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A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média Apresentação A difusão do cristianismo se deu de diversas formas e por distintos motivos. Se por um lado existiu uma ascensão religiosa que dignificava sujeitos, tais como os escravos, que passaram a ser tomados como iguais e como irmãos em Cristo; por outro, tinha-se avanços de ordem mais violenta contra os que não aceitavam a conversão à religião. Assim, a transição do politeísmo grego ao monoteísmo cristão ocorreu de modo heterogêneo. A disputa se dava pela posse da verdade. Antes disso, na Grécia Antiga, os religiosos disputavam a verdade com os filófosos dotados de métodos. Após as viagens de Alexandre, o Grande, o homem grego se viu sem unidade cultural e sem projeto na pólis, agora tão imensa. A cosmovisão cristã não demorou em se valer de signos helenistícos; assim se deu o ínicio do cristianismo como religião oficial ocidental. A primeira diferenciação a se fazer necessária dentro da hierarquia cultural dizia respeito ao que era sagrado ou profano, ou, ainda, por que o cristianismo em vez do politeísmo? Outrossim, com a consolidação do cristianismo, surgiu outro desafio: conciliar a narrativa cristã com a narrativa histórica, que acabava em implicar uma racionalidade filosófica. Nesta Unidade de Aprendizagem, você compreenderá a transição do politeísmo para o monoteísmo na Antiguidade, verá distinções e aproximações entre sagrado e profano, e, por fim, entenderá como a teologia de Santo Agostinho conciliou cristianismo e filosofia, dando as bases para o desenvolvimento da religião cristã. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever a transição do politeísmo para o monoteísmo na Idade Antiga.• Caracterizar as bases de identificação do sagrado e do profano.• Definir os princípios da teologia de Santo Agostinho.• Infográfico A transição do politeísmo grego para o monoteísmo cristão se deu de diversas formas e por distintas abordagens. Uma camada social que era escravizada, por exemplo, viu na religião cristã a oportunidade de dignificação social e cultural, simbolizadas pelas mensagens de Cristo sobre a igualdade entre todos diante dos olhos de Deus. Porém, a adesão não foi amplamente pacifíca. Neste Infográfico, você vai conhecer a história da filósofa Hipátia, que viveu o período de transição entre a queda do politeísmo greco-romano e ascensão do cristianismo. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://statics-marketplace.plataforma.grupoa.education/sagah/093c6e3b-c0fa-4eac-b35d-bf803a35a898/046ecb0f-335e-4a35-8a2b-326a05c8db74.jpg Conteúdo do livro A religião cristã, hegemonicamente falando, participou e fundamentou muito dos períodos e dos acontecimentos históricos, sociais, filosóficos, artísticos, etc. Desde o seu surgimento, o contexto histórico foi em grande parte habitado pela figura da Igreja, especialmente a católica. Contudo, nem sempre foi assim. Na Antiguidade, o politeísmo foi predominante nas sociedades grega, romana, egípcia, entre outras. Ainda com episódios violentos, tais como a tomada de Alexandria, a transição do politeísmo ao cristianismo ocorreu de forma concordante em muitos aspectos. De todo modo, a detenção acerca da verdade espiritual, intelectual, histórica e filosófica sempre ocorreu entre culturas. Isto é, fundamentar a fé em argumentos sólidos é o que toda religião busca. Assim, estabelecer uma divisão entre o que é sagrado e religioso também faz parte do segregacionismo religioso. Alguns teólogos, tais como Santo Agostinho, possibilitaram compreender a relação entre história, religião e filosofia e como pensar a ação moral também dentro das diferenças. No capítulo A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média, da obra História das religiões, base teórica desta Unidade de Aprendizagem, você entenderá a transição do politeísmo ao monoteísmo na Antiguidade. Além disso, aprofundará seus conhecimentos acerca da relação entre sagrado e profano e, por fim, compreenderá a teologia de Santo Agostinho. Boa leitura. HISTÓRIA DAS RELIGIÕES Mayara Joice Dionizio A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever a transição do politeísmo para o monoteísmo na Idade Antiga. Caracterizar as bases de identificação do sagrado e do profano. Definir os princípios da teologia de Santo Agostinho. Introdução A