇÃO A presente disciplina abordará os conceitos de nutrição aplicada ao exercício físico. Pormeio do estudo dos macro e micronutrientes, das suas funções e da sua integração no metabolismo energético, abordaremos como a nutrição pode otimizar o desempenho físico de atletas, bem como a saúde e o bem-estar de praticantes de atividade física. Ao oferecer embasamento científico e possibilitar discussões sobre nutrição aplicada ao exercício físico, espera-se capacitar os alunos a reconhecerem e entenderem as informações vinculadas a este assunto, as quais são constantemente atualizadas na literatura e na mídia, a fim de oferecer uma orientação acurada a alunos, clientes e/ou atletas sobre a importância da nutrição antes, durante e após um exercício físico, visando a melhora da performance e da saúde. Iniciaremos o livro-texto dialogando um pouco sobre metodologia da pesquisa em nutrição aplicada ao esporte. Ainda que este tema não chame a atenção, trata-se de um dos assuntos mais interessantes abordados ao longo de todo o livro-texto. Isso porque serão discutidos os principais critérios de qualidade de uma nova informação publicada na área de nutrição aplicada ao esporte. Em seguida, abordaremos a temática de bioenergética e integração metabólica, em que diversos conceitos bioquímicos e fisiológicos serão apresentados e que, embora, são a base para a compreensão desta disciplina. Nesse tema, discutiremos a utilização da energia para a contração muscular, bem como os mecanismos utilizados pela célula muscular para manter o aporte energético durante a contração. Subsequentemente, serão abordados os macronutrientes, os quais incluem os carboidratos, as gorduras e as proteínas. Nesse momento, serão apresentados os aspectos relacionados à digestão e absorção desses nutrientes, bem como a sua importância para o exercício físico. Aspectos relacionados à suplementação desses nutrientes também serão abordados. Após isso, veremos os micronutrientes, ou seja, vitaminas e minerais, com ênfase nas suas funções, características e fontes. Em seguida, serão explicados os mecanismos termorregulatórios do organismo humano durante o exercício físico e a influência da temperatura interna elevada e da desidratação sobre o desempenho, abrindo espaço para a importância da hidratação durante a atividade. Por fim, serão abordados os recursos ergogênicos, apresentando suplementos nutricionais como a creatina, a beta-alanina e o bicarbonato de sódio, os quais atualmente estão implicados na melhora do desempenho físico-esportivo. INTRODUÇÃO Apesar do longo caminho a ser percorrido no combate ao sedentarismo, o número de praticantes de exercício físico cresce gradualmente no mundo e em nosso país. Nesse sentido, a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) 2017, elaborada pelo Ministério da Saúde, apontou que a quantidade de praticantes de caminhada e corrida aumentou 194% no Brasil entre 2006 e 2017 (NÚMERO..., 2018). A prática de exercícios físicos é executada por inúmeros motivos, entre os quais estão: otimização da performance e dos níveis competitivos, melhora da estética, promoção da saúde e qualidade de vida. No entanto, diversos fatores podem influenciar a prática de exercícios, como fatores genéticos, mecânicos, hormonais e metabólicos. Dentre os fatores que mais se destacam está a nutrição. Afinal, o treinamento físico e a competição esportiva envolvem uma série de atividades com demanda energética variada. O inadequado aporte energético e de certos 10 nutrientes antes, durante e após o exercício físico pode interferir negativamente no desempenho físico, sendo uma potencial explicação para a fadiga muscular. Além disso, a ausência ou excesso energético e de nutrientes também pode interferir em adaptações ao treinamento, é aí que a nutrição se encaixa. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) classifica alimento como toda a substância ou mistura de substâncias, em estado sólido, líquido, pastoso ou qualquer outra forma adequada, destinada a fornecer ao organismo elementos essenciais a sua formação, manutenção e desenvolvimento. Para tanto, os alimentos devem sofrer digestão, reduzindo o tamanho físico das moléculas dos alimentos, liberando seus nutrientes para serem absorvidos em sítios específicos do sistema digestório e subsequentemente transportados e disponibilizados pela corrente sanguínea a todos os diferentes tecidos do organismo, onde exercerão sua função em sua forma integral, enquanto outros podem ser convertidos em energia para a manutenção dos tecidos. Satisfeitas as necessidades basais do corpo, a energia adicional pode ficar estocada em alguns tecidos, podendo ser canalizada para a atividade muscular durante o exercício físico. É possível dizer, então, que a prática de exercícios pode mudar as necessidades energéticas de um indivíduo, influenciadas de acordo com a frequência, intensidade e duração do exercício. Dependendo das necessidades energéticas ou nutricionais de cada indivíduo, a alimentação é insuficiente para supri-las. Para isso há suplementos nutricionais, definidos pelo Conselho Federal de Nutricionistas (2005) como alimentos que servem para complementar, com energia e/ou nutrientes, a dieta de uma pessoa. Seu uso não deve ser negligenciado, entretanto, já que o excesso de alguns suplementos pode culminar em efeitos colaterais. 11 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE Unidade I 1 METODOLOGIA DA PESQUISA EM NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE Tal como em diversos outros campos da grande área de ciências da saúde e exercício, o campo da nutrição aplicada ao esporte se atualiza constantemente e rapidamente. Dada a intensidade e velocidade com que as informações são produzidas, torna-se fácil compreender a importância de o profissional da área de saúde se manter constantemente atualizado, a fim de prover a informação mais acertada a seus alunos, clientes e/ou atletas. Entretanto, analisar a veracidade de uma nova informação produzida na literatura e distinguir entre uma informação boa ou ruim não é tarefa fácil. Com isso, o objetivo apresentado aqui é discutir a metodologia de pesquisa em nutrição aplicada ao esporte, ressaltando alguns dos pontos mais importantes a serem considerados para avaliar a qualidade de uma nova informação produzida nesse campo. 1.1 Ponto 1 – a amostra estudada Esse é um ponto comumente negligenciado durante a leitura de um trabalho no campo da nutrição aplicada ao esporte, sendo facilmente ilustrado pela comparação do estudo de Pedroso et al. (2014) com o de Verhoeven et al. (2009). Ambos tiveram como objetivo avaliar a eficácia terapêutica do aminoácido leucina em animais e humanos, respectivamente. Conforme será discutido neste livro-texto sobre proteínas e aminoácidos, a leucina vem sendo apontada como um importante aminoácido sinalizador para a síntese proteica no músculo esquelético, o que, a longo prazo, pode levar à hipertrofia muscular ou à atenuação da atrofia muscular. Assim, estudos vêm sendo conduzidos com o intuito de avaliar o efeito da sua suplementação sobre a massa muscular de diferentes populações. Durante o estudo conduzido por Pedroso et al. (2014), um primeiro grupo de ratos da linhagem wistar teve a sua ingestão calórica quantificada e não sofreu qualquer intervenção ao longo de um período de seis semanas (denominado grupo controle). Depois, um segundo grupo de ratos da mesma linhagem foi submetido à restrição calórica (denominado restrição calórica), sendo permitido que o grupo ingerisse apenas 70% das calorias oferecidas ao primeiro grupo, procedimento que pode induzir alterações no peso e composição corporal. Por fim, um terceiro grupo de ratos também foi submetido à mesma restrição calórica que o segundo grupo, mas foi suplementado com leucina ao longo das seis semanas. Como principais resultados, temos que ambos os grupos que sofreram restrição calórica perderam massa magra se comparados ao grupo controle, ressaltando o efeito da restrição sobre tais parâmetros. Contudo, essa perdafoi atenuada no grupo suplementado com leucina, sugerindo que a suplementação com esse aminoácido foi uma estratégia eficaz em refrear a perda de massa magra nesse grupo. 