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77
ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E 
EMPIRISMO
1. OBJETIVOS
•	 Conhecer	as	mudanças	epistemológicas	da	Modernida-
de	e	relacioná-las	com	as	propostas	da	moral	e	da	Ética	
do	racionalismo	e	do	empirismo	modernos.
•	 Compreender	a	proposta	de	uma	moral	de	provisão	em	
René	Descartes.
•	 Analisar	 os	 desdobramentos,	 na	 proposta	 de	 Spinoza,	
de	uma	Ética	puramente	racional-intuitiva,	demonstra-
da	à	maneira	dos	geômetras.
•	 A	moral	e	o	estado	de	direito	em	Thomas	Hobbes	e	John	
Locke.
•	 O	 empirismo	e	o	 início	 de	uma	moral	 utilitarista	 com	
John	Locke.
2. CONTEÚDOS
•	 René	Descartes.
•	 Baruch	Spinoza.
•	 Thomas	Hobbes.
•	 John	Locke.
UNIDADE 2
78 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE
Antes	de	iniciar	o	estudo	desta	unidade,	é	importante	que	
você	leia	as	orientações	a	seguir:
1)	 Para	saber	mais	sobre	a	liberdade	em	Spinoza,	sugeri-
mos	que	não	deixe	de	ler	o	seguinte	artigo:
•	 FRAGOSO,	E.	A.	R.	O	conceito	de	 liberdade	na	Éti-
ca	 de	 Benedictus	 de	 Spinoza.	 Revista Conatus – 
Filosofia de Spinoza,	v.	1,	n.	1,	p.	27-36,	 jul.	2007.	
Disponível	 em:	 <http://benedictus.dominiotem-
porario.com/doc/Revista_Conatus_V1N1_Artigo_
Emanuel_Fragoso.pdf>.	Acesso	em:	31	mar.	2015.
2)	 O	tema	da	liberdade	em	Spinoza	é	bastante	interessan-
te;	para	aprofundá-lo,	sugerimos	que	assista	ao	vídeo	
do	Prof.	Claudio	Ulpiano,	Pensamento e Liberdade em 
Espinosa.	 Disponível	 em:	 <http://www.youtube.com/
watch?v=KMhuVkSDQPs>.	Acesso	em:	18	ago.	2015.
3)	 Sobre	 Hobbes,	 assista	 ao	 vídeo	 do	 programa	 de	 TV 
Café Pensamento,	da	Mackenzie,	na	entrevista	com	o	
professor	Marcelo	Bueno	sobre	a	filosofia	de	Thomas	
Hobbes.	 Disponível	 em:	 <http://www.youtube.com/
watch?v=4-1WURiF0nM>.	Acesso	em:	18	ago.	2015.
4)	 Indicamos,	também,	os	seguintes	filmes:
•	 Sobre	o	século	17:	Cromwell, O Chanceler de Ferro,	
de	1970,	direção	de	Ken	Hugues	(a	revolução	puri-
tana	na	Inglaterra).
•	 Sobre	o	século	18	(a	Revolução	Francesa):	Danton, O 
Processo da Revolução,	de	1982,	direção	de	Andrzej	
Wajda.
79© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
•	 Baseado	 na	 obra	 de	mesmo	nome,	 o	 filme	Ponto 
de Mutação,	de	1983,	com	direção	de	Bernt	Capra,	
aborda	 questões	 sociais,	 políticas,	 econômicas	 e	
mudanças	de	tendências	(passagem	do	velho	para	
o	novo	e	renovação	do	velho).
4. INTRODUÇÃO
Dentro	do	que	temos	nos	proposto	a	trabalhar,	no	que	diz	
respeito	à	distinção	entre	o	ético	e	o	moral,	veremos,	no	século	
17,	tema	desta	unidade,	o	estabelecimento	de	uma	estrutura	de	
saber	favorável	ao	desenvolvimento	da	noção	de	moral	que	se	
presta	ao	conceito	de	regras	e	princípios	gerais,	em	detrimento	
do	que	entendemos	por	ético	propriamente	dito.
De	 fato,	 no	 século	 17,	 passa	 a	 predominar	 um	 interesse	
cada	vez	maior	em	um	saber	racional-teórico,	fundamentado	em	
um	 universal-geral,	 iniciando-se,	 assim,	 de	 maneira	 sistemáti-
ca,	o	pensamento	chamado	moderno,	com	suas	características	
específicas.
Veremos,	a	seguir,	alguns	pontos	básicos	desse	novo	para-
digma	de	saber,	o	conhecimento	científico	ou	a	ciência.
Iniciemos	com	a	nova	noção	de	mundo.	Durante	a	 Idade	
Média,	a	ideia	de	mundo	era	a	aristotélica,	ou	seja,	um	todo	or-
denado	(o	cosmos)	limitado	e	hierarquizado,	onde	cada	coisa	ti-
nha	o	seu	lugar	próprio,	segundo	sua	natureza.	Porém,	descober-
tas	significativas	surgem	no	século	17	que	parecem	negar	essa	
visão.	Um	exemplo	é	a	lei	da	inércia,	inicialmente	formulada	por	
Descartes	e,	posteriormente,	por	Newton,	 segundo	a	qual	um	
corpo	uma	vez	em	movimento	conservará	para	sempre	esse	mo-
vimento,	com	a	mesma	velocidade,	se	não	sofrer	nenhuma	outra	
80 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
ação,	como	acontece	no	vácuo.	Essa	 lei	 significa	que	o	univer-
so	todo	está	em	movimento	e,	portanto,	em	vez	de	um	mundo	
fechado,	limitado	e	hierarquizado,	como	se	pensava,	temos	um	
universo	sem	 limites.	Essa	visão,	a	partir	de	uma	 lei	universal-
-geral,	consiste	em	uma	visão	abstrata	do	universo.
O	mundo	 passa	 a	 ser	 visto	 como	 uma	 grande	máquina,	
previsível	e	passível	de	ser	conhecida	racionalmente.	Um	todo	
em	movimento,	movimento	esse	não	em	busca	de	um	fim,	mas	
inteiramente	 decorrente	 de	 leis	matemáticas.	 Em	outras	 pala-
vras,	ao	contrário	do	cosmos	antigo,	em	que,	 sob	a	 inspiração	
aristotélica,	se	explicavam	as	coisas	pela	 finalidade,	o	universo	
agora	se	apresenta	reduzido	a	um	puro	mecanismo.
Não	há	 lugares	naturais,	com	 leis	próprias,	como	ensina-
va	Aristóteles;	o	espaço	é	homogêneo,	geométrico,	nele	reina	a	
identidade	universal	da	lei	ou	a	relação	matemática	constante.	A	
ordem	cósmica	dos	antigos	é	substituída	pela	ordem	rigorosa	da	
matemática	que	se	torna	o	modelo	do	pensamento	verdadeiro.
Das	 inúmeras	 substâncias	 concebidas	 pelo	 pensamento	
greco-romano	restam	apenas	três	fundamentais:	a	extensão	(res 
extensa),	o	pensamento	(res cogitans)	e	o	infinito	(a	substância	
divina).
No	pensamento	moderno,	só	é	conhecimento	aquele	que	
explica	 a	partir	 da	 causa	e	 apenas	duas	 causas	 são	admitidas:	
a	 causa	eficiente	 (relação	direta	da	 causa	e	de	 seu	efeito)	 e	 a	
causa	final,	que	seria	aquela	existente	entre	Deus	e	os	homens,	
enquanto	os	gregos,	romanos	e	medievais	concebiam	as	causas	
como	sendo	quatro	(classificação	de	Aristóteles):
1)	 a	causa	material	(aquilo	de	que	algo	é	feito);
2)	 a	causa	formal	(a	coisa	em	si);
81© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
3)	 a	causa	eficiente	(o	que	dá	origem	ao	processo	do	qual	
algo	surge);
4)	 a	causa	final	(aquilo	para	o	qual	algo	é	feito).
Outra	questão	que	dominará	a	Idade	Moderna	é	a	questão	
do	método.	Para	se	chegar	ao	conhecimento	pelas	causas,	faz-se	
necessário	um	método	ou	um	caminho.	A	opção	é	pelo	método	
da	Matemática	 (ordem	e	medida),	 por	 ser	 este	 o	 caminho	 do	
conhecimento	completo,	que	domina	inteiramente	seu	objeto.
No	que	diz	respeito	à	nossa	temática	da	Ética	e	da	moral,	
o	surgimento	do	pensamento	moderno,	com	exceção	do	pensa-
mento	de	Baruch	Spinoza,	foi,	pelas	características	epistêmicas	
aqui	referidas,	favorável	à	expansão	da	questão	moral.	É	o	que	
veremos	a	seguir.
5. RENÉ DESCARTES (1596-1650) E UMA "MORAL 
DE PROVISÃO"
Descartes,	como	sabemos,	é	o	filósofo	do	"método"	ou	do	
caminho	para	se	chegar	a	verdades	claras	e	exatas.	Em	1619,	es-
tando	combatendo	os	espanhóis,	no	exército	do	príncipe	holan-
dês	Maurício	de	Nassau,	Descartes	tem	três	visões	ou	sonhos	a	
partir	dos	quais	concebe	"os	fundamentos	de	uma	ciência	admi-
rável",	sobre	a	qual,	por	volta	de	1620,	começa	a	redigir	a	obra	
Regras para a direção do espírito,	obra	essa	que	só	será	publica-
da	em	1701.
Considerado	o	grande	fundador	do	pensamento	racionalis-
ta	moderno,	sua	marca	inconfundível	é	o	princípio	da	"dúvida":	
tudo	o	que	pensamos	saber	ou	acreditamos	existir	deverá	passar	
pelo	crivo	da	dúvida.
82 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
Nesse	sentido,	em	Meditações	(Meditação	1),	afirma:
1.	Há	algum	tempo	eu	me	apercebi	de	que,	desde	meus	primei-
ros	anos,	recebera	muitas	falsas	opiniões	como	verdadeiras,	e	de	
que	aquilo	que	depois	fundei	em	princípios	tão	mal	assegurados	
não	podia	ser	senão	mui	duvidoso	e	incerto;	de	modo	que	me	era	
necessário	tentar	seriamente,	uma	vez	em	minha	vida,	desfazer-
-me	de	todas	as	opiniões	a	que	até	então	dera	crédito,	e	começar	
tudo	novamente,	desde	os	fundamentos,	se	quisesse	estabelecer	
algo	de	firme	e	de	constante	nas	ciências.	Mas,	parecendo-me	
ser	muito	grande	essa	empresa,	aguardei	atingir	uma	idade	que	
fosse	 tão	madura	que	não	pudesse	esperar	outra	após	ela,	na	
qual	eu	estivesse	mais	apto	para	executá-la;	o	que	me	fez	diferi-
-la	por	tão	longo	tempo	que	doravante	acreditaria	cometer	uma	
falta	se	empregasse	ainda	em	deliberar	o	tempo	que	me	resta	
para	agir.