fundação do cristianismo, enquanto religião oficial, não ocorreu de forma rápida ou abrupta. Alguns teóricos e pensadores atribuem o surgimento do cristianismo e a sua ascensão à abertura dada pelo helenismo. Vale lembrar que tal movimento possibilitou a expansão do território grego e também a intersecção cultural entre os povos desse período. Assim, existiam várias escolas de pensamento, o que demonstra uma abertura à pluralidade e à alteridade. Devido a essa expansão, a religião foi se transmutando do helenismo para o politeísmo. Nesse sentido, faz-se necessário, ainda, que tal discussão seja de ca- ráter mais moderno, distinguindo dentro da história de religião o ponto em comum que configura o que é sagrado e o que é profano, inclusive para se entender a instituição de uma religião. Teologicamente, é rico o debate da obra tão atual de Santo Agostinho, que, apesar de ter vivido nos primórdios da Idade Média, contribui para entendermos o argumento com viés filosófico, histórico e religioso sobre o cristianismo. Neste capítulo, você vai ver como ocorreu a transição do mito ao cristianismo ou, ainda, do politeísmo greco-romano ao monoteísmo cristão. Além disso, vai conhecer a relação, do ponto de vista sociológico, entre sagrado e profano e, por fim, o pensamento teológico de Santo Agostinho, inclusive como crítica ao politeísmo. 1 A transição do politeísmo para o monoteísmo na Idade Antiga A história da religião acompanha a história da humanidade, de modo que po- demos dizer que não é possível dissociar uma da outra. Contudo, apesar das mudanças contextuais e temporais, podemos afi rmar que os rituais, as práti- cas religiosas e as condutas auxiliam psicologicamente a humanidade a lidar com as questões existenciais mais agudas. Dessa forma, momentos felizes são simbolizados e criados em torno das crenças, assim como rituais de passagem tristes, tais como a morte (DURKHEIM, 1996). Portanto, independentemente da cosmovisão, as instituições religiosas operam sobre a noção de sagrado, trazem um sentido simbólico sobre a realidade, postulam um projeto de humano, criam comunidade e estabelecem uma conduta baseada em normas. Esse conjunto de práticas, de símbolos e de corpos religiosos expressa a busca transcendental estabelecida pela necessidade religiosa. É desse modo, também, que podemos pensar a passagem do politeísmo ao monoteísmo na Idade Antiga. Ao contrário do que é mais disseminado acerca da religião na antiguidade ocidental, a crítica à religião politeísta grega ocorria mesmo durante o período clássico. Alguns teóricos, como Jaerger, em Paideia (2011), assinalam para o movimento histórico semelhante à ascensão iluminista no século XVIII; isso porque, a partir do governo de Péricles, vários pensadores atenienses se opuseram ao discurso religioso. Mais comumente, atribuem essa crítica aos filósofos da Antiguidade; porém, personagens como Hipócrates, o médico, eram críticos assíduos ao argumento religioso como explicativo da realidade. Para Hipócrates, os males e as doenças tinham que ser tratados a partir de uma causa natural, ou seja, não havia uma explicação sobrenatural. Outrossim, também contribuíram a essa oposição Tucídedes, que buscou compreender a sociedade a partir da história; Demócrito, que compreendia a religião como uma criação humana a partir dos temores e da ausência de explicação dada naturalmente; e Anaxágoras, que, a partir dos estudos de ummeteoro, pesquisou os corpos celestes e chegou à conclusão de que não se tratava de deuses (JAEGER, 2011). Mais adiante, nas explicações mais conhecidas, temos Platão (2000), que atribui o conhecimento às ideias, à inteligibilidade e não aos deuses, e Protágoras, que defende que a necessidade dos deuses é secundária, uma vez que a necessidade do fogo e da sabedoria a antecede. Um dos mitos que mais ilustra a relação grega entre humano e divindades é, incontornavelmente, o “Rei Édipo”, que conta a história de uma profecia. Édipo foi condenado à morte após nascer, pois o rei Laio, que era seu pai, escutou do oráculo de Delfos que seu filho cresceria, então o mataria e desposaria a rainha A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média2 Jocasta, sua mãe. Assim, Laio decidiu que o menino deveria morrer, convocou um pastor e o incumbiu de pendurar o bebê pelos pés, em uma árvore presente nas encostas do monte Citerão, e deixá-lo