12 Unidade I 500 400 300 (g) 200 100 0 a b c Controle Restrição calórica (RC) Massa magra RC + leucina Figura 1 – Massa magra de ratos da linhagem wistar submetidos a tratamentos de restrição calórica (barra amarela), restrição calórica adicionada à suplementação de leucina (barra verde) ou controle (barra vermelha). As letras se referem a diferenças estatisticamente significantes (ao nível P < 0.05) entre os grupos Sem dúvida, tais resultados parecem animadores a princípio e estimulariam uma pessoa a suplementar leucina a fim de evitar perda de massa muscular, tais como as que ocorrem durante o processo de envelhecimento. Por outro lado, ao considerarmos o estudo de Verhoeven et al. (2009), conduzido em humanos, os resultados deixam de ser tão animadores. O estudo tratou especificamente de homens e mulheres saudáveis e acima de 60 anos, isto é, idosos, aleatoriamente designados a dois grupos, um que tomaria leucina (grupo intervenção) e outro que tomaria placebo (grupo controle). Antes e depois de 12 semanas de suplementação, os idosos tiveram a sua composição corporal avaliada. E, ao contrário do observado nos animais do estudo anterior, não foram observadas quaisquer modificações significantes na massa magra, massa gorda ou área de secção transversa do quadríceps em decorrência da suplementação de leucina. Tabela 1 – Efeitos da suplementação de leucina ou placebo sobre a composição corporal Placebo (n = 15) Leucina (n = 15) Antes Após Antes Após Massa magra (kg) 55.8 ± 0.9 56.2 ± 1.1 54.6 ± 1.0 55.0 ± 1.5 Massa gorda (kg) 19.8 ± 1.7 19.2 ± 2.0 20.0 ± 1.4 20.0 ± 1.3 Gordura corporal (%) 24.5 ± 1.7 23.9 ± 1.9 25.3 ± 1.2 25.4 ± 1.2 Massa magra de perna (kg) 17.6 ± 0.4 18.0 ± 0.4 17.1 ± 0.5 17.6 ± 0.4 Gordura de perna (%) 18.9 ± 1.5 19.4 ± 1.6 19.6 ± 1.2 19.8 ± 1.2 Área de secção transversa do quadríceps (cm2) 71 ± 3 71 ± 3 71 ± 2 71 ± 2 Adaptado de: Verhoeven et al. 2009. Todos os dados estão apresentados como média ± desvio padrão. Não foram identificadas diferenças estatisticamente significantes entre os grupos para qualquer momento de avaliação. 13 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE Em linhas gerais, a comparação desses estudos no leva à seguinte conclusão: resultados observados em modelos animais com uma determinada estratégia nutricional não podem ser, necessariamente, extrapolados para humanos. Similarmente, resultados observados com determinadas estratégias nutricionais em indivíduos sedentários não podem ser extrapolados para atletas bem treinados. Ou seja, embora simples, a amostra de um estudo é algo extremamente importante a ser considerado para avaliar a aplicação prática de seus achados, e, portanto, sua qualidade. Lembrete A amostra diz respeito à população ou conjunto de dados sendo estudado. 1.2 Ponto 2 – o desenho experimental Outro ponto bastante negligenciado durante a leitura de trabalhos no campo da nutrição aplicada ao esporte diz respeito ao desenho experimental empregado. Nesse campo, temos quatro desenhos experimentais mais comumente empregados: o estudo transversal, o estudo/relato de caso e o estudo longitudinal, o qual pode ainda ser dividido em estudo longitudinal crossover e estudo longitudinal de grupos paralelos. A seguir, descreveremos cada um desses desenhos experimentais, ressaltando seus prós e contras quando na sua aplicação. 1.2.1 Estudo transversal Um estudo transversal consiste em mensurações/medições realizadas num único momento no tempo, com a finalidade de descrever associações entre duas ou mais variáveis, auxiliando a caracterizar uma determinada população (por exemplo, a prevalência de uma doença). Como já descrito, a vantagem desse desenho experimental reside na caracterização de variáveis de uma população com uma única medição, uma vez que nem sempre é possível acompanhar indivíduos por longos períodos durante uma pesquisa. Por outro lado, justamente por não acompanhar os participantes e, assim, não ter acesso aos seus hábitos diários, os resultados do estudo não necessariamente se remetem a causa e consequência. Para exemplificar esse tipo de estudo, podemos usar de um tema muito conhecido: até hoje permanece a crença de que grandes quantidades de proteína são necessárias para otimizar a hipertrofia muscular, e que quanto maior for o consumo de proteínas na dieta, especialmente se de origem animal, maior será a massa muscular de um indivíduo. Se este conceito é veraz, estudos transversais deveriam mostrar uma alta correlação entre o consumo de proteínas e o índice de massa muscular. Nesse sentido, Aubertin-Leheudre e Adlercreutz (2009) recrutaram quarenta indivíduos e testaram a associação entre o consumo de proteínas de origem animal (em gramas por quilograma de peso corporal, por dia) e o índice de massa muscular (em kg por m²) destes indivíduos. Interessantemente, os resultados do estudo corroboraram com tal crença, ao demonstrar uma correlação significante (P = 0.001) e moderada (r = 0.623) entre o consumo dietético de proteínas dos participantes e 14 Unidade I seu nível de massa muscular, indicando que quanto maior for o consumo de proteínas de origem animal de um indivíduo, maior será a sua massa muscular. No entanto, conforme mencionado, esses resultados não se remetem necessariamente a causa e consequência; em outras palavras, o que nos garante que o consumo proteico de origem animal elevado desses participantes é fator exclusivo, influenciando o volume de massa muscular? Como garantimos que os participantes com maior consumo proteico simplesmente não treinam com mais intensidade e/ou volume? Ou que simplesmente descansam mais durante a semana, com maior tempo de repouso para a próxima sessão de treino e uma menor liberação de hormônios catabólicos como o cortisol? Ao contrário do que se acredita, parece haver uma quantidade máxima de proteínas ingeridas por quilograma de peso corporal ao dia que favorece a otimização da síntese proteica muscular. Quantidades maiores que a máxima não resultarão em benefícios adicionais sobre a síntese proteica (TARNOPOLSKY et al., 1992), limitando a aplicação prática dos achados de alguns estudos transversais, como o de Aubertin-Leheudre e Adlercreutz (2009). 4-0 3-5 3-0 2-5 2-0 1-5 1-0 0-8 0-5 0 3 6 9 12 Índice de massa muscular (kg/m2) In te gr aç ão p ro te ic a de fo nt e an im al (g /k g/ di a) Figura 2 – Associação entre o consumo proteico de origem animal (em g/kg/dia) e o índice de massa muscular (em kg/m2) de participantes onívoros ( ) e ovolactovegetarianos ( ). A linha pontilhada faz referência à ingestão diária recomendada de proteínas (atualmente em 0,8 g/kg/dia). A linha de associação denota uma correlação positiva (r = 0,623) e significante (P = 0.001) entre o consumo diário de proteínas de origem animal e o índice de massa muscular 1.2.2 Estudo/relato de caso Ao contrário do estudo transversal, que executa uma única medição no tempo, o estudo de caso, ou relato de caso, permite uma avaliação longitudinal, isto é, ao longo do tempo. Contudo, essa avaliação é realizada numa única unidade experimental (ou seja, um único participante). Geralmente esse desenho é aplicado com o objetivo de compreender e estudar fenômenos muito específicos, cujo estudo seria inviabilizado se fossem utilizadas grandes amostras. Como exemplo, temos o estudo de Pritchard e Kalra (1998), um dos estudos de caso mais famosos no campo da nutrição aplicada ao esporte. Especificamente, um indivíduo de 25 anos havia apresentado glomeruloesclerose segmentar oito anos antes da publicação do estudo. Nos últimos cinco anos antes da publicação, o indivíduo passou a ser tratado com ciclosporina e, assim, 15 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE sua função renal normalizou. Contudo, três meses antes de o estudo ser publicado,o indivíduo passou a utilizar creatina como suplemento nutricional e, ao fazer uso por dois meses, sua função renal ficou desestabilizada. Seus médicos decidiram suspender a creatina por um mês e observou-se a normalização de sua função renal. Tais observações nos levam a crer que a creatina se mostrou como um fator de prejuízo e até mesmo um malefício à função renal desse indivíduo. Como esse estudo de caso foi publicado no The Lancet, um importante periódico internacional na área médica, ele ganhou extremo destaque, e, assim, parte da má fama da creatina sobre a função renal, que ainda existe, provém de estudos de caso como esse. No entanto, não é possível generalizar os achados de uma situação tão específica. Em populações saudáveis ou sem qualquer doença ou acometimento renal prévio, não há qualquer evidência que apoie um efeito colateral da creatina sobre a função renal. 