Agora,	pois,	que	meu	espírito	está	livre	de	todos	os	cuidados,	
e	que	consegui	um	repouso	assegurado	numapacífica	solidão,	
aplicar-me-ei	seriamente	e	com	liberdade	a	destruir	em	geral	
todas	minhas	antigas	opiniões.	Ora,	não	será	necessário,	para	
alcançar	esse	desígnio,	provar	que	todas	elas	são	falsas,	o	que	
talvez	nunca	 levasse	a	cabo;	mas,	uma	vez	que	a	razão	 já	me	
persuade	de	que	não	devo	menos	cuidadosamente	impedir-me	
de	dar	crédito	às	coisas	que	não	são	inteiramente	certas	e	in-
dubitáveis,	do	que	às	que	parecem	manifestamente	ser	falsas,	
o	menor	motivo	de	dúvida	que	eu	nelas	encontrar,	bastará	para	
me	levar	a	rejeitar	todas	(DESCARTES,	1973a,	p.	93).
A questão da moral em Descartes: uma moral de "provisão"
Descartes	propõe,	 inicialmente,	em	sua	famosa	obra	Dis-
curso do Método,	 o	que	 chamou	de	 "moral	de	provisão",	par-
tindo	para	o	estabelecimento	de	normas	ou	máximas	que	nos	
permitissem	nos	aproximar	da	verdadeira	virtude	–	normas	ou	
máximas	que	são,	no	entanto,	 segundo	o	 filósofo,	 imperfeitas,	
necessitando	de	aperfeiçoamento.	Trata-se	de	uma	moral	pro-
83© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
visória,	elaborada	antes	da	construção	das	bases	do	edifício	do	
saber	a	que	se	propunha	e	que	permitiria	orientar	a	conduta	até	
que	fosse	possível	a	elaboração	de	uma	moral	definitiva,	a	qual	
seria	o	ponto	mais	alto	do	referido	edifício	do	saber.
São	três	as	máximas	por	ele	estabelecidas	na	obra	citada:
1)	 a	vida	de	cada	um	deve	ser	conforme	os	desígnios	de	
Deus	e	as	leis	e	costumes	de	seu	país;
2)	 a	"prudência"	é	a	atitude	que	supriria	a	imperfeição;
3)	 deve-se	procurar	vencer	a	si	mesmo,	mudando	os	pró-
prios	desejos	e	não	a	ordem	do	mundo.
A primeira máxima
A	vida	de	cada	um	deve	ser	não	apenas	conforme	os	desíg-
nios	divinos,	que	seriam	os	mais	justos,	mas,	ainda,	conforme	a	
conduta	daqueles	que	seguem	as	leis	e	os	costumes	de	seu	país	
e	que	são	os	moderados	e	sensatos.
Referindo-se	a	essa	primeira	regra,	diz	Descartes:
A	primeira	era	obedecer	às	 leis	e	aos	costumes	de	meu	país,	
retendo	constantemente	a	religião	em	que	Deus	me	concedeu	
a	graça	de	ser	instruído	desde	a	infância,	e	governando-me,	em	
tudo	o	mais,	 segundo	as	opiniões	mais	moderadas	e	as	mais	
distanciadas	do	excesso,	que	fossem	comumente	acolhidas	em	
prática	pelos	mais	sensatos	daqueles	com	os	quais	teria	de	vi-
ver.	Pois,	começando	desde	então	a	não	contar	para	nada	com	
minhas	próprias	opiniões,	porque	eu	as	queria	submeter	todas	
a	exame,	estava	certo	de	que	o	melhor	a	fazer	era	seguir	as	dos	
mais	sensatos.	E,	embora	haja	talvez,	entre	os	persas	e	chine-
ses,	homens	tão	sensatos	como	entre	nós,	parecia	que	o	mais	
útil	 seria	pautar-me	por	aqueles	entre	os	quais	 teria	de	viver	
(DESCARTES,	1973a,	p.	49-50).
84 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
A segunda máxima: a "prudência"
Em	vez	de	adotarmos	 teimosamente	uma	decisão	ou	de	
permanecermos	 indecisos,	quando	não	possuímos	todas	as	 in-
formações	necessárias,	é	prudente	tomar	a	decisão	de	agir	(re-
solução)	em	uma	determinada	direção.
Minha	segunda	máxima	consistia	em	ser	o	mais	firme	e	o	mais	
resoluto	 possível	 em	minhas	 ações,	 e	 em	 não	 seguir	 menos	
constantemente	do	que	se	 fossem	muito	 seguras	as	opiniões	
mais	 duvidosas,	 sempre	 que	 eu	me	 tivesse	 decidido	 a	 tanto.	
Imitando	 nisso	 os	 viajantes	 que,	 vendo-se	 extraviados	 nalgu-
ma	floresta,	não	devem	errar	volteando,	ora	para	um	lado,	ora	
para	outro,	nem	menos	ainda	deter-se	num	sítio,	mas	caminhar	
sempre	o	mais	reto	possível	para	um	mesmo	lado,	e	não	mudá-
-lo	por	 fracas	 razões,	ainda	que	no	começo	só	o	acaso	 talvez	
haja	determinado	sua	escolha:	pois,	por	este	meio,	se	não	vão	
exatamente	aonde	desejam,	 ao	menos	 chegarão	no	 fim	a	 al-
guma	parte,	onde	verossimilmente	estarão	melhor	do	que	no	
meio	de	uma	floresta.	E,	assim	como	as	ações	da	vida	não	su-
portam	às	vezes	qualquer	delonga,	é	uma	verdade	muito	certa	
que,	quando	não	está	em	nosso	poder	o	discernir	as	opiniões	
mais	verdadeiras,	devemos	seguir	as	mais	prováveis;	e	mesmo,	
ainda	que	não	notemos	em	umas	mais	probabilidades	do	que	
em	outras,	devemos,	não	obstante,	decidir-nos	por	algumas	e	
considerá-las	depois	não	mais	como	duvidosas,	na	medida	em	
que	 se	 relacionam	com	a	prática,	mas	 como	muito	 verdadei-
ras	e	muito	certas,	porquanto	a	razão	que	a	isso	nos	decidiu	se	
apresenta	como	tal.	E	isto	me	permitiu,	desde	então,	libertar-
-me	de	todos	os	arrependimentos	e	remorsos	que	costumam	
agitar	as	consciências	desses	espíritos	fracos	e	vacilantes	que	se	
deixam	levar	inconstantemente	a	praticar,	como	boas,	as	coisas	
que	depois	julgam	más	(DESCARTES,	1973a,	p.	50-51).
85© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
A terceira máxima: a conduta correta é aquela que respeita as 
possibilidades de um mundo regido por leis imutáveis e acima 
de nosso alcance
Descartes	afirma	que
Minha	terceira	máxima	era	a	de	procurar	sempre	antes	vencer	a	
mim	próprio	do	que	à	sorte,	e	de	antes	modificar	os	meus	dese-
jos	do	que	a	ordem	do	mundo;	e,	em	geral,	a	de	acostumar-me	
a	 crer	que	nada	há	que	esteja	 inteiramente	em	nosso	poder,	
exceto	os	nossos	pensamentos,	de	sorte	que,	depois	de	termos	
feito	o	melhor	possível	no	tocante	às	coisas	que	nos	são	exte-
riores,	tudo	em	que	deixamos	de	nos	sair	bem	é,	em	relação	a	
nós,	absolutamente	impossível.	E	só	isso	me	parecia	suficiente	
para	impedir-me,	no	futuro,	de	desejar	algo	que	não	pudesse	
adquirir,	 e,	 assim,	 me	 tornar	 contente.	 Pois,	 inclinando-se	 a	
nossa	 vontade	 naturalmente	 a	 desejar	 só	 aquelas	 coisas	 que	
nosso	 entendimento	 lhe	 representa	 de	 alguma	 forma	 como	
possíveis,	é	certo	que,	se	considerarmos	todos	os	bens	que	se	
acham	fora	de	nós	como	igualmente	afastados	de	nosso	poder,	
não	lamentaremos	mais	a	falta	daqueles	que	parecem	dever-se	
ao	nosso	nascimento,	quando	deles	formos	privados	sem	culpa	
nossa,	do	que	lamentamos	não	possuir	os	reinos	da	China	ou	
do	México;	e	que	fazendo,	como	se	diz,	da	necessidade	virtude,	
não	 desejaremos	mais	 estar	 sãos,	 estando	 doentes,	 ou	 estar	
livres,	estando	na	prisão,	do	que	desejamos	 ter	agora	corpos	
de	uma	matéria	tão	pouco	corruptível	quanto	os	diamantes,	ou	
asas	para	voar	como	as	aves	(DESCARTES,	1973a,	p.	51).
Tal	conduta	exigiria	preparo:
Mas	confesso	que	é	preciso	um	longo	adestramento	e	uma	me-
ditação	amiúde	reiterada	para	nos	acostumarmos	a	olhar	por	
este	ângulo	todas	as	coisas;	e	creio	que	é	principalmente	nisso	
que	consistia	o	segredo	desses	filósofos,	que	puderam	outro-
ra	subtrair-se	ao	 império	da	fortuna	e,	malgrado	as	dores	e	a	
pobreza,	disputar	felicidade	aos	seus	deuses.	Pois,	ocupando-
-se	 incessantemente	 em	 considerar	 os	 limites	 que	 lhes	 eram	
impostos	pela	natureza,	persuadiram-se	tão	perfeitamente	de	
86 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
que	 nada	 estava	 em	 seu	 poder	 além	dos	 seus	 pensamentos,	
que	só	isso	bastava	para	impedi-los	de	sentir	qualquer	afecção	
por	outras	coisas;	e	dispunham	deles	tão	absolutamente,	que	
tinham	neste	particular	certa	razão	de	se	julgarem	mais	ricos,	
mais	poderosos,	mais	livres	e	mais	felizes	que	quaisquer	outros	
homens,	 que,	 não	 tendo	 esta	 filosofia,	 por	 mais	 favorecidos	
que	sejam	pela	natureza	e	pela	fortuna,	jamais	dispõem	assim	
de	tudo	quanto	querem	(DESCARTES,	1973a,	p.	51).
Porém,	em	suas	demais	obras,	como	Meditações,	e	parti-
cularmente	em	sua	correspondência	com	a	princesa	do	Palatino,	
Isabel	da	Boêmia,	a	quem	prometeu	e	escreveu	o	Tratado das 
Paixões da Alma,	 sua	 última	 obra	 publicada	 em	 1649,	 poucos	
meses	antes	de	sua	morte,	encontraremos	mais	subsídios	para	
a	 possível	 configuração	de	 uma	moral	 cartesiana.	Nessas	 suas	
últimas	obras,	Descartes	procura	elaborar	uma	moral	mais	per-
feita,	retomando	em	novos	contextos	o	que	dissera	na	moral	de	
provisão.