para ser comido pelos gaviões e outros animais (SÓFOCLES, 1995). O pastor ficou com pena e não conseguiu abandonar o bebê; em seguida, entregou-o para a família do rei de Corinto, Políbio, que o adotou como filho. Quando Édipo cresceu, os pais lhe contaram o segredo e o jovem se rebelou; ao sair transtornado, acabou encontrando alguns viajantes e, em meio a uma discussão, matou-os. Um dos mortos era o seu pai biológico e, sem saber disso, Édipo dá continuidade a sua viagem solitária. Chegando a Tebas, Édipo desvenda um desafio que foi proposto pela Esfinge “[...] que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, à tarde tem três?” (SÓFOCLES, 1995, p. 397). Édipo decifra o mistério: trata-se do ser humano que, quando bebê, engatinha, quando adulto, caminha com suas duas pernas, e, quando envelhece, caminha com três porque usa a bengala. Assim, quem desvendasse o desafio deveria se tornar rei, casando-se com Jocasta, a rainha. Édipo se casa com a sua mãe, têm quatro filhos e, ao consultar o oráculo, descobre que cumpriu o seu destino. Arrependido, vaza os próprios olhos e se torna um mendigo. Tal mito representa a superioridade religiosa a despeito da ordem racional (SÓFOCLES, 1995). Ou seja, Édipo, ao desvendar o mistério da esfinge, coloca em uso toda a sua capacidade racional, que, ao mesmo tempo, não lhe serve muito ao pensar os próprios acontecimentos de sua vida, ao tentar desvendá-la. O politeísmo grego, então, alude a uma experiência ulterior do ser humano, que busca no divino explicação para a qual a razão não orienta naturalmente. Por outro lado, observamos, também, que o autor, Sófocles, está expressando a crença humana na justiça divina: uma justiça incompreensível. Nesse sentido, apesar de ter sido “superada”, a religião grega mantém na humanidade que viria a se tornar cristã a função fulcral da religião. Vários motivos são associados a essa transição, e um deles é, incontestavelmente, a ascensão da filosofia como busca do conhecimento racional sobre a realidade. Contudo, no período intitulado helenismo, temos tanto o confronto entre poli- teísmo e monoteísmo quanto a mistura e a sincretizacão de ambas as doutrinas (JAEGER, 2011). Certamente, isso só foi possível graças à abertura cultural empreendida por Alexandre. Embora não tenha sido seu motivo inicial levar a cultura grega a outras, acabou por criar um acesso entre elas, o que propiciou o surgimento de uma crença diferente da politeísta. O cristianismo mais primitivo, aquele que começou a emergir após a morte de Alexandre, o Grande, foi marcado pela negação, pela repulsa à filosofia considerada pagã. Contudo, podemos observar um movimento relativo a 3A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média algumas escolas helenísticas, tais como os epicuristas, estoicos, céticos e eclé- ticos (PEPIN, 1983). Essas escolas filosóficas dialogavam com o cristianismo em diversos aspectos: voto de pobreza, importância do perdão, do amor ao próximo, entre outros valores. Historicamente, podemos pensar a relação entre o cristianismo e o hele- nismo como uma disputa pela posse da verdade (PEPIN, 1983). Ou seja, em um primeiro momento, vemos uma reivindicação entre gregos e cristãos pela religião que mais teria afinidade intelectual com a realidade para conseguir explicá-la e, então, instaurar-se como universal. Isto é, trata-se de uma relação correlacional e opositora ao mesmo tempo, à mesma época: se, por um lado, o cristianismo consegue se consolidar fazendo uso do helenismo, de seu arcabouço intelectual, de outro lado, o helenismo também cede e se deixa utilizar pelo cristianismo. Seria, então, uma própria conversão dos gregos ou uma imposição cristã? Podemos entender esse embate por distintos ângulos, inclusive, que se complementam (PEPIN, 1983): com a expansão territorial e o sincretismo cultural, o homem grego não se sentia mais tão orientado como antes, quando havia um ideal claro de cidadão da pólis e de homem grego — isso facilitou a adesão de uma parte dos gregos ao cristianismo; foram traçados paralelos entre a cosmogonia grega e a cristã. Nesse contexto, Justino argumenta à população de Alexandria que a criação do mundo se deve a Deus, que é o mesmo que o logos, uma vez que toda a inteligência provém de Deus (PEPIN, 1983). Outros argumentos foram ressig- nificados em prol da criação divina, como o