1.2.3 Estudo longitudinal crossover De maneira similar ao estudo de caso, o estudo longitudinal visa acompanhar o comportamento ou as alterações que ocorrem nas unidades experimentais (ou participantes) ao longo do tempo (semanas, meses ou até mesmo anos), uma vez administrada uma intervenção, facilitando o estabelecimento de relações causa-consequência. Contudo, tal acompanhamento é realizado numa população maior, em vez de em um único indivíduo, como ocorre no estudo de caso. O estudo longitudinal pode ainda ser crossover, o que significa que todas as unidades experimentais vão participar de todos os tratamentos, isto é, controle e intervenção. Com isso, se um participante recebeu a intervenção num primeiro momento, ele receberá o tratamento controle em seguida, e vice-versa. Para que isso seja possível, é fornecido um período de washout (ou limpeza), para que a substância estudada retorne aos níveis basais dentro do corpo entre os tratamentos realizados, para que não haja a influência de um tratamento sobre outro. Tratamento PlaceboWashout Placebo TratamentoWashout Antes Medida Intervenção AntesDepois Depois Antes AntesDepois Depois Figura 3 – Desenho experimental crossover. Nesse tipo de desenho experimental, o mesmo indivíduo participa tanto das condições de tratamento quanto de controle (isto é, placebo). No entanto, é necessário um período de washout entre as condições experimentais. A ordem das condições é aleatória, podendo ser o tratamento ou o placebo administrados em primeiro ou segundo lugar Um ponto interessante desse desenho experimental é que ele também minimiza a uma eventual influência da heterogeneidade biológica, já que o mesmo participante é testado nas condições de controle e de tratamento e, portanto, ele é controle de si mesmo. Por outro lado, dependendo da estratégia nutricional a ser estudada, o desenho longitudinal crossover pode não ser o mais adequado. Isso porque algumas estratégias, tais como a própria creatina, não possuem tempo de washout bem definido, dificultando a definição de um tempo de limpeza ideal num estudo com determinados suplementos nutricionais. 16 Unidade I 1.2.4 Estudo longitudinal de grupos paralelos Assim como o estudo longitudinal crossover, o estudo longitudinal de grupos paralelos também visa acompanhar o comportamento ou as alterações que ocorrem em uma grande população de participantes ao longo do tempo, uma vez administrada uma intervenção. Entretanto, ao contrário do crossover, neste desenho experimental cada participante recebe um único tratamento (intervenção, por exemplo), que ocorrerá paralelamente ao outro tratamento (controle ou placebo). Esse desenho é a única alternativa a ser adotada quando do estudo de estratégias nutricionais nas quais o washout não é bem determinado. Por outro lado, ele inviabiliza o estudo das respostas individuais aos diferentes tratamentos. Observação Pelo fato de permitirem o acompanhamento de vários indivíduos em múltiplos momentos no tempo, os estudos longitudinais são aqueles que conferem maior qualidade a uma informação. 1.3 Ponto 3 – a qualidade do vendamento No campo da nutrição aplicada ao esporte, três formas específicas de vendamento são utilizadas: o vendamento aberto, o uni-cego e o duplo-cego. O aberto, como o próprio nome diz, tanto avaliador quanto avaliado sabem quais são os tratamentos em questão. No vendamento uni-cego, apenas avaliador ou avaliado sabem o tratamento em questão. Já no vendamento duplo-cego, tanto avaliador quanto avaliado estão vendados aos tratamentos, isto é, o pesquisador não sabe o que está fornecendo ao participante, e o participante desconhece o tratamento recebido. Essa última forma de vendamento é a mais eficaz em isolar uma potencial influência do avaliado e do avaliador sobre os resultados e, assim, analisar acuradamente o efeito da intervenção proposta. Lembrete A expectativa de uma pessoa em relação à influência de um tratamento pode afetar a magnitude da resposta a este tratamento. A isto se dá o nome de efeito placebo. Tomemos como exemplo o estudo de Beedie et al. (2006) para ilustrar uma possível influência do avaliado. Ciclistas treinados tiveram a sua potência média avaliada durante um teste contrarrelógio na distância de 10 km em três diferentes condições. Em um dia, os pesquisadores mencionaram diretamente aos ciclistas que eles iriam ingerir uma dose baixa de cafeína (4.5 mg/kg de peso corporal) antes do contrarrelógio; no dia de pesquisa seguinte, foi dito aos ciclistas que eles ingeririam uma dose alta de cafeína (9,0 mg/kg de peso corporal) antes do contrarrelógio; e, no último dia, foi dito aos participantes que ingeririam placebo (substância inerte, que não deveria alterar o desempenho). 17 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE O ponto interessante do estudo é que os ciclistas foram destituídos da verdadeira natureza do estudo: em todos os dias, na verdade, foi fornecido placebo, e o objetivo real do teste era avaliar o efeito placebo da cafeína. Como resultado temos que, quando os ciclistas acreditaram terem recebido a dose baixa de cafeína, sua potência média no contrarrelógio aumentou em 1.3%. De modo bastante curioso, quando os ciclistas acharam terem recebido a dose alta, ou seja, o dobro de cafeína, a melhora da potência média também dobrou, alcançando uma variação de 3.1%. Com isso, é possível perceber a grande influência que a expectativa acerca da substância recebida pode ter sobre o desempenho de um indivíduo e, assim, sobre a avaliação da eficácia de uma estratégia nutricional. Inclusive, o contrário também foi verdadeiro nesse estudo, de tal modo que quando os ciclistas foram informados que receberiam placebo (gerando uma diminuição de sua expectativa), sua potência média diminuiu 1.4%. Exemplo de aplicação Reflita a respeito da potencial contribuição do efeito placebo para inúmeros atletas e praticantes de exercício físico que consomem suplementos nutricionais no dia a dia. Até onde é possível afirmar que o efeito resultante do consumo desses suplementos se dá exclusivamente pelo tratamento per se, e não pelo efeito do tratamento adicionado à expectativa? Da mesma forma, o vendamento do avaliador também é importante num estudo, e, embora não seja da área de nutrição aplicada ao esporte, o estudo de Gracely et al. (1985) ressalta a importância da prática. Nesse estudo, dois grupos de pacientes seriam submetidos à cirurgia do dente do siso, cada qual com o seu grupo de cirurgiões responsáveis. Como objetivo do estudo, os pesquisadores mencionaram aos cirurgiões que um grupo receberia uma nova morfina para ser testada em seus pacientes como analgésico após a cirurgia, enquanto o outro grupo receberia placebo. O grande ponto do estudo reside no seguinte fato: um dia antes da cirurgia, os pesquisadores chamaram um dos grupos de cirurgiões dizendo que houve um problema grave no carregamento de morfina e que eles teriam que, inevitavelmente, administrar placebo aos seus pacientes, mas sem dizer a eles. No mesmo dia, os pesquisadores