Veremos,	 nesses	 seus	 escritos,	 que	 Descartes,	 no	 que	
concerne	 à	questão	da	 conduta	moral	 correta,	 fundamenta-se	
em	algumas	verdades	que	considera	essenciais:	a	existência	de	
Deus;	o	fenômenoda	vontade	ilimitada;	a	limitação	do	entendi-
mento;	o	recurso	ao	hábito;	razão	e	 liberdade;	a	"unidade"	da	
alma;	a	união	da	alma	e	do	corpo	e	as	paixões;	a	virtude	como	
soberano	bem.
A existência de Deus: Ele existe, pois sua existência pode ser 
demonstrada
Diz	Descartes:
Entendo	 por	 Deus	 uma	 substância	 infinita,	 eterna,	 imutável,	
independente,	 puro	 conhecimento,	 puro	 poder,	 pelo	 qual	 eu	
próprio	e	tudo	o	que	existe	(se	é	verdade	que	há	algo	existen-
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te)	foi	criado	e	produzido.	Ora,	tais	vantagens	são	tão	grandes	
e	 admiráveis	 que	 quanto	mais	 atentamente	 eu	 as	 considero,	
mais	me	convenço	de	que	a	ideia	de	Deus	não	pode	se	originar	
unicamente	de	mim.	E,	 consequentemente,	 se	 faz	necessário	
concluir	 que	Deus	 existe:	 pois,	 embora	 a	 ideia	 de	 substância	
exista	em	mim,	uma	vez	que	sou	uma	substância,	não	teria,	en-
tretanto,	a	ideia	de	uma	substância	infinita,	eu	que	sou	um	ser	
finito,	se	tal	ideia	não	tivesse	sido	colocada	em	mim	por	alguma	
substância	que	não	fosse	verdadeiramente	infinita.
E,	 não	 devo	 imaginar	 que	 tal	 concepção	 de	 infinito	 não	 seja	
uma	verdadeira	 ideia,	mas	somente	 resultado	da	negação	do	
que	é	finito,	da	mesma	maneira	que	compreendo	o	repouso	e	
as	trevas	pela	negação	do	movimento	e	da	luz:	isso	porque	vejo	
claramente	que	existe	mais	realidade	na	substância	infinita	do	
que	na	substância	finita	e,	em	consequência,	tenho	em	mim	a	
noção	de	infinito	e	de	Deus	antes	da	noção	de	finito	e	de	mim	
mesmo.	 Pois,	 como	 seria	 possível	 que	 eu	pudesse	 saber	 que	
duvido	e	que	desejo,	 isto	é,	que	me	falta	algo	e	que	não	sou	
perfeito,	se	não	tivesse	em	mim	a	ideia	de	um	ser	mais	perfeito	
do	que	o	meu	ser,	em	comparação	com	o	qual	eu	pudesse	ter	
o	conhecimento	dos	defeitos	de	minha	natureza?	(DESCARTES	
apud	ROUX-LANIER;	et	al.,	1995,	p.	224,	tradução	nossa).
O fenômeno da vontade: temos todos uma vontade ilimitada 
porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus
E,	sobre	o	fenômeno	da	vontade,	Descartes	conclui:
Não	há	senão	a	vontade	que	experimento	em	mim	ser	tão	gran-
de,	 que	 não	 concebo	 nenhuma	 outra	mais	 ampla	 e	mais	 ex-
tensa:	de	maneira	que	é	ela	principalmente	que	me	faz	saber	
que	 trago	 em	mim	a	 imagem	e	 a	 semelhança	 de	Deus.	 Pois,	
ainda	que	ela	seja	incomparavelmente	maior	em	Deus	do	que	
em	mim,	seja	em	razão	do	conhecimento	e	do	poder,	que	nele	
se	encontram	unidos,	tornando-a	mais	firme	e	mais	eficaz,	seja	
em	razão	do	objeto,	uma	vez	que	ela	se	refere	e	se	estende	a	um	
número	infinitamente	maior	de	coisas,	ela	não	me	parece,	en-
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tretanto,	maior,	se	eu	a	considero	formalmente	e	precisamente	
nela	mesma.	Pois	ela	consiste	tão	somente	no	fato	de	que	po-
demos	fazer	algo,	ou	não	(isto	é,	afirmar	ou	negar,	perseguir	ou	
fugir)	ou,	antes,	apenas	afirmar	ou	negar,	perseguir	ou	fugir	das	
coisas	que	o	entendimento	nos	propõe,	sem	sentir	que	alguma	
força	exterior	nos	obrigue	(DESCARTES	in	ROUX-LANIER,	1995,	
p.	225,	tradução	nossa).
A questão da vontade e do entendimento: o erro
Vimos,	no	texto	anteriormente	citado,	que	a	vontade	hu-
mana	é	concebida	por	Descartes	como	sendo	análoga	à	vontade	
divina.	Descartes	afirma,	nesse	texto,	a	"infinitude"	da	vontade	
humana	quando	diz	que,	embora	a	vontade	divina	seja	"incom-
paravelmente	mais	firme	e	mais	eficaz"	do	que	a	vontade	huma-
na,	quando	considerada	em	si	mesma,	em	sua	forma,	a	vontade	
divina	"não	me	parece	maior".	Isso	significa	que	a	nossa	vontade	
é	ilimitada	como	a	vontade	divina.
Mas,	e	o	entendimento?
Em	 sua	 terceira	 máxima,	 como	 vimos,	 Descartes	 afirma	
que	o	mundo	é	regido	por	leis	imutáveis,	acima	de	nosso	alcan-
ce.	Portanto,	nosso	entendimento	é	limitado.
Desse	confronto	entre	uma	vontade	ilimitada	e	um	enten-
dimento	limitado	surgiria	a	possibilidade	de	errar.	Erramos,	não	
porque	 nossas	 ideias	 sejam	 falsas:	 o	 erro	 não	 estaria	 na	 ideia	
ou	 na	 pura	 representação	 do	 objeto,	mas	 no	 julgamento	 pelo	
qual	 afirmamos	ou	negamos	que	o	objeto	 seja	 isso	ou	aquilo.	
E	a	vontade	é	justamente	essa	capacidade	de	afirmar	ou	negar	
algo.	Como	a	vontade	é	ilimitada	e	o	entendimento,	limitado,	o	
ser	humano	é	capaz	de	não	apenas	julgar	sobre	o	que	ele	pode	
reconhecer	com	certeza,	mas	também	aceitar	como	válido	um	
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conhecimento	duvidoso,	podendo,	dessa	maneira,	cair	no	erro.	
O	erro	decorre	de	um	ato	de	nossa	 vontade	quando	esta	não	
é	mantida	nos	 limites	do	entendimento.	O	poder	de	dizer	 sim	
ou	não	é	infinito	e	nos	permite	pronunciar	mesmo	quando	não	
temos	clareza	de	entendimento.	Portanto,	o	conhecimento	deve	
sempre	preceder	à	determinação	da	vontade,	se	não	quisermos	
errar.
No que concerne à conduta moral, nem sempre há certezas ab-
solutas, e sim apenas probabilidades
Embora	toda	conduta	correta	e	verdadeiramente	livre	con-
sista	em	se	basear	em	conhecimentos	claros	e	evidentes,	deve-
mos,	na	ausência	de	maiores	conhecimentos,	seguir	as	condutas	
mais	equilibradas,	sensatas	e	de	maior	probabilidade	de	acerto,	
porque	nem	sempre	 temos	o	 tempo	necessário	para	 chegar	 a	
conhecimentos	claros	a	respeito	de	uma	situação.	É	o	que	afirma	
o	filósofo,	como	vimos	em	sua	primeira	e	segunda	máximas.
Há,	segundo	Descartes,	que	"ir	alcançando	gradualmente	
conhecimentos	firmes	sobre	a	correta	natureza	das	coisas",	re-
construindo	opiniões	de	acordo	com	esses	conhecimentos,	por	
meio	da	vivência	com	os	outros.
E,	como	esperava	chegar	melhor	ao	cabo	dessa	tarefa	conver-
sando	com	os	homens	do	que	prosseguindo	por	mais	 tempo	
encerrado	no	quarto	aquecido,	onde	me	haviam	ocorrido	esses	
pensamentos,	recomecei	a	viajar	quando	o	inverno	ainda	não	
acabara.	E,	em	todos	os	nove	anos	seguintes,	não	fiz	outra	coisa	
senão	 rolar	pelo	mundo,	daqui	para	ali,	 procurando	 ser	mais	
espectador	do	que	ator	em	todas	as	comédias	que	nele	se	re-
presentam;	e,	efetuando	particular	reflexão,	em	cada	matéria,	
sobre	o	que	podia	torná-la	suspeita	e	dar	ocasião	de	nos	equi-
vocarmos,	 desenraizava,	 entrementes,	 do	meu	 espírito	 todos	
os	erros	que	até	então	nele	se	houvessem	insinuado.	Não	que	
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imitasse,	para	 tanto,	os	céticos,	que	duvidam	apenas	por	du-
vidar	e	afetam	ser	sempre	irresolutos:	pois,	ao	contrário,	todo	
o	meu	intuito	tendia	tão-somente	a	me	certificar	e	remover	a	
terra	movediça	e	 a	 areia,	 para	encontrar	 a	 rocha	ou	a	 argila.	
O	que	consegui	muito	bem,	parece-me,	 tanto	mais	que,	pro-
curando	descobrir	 a	 falsidade	ou	a	 incerteza	das	proposições	
que	examinava,	não	por	fracas	conjeturas,	mas	por	raciocínios	
claros	e	seguros,	não	me	deparava	com	quaisquer	tão	duvidosa	
que	delas	não	tirasse	sempre	alguma	conclusão	bastante	certa,	
quando	mais	não	fosse	a	de	que	não	continha	nada	de	certo.	
E,	como,	ao	demolir	uma	velha	casa,	reservam-se	comumente	
os	 escombros	para	 servir	 à	 construção	de	outra	nova,	 assim,	
ao	destruir	todas	as	minhas	opiniões	que	julgava	mal	fundadas,	
fazia	diversas	observações	e	adquiria	muitas	experiências,	que	
me	serviram	depois	para	estabelecer	outras	mais	certas	(DES-
CARTES	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	225,	tradução	nossa).
A liberdade está fundada no conhecimento, e não na vontade: 
a liberdade não é uma escolha aleatória e indiferente, não de-
pende da vontade, pois esta é indiferente, mas se funda em 
conhecimentos claros e evidentes
A	indiferença	é	o	mais	baixo	grau	de	liberdade,	é	a	carên-
cia	de	conhecimento.	Se	tivéssemos	sempre	um	conhecimento	
claro	daquilo	 que	 julgamos,	 seríamos	 completamente	 livres.	A	
vontade	é	livre	quando	não	há	limite	externo,	ou	seja,	quando	
está	sujeita	a	uma	determinação	interior	ou	quando	se	sente	in-
clinada	por	um	conhecimento	certo	e	distinto	ou,	ainda,	por	uma	
graça	divina.