taciniano, segundo o qual o verbo era a projeção do mundo para fora de si — portanto, o verbo é Deus; e o de que Deus é e, por isso, tudo que não era só poderia ter vindo de algo existente. É nesse momento que passa a ser conhecida a figura do discípulo Paulo, que defendia que a sabedoria da filosofia consistia em uma persuasão; portanto, a verdade cristã não necessitaria fundamentar-se na inteligência, mas, sim, na experiência espiritual. Porém, cabe ressaltar que Paulo, em seus ensinamentos cristãos, vale-se em grande parte dos argumentos platônicos e estoicos, no sen- tido de que o que é divino (platonicamente a ideia) não se personifica em obras humanas, pois essas são representações imperfeitas de Deus; o que tem valor para o homem (riquezas e bens materiais) não tem valor para Deus (PEPIN, 1983). Tal forma de compreender e ensinar o cristianismo se fez presente nos anos posteriores na tradição cristã: a aproximação entre a religião e a filosofia grega e, do mesmo modo, a repulsa entre ambos os argumentos. Outrossim, A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média4 é também com Paulo, ao estabelecer a interpretação da Santa Trindade, que se pode determinar uma antropologia da religião cristã. Isto é, o humano é entendido de três formas a partir da concepção paulina (PEPIN, 1983): aquele que tem sua fragilidade em seu corpo, sua carne; aquele que, contudo, tem vida; aquele que é dotado de força espiritual e que, por meio de tal força, consegue relacionar-se espiritualmente com Deus. Conclui-se que a transição do politeísmo ao monoteísmo não se deu de forma abrupta, o que nos permite dizer que não se trata de uma religião, a cristã, que se apoderou dos argumentos filosóficos a fim de fundamentar logicamente a existência divina, mas, antes, de uma realização intelectiva do humano enquanto sujeito histórico e na história (PEPIN, 1983). 2 As bases de identificação do sagrado e do profano A discussão, a associação e a dissociação entre o sagrado e o profano se intensifi cam, principalmente com a ascensão do cristianismo como religião ofi cial após o período helenístico. Para tanto, tal distinção se tornou necessária para separar fi éis de pagãos. Posteriormente, com a fi xação e a hegemonia cristã, o conceito de “blasfêmia” se torna recorrente para designar aqueles que atentam, de qualquer forma, mesmo sem saber, contra a religião. Nesse sentido, acentuam-se também as relações políticas, culturais e econômicas. Na Idade Média, a instituição católica era detentora de um grande poder conjuntamente, e correlativamente, à Coroa. Desse modo, a imposição acerca do que é sagradose institucionalizou e se tornou um modo de concentração de poder e controle sobre os sujeitos (DURKHEIM, 1996). Com o surgimento da sociologia na Idade Moderna, tal distinção passou a ser estudada pelos sociólogos, e um dos que mais se destacou nesse contexto foi Émile Durkheim. Na obra As formas elementares da vida religiosa (1996), Durkheim apresenta uma distinção entre o que seria sagrado e o que seria profano. Entretanto, para compreender tal dimensão, é necessário elucidar como Durkheim compreende a religião para, então, entender o que o sociólogo considerava profano e sagrado. Em 1895, Durkheim publicou a obra intitulada Regras do método sociológico (1987), em que já é possível encontrar a interpretação durkheimiana do fenômeno, pois é nesse texto que aparece o argumento sobre a eternidade da religião: todas 5A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média as sociedades das quais temos rastros em documentos se dedicaram a alguma forma de religião, ainda que primitiva; desde então, todas as sociedades, até a contemporaneidade do sociólogo (e posteriormente, como vimos), partilharam religiões. Assim, tocamos no ponto em que a sociologia de Durkheim se volta ao estudo da religião enquanto forma de organização, de estruturação social. No contexto moderno em que viveu Durkheim, as correntes argumenta- tivas em prol de um cientificismo eram predominantes. O campo religioso não foi tratado de modo diferente: diversos pensadores passaram a pensar o fenômeno como alienação (MARX, 2005), como ilusão (FREUD, 1976), como dissolúvel frente à racionalidade (COMTE, 1978). Porém, a persistência da religião em distintas culturas e contextos também levou outros pensadores a problematizar a religião a partir de sua