chamaram ainda o outro grupo de cirurgiõese não mencionaram a história. Disseram apenas que o desenho da pesquisa permaneceria e que eles poderiam receber ou placebo ou morfina para ser administrada aos seus pacientes. Ou seja, um dos grupos de cirurgiões ainda estava vendado ao tratamento que receberia enquanto o outro acreditava inexoravelmente que receberia placebo para administrar em seus pacientes. A figura a seguir nos mostra os resultados deste estudo. É possível observar que no grupo de pacientes cujos cirurgiões ainda permaneciam vendados aos tratamentos, isto é, que acreditavam que poderia ser placebo ou morfina, a dor pós-cirurgia é relativamente amenizada. Já no grupo de pacientes cujos cirurgiões não estavam vendados e tinham certeza que o tratamento de seus pacientes consistia exclusivamente de placebo, o nível de dor sobe progressivamente após a cirurgia. Desse modo, o simples fato de o cirurgião acreditar que seu paciente poderia receber placebo ou morfina foi capaz de amenizar a dor pós-operatória. Por outro lado, o fato de o cirurgião saber que administraria placebo em seu paciente, mesmo não podendo avisá-lo, fez com que o nível de dor de seu paciente crescesse substancialmente. O mais importante foi que ambos os grupos de cirurgiões receberam placebo para ser administrado nos pacientes. 18 Unidade I -10 min -4 -2 0 2 4 6 8 Al te ra çã o na d or d o pa ci en te 10 min Minutos após a cirurgia Placebo (cirurgiões vendados) Placebo (cirurgiões desvendados) 60 min Figura 4 – Efeitos da expectativa dos cirurgiões-dentistas sobre a resposta à dor de participantes submetidos a um procedimento de remoção do dente do siso e à ingestão de um placebo Com isso temos que, assim como a expectativa do avaliado pode influenciar os resultados do estudo, a expectativa por parte do avaliador também pode influenciar os resultados. Dessa maneira, os estudos que provêm dos resultados mais acurados e de qualidade na área de nutrição aplicada ao esporte são os de vendamento duplo-cego. Saiba mais Para compreender o efeito placebo e se aprofundar no tema, leia: BEEDIE, C. J.; FOAD, A. J. The placebo effect in sports performance: a brief review. Sports Medicine, v. 39, n. 4, p. 313-329, 2009. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/24230632_The_Placebo_Effect_ in_Sports_Performance_A_Brief_Review>. Acesso em: 28 mar. 2019. 1.4 Ponto 4 – o teste físico A acurácia e a especificidade de um teste físico também são pontos importantes a serem considerados durante uma pesquisa conduzida para avaliar a eficácia ergogênica de uma estratégia nutricional. Tomemos como exemplo o estudo conduzido por Hill et al. (2007b), no qual os autores tiveram por objetivo avaliar os efeitos de quatro semanas de suplementação com β-alanina no tempo de exercício até a exaustão em um teste feito no cicloergômetro a 110% da potência máxima. A saber, a β-alanina é um aminoácido não proteogênico e não essencial, cuja disponibilidade é apontada como o fator limitante para a síntese muscular de carnosina. A carnosina, por sua vez, é um dipeptídeo cuja função mais bem atribuída é a de tamponante, atuando na regulação do equilíbrio ácido-base, diminuindo o acúmulo de íons H+ dentro da célula muscular para, dessa maneira, atrasar o início da fadiga muscular. Em conformidade com a ação fisiológica da β-alanina e carnosina, Hill et al. (2007b) observaram um aumento de 13% no tempo até a exaustão muscular, com a suplementação de β-alanina. A princípio, 19 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE 13% de melhora parece um resultado ótimo para um atleta ou indivíduo buscando melhorar o seu desempenho físico. Por outro lado, é preciso lembrar que em nenhuma modalidade esportiva o indivíduo se exercita até a exaustão; logo, a aplicabilidade de tais resultados acaba por ficar limitada. Já Van Thienen et al. (2009) tiveram objetivos similares aos de Hill et al. (2007b) e avaliaram os efeitos ergogênicos da suplementação de β-alanina. Mas, desta vez, visavam aumentar a validade externa dos achados, o quanto eles representam o mundo real. Ciclistas treinados foram submetidos a um contrarrelógio de 2 horas, e, ao término da atividade, os ciclistas pedalaram o mais rápido possível durante 30 segundos. Tal conduta foi adotada para simular o sprint final que geralmente ocorre nas provas de ciclismo, em que há disputa de posições. Ainda assim, os autores observaram uma melhora da potência média avaliada durante esse sprint final com a suplementação de β-alanina. Entretanto, diferentemente dos resultados de Hill et al. (2007b), a melhora observada foi de apenas 5%. Considerando a avaliação em cicloergômetro em ambos os estudos, a diferença entre os resultados se deve principalmente ao tipo de teste físico utilizado. Testes até a exaustão possuem grande variabilidade, ao passo que testes fechados possuem variabilidade menor e são melhor representativos do que ocorre em modalidades esportivas. Logo, a magnitude de melhora é relativamente baixa, proveniente do uso de uma estratégia nutricional em um teste contrarrelógio. Com isso, temos que o teste físico utilizado durante uma pesquisa determinará a magnitude de melhora observada com um suplemento nutricional e, portanto, as conclusões e diretrizes acerca do emprego de determinado suplemento. 1.5 Ponto 5 – a adequação do consumo alimentar Por definição, suplementos alimentares são alimentos que complementam, com calorias e/ou nutrientes, a dieta de uma pessoa, em casos em que a ingestão, a partir da alimentação, seja insuficiente; de forma que só faria sentido buscar um suplemento nutricional no advento de uma deficiência alimentar de um nutriente específico, pois apenas em situações de deficiência ele exibiria os seus potenciais efeitos ergogênicos. A importância desse ponto é muito bem ilustrada pelo elegante e clássico estudo conduzido por Harris, Soderlund e Hultman (1992). Nele, os participantes foram suplementados com 20 gramas de creatina por dia, durante quatro a cinco dias, e tiveram o seu conteúdo total de creatina muscular avaliado. Como resultados, os pesquisadores observaram (neste caso, pela primeira vez na literatura) que a suplementação de creatina de fato aumentou o conteúdo muscular do aminoácido. Esse aumento pode apresentar efeitos ergogênicos em modalidades esportivas em que há a predominância do fornecimento de energia do sistema anaeróbio alático. Porém, um dos pontos que chamam a atenção nesse estudo é que aqueles indivíduos que possuíam um alto consumo de creatina na dieta, por meio da ingestão elevada de carnes, por exemplo, já tinham um conteúdo muscular do aminoácido inicialmente maior que aqueles com baixos níveis de consumo dietético de creatina. Um outro ponto que igualmente chama a atenção é que os indivíduos com conteúdo muscular de creatina inicialmente maior responderam minimamente à suplementação se comparados aos indivíduos com menor conteúdo inicial de creatina muscular. Apesar desses resultados estarem relacionados à suplementação e à resposta da molécula de creatina no músculo esquelético, observações similares podem ser feitas com a suplementação de proteínas. Com base nisso, pode-se concluir que, se o consumo alimentar 20 Unidade I de determinado nutriente já é adequado, seria esperado pouco ou nenhum efeito da sua suplementação, influenciando diretamente nos resultados de um estudo e, portanto, nas conclusões e qualidade do mesmo. 