Pois	para	que	eu	seja	livre,	não	é	necessário	que	eu	seja	indi-
ferente	a	escolher	umou	outro	de	dois	contrários;	mas	quanto	
mais	tendo	para	um,	seja	porque	conheço	de	maneira	evidente	
que	nele	se	encontram	o	bem	e	o	verdadeiro,	seja	porque	Deus	
assim	dispõe	o	 interior	de	meu	pensamento,	mais	 livremente	
faço	a	escolha	e	a	assumo.	E,	 certamente,	a	 graça	divina	e	o	
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UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
conhecimento	 natural,	 longe	 de	 diminuir	 minha	 liberdade,	 a	
aumentam	e	a	fortificam.	De	maneira	que	esta	indiferença	que	
sinto,	quando	não	tendo	nem	para	um	lado	nem	para	o	outro,	
por	 força	de	alguma	razão,	é	o	grau	mais	baixo	de	 liberdade,	
assemelhando-se	mais	a	um	defeito	do	conhecimento	do	que	a	
uma	perfeição	da	vontade;	pois	se	conheço	sempre	claramente	
o	que	é	verdadeiro	e	o	que	é	bom,	jamais	teria	dificuldade	em	
deliberar	qual	julgamento	e	qual	escolha	deveria	fazer;	e	assim	
eu	seria	inteiramente	livre	sem	jamais	ser	indiferente	(DESCAR-
TES	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	225,	tradução	nossa).
A Alma: todo conhecimento se fundamenta na identidade 
"una" da alma
A	alma	é	uma	"substância	pensante"	(do	latim	res cogitans).	
A	 substância	da	alma	é	o	pensamento,	 somos	uma	 substância	
cuja	essência	e	natureza	consiste	em	pensar.	Deve	ser	atribuído	
a	nossa	alma	tudo	o	que	existe	em	nós	e	que	não	concebemos	
como	passível	de	pertencer	a	um	corpo,	como	os	pensamentos.
A alma é "una", não extensa, indissolúvel e simples
É	o	que	diz	Descartes	na	obra	Regras para a orientação do 
espírito (Regra	1):
Os	homens	têm	o	hábito,	cada	vez	que	descobrem	uma	seme-
lhança	entre	duas	coisas,	de	atribuir	tanto	a	uma	quanto	à	ou-
tra,	mesmo	naquilo	que	as	distingue,	o	que	reconheceram	como	
sendo	verdadeiro	em	uma	delas.	Assim,	fazendo	uma	compara-
ção	falsa	entre	ciências,	que	se	encontram	inteiramente	no	co-
nhecimento	que	tem	o	espírito,	e	as	artes,	que	requerem	certo	
exercício	e	certa	disposição	do	corpo,	e	vendo,	por	outro	 lado,	
que	todas	as	artes	não	poderiam	ser	aprendidas	ao	mesmo	tem-
po	pelo	mesmo	homem,	mas	que	aquele	que	cultiva	uma	única	
arte	 torna-se	mais	 facilmente	 um	 excelente	 artista,	 porque	 as	
mesmas	mãos	não	podem	cultivar,	ao	mesmo	tempo,	os	campos	
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e	tocar	citara,	ou	cultivar	várias	artes	diferentes	tão	facilmente	
quanto	uma	só,	acreditaram	que	o	mesmo	se	passaria	também	
com	as	ciências	e	as	distinguiram	umas	das	outras	de	acordo	com	
a	diversidade	de	seus	objetos,	pensaram	que	se	fazia	necessário	
cultivar	cada	uma	à	parte,	sem	se	ocupar	de	todas	as	outras.	E,	
nisto,	se	enganaram.	Pois,	tendo	em	vista	que	todas	as	ciências	
não	são	outra	coisa	que	sabedoria	humana,	que	permanece	una	
e	 sempre	a	mesma,	por	mais	diferentes	que	 sejam	os	objetos	
aos	quais	ela	se	aplique,	e	que	não	é	modificada	pela	mudança	
de	seus	objetos	mais	do	que	a	luz	do	sol	o	é	pela	variedade	das	
coisas	que	ela	ilumina,	não	há	necessidade	de	impor	limites	ao	
espírito:	o	 conhecimento	de	uma	verdade	não	nos	 impede	de	
descobrir	outra,	 como	o	exercício	de	uma	arte	nos	 impede	de	
aprender	outra	arte,	mas,	pelo	contrário,	nos	ajuda	(DESCARTES	
in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	219-220,	tradução	nossa).
A união da alma e do corpo
A	união	da	alma	e	do	corpo	resultaria,	segundo	Descartes,	
de	um	ato	de	vontade	de	Deus	e	foge	a	uma	compreensão	clara	
e	evidente.	Embora	possamos	conhecer	separadamente	a	alma	
e	o	corpo,	da	união	entre	eles	só	existem,	diz	o	filósofo,	 ideias	
confusas.	Quando	sentimos	dor,	 fome,	sede,	por	exemplo,	não	
percebemos	essa	dor,	fome	e	sede	pelo	entendimento,	de	fora	
para	dentro,	mas	via	sentimentos	que	são	modos	de	pensar	con-
fusos,	porque	procedem	e	dependem	de	uma	interação	de	mo-
vimentos	entre	a	alma	e	o	corpo.
Diferentemente	de	Aristóteles,	Descartes	concebe	a	alma	e	
o	corpo	como	duas	substâncias	de	natureza	diferente:	uma	é	não	
extensa	(a	alma)	a	outra	é	extensa	(o	corpo).	Portanto,	a	união	
da	alma	e	do	corpo,	que	em	Aristóteles	era	essencial,	passa	a	
não	ser	essencial	em	Descartes.	São	distintas,	pois,	de	um	lado,	
tenho	uma	ideia	clara	de	mim	mesmo	como	uma	coisa	pensante	
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e	não	extensa	e,	de	outro,	tenho	uma	ideia	também	clara	de	que	
sou	um	corpo,	uma	coisa	extensa	que	não	pensa.	Meu	eu,	isto	é,	
minha	alma,	pela	qual	eu	sou	o	que	sou,	é	inteiramente	distinta	
de	meu	corpo,	podendo	existir	sem	ele.
Os	pensamentos	são	atribuídos	pelo	filósofo	à	alma;	o	mo-
vimento	e	o	calor,	na	medida	em	que	não	dependem	do	pensa-
mento,	são	atribuídos	ao	corpo.	O	corpo	é	concebido	como	uma	
máquina	que	obedece	às	leis	da	natureza.	Todos	os	movimentos	
que	fazemos	que	não	dependam	de	nossa	vontade,	como	andar,	
respirar,	comer,	enfim,	todas	as	ações	que	são	comuns	a	nós	e	
aos	animais	dependem	da	conformação	de	nossos	membros	e	
do	que	chamou	de	"espíritos	animais",	entendendo	por	isso	as	
partes	mais	sutis	e	voláteis	do	sangue	(os	circuitos	elétricos	de	
hoje,	talvez),	seguindo	para	o	cérebro	via	nervos	e	músculos,	tal	
como	o	movimento	de	um	relógio,	movimento	esse	produzido	
exclusivamente	pela	força	da	mola	do	relógio	e	da	forma	de	suas	
rodas.
A	união	da	alma	e	do	corpo	é	de	tal	maneira	íntima,	que	
a	ação	de	um	é	sempre	referente	ao-	outro,	porém	não	consiste	
em	uma	ação	"direta",	porque	a	alma	e	o	 corpo	permanecem	
duas	substâncias	completas	e	opostas.	O	corpo	humano,	afeta-
do	pelos	eventos	externos,	faz	com	que	a	alma	sinta,	perceba.	
Assim,	as	percepções,	os	conhecimentos	em	nós	não	são	feitos	
pela	alma;	são	recebidos	das	coisas	e	representados	pela	alma,	
por	meio	de	suas	ideias.
Descartes	dá	um	exemplo,	que	se	tornou	célebre.	Em	Me-
ditações (Meditação	2),	diz:
Tomemos	como	exemplo	este	pedaço	de	cera	que	acaba	de	ser	
retirado	da	colmeia:	ele	ainda	não	perdeu	a	doçura	do	mel	que	
continha,	continua	a	apresentar	o	odor	das	flores	das	quais	foi	
recolhido;	 sua	 cor,	 sua	 figura,	 seu	 tamanho	 são	 aparentes;	 é	
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duro,	frio,	pode	ser	tocado	e	se	nele	batermos	emitirá	um	som.	
Enfim,	tudo	que	nos	permite	constatar	a	existência	de	um	corpo	
nele	se	encontra.
Mas,	eis	que,	enquanto	 falo,	aproximo-o	do	 fogo:	o	que	nele	
restava	de	 sabor	 se	exala,	o	odor	desaparece,	 sua	 cor	muda,	
ele	esquenta,	mal	posso	tocá-lo	e,	embora	nele	bata,	não	emi-
tirá	mais	nenhum	som.	Trata-se	da	mesma	cera,	após	essa	mu-
dança?	É	preciso	admitir	que	permanece	o	mesmo	pedaço	de	
cera,	ninguém	pode	negar.	O	que,	então,	neste	pedaço	de	cera	
é	conhecido	como	tal?	Certamente	nada	do	que	foi	constatado	
pelos	 sentidos,	 uma	 vez	que	 tudo	 aquilo	 que	 veio	pelo	pala-
dar,	pelo	olfato,	pela	vista,	pelo	tato	ou	pelo	ouvido	se	encontra	
modificado	e,	no	entanto,	a	cera	permanece	a	mesma.	Talvez,	
penso	agora,	a	cera	não	era	nem	essa	doçura	do	mel,	nem	esse	
agradável	odor	das	flores,	nem	essa	brancura,	nem	essa	figura,	
nem	esse	som,	mas	somente	um	corpo	que	um	pouco	antes	me	
era	dado	sob	essas	formas	e	que	agora	se	apresenta	sob	outras	
formas.	Mas,	 o	 que	 exatamente	 imagino,	 quando	 a	 concebo	
dessa	maneira?	Consideremos	a	cera	atentamente,	afastando	
tudo	o	que	não	lhe	pertence,	e	vejamos	o	que	resta.	O	que	é	
certo	é	que	não	 resta	 senão	algo	extenso,	 flexível	e	mutável.	
Ora,	o	que	é	 isto:	 flexível	e	mutável?	Não	seria	o	fato	de	que	
imagino	que	esta	cera,	sendo	redonda,	pode	vir	a	ser	quadrada	
e	passar	de	quadrada	a	uma	figura	triangular?	Não,	certamen-
te,	não	seria	isso,	pois	a	concebo	capaz	de	receber	uma	infinida-
de	de	semelhantes	mudanças,	mas	não	seria,	entretanto,	capaz	
de	percorrer	essa	infinidade	de	mudanças	com	a	minha	imagi-
nação,	o	que	me	faz	concluir	que	essa	concepção	que	tenho	da	
cera	não	se	dá	por	meio	da	faculdade	de	imaginar	(DESCARTES	
in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	223-224,	tradução	nossa).