formação de comunidade, do seu sentido simbólico, de sua inefabilidade, que, nesse sentido, poderia ensinar muito sobre o humano. Assim como Durkheim, mas a partir de outros ar- gumentos, Max Weber (2004) também se dedicou a refletir sobre a religião. Ambos pensadores se destacavam nesse cenário moderno por dignificarem a reflexão acerca da manifestação religiosa. Para Durkheim (1996), a religião é, antes de tudo, o fundamento cultural e social dos indivíduos. Ao nascer, o individuo nasce em uma família, em uma sociedade, cheia de normas e condutas e com uma base cultural. Essa base é constituída por um sistema de valores que são construídos socialmente; Durkheim defendia que os indivíduos construíram tais sistemas a partir do desenvolvimento intelectivo da humanidade, e a religião foi, e é, o primeiro desses sistemas. Há, nesse fenômeno, distintas manifestações: as sobrena- turais, as misteriosas, as divinas e mágicas (DURKHEIM, 1996). Contudo, tais distinções não conseguem, por si só, definir o que seria sagrado e o que seria profano, pois isso compete à ordem do social, que, por sua vez, deve ser estudado sociologicamente: [...] o fenômeno religioso é que ele supõe sempre uma divisão bipartida do universo conhecido e conhecível em dois gêneros que compreendem tudo o que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas a que se aplicam essas proibições e que devem permanecer à distância das primeiras (DURKHEIM, 1996, p. 24). O sagrado, desse modo, é caracterizado a partir de diferentes modos de ser. Durkheim (1996) se vale de vários exemplos, mas o que demonstra mais a distinção é o que algumas religiões intitulam como “batismo”. Esse ritual de iniciação simboliza a passagem de um estado profano a um estado sagrado, A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média6 como se estabelecesse um decalque entre quem a pessoa era e quem ela passa a ser após adentrar, fazer parte de uma religião. Já nesse ato, vê-se uma ideia de separação, de divisão entre o que é mundano (que não pertence a Deus) e o que não é (DURKHEIM, 1996). Estabelece-se uma hierarquização a partir de tal separação, uma valoração entre os indivíduos: aqueles dignos e aqueles não dignos. A religião se configura, assim, a partir daquilo que deve ser exal- tado, de crenças e práticas, de normas morais e de condutas que configuram modos de se relacionar com o sagrado por meio de uma institucionalização da religião — igrejas, mesquitas, sinagogas, terreiros, entre outros. Durkheim (1996) apresenta, então, uma base sociológica universal para a religião, para o fenômeno religioso: as representações sociais em seu mais amplo aspecto. É traçada, assim, uma espécie de genealogia da religião e da sociedade, tal qual como se o surgimento, e o desenvolvimento, de uma estivesse entrelaçado ao de outra. Seria a formação religiosa à base das pro- jeções, das representações sociais/morais/culturais; da hierarquização social, econômica e política; e, também, do surgimento do que podemos chamar de epistemologia da religião. Isto é, a religião se encontra tão nas bases da performatividade existencial que mesmo aquele que não participa de uma comunidade religiosa, que não se reconhece religiosa, foi constituído e, de alguma forma, afetado culturalmente pela religião, dado que ela (a religião) fundamenta a experiência social e cultural. Nesse sentido, cabe ressaltar o argumento contemporâneo acerca da correlação entre a fé e a razão, entre o processo secular e dessecular da sociedade, pois só podemos afirmar uma posição diante da outra (DURKHEIM, 1996). Assim, também é possível compreender acerca do movimento pós-estruturalista no século XX: não há dicotomia estrutural, mas acontecimentos que ocorrem ao mesmo tempo e que excluem uma leitura reducionista e simplista em prol de uma dicotomia, tal qual a de oposição entre fé e ciência, fé e razão. Durkheim (1996) rejeitou essa correlação: para o sociólogo, há, sim, uma distinção mais acentuada entre sagrado e profano e, frente ao argumento mais cientifico, defende que a própria ciência só se fez possível a partir das representações coletivas que constituíram a sociedade; portanto, a gênese da ciência seria a religião. Isto é, ainda que a experiência religiosa detenha a gênese das representações sociais, não é nas coisas ordinárias em que se dá o sagrado. É correto afirmar que a