1 114 120 126 132 138 144 150 156 2 3 4 5 Número do participante Co nt eú do to ta l d e cr ea tin a (m m ol .kg -1 m ús cu lo se co ) 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Figura 5 – Efeitos da suplementação de creatina (20 gramas por dia, por sete dias) sobre o conteúdo total de creatina muscular (em mmol/kg de músculo seco) de indivíduos jovens e sedentários. Cada linha representa um participante; o ponto mais baixo da linha representa o conteúdo total de creatina muscular pré-suplementação; enquanto o ponto mais alto representao conteúdo total de creatina muscular pós-suplementação. É perceptível a grande variação na magnitude da resposta do conteúdo muscular de creatina entre os participantes: os participantes à esquerda tinham um baixo conteúdo muscular de creatina pré-suplementação e obtiveram um grande aumento. Já os participantes à direita já tinham um grande conteúdo muscular de creatina pré-suplementação e obtiveram um baixo aumento. A dieta, isto é, o consumo dietético de creatina, parece ser o fator principal influenciando as concentrações pré-suplementação 1.6 Ponto 6 – a acurácia da interpretação dos resultados Durante as disciplinas de Estatística, aprendemos que alguns testes estatísticos são empregados a fim de avaliar a probabilidade de se rejeitar a hipótese nula. Na área de ciências da saúde, é comum estabelecer o critério de que a hipótese nula só será rejeitada mediante uma probabilidade menor ou igual a 5%. Em outras palavras, um determinado parâmetro só é significantemente diferente de outro caso P ≤ 0.05. Curiosamente, nunca foram apresentadas as devidas evidências para apoiar a padronização do nível de significância em P ≤ 0.05. O intuito não é a crítica ou a sugestão de reformulação desses critérios, mas a apresentação de que, com base nas noções de Estatística, rejeitar a hipótese nula não é uma tarefa fácil. Em se tratando de estudos no campo da nutrição aplicada ao esporte, em que comumente se avaliam os potenciais efeitos ergogênicos de uma estratégia nutricional em atletas, essa tarefa se torna ainda mais difícil, principalmente devido à agenda competitiva dos atletas, ao receio dessa população e de seus respectivos clubes em se submeter a procedimentos invasivos e à pressão por resultados, que torne bastante difícil recrutar/alocar um grande número de atletas para um estudo científico. Uma população amostral reduzida pode inevitavelmente levar à ausência de resultados significantes e, assim, a uma interpretação e conclusão sem acurácia. Exemplificando esse cenário, podemos voltar ao suplemento de β-alanina: um recente estudo (PAINELLI et al., 2013) teve por objetivo investigar os efeitos da suplementação de β-alanina sobre o desempenho físico de nadadores treinados nas provas de 100 e 200 metros livres na natação. Apenas 16 nadadores de nível estadual foram incluídos no estudo, dos quais sete estavam no grupo placebo e nove no grupo β-alanina. 21 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE Após cinco semanas de suplementação, observou-se que a redução no tempo para completar os 200 metros livres foi significantemente maior (P = 0.002) no grupo β-alanina se comparado ao placebo, demonstrando a eficácia ergogênica dessa estratégia nutricional para a referida distância na natação. Já na prova de 100 metros livres, embora tenha ocorrido uma redução de 1.1 segundos no tempo da prova com a suplementação de β-alanina, tal redução não foi significantemente diferente (P = 0.07) da alteração do grupo placebo. Esse é um exemplo claro de estudo em que o baixo número amostral, comumente peculiar em estudos com atletas, pode ter influenciado a significância estatística. É muito provável que uma população amostral maior pudesse transformar o valor de 0.07 em 0.05. Mas o que fazer nesse caso? Desconsiderar estas reflexões e simplesmente adotar a não significância? Apesar de essa redução não ser estatisticamente relevante, se levarmos em consideração a final masculina dos 100 metros livres nos Jogos Olímpicos de Londres, a redução absoluta de 1.1 segundos seria o suficiente para elevar o oitavo colocado à medalha de ouro. Em outras palavras, cautela deve ser exercida ao interpretar os resultados de um estudo no campo da nutrição aplicada ao esporte. Por muitas vezes, um resultado pode não ser significante do ponto de vista estatístico, mas sê-lo num contexto esportivo de alto rendimento. 3 3 p = 0.07 p = 0.002 Va ria çã o ab so lu ta n os 1 00 -m (s ) Va ria çã o ab so lu ta n os 2 00 -m (s ) 2 2 1 1 0 0 -1 -1 -2 -2 -3 -3 -4 -5BABA PLPL A) B) Figura 6 – Variação absoluta (pós-pré) no tempo (em segundos) para completar a prova de 100 (A) e 200 (B) metros livres com suplementação de β-alanina (BA) ou placebo (PL) 1.7 Ponto 7 – a declaração de conflitos de interesse Consideremos a seguinte situação: uma determinada empresa gostaria que um estudo fosse conduzido para testar a eficácia terapêutica de um fármaco, a fim de inseri-lo no mercado. Para isso, além de fornecê-lo a um grupo de pesquisadores, a empresa decide custear todos os gastos inerentes ao estudo. Não obstante, a empresa opta ainda por financiar toda a equipe de pesquisadores. Em razão disso, ela se sente no direito de requerer ao grupo de pesquisadores que o estudo apresente resultados positivos acerca do fármaco testado, para que ele seja mais facilmente inserido no mercado e, em última instância, a empresa lucre com a sua venda. Apesar de hipotético, esse quadro é comumente observado em estudos na área médica, em específico na avaliação de eficácia terapêutica de fármacos, e tal quadro caracteriza o chamado conflito de interesse. Devido ao crescente interesse das pessoas em utilizar estratégias nutricionais que as ajudem a aumentar a massa muscular e os ganhos de força, bem como a reduzir gordura corporal, a questão do conflito de interesse alcançou o campo da nutrição aplicada ao esporte. O problema disso reside 22 Unidade I no fato de que os resultados de um estudo acerca da estratégia nutricional testada podem ser influenciados pela empresa patrocinadora do estudo. Isto é, efeitos positivos decorrentes do uso de uma estratégia nutricional podem ser apresentados, quando na verdade ela não os possui. Essa influência dos interesses da indústria no campo de nutrição aplicada ao esporte fica bem clara no estudo de Saunders et al. (2009). Em um estudo sem boa fundamentação teórica, os autores tinham como objetivo avaliar os efeitos da combinação de carboidratos e proteínas de uma bebida esportiva sobre o desempenho humano em um teste contrarrelógio na distância de 60 km. Quando se trata de carboidratos, o glicogênio muscular é o principal substrato utilizado pelo músculo esquelético para a produção de energia durante exercícios físicos de alta intensidade por longas durações, e, assim, a suplementação com carboidratos é recomendada para indivíduos que praticam exercícios ou eventos competitivos com essas características, a fim de atenuar a depleção de glicogênio muscular. Por outro lado, quando se trata de proteínas e aminoácidos, a suplementação com proteínas vem sendo recomendada como estratégia para aumentar a síntese proteica muscular pós-exercício, de forma que não há base fisiológica que explique uma eventual melhora de desempenho em uma prova de 60 km com a suplementação de proteínas. Ainda assim, ciclistas treinados foram submetidos à prova de 60 km em dois dias diferentes, recebendo a suplementação de carboidratos num dia e a suplementação combinada de carboidratos e proteínas no outro. Em concordância com a ausência de mecanismos fisiológicos, os autores observaram que não houve diferença estatisticamente significante no tempo da prova entre as condições experimentais testadas. Mas, curiosamente, por motivos não muito bem explicados, os autores decidiram expandir a sua análise para os últimos 20 e 5 km do percurso. Ao analisar especificamente essas distâncias finais, os autores observaram que a combinação de carboidratos e proteínas possibilitou aos ciclistas completarem as distâncias finais mais rapidamente se comparado ao uso isolado de carboidratos e concluem em seu trabalho que a suplementação combinada de carboidratos e proteínas é uma estratégia interessante a ser utilizada para otimizar o desempenho nas distâncias finais de uma prova de 60 km. O leitor há de concordar que essa conclusão é bastante estranha. Afinal, o que os autores estão concluindo em seu estudo é que “a combinação de proteínas e carboidratos nãoaltera o tempo total para