A	afirmação	da	permanência	da	cera	nas	diferentes	modifi-
cações	percebidas	não	resultaria	nem	da	imaginação,	pois	somos	
incapazes	de	percorrer	com	a	imaginação	a	infinidade	de	mudan-
çaspassíveis	de	serem	recebidas	pela	cera,	e	nem	da	percepção,	
uma	vez	que	toda	percepção	é	contemporânea	do	que	percebe	
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(cada	modificação	da	cera	é	objeto	de	uma	percepção)	e	a	todo	
instante	 ultrapassamos	 cada	 percepção	 de	 uma	 modificação,	
afirmando	 a	 permanência	 da	 cera.	A	 afirmação	da	permanên-
cia	da	cera	nas	diferentes	modificações	recebidas	resultaria	das	
representações	 pela	 alma	 dessas	modificações	mediante	 uma	
ideia,	a	de	extensão.
Em	outras	palavras,	todo	corpo	é	conhecido	como	corpo,	
(aquilo	que	permanece	a	despeito	de	modificações	e	variações),	
por	meio	de	uma	ideia	ou	julgamento:	a	ideia	de	extensão,	ideia	
essa	de	um	sujeito	conhecedor,	a	alma.	Só	a	ideia	de	extensão	
torna	possível	a	representação	de	um	corpo	como	tal.	Em	outras	
palavras,	o	que	temos	é	a	representação	de	um	corpo,	graças	a	
uma	ideia,	a	ideia	de	extensão	e	esta,	como	já	foi	dito,	é	produto	
da	alma.
Ações e paixões
Quando	a	alma	busca	imaginar	o	que	não	existe	ou	conce-
be	algo	puramente	inteligível,	estaríamos	diante	de	"ações",	ou	
seja,	de	percepções	dependentes	principalmente	da	vontade.	As	
"paixões",	diferentemente,	se	situariam	no	domínio	da	união	da	
alma	e	do	corpo.
As paixões
Os	eventos	externos	causam	na	alma	as	paixões,	que	são,	
assim,	a	mediação	entre	as	duas	substâncias:	corpo	e	alma,	res-
ponsáveis	pela	comunicação	entre	elas.	Paixões	seriam,	portan-
to,	percepções,	sentimentos	ou	emoções	que	vêm	à	alma	pelos	
nervos	(podem	também	vir,	segundo	Descartes,	do	movimento	
dos	"espíritos	animais").	As	que	são	vinculadas	a	objetos	exterio-
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res	se	referem	ao	conhecimento	das	coisas	exteriores	que	afe-
tam	nossos	sentidos,	fazendo	com	que	a	alma	os	sinta.	As	que	
são	vinculadas	ao	corpo,	como	a	fome,	a	sede,	a	dor	etc.,	senti-
mos	em	nossos	próprios	membros	e	não	em	corpos	externos.	Há	
ainda	um	terceiro	tipo	de	percepções,	sentimentos	e	emoções	
que	vinculamos	à	própria	alma,	como	alegria,	tristeza,	cólera	etc.
As paixões, segundo Descartes, são inseparáveis das ações que 
as provocam; assim, o seu estudo também é inseparável do 
estudo do corpo que é o agente dessas ações
Descartes	elege	a	glândula	pineal	(situada	entre	os	olhos)	
como	a	sede	da	alma,	por	ser	a	única	parte	do	corpo	conhecida	
na	época	que	não	seria	dupla.	Os	olhos	são	duplos,	os	ouvidos	
são	duplos,	mas	o	pensamento	não	é;	por	isso,	a	glândula	pineal	
seria	a	sede	do	pensamento	ou	da	alma.	Essa	glândula	é	cercada	
de	pequenas	ramificações	das	carótidas	(as	principais	artérias	do	
pescoço),	que	trariam	os	"espíritos	animais"	ao	cérebro.
O	poder	da	vontade,	ilimitado	quanto	à	própria	capacidade	
de	 querer,	 não	 seria	 ilimitado	 com	 relação	 ao	 corpo	 e	 às	
percepções	da	alma,	porque	a	natureza	estabelece	uma	ligação	
entre	 cada	 vontade	 e	 o	movimento	 da	 glândula	 com	 base	 na	
conservação	 da	 união,	 não	 no	 arbítrio.	 Um	 exemplo	 é	 o	 fato	
de	 que,	 se	 quisermos	 ver	 algo	 de	 perto,	 haverá	 uma	 redução	
da	pupila,	porém,	se	simplesmente	quisermos	reduzi-la	só	por	
querer,	a	redução	não	se	dará.
As seis paixões primitivas
Descartes,	na	 segunda	parte	de	 seu	Tratado das Paixões 
da Alma,	 enumera,	 segundo	o	efeito	dos	objetos	em	nós,	 seis	
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UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
paixões	que	considera	como	primitivas:	admiração,	amor,	ódio,	
alegria	e	tristeza.
•	 A admiração:	 constitui-se	 de	 uma	 súbita	 surpresa	 da	
alma.	É	causada	pela	impressão	que	se	tem	no	cérebro	
representando	 o	 objeto	 como	 raro	 e	 extraordinário.	
Ocorre	 antes	 de	 sabermos	 se	 o	 objeto	 é	 conveniente	
ou	não.	É	a	primeira	paixão,	pois,	sem	uma	admiração	
inicial,	isto	é,	sem	um	contemplar	com	surpresa	e	como-
ção,	não	seria	possível	surgirem	paixões.	A	admiração	é	
positiva	quando	nos	leva	à	aquisição	de	conhecimento;	
pode,	porém,	 ser	nociva	quando	em	excesso,	 como	o	
"espanto".	No	espanto,	percebemos	apenas	a	primeira	
face	apresentada	pelo	objeto,	o	que	nos	impede	de	ad-
quirir	 conhecimentos	mais	 profundos.	 Por	 essa	 razão,	
seria	aconselhável,	segundo	Descartes,	nos	exercitar	na	
consideração	das	coisas	que	nos	parecem	estranhas.
•	 O amor e o ódio:	 tais	 paixões	 envolveriam	o	 "unir-se	
ou	 separar-se	 voluntariamente".	 No	 amor,	 unimo-nos	
ao	que	amamos,	como	um	todo	do	qual	seríamos	uma	
parte	e	a	coisa	amada	seria	a	outra	parte.	No	ódio,	dá-
-se	o	contrário,	nos	consideramos	um	todo	totalmente	
separado	da	coisa	que	repudiamos.
•	 	Desejo:	 essa	 paixão	 se	 manifesta	 quando	 desejamos	
que	se	apresentem	em	nosso	 futuro	aquilo	que	nos	é	
conveniente	e	que	não	o	temos,	como	aquilo	que	nos	é	
conveniente	e	temos	no	presente.	Além	disso,	essa	pai-
xão	 também	se	manifesta	quando	desejamos	que	um	
mal	atualmente	existente	não	venha	a	continuar,	como	
algum	mal	eventual	que	possa	vir	a	ocorrer	no	futuro.
98 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
•	 A alegria e a tristeza:	 a	alegria	é	o	gozo	do	bem	pre-
sente;	a	tristeza	é	o	sentimento	de	algo	incômodo	que	
buscamos	repelir.
Todas	essas	paixões	servem,	segundo	Descartes,	à	conser-
vação	e	ao	aperfeiçoamento	do	corpo.	A	alma	só	é	advertida	das	
coisas	que	a	prejudicam	pelo	sentimento	da	dor	que	inicialmen-
te	 a	 entristece,	 em	 seguida	 a	 faz	 odiar	 e,	 finalmente,	 leva-a	 a	
desejar	se	livrar	daquele	mal,	repelindo	o	que	a	pode	destruir.
Assim,	 para	 Descartes,	 todas	 as	 paixões	 são	 boas	 em	 si	
mesmas.	No	entanto,	é	preciso	e	é	possível	regulamentá-las	para	
não	pervertê-las.	 Como	 foram	 instituídas	pela	natureza,	 faz-se	
necessário	conhecer	as	leis	dessa	instituição	para	poder	agir	so-
bre	elas.	Busca,	portanto,	explorar	racionalmente	este	obscuro	
campo	da	união	que	são	as	paixões.
As paixões e a vida moral
Segundo	Descartes,	a	vida	moral	se	situa	na	união	da	alma	
e	do	corpo,	pois	é	por	causa	dessa	união	que	a	avaliação	do	que	
é	ou	não	bom	é	perturbada	pelas	paixões.	As	paixões	são	moral-
mente	relevantes	porque	influenciam	nossas	ações	por	meio	do	
desejo,	pelo	qual	regulam	nossos	costumes.	A	função	da	moral	
seria	 regrar	 e	 controlar	o	desejo.	 Portanto,	 a	moral	 cartesiana	
se	 fundamenta	no	melhor	conhecimento	possível	e	no	correto	
manejo	das	paixões	ou	controle	do	"desejo".
As	paixões	dispõem	a	alma	a	querer	as	coisas	para	as	quais	
preparam	 o	 corpo.	 A	 vida	 moral	 colocará	 em	 questão	 certas	
ações	assim	corroboradas	pelas	paixões,	exigindo	um	redirecio-
namento	destas	pela	razão.	E,	para	tanto,	é	preciso	distinguir	as	
coisas	que	dependem	inteiramente	de	nós	daquelas	que	não	de-
99© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
pendem.	Portanto,	segundo	o	filósofo,	é	preciso	rejeitar	a	afir-
mação	comum	de	que	existe	fora	de	nós	uma	espécie	de	sorte	
que	faz	com	que	as	coisas	venham	ou	não	a	nós	a	seu	bel	prazer.	
Tudo	é	conduzido	pela	providência	divina	e	nada	acontece	que	
não	seja	necessário.	Desejar	que	acontecesse	de	outra	forma	é	
cometer	um	erro.	É	necessário,	pois,	limitar	o	campo	do	possível,	
regulando	o	desejo	pelo	conhecimento	verdadeiro	não	do	bem	
em	geral,	mas	do	bem	que	depende	de	nós.	É	o	que	vimos	em	
essência	na	terceira	máxima	da	moral	provisória.
Ainda	segundo	Descartes,	a	alma	pode	dominar	as	paixões	
menores,	 desviando	o	 corpo	para	 outros	 objetos.	Nas	 paixões	
muito	 violentas,	 não	 há	 como	 superá-las,	 porém	pode-se	 sus-
pender	os	movimentos	a	que	elas	dispõem	o	corpo,	por	exem-
plo:	não	consigo	deixar	de	sentir	medo,	mas,	posso	conter-me	e	
não	correr.