religião contém uma proposta de indivíduo que a representa socialmente em sua conduta e valores, mas a experiência com o sagrado está restrita a caminhos propostos pelas práticas religiosas. Conclui-se, a partir da obra de Durkheim (1996), que a experiência com o sagrado está ligada à religião, à coletividade, à formação de um corpo social, 7A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média moral, cultural e político. Já o indivíduo está ligado ao profano, ao que destoa do coletivo e estabelece uma relação espiritual autocentrada. Pensar a sociedade a partir dessa divisão durkheimiana é considerar as representações de forma dicotômica. As formas elementares são aquilo que divide os indivíduos: as pessoas se unem por identitarismos, segundo a teoria durkheimiana, o que faz da religião um espaço do sagrado, porque se trata de uma instituição. O profano representa, portanto, aquilo que não forma corpo, que não forma conduta, que não forma cultura nem moral, pois é individual. Você conhece a corrente filosófica helenista chamada “estoica”? Pois bem, o estoicismo ficou conhecido como uma escola que pregava também um modo de vida. Fundada na Grécia por Zenão de Cítio, no século III a. C., a filosofia influenciou muito o então nascente cristianismo no período helênico. Para os estóicos, a vida boa está relacionada com colocar em prática as virtudes. Nesse sentido, a virtude deve estar de acordo com a natureza, visto que a natureza é o bem. Mais tarde, após a ascensão cristã, o estoicismo passou a ser adotado como uma forma de interpretar a palavra de Cristo, principalmente por filósofos como Sêneca e Epiteto, que defendiam que a virtude é o caminho para a felicidade. 3 Os princípios da teologia de Santo Agostinho Agostinho de Hipona(354–430) ou Santo Agostinho, como fi cou mais conhecido, foi um dos mais importantes fi lósofos, bispos e teólogos da Idade Média. Sua obra se ocupou de forjar a doutrina, os costumes, os dogmas e a fé com base na fi losofi a greco-romana. O período no qual viveu Agostinho é conhecido como patrística e data do fi m do Império Romano. Vale lembrar que Agostinho teve uma trajetória singular: o bispo nasceu na África e se converteu ao cristianismo com 33 anos de idade. Sua conversão fi cou marcada como um processo que aconteceu até o fi m de sua vida. Na obra Confi ssões (1996), o fi lósofo trata sobre o seu processo de conversão, que não se encerrou com o batismo em 387, em Milão, com o bispo Ambrósio. Nesse contexto, Agostinho trabalha as questões fi losófi cas e teológicas da fé cristã a partir da elaboração de uma concepção teórica. Santo Agostinho foi um dos responsáveis por estabelecer os alicerces cristãos por meio da filosofia platônica. Contudo, é necessário compreender os principais princípios estabelecidos em sua obra para definir como se dá A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média8 a leitura da obra platônica por uma ótica cristã. Antes de tudo, Agostinho conseguiu reunir a história, a fé e a filosofia. Em A cidade de Deus (1999), é apresentada uma crítica ao politeísmo greco-romano, com aceno para outras religiões politeístas; desse ponto, Agostinho busca compreender o cristianismo em relação à sua formação histórica, o que culmina em uma teologia da histó- ria. Muito disso se deve ao contexto de invasões que ocorriam na Europa, em especial em Roma, cidade na qual o filósofo vivia. Nesse sentido, Agostinho (1999) uniu uma critica às religiões “bárbaras, selvagens” a uma crítica à invasão de Roma, que já se mostrava como a capital católica da Europa. Ao contrário das problematizações que se deram posteriormente, em que fé e história significavam um paradoxo inconciliável, criando uma distinção entre o Jesus histórico e Cristo, tal como na teologia moderna, Agostinho entendia a história como chave de sentido ao cristianismo. Ao pensar a história, Agostinho a entendia como o espaço de criação divina. Assim, o homem é tão só alguém que habita nesse espaço que foi criado por Deus e, inclusive, seu avanço só é possível porque Deus quis criar o tempo (AGOSTI- NHO, 1999). Portanto, a história só existe porque Deus criou tempo. Feito isso, ao enviar o seu filho à Terra, Deus possibilitou a formação do ponto central da história. Isto é, o tempo, inclusive, passa a ser contado regressivamente e pro- gressivamente após a passagem de Cristo