se completar a distância de 60 km no ciclismo, mas os últimos 20 e 5 km podem ser beneficiados com tal estratégia” (SAUNDERS et al., 2009, p. 147-148). De fato, é uma conclusão estranha, afinal, o desempenho físico numa prova de ciclismo é determinado pelo tempo total para completar uma determinada distância, e não pelo tempo que se leva para completar as distâncias finais. Aliás, há ainda algumas considerações sobre o estudo: 1) se os ciclistas completaram os últimos 20 km mais rapidamente com a combinação de carboidratos e proteínas, mas 2) não há diferença no tempo total para completar os 60 km entre as condições experimentais, tudo nos leva a crer que os primeiros 40 km foram completados mais lentamente com a combinação de carboidratos e proteínas. As considerações anteriores fazem sentido quando temos acesso ao subtópico final do estudo de Saunders et al. (2009, p. 148): “Agradecimentos e Declaração de Conflitos de Interesse”. Nele, é possível detectar um parágrafo inteiro dedicado à empresa patrocinadora do trabalho, a qual forneceu a bebida esportiva testada, financiou os gastos e ainda empregava a maior parte dos membros da equipe de pesquisa. Ou seja, um exemplo claro de conflito de interesse no campo da nutrição aplicada ao esporte. 23 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE A custo de curiosidade, um ano após a publicação do estudo citado, Breen, Tipton e Jeukendrup (2010) conduziram um estudo com objetivos e desenho experimental extremamente similares ao de Saunders et al. (2009), mas, dessa vez, sem o conflito de interesse. E, de forma esperada, não foi observado qualquer benefício da combinação de carboidratos+proteínas sobre o desempenho na prova de 60km. Com isso, temos que o conflito de interesse de fato pode influenciar os resultados de um estudo no campo da nutrição aplicada ao esporte e, portanto, pode determinar a qualidade de um estudo nesta área. Saiba mais Leia o artigo a seguir e veja mais um claro exemplo de estudo com conflitos de interesse publicado na literatura: WILSON, J. M. et al. The effects of 12 weeks of β-hydroxy-β-methylbutyrate free acid supplementation on muscle mass, strength, and power in resistance-trained individuals: a randomized, double-blind, placebo-controlled study. European Journal of Applied Physiology, v. 114, n. 6, p. 1217-1227, Jun. 2014. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih. gov/pmc/articles/PMC4019830/>. Acesso em: 28 mar. 2019. 2 BIOENERGÉTICA E INTEGRAÇÃO METABÓLICA Discutimos anteriormente alguns pontos imprescindíveis a serem considerados na avaliação da qualidade de uma nova informação publicada/divulgada na área de nutrição aplicada ao esporte. Porém, antes de adentrarmos as informações tangentes à área, deparamo-nos com a necessidade de revisar conceitos básicos de um assunto essencial da área de bioquímica básica e de bioquímica aplicada ao exercício: bioenergética e integração metabólica. Mas, afinal, o que seria bioenergética? De acordo com Josiah Gibbs, a bioenergética é o ramo da bioquímica que aborda a transferência, conversão e utilização de energia nos sistemas biológicos (BALDWIN, 2007). A referida energia faz alusão à energia química, em específico à adenosina trifosfato (ATP), uma molécula composta por um carboidrato (ribose), uma base nitrogenada (adenina) e três grupamentos fosfato, os quais estão conectados entre si por ligações altamente energéticas (NELSON; COX, 2011). Como resultado, a hidrólise de ATP, isto é, sua quebra, libera adenosina difosfato (ADP), íons hidrogênio (H+) e fosfato inorgânico (Pi), além de importantemente liberar a energia contida nas ligações entre os grupamentos fosfato de sua estrutura. Tal energia pode ser direcionada para diferentes funções, tais como a síntese e secreção de substâncias, o transporte ativo de moléculas, entre outras. Por essa razão o ATP é considerado a moeda energética do organismo, sem a qual a manutenção da vida jamais seria possível (DE FEO et al., 2003). No que tangencia o interesse do presente livro-texto e da área de Educação Física, o ATP é imprescindível para o processo de contração muscular, já que a sua hidrólise implicará na liberação da energia química, a qual será convertida em energia mecânica dos miofilamentos de miosina e actina, 24 Unidade I responsáveis pelo encurtamento e alongamento dos sarcômeros e, assim, da célula muscular. No momento em que os níveis de ATP reduzem, ou em que a velocidade da sua produção ou fornecimento à célula muscular é diminuída, há notável perda de eficiência da maquinaria contrátil e, com isso, piora do desempenho físico (LIEBER et al., 2017). Mas antes de explorarmos a função do ATP na contração muscular, relembremos o passo a passo do processo de contração muscular. Para que de fato a contração muscular se inicie, é necessária a geração de um estímulo nervoso (ou potencial de ação) pelo sistema nervoso central, o qual deve ser transportado pelas vias neurais eferentes com o auxílio dos motoneurônios. Ao atingir a fibra muscular, chegando antes à fenda sináptica, ocorrerá a liberação do neurotransmissor acetilcolina (IRVING, 2017). A liberação desse neurotransmissor permitirá que o potencial de ação percorra o sarcolema da célula. Ao percorrer a membrana plasmática, o potencial de ação despolariza a membrana, e muito da eletricidade do potencial de ação flui em direção ao centro da fibra muscular, atingindo o retículo sarcoplasmático. Tal ação culminará na liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático, e este íon se ligará então a uma proteína chamada troponina. A troponina, por sua vez, é responsável por controlar a conformação de uma outra proteína, a tropomiosina, a qual forma longos filamentos que sustentam em forma de hélice uma das proteínas contráteis, a actina. Quando o íon cálcio se liga à troponina, imediatamente a troponina comanda uma alteração conformacional da tropomiosina, permitindo que os sítios ativos da actina fiquem expostos e disponíveis para que uma outra importante proteína contrátil, a miosina, se acople à actina (IRVING, 2017; LIEBER et al., 2017). Ao acoplamento e desacoplamento actina-miosina se dá o nome de ciclo das pontes cruzadas, o qual permitirá o encurtamento e/ou alongamento do músculo esquelético. Tal interação entre as proteínas actina e miosina, entretanto, só ocorrerá com a presença da molécula de ATP, aí sua importância para a contração muscular fica mais clara. Para viabilizar esse processo, a hidrólise do ATP é fundamental, liberando energia química que é convertida em energia mecânica pela miosina para que o seu acoplamento e deslizamento sobre a actina ocorra. A seguir, uma nova molécula de ATP é necessária para que ocorra o desligamento entre os filamentos contráteis; esta nova molécula não é hidrolisada nesse momento, pois sua simples ligação à cabeça da miosina altera a conformação da molécula e reduz a afinidade entre as proteínas contráteis (IRVING, 2017; LIEBER et al., 2017). Com isso, pode-se dizer que o ATP é essencial, tanto para a contração muscular quanto para o relaxamento muscular, e é imprescindível que a célula muscular possua estoques de ATP para a manutenção desse fenômeno. Por outro lado, os estoques intracelulares de ATP são demasiadamente baixos e suficientes apenas para permitir alguns poucos segundos de contração muscular (NELSON; COX, 2011). Além disso, eles não podem sofrer depleção completa, já que, conforme mencionado, o ATP possui outras funções igualmente importantes na célula muscular. Assim, é imprescindível que a célula muscular tenha reservas/estoques/substratos capazes de abastecer ATP para a continuidade da contração muscular, bem como sistemas capazes de controlar esse abastecimento de ATP. E, de fato, essas reservas existem, e a tabela seguinte pode ajudar a visualizar algumas delas, dentre as quais se destacam o glicogênio muscular, o glicogênio hepático e os triglicerídeos do tecido adiposo. 