O conceito de "virtude"
Por	 "virtude"	entende	o	 filósofo	o	hábito	da	alma	que	a	
orienta	 para	 determinados	 pensamentos,	 pensamentos	 esses	
gerados	pela	alma	e	muitas	vezes	fortalecidos	por	movimentos	
dos	"espíritos",	o	que	faz	com	que	sejam,	ao	mesmo	tempo,	"vir-
tudes"	e	"paixões".	Trata-se	da	firme	resolução	de	não	nos	des-
viarmos,	pelo	desejo,	em	direção	ao	que	não	depende	de	nós.As	almas	fortes	são	virtuosas,	têm	poder	sobre	as	paixões	
com	armas	próprias,	ou	seja,	com	"juízos	firmes	e	determinados	
sobre	o	conhecimento	do	bem	e	do	mal",	à	luz	dos	quais	decidiu	
conduzir	suas	ações.
A	ação	moral,	para	Descartes,	não	deve	estar	fundada	ape-
nas	 no	 conhecimento	 possível,	mas,	 também,	 no	 correto	 con-
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trole	das	paixões,	pois	são	elas	que,	pelo	"desejo",	comandam	a	
passagem	do	pensamento	à	ação	e	esse	comando,	quando	vol-
tado	para	o	possível,	dando-se	à	luz	do	livre-arbítrio,	é	a	própria	
"virtude",	operando	por	meio	da	"generosidade".
Na	 terceira	 parte	 do	 Tratado sobre as Paixões da Alma,	
Descartes	apresenta	as	paixões	derivadas	das	primitivas.	Dentre	
essas	paixões,	destaca-se	a	da	"generosidade".
Virtude e hábito: a "generosidade"
A	 generosidade	 é	 o	 hábito	 que	 leva	 a	 alma	 a	 pensar	 no	
sentido	e	na	grandiosidade	do	"livre-arbítrio,	gerando	a	firme	re-
solução	de	usá-lo	corretamente".
O	homem	cartesiano	é	o	homem	generoso,	que	 valoriza	
a	sua	liberdade,	que	soube	descobrir	em	si	o	poder	de	duvidar,	
que	assume	a	responsabilidade	pelos	seus	erros,	que	sabe	agir	
diante	da	obscuridade	da	vida	(ROUX-LANIER,	1995,	p.	218).
Podemos	desenvolver,	segundo	Descartes,	as	virtudes.	Se-
riam	as	próprias	paixões,	segundo	o	filósofo,	que	indicariam	de	
si	mesmas	a	maneira	segundo	a	qual	podemos	agir	sobre	elas.
Diz	ele:
Nossas	paixões	[...]	não	podem	ser	provocadas	nem	eliminadas	
por	nossa	vontade,	mas	podem	ser	indiretamente,	pela	repre-
sentação	das	coisas	que	habitualmente	costumam	se	associar	
às	paixões	que	queremos	ter	e	que	são	contrárias	às	que	que-
remos	rejeitar	(DESCARTES	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	228,	tra-
dução	nossa).
Assim,	 embora	 não	 possamos	 combater	 diretamente	 as	
paixões,	é	possível	fazê-lo	indiretamente,	criando	hábitos	basea-
dos	nas	 ideias	contrárias	a	determinadas	paixões.	Poderíamos,	
101© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
por	exemplo,	desenvolver	a	generosidade,	buscando	o	que	ha-
bitualmente	 costuma	 representá-la,	 como	 a	 sabedoria	 de	 que	
todo	 louvor	ou	 recriminação	se	 refere	unicamente	ao	uso	que	
fazemos	do	bem	e	do	mal	e	o	fato	de,	sentindo-nos	capazes	de	
ações	virtuosas,	acreditarmos	que,	assim	como	nós,	todos	os	ou-
tros	também	são	capazes,	pois	isso	não	depende	de	circunstân-
cias	alheias,	mas	somente	da	boa	vontade.	É	o	que	diz	Descartes:
Assim,	creio	que	a	verdadeira	generosidade,	que	faz	com	que	
um	homem	se	estime	no	mais	alto	grau	possível	de	se	estimar	
de	maneira	legítima,	consiste	simplesmente:	em	parte	no	fato	
de	saber	que	nada	verdadeiramente	lhe	pertence	a	não	ser	essa	
livre	disposição	de	suas	vontades,	que	não	existe	outra	 razão	
para	ser	louvado	ou	recriminado	a	não	ser	pelo	uso	que	faz	do	
bem	ou	do	mal,	e,	em	parte,	no	fato	de	sentir,	em	si	mesmo,	um	
poder	de	decisão,	firme	e	constante,	de	fazer	bom	uso	de	suas	
capacidades,	isto	é,	de	nunca	falhar	na	vontade	de	empreender	
e	executar	todas	as	coisas	que	julgar	serem	as	melhores;	isto	é	
seguir	perfeitamente	a	virtude.
Aqueles	que	têm	esse	conhecimento	e	sentimento	de	si	mes-
mos	 são	 facilmente	 convencidos	 de	 que	 todos	 os	 outros	 ho-
mens	os	têm	igualmente,	porque	não	há	nada	em	tal	situação	
que	dependa	do	outro.	É,	por	 isso,	que	 jamais	desprezam	al-
guém,	e	que,	embora	vejam	frequentemente	os	outros	come-
terem	erros	que	revelam	a	sua	fraqueza,	tendem,	entretanto,	
a	 desculpá-los	 em	 vez	 de	 recriminá-los,	 e	 a	 acreditar	 que	 é	
mais	 por	 desconhecimento	 do	 que	 por	 falta	 de	 vontade	 que	
cometem	tais	faltas;	e,	como	não	pensam	serem	inferiores	aos	
que	possuem	mais	bens	ou	honras,	ou	têm	mais	espírito,	mais	
saber,	mais	beleza,	ou	os	superam	em	algumas	outras	perfei-
ções,	 não	 se	 consideram,	da	mesma	maneira,	 superiores	 aos	
que	ultrapassam,	porque	 todas	essas	 coisas	 lhes	parecem	de	
pouco	valor,	em	comparação	com	o	fato	de	se	ter	boa	vontade,	
única	qualidade	que	possui,	para	eles,	valor,	qualidade	que	su-
põem	também	existir	ou,	pelo	menos,	poder	existir,	em	todos	
os	homens	(DESCARTES	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	228,	tradução	
nossa).
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UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
Considerações finais
Dentro	 da	 orientação	 básica	 do	 presente	 estudo,	 distin-
guindo	 essencialmente	 o	 ético	 do	 moral,	 gostaríamos	 de	 en-
fatizar,	 nestas	 considerações	 finais,	 as	 dificuldades	 do	 filósofo	
francês	em	abarcar	a	questão	da	consciência	moral	em	sua	tota-
lidade,	mediante	o	método	por	ele	proposto.
De	fato,	encontramos,	em	Descartes,	os	pilares	da	consti-
tuição	do	que	entendemos	por	"moral".	São	estes	pilares:	a	no-
ção	de	uma	razão	generalizante	cuja	meta	é	o	individual	e	o	geral	
(as	máximas),	os	hábitos	ou	costumes	e	a	noção	de	"bom	senso".	
Inspirado,	segundo	alguns,	sobretudo	em	Aristóteles,	concebe	a	
criação	do	hábito,	como	vimos,	como	uma	das	realidades	funda-
mentais	no	que	concerne	à	conduta	moral.
Porém,	 embora	 configurando	 uma	 moral	 racional,	 não	
chega	Descartes	a	uma	moral	científica.	Começa	por	distinguir	
pensamento	da	ação:	podemos	pensar	de	uma	maneira	e	agir	
de	outra.	É	na	ação,	porém,	que	residiria	a	dimensão	moral	da	
conduta.	Em	contrapartida,	podemos	ser	virtuosos	mesmo	não	
possuindo	um	conhecimento	claro	e	distinto,	pois	os	juízos	mo-
rais	 podem	não	 ser	 absolutamente	 certos,	 embora	 devam	 ser	
os	melhores	possíveis.	A	virtude,	base	de	toda	conduta	moral,	
consistiria	no	esforço	para	compreender	o	melhor	possível	e,	de	
acordo	com	isso,	agir	o	melhor	possível.
Reconhece,	 portanto,	Descartes	 as	 dificuldades	 em	esta-
belecer	uma	moral	definitiva	fundada	na	verdade	e	na	ciência.	
As	decisões	morais,	segundo	ele,	estão	baseadas	em	ideias	con-
fusas,	uma	vez	que	a	união	da	alma	e	do	corpo	foge	às	nossas	
possibilidades	de	conhecimento.	O	conhecimento	da	consciên-
cia	moral	é	obscuro,	embora	acredite	o	filósofo	que	seja	possí-
103© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
vel	melhorar	esse	conhecimento	gradualmente,	estimulando	o	
entendimento.
Trabalharemos,	a	seguir,	o	cartesiano	Spinoza,	que	irá	to-
mar,	diante	das	dificuldades	presentes	no	pensamento	de	Des-
cartes,	sobretudo	no	que	diz	respeito	ao	problema	da	consciência	
moral,	uma	direção	totalmente	nova,	optando	por	considerá-la	
em	sua	dimensão	eminentemente	ética.
Veremos,	 com	Spinoza,	que,	embora	 tudo	pareça	 indicar	
não	ser	possível	a	construção	de	uma	moral	baseada	em	um	co-
nhecimento	exato,	como	é	o	conhecimento	científico,	pode	ser	
possível	pensar	a	consciência	moral	em	sua	dimensão	ética,	via	
um	saber	rigoroso,	que	é	o	saber	"compreensivo",	rigoroso	por-
que	busca	 considerar	 todas	 as	 nuances	 possíveis	 constituintes	
do	objeto,	trabalhado	na	sua	"singularidade".
6. BARUCH SPINOZA (1632-1677)
Consta	que	Spinoza,	como	pessoa,	era	gentil,	apaixonado	
pelo	conhecimento	e	pela	cultura	e	cultivador	de	amizades.	Sa-
be-se	que	foi	perseguido	e	expulso	da	comunidade	judaica,	prin-
cipalmente	por	criticar	o	conceito	judaico	de	Deus.
Dominava	várias	línguas,	inclusive	o	português,	idioma	fa-
lado	correntemente	nas	ruas	de	Amsterdam	na	época,	onde	ha-
via	uma	grande	comunidade	judaica	de	origem	portuguesa.
Grande	 conhecedor	 do	 Velho	 Testamento,	 publicou,	 em	
vida,	 duas	 obras:	 Os princípios da filosofia de Descartes,	 em	
1663,	e	Tractatus Theologico-Politicus,	em	1670,	obra	que	proje-
tou	Spinoza	fora	de	seu	país.