pela Terra. Nesse sentido, Agostinho compreende na passagem de Cristo pela Terra, além da instituição do tempo, também a contagem para a volta de Cristo, que seria o Juízo Final. É durante esse tempo que o homem pode se redimir de seus pecados (AGOSTINHO, 1999). É nessa linearidade que segue a teoria agostiniana acerca da dualidade com ênfase platônica. Em A República (2000), Platão apresenta a dualidade que pos- sibilita a existência das coisas no mundo terreno, legível e, portanto, real. A ideia, o mundo inteligível, seria aquele perfeito de onde tudo advém. No mundo dos sentidos, legível, portanto, real, temos apenas uma cópia do que a coisa é no mundo perfeito. Assim, até mesmo as virtudes — tais como a bondade (conhecimento), a amizade, a honestidade, entre outras — são reflexos desse mundo ideal. Na inter- pretação agostiniana, são apresentadas duas sociedades para ilustrar o dualismo entre cristãos e não cristãos. Trata-se, assim, de duas cidades: a cidades de Deus, do povo de Deus; e a cidade dos ímpios, a cidade mundana, terrestre: [...] dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, le- vado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus, testemunha de sua consciência (AGOSTINHO, 1999, p. 28). 9A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média Ambas as cidades formam um só povo, que convive em suas diferenças; além disso, para alguns desses cidadãos, a cidade é a possibilidade de se misturar o cristianismo com outras doutrinas e religiões pagãs (AGOSTINHO, 1999). Porém, Agostinho denota o caráter teológico da história, pois é nesse sentido que o desenrolar da história como escrita por Deus acontece. Mesmo misturadas, existem duas cidades dentro dessa, dois povos dentro desse: trata- -se daquela cidade, daqueles que se findarão com o Juízo Final e daqueles que reinarão ao lado de Deus, pois são os celestiais, que não se renderam às malícias terrestres. A obra de Agostinho é marcada por tais dualidades, que, apesar de decorrerem da leitura platônica, também foram influenciadas por outras dicotomias. Em relação à divisão entre as cidades, Agostinho recorre também às figuras simbólicas de Abel e Caim, que prefiguram, nessa narra- tiva, a distinção, a divisão entre os povos: enquanto Caim pertence à cidade terrestre, dos ímpios, Abel faz parte do povo de Deus. A partir dessa narrativa, podemos identificar a divisão entre ação moral e norma da fé em Agostinho. Se podemos falar em uma moral já preestabelecida pelo cristianismo, cer- tamente ela se encontra ligada a uma forma de conceber a justiça e as virtudes ligadas a Deus. Logo, a moral agostiniana se enquadra naquilo que podemos chamar de moral teocêntrica — com ênfase para o cristocentrismo. Isto é, uma moral estabelecida com vistas ao juízo final, portanto, que trabalha a punição, a culpa, o mérito, a recompensa como norma, enquanto conduta, o que significa que a moral agostiniana está fundamentada na ação prática. Para tanto, o filó- sofo estabelece que, para se agir bem, de acordo com Deus, é necessário que o humano se encontre consigo para que possa falar sobre Deus (AGOSTINHO, 1999). Encontrar-se consigo, nesse sentido, é agir bem, virtuosamente. Vale ressaltar que, no período em que viveu Agostinho, na Patrística, o humano era entendido como sujeito, aquele que se sujeita socialmente: à monarquia, à Igreja, à sociedade, a outrem. A salvação só era possível em relação a todos, uma vez que o amor próprio era considerado um ato de vaidade, de individualismo e, por isso, de pecado. Pensar a relação individual, de um com o outro, só é possível a partir da Idade Moderna, quando, inclusive, passa a se utilizar o conceito de indivíduo. Trata-se de uma filosofia do individuo que é inaugurada com o cogito cartesiano: “penso, logo, existo” (DESCARTES, 2009, p. 62). Apesar de essa relação passar a ser pensada mais enfaticamente na modernidade, ainda que com a noção de identidade social, Agostinho já trabalhava essa relação entre “indivíduos”: a relação de um com o outro, em que se dá a ação moral. É nesse entremeio que também surge a ação ruim, a ação má (AGOSTINHO, 1980; 1999). Na convivência com os outros, o sujeito se reconhece e também se distancia dos demais, ao mesmo tempo em que se identifica, antagoniza-se, A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média10 em uma alteridade paradoxal. Contudo, ao