25 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTETabela 2 – Estimativa da energia total disponível (kcal) nos principais reservatórios do organismo Reservas Energia disponível (kcal) Glicogênio muscular 2.000 Glicogênio hepático 280 TG tecido adiposo 141.000 Proteínas corporais 24.000 Adaptado de: Brooks et al., 2000. Em virtude do mencionado, podemos começar a melhor compreender o papel da nutrição na atividade física e no esporte. Em essência, a nutrição, em específico a ingestão de alimentos ou suplementos alimentares, visa fornecer nutrientes ao organismo capazes de repor os substratos previamente utilizados para a geração de ATP. • Provisão de energia • Regulação do metabolismo • Crescimento e desenvolvimento Suplementos Alimentos Nutrientes Macro Carboidratos Proteínas Vitaminas MineraisGorduras Micro Figura 7 – Esquema ilustrando o papel da nutrição no fornecimento de nutrientes ao organismo Os nutrientes provenientes da dieta podem ser classificados em macronutrientes, entre os quais estão incluídos os carboidratos, as gorduras e as proteínas; ou micronutrientes, em que estão incluídas as vitaminas e os minerais. Cada um destes nutrientes pode ter uma ou mais das seguintes funções: atuar no crescimento e desenvolvimento, regulação do metabolismo e provisão de energia. Mas antes de seguirmos adiante, um primeiro conceito básico: qual seria a diferença entre estes? Nesse ponto, é comum o aluno cometer o engano de que tal classificação se deve às diferenças no tamanho das moléculas, ou seja, macronutrientes seriam moléculas grandes, enquanto micronutrientes seriam moléculas pequenas. Um outro engano sobre esse conceito diz respeito ao peso das moléculas, em que os macronutrientes seriam moléculas de maior peso molecular do que os micronutrientes. Por fim, um último engano diz respeito à importância dos nutrientes, em que se acredita que os macronutrientes seriam moléculas de maior relevância ao funcionamento e homeostase do organismo que micronutrientes. Contudo, numa rápida comparação entre uma molécula de vitamina C, considerada um micronutriente, com uma molécula de glicose, considerada um macronutriente, temos algumas respostas que desmistificam os pontos anteriormente levantados. 26 Unidade I Primeiro, ambas as moléculas possuem estrutura e tamanho extremamente similares; segundo, o peso dessas moléculas também é semelhante. Por fim, ambas são importantes ao organismo, já que a glicose lhe fornece energia, como ao músculo esquelético, por exemplo, para a manutenção da contração muscular, enquanto a vitamina C é um poderoso antioxidante capaz de combater os radicais livres, estruturas químicas cujo excesso pode causar dano e até morte celular. Com isso, tem-se que macronutrientes e micronutrientes diferem-se, a princípio, em relação às suas necessidades diárias, isto é, macronutrientes se tratam de moléculas cuja necessidade de ingestão diária ocorre em grandes quantidades (geralmente maiores que 1 g por dia), enquanto os micronutrientes se tratam de moléculas cuja necessidade de ingestão diária ocorre em pequenas quantidades (geralmente menores que 1 g por dia). A exemplo, em adultos, a recomendação diária de consumo de carboidratos está estabelecida entre 6 e 10 gramas por quilograma de peso corporal por dia (ou seja, 420 a 700 gramas por dia), ao passo que a recomendação diária de consumo de vitamina C é de aproximadamente 90 miligramas. Em adição, macro e micronutrientes também diferem entre si em relação ao fornecimento de calorias; macronutrientes fornecem calorias ao organismo, enquanto os micronutrientes não. E aqui já tratamos de outro conceito importante: calorias. Fisicamente falando, caloria é definida como a quantidade de calor necessária para elevar em 1°C a temperatura de 1 g de água. De modo a facilitar o trabalho com as palavras, aqui usaremos o termo como unidade de medida de energia (tal qual quilômetros está para unidade de distância, ou quilogramas está para unidade de peso), que, conforme já discutido, é imprescindível para a manutenção das funções do organismo e, claro, para a contração muscular. Observação Curiosamente, é errônea a crença de que suplementos multivitamínicos podem fazer uma pessoa “engordar”, pois eles não fornecem calorias ao organismo. Glicose C6H12O6 180,16 g/mol A) B) Vitamina C C6H8O6 176,09 g/mol Figura 8 – Comparação da molécula de glicose (A), considerada um macronutriente, com a molécula de vitamina C (B), considerada um micronutriente Lembrete As suas necessidades diárias e a sua capacidade de fornecer calorias diferenciam um macronutriente de um micronutriente. 27 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE Em adição à necessidade de existirem substratos oriundos dos nutrientes da alimentação para a provisão de ATP, a fim de realizar a contração muscular, é importante que a célula muscular também possua sistemas capazes de gerenciar esse abastecimento. E, de fato, tais sistemas existem, consistindo no: • sistema anaeróbio alático; • sistema anaeróbio lático; • sistema aeróbio. A partir desse momento, temos como objetivo explorar cada um deles, abordando as características desses sistemas quanto aos substratos utilizados, principais reações químicas, limitantes e modalidades esportivas em que há a predominância de cada um no fornecimento de ATP. Observação O sistema anaeróbio alático também é encontrado sob a nomenclatura de sistema fosfagênio. O anaeróbio láctico também é conhecido como glicolítico. Por fim, o aeróbio também é chamado de oxidativo. 2.1 Sistema anaeróbio alático É de suma importância que a célula muscular possua um sistema capaz de fornecer energia para a contração muscular o mais rápido o possível. Caso contrário, jamais seria possível executar um determinado gesto motor imediatamente, apenas depois de alguns segundos ou minutos. Eis que se destaca o sistema anaeróbio alático. Traduzindo esse termo, trata-se de um sistema anaeróbio em que não há presença de oxigênio dada a rápida velocidade com que a provisão de energia é requerida, não havendo tempo para a captação e transporte de oxigênio até o tecido muscular; e alático, não culminando na produção de lactato. Dado o papel primordial do ATP na transferência de energia, é de se esperar que essa molécula faça parte desse sistema. De fato, a hidrólise de 1 mol de ATP pela enzima ATPase é capaz de gerar aproximadamente 7,5 calorias (ou 30,5 quilojoules – kJ). Por outro lado, como já mencionado, essa molécula não possui estoques abundantes nas células musculares, havendo necessidade da presença de um outro substrato para repor as suas perdas. A este substrato se dá o nome de fosforilcreatina (PCr), que também contém ligações de fosfato de alta energia (FEBBRAIO et al., 1995; TERJUNG et al., 2000). A concentração intramuscular de PCr é de três a oito vezes mais abundante que a de ATP. Sob alta demanda energética, por exemplo, durante o exercício físico de altíssima intensidade, os estoques de ATP começam a diminuir e os estoques de ADP consequentemente aumentam (FEBBRAIO et al., 1995). Tais mecanismos ativam a hidrólise da PCr. Ao ser hidrolisada pela enzima creatina quinase, a PCr cede o fosfato necessário para a ressíntese de ATP, restando uma molécula de creatina livre (Cr). O contrário também é verdadeiro, e sob circunstâncias de baixa demanda metabólica, ou seja, quando os estoques de ATP estão elevados, a energia dessa molécula pode ser utilizada para gerar e estocar PCr (TERJUNG et al., 2000). 