104 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
A	obra	Ética,	de	Spinoza,	da	qual	trataremos	neste	estudo,	
foi	escrita	por	Spinoza	durante	sua	estadia	em	Rijinsburg,	perto	
de	Leyde	(cidade	situada	na	Holanda	do	Sul),	onde	possuía	mui-
tos	amigos.	Foi	editada	após	a	sua	morte.	Sobre	ela,	encontra-
mos	o	seguinte	texto	de	uma	carta	de	Spinoza	escrita	em	1665	
para	Guillaume	de	Blyenberg:
Entendo	 por	 um	 homem	 justo	 aquele	 que	 deseja	 constante-
mente	que	cada	um	possua	o	que	lhe	é	devidoe	demonstro	em	
minha	Ética	(não	ainda	editada)	que	esse	desejo	nos	homens	
piedosos	 tem	 necessariamente	 sua	 origem	 no	 conhecimento	
claro	que	possuem	tanto	de	si	mesmos	quanto	de	Deus	(SPINO-
ZA,	1965,	prefácio,	tradução	nossa).
A escolha da Geometria como linguagem
O	discurso	de	Spinoza,	ao	desenvolver	sua	concepção	de	
Ética,	é	o	da	Geometria.	A	linguagem	geométrica	é	a	linguagem	
do	 "imaginário".	 O	 imaginário	 é	 um	 dado	 da	 reflexão,	 como	
se	 pode	 dizer	 da	 Filosofia	 da	Matemática.	 Foi	 trabalhado	 por	
Gauss,	que	demonstrou	sua	importância	na	fundamentação	da	
Geometria.
Na	 linguagem	 do	 imaginário,	 a	 atenção	 e	 o	 interesse	 se	
concentram	não	mais	na	diversidade	do	efetivamente	dado,	mas	
na	maneira	segundo	a	qual	os	elementos	procedem	uns	dos	ou-
tros	ou	se	relacionam	uns	com	os	outros.	Tal	linguagem	não	se	
fecha	nas	limitações	da	representação,	mas	fixa-se	na	dedução	
dos	princípios	que	regem	o	encadeamento	das	condições	orde-
nadoras	do	que	é	percebido,	de	maneira	que	os	juízos	e	enuncia-
dos	que	decorrem	desse	processo	de	dedução	constituem	pro-
jeções,	em	estado	puro,	das	relações	nas	quais	se	funda	o	que	é	
observado.
105© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
Spinoza	 constrói	 seu	 discurso	 sob	 o	modelo	 da	 Geome-
tria,	mediante	proposições	seguidas	rigorosamente	das	respec-
tivas	 demonstrações,	 explicações,	 axiomas	 etc.	 Deduz,	 assim	
fundamentando,	a	existência	de	Deus	como	substância	única	e	
singular;	a	beatitude	como	terceiro	gênero	de	conhecimento	(o	
conhecimento	 libertador);	 a	 alma,	 o	 corpo;	 o	 segundo	 gênero	
de	 conhecimento,	 que	 se	 dá	 pelas	 ideias	 comuns;	 o	 primeiro	
gênero	 de	 conhecimento,	 constituído	 de	 ideias	 abstratas	 e	 da	
imaginação.
Ética e razão intuitiva
Se	quiséssemos	sintetizar,	em	um	único	princípio,	o	pensa-
mento	de	Spinoza	sobre	a	questão	da	Ética,	talvez	pudéssemos	
fazê-lo	 repetindo	suas	próprias	palavras:	 "O	esforço	para	com-
preender	é	a	primeira	e	única	base	da	virtude".
O	que	é	compreender	segundo	Spinoza?
Compreender	 é	 chegar	 ao	 conhecimento	 libertador,	me-
diante	uma	razão	intuitiva.	É	o	que	denomina	de	"beatitude"	e	
classifica	como	o	terceiro	gênero	de	conhecimento.	Consiste	es-
sencialmente	em	uma	visão	de	toda	existência	como	inseparável	
da	substância	infinita	e	eterna,	Deus.	Em	outras	palavras,	a	bea-
titude	é	um	perceber	a	si	mesmo,	a	tudo	e	a	todos	como	"parte	
integrante	 e	necessária	 da	natureza	de	Deus".	 Essa	percepção	
intuitiva	de	que	somos	partes	integrantes	dessa	substância	única	
e	singular,	que	é	Deus,	é	a	compreensão	de	que	fazemos	parte	da	
essência	de	Deus	e,	como	tal,	somos	uma	extensão	da	potência	
divina.
106 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
Deus é uma substância singular e única
A	substância,	segundo	Spinoza,	não	possui	causa	fora	de	si;	
é	uma	causa	não	causada,	ou	seja,	uma	causa	em	si.	A	substância	
é	em	si	e	é	concebida	por	si,	cujo	conceito	não	é	formado	por	
outro	conceito.
Por	substância	compreendo	aquilo	que	existe	em	si	mesmo	e	
que	por	si	mesmo	é	concebido,	isto	é,	aquilo	cujo	conceito	não	
exige	o	conceito	de	outra	coisa	do	qual	deva	ser	formado	(SPI-
NOZA,	2008,	p.	13).
A	 substância,	portanto,	é	singular	 a	ponto	de	não	poder	
ser	 concebida	por	 outra	 coisa	 que	não	 ela	mesma.	 Como	não	
pode	ser	produzida	por	outra	substância,	não	existe	nada	que	a	
limite,	sendo	ela,	portanto,	infinita.	Trata-se	de	uma	substância	
cuja	essência	é	existir,	pois,	se	pudesse	não	existir,	haveria	uma	
divisão	e	seria,	então,	limitada	por	outra.	Essa	substância	única	e	
absolutamente	infinita	é	Deus	ou	a	Natureza.
Não	há,	pois,	 "criação",	mas	produção	 imanente	de	uma	
única	substância:	Deus	ou	a	Natureza.	Em	outras	palavras,	não	
existe	a	obra	de	um	Deus	transcendente,	separado	do	mundo.
A beatitude ou compreensão libertadora
Essa	compreensão	intuitiva	que	é	a	"Beatitude"	não	é	uma	
experiência	 mística.	 O	 estado	 de	 beatitude	 é	 conseguido	 por	
meio	de	um	esforço	árduo,	contínuo	e	dedicado	ao	exercício	de	
uma	captação	pela	razão	intuitiva,	por	meio	da	qual	vamos	além	
da	percepção	limitada	da	unidade	dos	sentidos	e	das	imagens,	
para	nos	perceber	universais.
Para	Spinoza,	o	mundo	de	Deus	ou	da	Natureza	é	essen-
cialmente	um	mundo	de	rigor	matemático.	Vejamos,	na	quinta	
107© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
parte	da	Ética,	o	discurso	de	Spinoza	sobre	a	beatitude,	inspirado	
nos	princípios	do	discurso	da	Geometria.
Proposição	42.	A	beatitude	não	é	o	prêmio	da	virtude,	mas	a	
própria	virtude;	e	não	a	desfrutamos	porque	refreamos	os	ape-
tites	lúbricos,	mas,	em	vez	disso,	podemos	refrear	os	apetites	
lúbricos	porque	a	desfrutamos.
Demonstração.	A	beatitude	 consiste	no	amor	para	 com	Deus	
(pela	prop.	36,	juntamente	com	seu	esc.),	o	qual	provém,	cer-
tamente,	do	terceiro	gênero	de	conhecimento	(pelo	corol.	da	
prop.	32).	Por	isso,	esse	amor	(pelas	prop.	56	e	3	da	p.	3)	deve	
estar	referido	à	mente,	à	medida	que	esta	age,	e,	portanto	(pela	
def.	8	da	p.	4),	ele	é	a	própria	virtude.	Era	este	o	primeiro	pon-
to.	Por	outro	lado,	quanto	mais	a	mente	desfruta	desse	amor	
divino	ou	dessa	beatitude,	tanto	mais	compreende	(pela	prop.	
32),	isto	é	(pelo	corol.	da	prop.	3),	tanto	maior	é	o	seu	poder	de	
refrear	os	afetos	e	(pela	prop.	38)	tanto	menos	ela	padece	dos	
afetos	 que	 são	maus.	 Assim,	 porque	 a	mente	 desfruta	 desse	
amor	divino	ou	dessa	beatitude,	ela	tem	o	poder	de	refrear	os	
apetites	 lúbricos.	 E	 como	a	potência	 humana	para	 refrear	 os	
afetos	consiste	exclusivamente	no	intelecto,	ninguém	desfruta,	
pois,	 dessa	 beatitude	 porque	 refreou	os	 afetos,	mas,	 em	 vez	
disso,	o	poder	de	refrear	os	apetites	lúbricos	é	que	provém	da	
beatitude.	C.	Q.	D.
Escólio.	[...]	Torna-se,	com	isso,	evidente	o	quanto	vale	o	sábio	e	
o	quanto	ele	é	superior	ao	ignorante,	que	se	deixa	levar	apenas	
pelo	apetite	lúbrico.	Pois	o	ignorante,	além	de	ser	agitado,	de	
muitas	maneiras,	pelas	causas	exteriores,	e	de	nunca	gozar	da	
verdadeira	satisfação	de	ânimo,	vive,	ainda,	quase	inconsciente	
de	si	mesmo,	de	Deus	e	das	coisas,	e	tão	logo	deixa	de	padecer,	
deixa	 também	de	ser.	Por	outro	 lado,	o	sábio,	enquanto	con-
siderado	 como	 tal,	 dificilmente	 tem	o	ânimo	perturbado.	 Em	
vez	disso,	 consciente	de	 si	mesmo,	de	Deus	e	das	 coisas,	em	
virtude	de	uma	certa	necessidade	eterna,	nunca	deixa	de	ser,	
mas	desfruta,	 sempre,	da	 verdadeira	 satisfação	do	ânimo.	 Se	
o	caminho,	conforme	já	demonstrei,	que	conduz	a	isso	parece	
muito	árduo,	ele	pode,	entretanto,	ser	encontrado.	E	deve	ser	
108 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
certamente	árduo	aquilo	que	tão	raramente	se	encontra.	Pois	
se	a	salvação	estivesse	à	disposição	e	pudesse	ser	encontrada	
sem	maior	 esforço,	 como	 explicar	 que	 ela	 seja	 negligenciada	
por	quase	todos?	Mas	tudo	o	que	é	precioso	é	tão	difícil	como	
raro	(SPINOZA,	2008,	p.	411).
Escólio: anotação em geral breve, com a finalidade de explicar, 
esclarecer.
Essa	 busca	 das	 diferentes	 direções	 do	 tema	 considerado	
(no	caso,	a	beatitude)	consiste	essencialmente	em	um	processo	
rigoroso	de	produção	de	novas	possibilidades.	Ao	exercer	esse	
terceiro	 gênero	 de	 conhecimento,	 o	 homem	 constitui-se	 a	 si	
mesmo	a	partir	de	forças	que	vêm	de	dentro	do	próprio	movi-
mento	de	todas	as	coisas	existentes,	à	maneira	de	Deus	ou	da	
Natureza	e	só	nessa	condição	é	livre.