lidar com os outros, o sujeito não age somente de forma passiva, ou seja, há também a discordância, e é a partir desse antagonismo que surgem problemas da ordem do livre-arbítrio, que, em linhas gerais, é aquilo que o homem pode decidir sobre sua ação, sobre a sua vontade, porém, consciente do que isso pode implicar em relação ao juízo final (AGOSTINHO, 1980; 1999). Assim é posta, por Agostinho, a verdade de Deus como verdade ontológica, a priori na própria ideia de bondade; com essa verdade, vem a verdade normativa, que deve seguir os mandamentos de Deus. O humano tem, então, uma capacidade distinta da de outros seres; a ele é dada a capacidade da memória e da razão — se não puder acreditar somente pela fé, que compreenda por meio da história e da razão, pois lhe foi dada a especialidade de ter sidofeito à imagem e semelhança de Deus. A memória e o aprendizado são dons complementares que Deus nos deu: enquanto o aprendizado se dá pela prática, pela experiência, a memória nos permite lembrar, por meio do nosso aprendizado, de Deus. Conclui-se que Agostinho compreende a filosofia, a história e a fé como saberes correlacionais e que caminham juntos (AGOSTINHO, 1980; 1999). A história é positiva na teoria agostiniana e possibilita que o ser humano evolua, progrida e caminhe em direção a Deus quanto mais conhece e mais se lembra. É operando juntamente às faculdades intelectivas que a filosofia se une à história: a filosofia permite a reflexão, o conhecimento de Deus (do bem platônico); a história permite o exercício da memória, que o humano se lembre o que aprendeu; e a fé direciona, orienta o homem pelo caminho celeste. AGOSTINHO, S. A cidade de Deus: parte II. Petrópolis: Vozes, 1999. AGOSTINHO, S. Confissões: de magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1980. COMTE, A. Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). DESCARTES, R. Discurso sobre o método. São Paulo: Escala, 2009. DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Coleção Tópicos). FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927–1931). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 21). JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 11A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005. PEPIN, J. Helenismo e cristianismo. In: CHÂTELET, F. (org.). A filosofia medieval, do séc. I ao século XV. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. (Coleção História da filosofia, ideias, doutrinas, 2). PLATÃO. A República. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000. SÓFOCLES. Édipo rei. Pinheiros: Hedra, 2018. WEBER, M. A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo. 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Isto não significa dizer que a religião é totalmente dependente da filosofia, mas que, sendo a filosofia uma atividade que se ocupa de toda e qualquer atividade, ela pode contribuir com a religião. Foi também nesse sentido que se deu a leitura da obra do filósofo grego Platão por Santo Agostinho. Nesta Dica do Professor, você compreenderá a teoria platônica do conhecimento, presente em A República, por meio de uma alegoria proposta pelo próprio filósofo. Foi a partir dela que Santo Agostinho pensou sua própria teoria do conhecimento. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/cee29914fad5b594d8f5918df1e801fd/2fbd8dc1ba6854d5e01eea4d5d1cd60b Saiba + Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Cinismo e parrésia: um paralelo entre Foucault e Montaigne Uma das grandes faculdades da filosofia é também ser atemporal. Muitos filósofos reescrevem a história da filosofia mesmo na contemporaneidade. Assim fez o francês Michel Foucault, que se dedicou a compreender a subjetividade por meio das escolas helenísticas, tal como é apresentado no artigo a seguir. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. A racionalidade da crença na existência de Deus em Santo Agostinho A comprovação racional da existência de Deus foi motivo para diversas reflexões filosóficas, principalmente na Idade Média. Santo Agostinho, por exemplo, desenvolveu contribuições teológicas nesse contexto. Entenda um pouco mais a partir da leitura do artigo a seguir. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/23071/21831 https://periodicos.unb.br/index.php/rbfr/article/view/22901/20620
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