28 Unidade I PCr CKCK CK ATP ATP ATPATP ADP ADP ADP ADP Cr CK ATPase ATPase CK CK ATP → ADP + PCr + H+ → ATP + Cr Citoplasma Creatina quinase mitocondrial Creatina quinase citosólica ATPase citosólica Mitocôndria Figura 9 – Ilustração da hidrólise de fosforilcreatina (PCr) e a subsequente ressíntese de adenosina trifosfato (ATP), bem como da ressíntese de fosforilcreatina em diferentes sítios celulares Apesar de os estoques intracelulares de PCr serem significantemente mais elevados que os de ATP livre, sobelevadas demandas metabólicas esses estoques também sofrem depleção rapidamente e, com isso, tem-se que a rápida depleção de seus substratos é o grande limitante desse sistema (FEBBRAIO et al., 1995; TERJUNG et al., 2000). Na verdade, evidências estimam que tais estoques sejam o suficiente para contribuir com a predominância do sistema anaeróbio alático por apenas 10 a 15 segundos de exercício físico de alta intensidade. Sob risco de interrupção da contração muscular, é imprescindível que um outro sistema de fornecimento de energia surja como alternativa à perda de eficiência do sistema anaeróbio alático após os primeiros segundos de esforço físico. O lançamento de disco, o lançamento de peso, o salto com vara, o salto triplo, o levantamento olímpico, a tarefa de 50 metros livres na natação e a prova de 100 metros rasos no atletismo são exemplos de modalidades esportivas em que há a predominância do sistema anaeróbio alático. Exaustão Tempo(s) % d o va lo r de re po us o 100 80 60 40 20 0 0 2 ATP PCr 4 6 8 10 12 14 Figura 10 – Estimativa do tempo sob exercício de alta intensidade em que há a predominância do uso de adenosina trifosfato (ATP) e fosforilcreatina (PCr) para manter a contração muscular 29 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE Lembrete Modalidades e atividades com predominância anaeróbia alática são substancialmente influenciadas pelas concentrações musculares de creatina. Logo, faz sentido que essas modalidades sejam as mais beneficiadas pela suplementação de creatina. A) B) C) Figura 11 – Exemplos de modalidades esportivas em que há a predominância do sistema anaeróbio alático no fornecimento de energia para a contração muscular 30 Unidade I Saiba mais Para uma contextualização sobre o sistema anaeróbio alático, leia: CAHILL, B. R.; MISNER, J. E.; BOILEAU, R. A. The clinical importance of the anaerobic energy system and its assessment in human performance. American Journal of Sports Medicine, v. 25, n. 6, p. 863-872, Nov.-Dec. 1997. 2.2 Sistema anaeróbio lático Apesar de a PCr ser um substrato prontamente disponível para ser utilizada na ressíntese de ATP, como já mencionado, os seus estoques sofrem depleção rapidamente. Com isso, há a necessidade de a célula muscular passar a utilizar um outro substrato de modo a não interromper a produção de ATP e, consequentemente, o exercício físico. Tal substrato se trata da glicose, um carboidrato, armazenada nas células musculares na forma de glicogênio muscular. As partículas de glicogênio muscular podem conter até 50 mil porções de glicose. De fato, em humanos, por volta de 80% do glicogênio corporal se encontra no tecido muscular. As concentrações dessa molécula no músculo esquelético podem variar de 80 a 150 mmol.kg-1 (IVY et al., 1988). Conforme o exercício começa, inicia-se a degradação de glicogênio muscular em um processo conhecido como glicogenólise, de modo a se disponibilizar a glicose para o processo de produção de energia (MUL et al., 2015). Assim, ainda que em baixíssimas quantidades, é esperado que haja a degradação de glicogênio muscular com apenas alguns poucos segundos até alguns poucos minutos de exercícios, mas que essa degradação tome proporções maiores caso a duração do exercício se estenda. A exemplo, estudos já demonstraram reduções de aproximadamente 40% no conteúdo muscular de glicogênio após uma sessão intensa de treinamento de força, a qual é composta por séries de poucos segundos intervaladas por alguns minutos de descanso (HAFF et al., 2003). Para fornecer ATP, a glicose disponibilizada pelo glicogênio adentra então a via denominada glicólise. A glicólise ocorre numa sequência de 11 reações enzimáticas divididas em duas fases: a fase preparatória (primeira fase) e a fase de pagamento (segunda fase). A primeira fase vai até a formação de duas moléculas de gliceraldeído-3-fosfato e caracteriza-se por ser uma etapa de gasto energético, especificamente de dois ATPs nas duas fosforilações que ocorrem nessa fase (NELSON; COX, 2011). A segunda fase se caracteriza pela produção energética de quatro ATPs em reações enzimáticas independentes de oxigênio, além da liberação de coenzimas reduzidas, ou seja, enzimas eletricamente carregadas, como a nicotinamida adenina dinucleotídeo (NADH). Portanto, o rendimento energético final do metabolismo da glicose é de somente dois ATPs, os quais podem ser utilizados durante a contração muscular. Sob condições de aerobiose, isto é, sob a presença de oxigênio (O2), o produto final da via glicolítica é uma molécula chamada piruvato (NELSON; COX, 2011), que representa um ponto de junção importante no catabolismo dos carboidratos. Em condições aeróbicas, o piruvato oxidou-se em acetil-CoA, o qual se combina ao oxaloacetato, dando início ao ciclo do ácido cítrico (também conhecido como ciclo de 31 NUTRIÇÃO APLICADA AO ESPORTE Krebs), sendo oxidado em dióxido de carbono (CO2) e água (H2O). O NADH, formado na via glicolítica pela desidrogenação do gliceraldeído-3-fosfato, posteriormente se reoxida em NAD+ pela passagem do seu elétron ao O2 durante o processo da respiração mitocondrial, também chamado de cadeia transportadora de elétrons. Entretanto, vínhamos de um exercício em que predominava a via anaeróbia alática, em que apenas poucos segundos haviam se passado. Logo, a princípio, a glicólise não ocorre sob condições aeróbias, já que, com apenas alguns poucos segundos de exercício, não há tempo suficiente para que o O2 seja adequadamente captado, transportado e utilizado pela célula muscular. Assim, tem-se por estabelecido que durante os exercícios com duração de alguns poucos segundos (~30 segundos) até alguns poucos minutos (~2 a 3 minutos) o exercício físico é realizado sob condições predominantemente anaeróbias. Sob condições anaeróbicas, o NADH gerado pela glicólise não pode ser reoxidado pelo O2. A incapacidade de regenerar o NADH em NAD+ deixaria a célula sem receptor de elétrons para a oxidação do gliceraldeído-3-fosfato e, com isso, as reações liberadoras de energia da glicose cessariam. O NAD+ precisa, portanto, ser regenerado por outro mecanismo. Em humanos, o piruvato pode ser o receptor dos elétrons do NADH para que o NAD+ seja regenerado. Ao aceitar esses elétrons, o piruvato é convertido em uma molécula chamada lactato. Por esse motivo, atribui-se ao segundo sistema de fornecimento de energia para a contração muscular o nome de sistema anaeróbio láctico. Fase preparatória da glicose Fase de pagamento da glicose Figura 12 – Ilustração da glicólise, caracterizada pelas fases preparatória e de pagamento 32 Unidade I O saldo final da glicólise anaeróbia consiste na formação de duas moléculas de lactato, duas de NAD+, duas de ATP e dois íons de hidrogênio (H+). O lactato produzido pode ser transportado para fora da membrana celular e, subsequentemente, transportado pela corrente sanguínea até o fígado, onde, em uma reação denominada gliconeogênese, pode formar glicose novamente (a esse processo se dá o nome de ciclo de Cori). Glicose GlicoseGlicose LactatoLactato Lactato LactatoLactato GlicogênioGlicogênio GlicogênioGlicogênio GluconeogêneseGluconeogênese Fermentação Fermentação lácticaláctica GlicoseGlicose Fígado Sangue Músculo Figura 13 – Ilustração do ciclo de Cori demonstrando o destino do lactato produzido durante o exercício físico Por outro lado, os íons H+ produzidos durante a glicólise também precisam ser neutralizados ou expelidos da célula muscular, pois o acúmulo desses íons pode gerar acidose muscular. De fato, estudos já demonstraram que o pH muscular pode cair de seus valores em repouso de 7.0-7.1 até 6.5-6.4 após séries intensas de exercício físico (AHLBORG et al., 1972). Evidências já demonstraram que enzimas importantes da via glicolítica são desativadas, ou seja, inibidas, sob pH ácido, como é o caso da fosfofrutoquinase, prejudicando a produção de energia (ROBERGS; GHIASVAND; PARKER, 2004). Além disso, evidências também
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