A alma e o corpo
Continuando	 seu	discurso	dedutivo,	 diz	 Spinoza:	 não	 so-
frendo	o	conceito	de	"substância",	em	princípio,	nenhuma	limi-
tação,	compreende	uma	infinidade	de	atributos,	dos	quais	cada	
um,	não	podendo	ser	limitado	senão	por	ele	mesmo,	é	infinito	
em	seu	gênero.	O	atributo	"é	aquilo	que,	da	substância,	o	intelec-
to	percebe	como	constituindo	a	sua	essência"	(SPINOZA,	2008,	
p.	23).	O	entendimento	percebe,	assim,	a	substância	como	ela	é	
na	 realidade	 (Ética,	Primeira	Parte,	Proposição	10,	Demonstra-
ção).	Desses	 atributos,nosso	entendimento,	 segundo	Spinoza,	
só	pode	conhecer	o	"pensamento"	e	a	"extensão".
Em	contrapartida,	da	mesma	maneira	que	as	propriedades	
do	 triângulo	 decorrem	 geometricamente	 de	 sua	 essência,	 dos	
109© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
atributos	da	substância	divina	decorre	uma	infinidade	de	"mo-
dos",	 que	 são,	 segundo	 Spinoza,	modificações	 ou	 afecções	 da	
substância	que	se	apresentam	no	real.
Por	modo	compreendo	as	afecções	de	uma	substância,	ou	seja,	
aquilo	que	existe	em	outra	coisa,	por	meio	da	qual	é	também	
concebido	(SPINOZA,	2008,	p.	13).
Essas	modificações	da	substância	ou	"modos"	são	classifi-
cadas	por	Spinoza	em	cinco	categorias:
1)	 Os	modos	 infinitos	 imediatos	 do	 pensamento	 que	 é	
todo	 o	 entendimento	 absolutamente	 infinito	 (o	 pró-
prio	intelecto	de	Deus).
2)	 Os	modos	infinitos	da	extensão:	que	são	as	leis	univer-
sais	imutáveis.
3)	 Os	 modos	 infinitos	 mediatos	 que	 são	 a	 essência	 do	
mundo	físico.
4)	 Os	modos	 finitos	 do	 pensamento	 que	 são	 as	 ideias,	
mentes,	almas.
5)	 Os	modos	finitos	da	extensão	que	são	todo	o	universo	
material:	corpos,	movimento,	repouso.	
A	alma	humana	e	o	corpo	humano	são,	pois,	dois	"modos"	de	
Deus,	dois	efeitos	da	substância	única	e	infinita	que	é	Deus.	A	alma	
se	refere	ao	atributo	pensamento,	o	corpo	ao	atributo	extensão.	
Não	podemos	formar	a	ideia	da	alma	humana	senão	nos	referindo	
ao	atributo	do	pensamento,	e	a	ideia	do	corpo	humano	senão	nos	
referindo	ao	atributo	da	extensão.	Por	isso,	embora	substanciais	
(porque	se	referem	a	atributos	da	substância),	alma	e	corpo	não	
são	duas	substâncias	distintas	(contrariando	aqui	Descartes).
110 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
A união da alma e do corpo
A	união	da	alma	e	do	corpo	não	consistiria	nem	em	uma	
mistura,	nem	em	uma	ação	 recíproca	de	um	sobre	o	outro.	Di-
ferentemente	do	que	afirma	Descartes,	Spinoza	nega	que	possa	
haver	alguma	forma	de	controle	da	mente	sobre	o	corpo.	Mente	e	
corpo	não	podem	ser	concebidos	e	nem	existem	um	sem	o	outro	
(Ética,	Parte	3,	Proposição	2,	Escólio).	Isso	porque	um	é	a	manifes-
tação	mesma	do	outro:	nada	afeta	o	corpo	que	a	mente	não	capte.
Ainda	que	 a	 natureza	das	 coisas	 não	permita	duvidar	 sobre	 esta	
questão,	creio,	entretanto,	que	a	menos	que	se	dê	desta	verdade	
uma	confirmação	experimental,	os	homens	dificilmente	serão	leva-
dos	a	examinar	esse	ponto	com	um	espírito	de	isenção;	de	tal	ma-
neira	estão	persuadidos	que	o	Corpo	ora	se	mexe,	ora	cessa	de	se	
mover	por	um	simples	comando	da	Alma,	e	que	realiza	um	grande	
número	de	atos	que	dependem	unicamente	da	vontade	da	alma	e	
de	sua	arte	de	pensar.	Ninguém,	é	verdade,	determinou	até	o	pre-
sente	momento	o	que	pode	o	Corpo,	isto	é,	a	experiência	não	en-
sinou	a	ninguém	até	o	momento	o	que,	unicamente	pelas	leis	da	
Natureza,	considerada	enquanto	corporal,	o	Corpo	pode	fazer	e	o	
que	não	pode	fazer	a	não	ser	determinado	pela	Alma.	Ninguém	de	
fato	conhece	tão	exatamente	a	estrutura	do	Corpo	que	fosse	capaz	
de	explicar	todas	as	suas	funções,	para	não	falar	do	que	se	observa	
inúmeras	vezes	nos	animais	que	ultrapassa	de	muito	a	sagacidade	
humana,	e	do	que	fazem	frequentemente	os	sonâmbulos	durante	o	
sono	que	não	ousariam	fazer	quando	acordados	e	isso	mostra	sufi-
cientemente	que	o	Corpo	pode,	só	pelas	leis	de	sua	natureza,	fazer	
muitas	coisas	que	causam	surpresa	à	sua	Alma.	Ninguém	sabe,	por	
outro	lado,	em	qual	condição	ou	por	quais	meios	a	Alma	move	o	
Corpo,	nem	quantos	graus	de	movimento	ela	pode	lhe	impor	e	com	
qual	rapidez	ela	pode	movê-lo.	De	onde	se	conclui	que,	quando	os	
homens	dizem	que	tal	ou	tal	ação	do	Corpo	vem	da	Alma,	a	qual	tem	
um	domínio	sobre	o	Corpo,	não	sabem	o	que	dizem	e	não	fazem	
mais	do	que	confessar	em	uma	linguagem	especial	sua	ignorância	
da	verdadeira	causa	de	uma	ação	que	não	provoca	neles	espanto	
(SPINOZA	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	137-138,	tradução	nossa).
111© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
É	preciso,	para	compreender	a	união	da	alma	e	do	corpo,	con-
siderar	a	unicidade	da	potência	divina,	exprimindo-se	por	meio	de	
cada	um	de	seus	atributos.	A	potência	divina	implica,	de	um	lado,	
uma	perfeita	identidade	entre	a	ordem	e	a	conexão	das	coisas	e,	de	
outro,	a	ordem	e	a	conexão	das	ideias.	A	alma	não	é	assim	mais	do	
que	a	ideia	do	corpo,	o	corpo	nada	mais	é	do	que	o	objeto	da	alma:	
é	o	que	se	chama	"paralelismo"	da	alma	e	do	corpo.
Enquanto	ideia	do	corpo	existindo	no	tempo	e	no	espaço,	a	
alma	é,	pela	sua	existência,	uma	parte	perecível	do	entendimen-
to	de	Deus;	enquanto	ideia	da	essência	eterna	desse	corpo,	ela	é,	
por	sua	essência,	uma	parte	eterna	do	entendimento	de	Deus.	A	
parte	perecível	da	alma	é	constituída	por	sua	imaginação	e	per-
cepção	do	que	sofre	o	corpo	humano	em	seus	encontros	com	
outros	 corpos	humanos.	A	parte	 eterna	da	 alma	é	 constituída	
pelo	seu	entendimento,	lugar	do	conhecimento	verdadeiro.
No	que	concerne	ao	corpo,	segundo	Spinoza,	ele	se	indivi-
dualizaria	não	em	função	de	uma	substância	particular,	mas	por	
meio	do	tempo	e	da	mudança,	devido	ao	movimento	e	ao	repou-
so,	à	velocidade	e	à	lentidão.	Em	outras	palavras,	como	identida-
de	individual,	o	corpo	resultaria	de	um	processo	de	manutenção	
de	suas	partes	em	uma	determinada	proporção	de	movimento	e	
repouso,	proporção	essa	que	o	corpo	humano	conseguiria	man-
ter	ao	passar	por	uma	série	de	modificações	(afecções	e	afetos)	
impostas	pelo	movimento	e	repouso	de	outros	corpos.
Na	parte	sobre	a	natureza	e	a	origem	da	alma	de	sua	obra	
Ética,	Spinoza	apresenta	os	seguintes	postulados	sobre	o	corpo:
I.	O	Corpo	humano	é	composto	de	um	grande	número	de	 in-
divíduos	 (de	 natureza	 diversa)	 e	 cada	 indivíduo	 é	 também	
composto.
112 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
II.	Dos	indivíduos	dos	quais	o	Corpo	humano	é	composto	alguns	
são	fluidos,	alguns	são	moles,	alguns,	enfim,	são	duros.
III.	Os	indivíduos	que	compõem	o	Corpo	humano	são	afetados,	
e	consequentemente	o	Corpo	humano	é	ele	próprio	afetado,	de	
inúmeras	maneiras	diferentes	advindas	de	corpos	exteriores.
IV.	O	Corpo	humano	tem	necessidade,	para	se	conservar,	de	um	
grande	número	de	outros	corpos,	por	meio	dos	quais	ele	é	con-
tinuamente	conservado.
V.	Quando	uma	parte	fluida	do	Corpo	humano	é	afetada	por	um	
corpo	exterior	de	maneira	a	tocar	frequentemente	uma	parte	
mole,	ela	muda	a	 superfície	desta	e	 imprime	nela,	por	assim	
dizer,	certos	vestígios	do	corpo	exterior	que	a	afeta.
VI.	O	Corpo	humano	pode	mover	de	várias	maneiras	e	dispor	os	
corpos	exteriores	de	 inúmeras	 formas	 (SPINOZA,	1965,	p.	91,	
tradução	nossa).
Uma ética da alegria
Alegria	e	tristeza	são	afecções	ou	afetos.	A	alegria	é	o	afe-
to	que	aumenta	a	capacidade	do	corpo	de	manter	a	sua	potên-
cia	de	agir	e	pensar	e,	quando	associada	a	uma	causa	exterior,	
transforma-se	em	"amor".	A	tristeza,	ao	contrário,	é	sempre	des-
trutiva	e,	quando	associada	a	uma	causa	exterior,	transforma-se	
em	"ódio".	Por	essa	razão,	a	ética	de	Spinoza	é	denominada	de	
"ética	da	alegria".
Os	indivíduos	se	esforçam	para	ter	alegria,	buscando	man-
ter	sua	existência	tanto	quanto	possível.	Esse	esforço	é	denomi-
nado,	por	Spinoza,	de	"desejo"	ou	conatus (palavra	do	latim	que	
significa	esforço	ou	determinação	para	sobreviver).
113© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
O segundo gênero de conhecimento: as noções comuns ou 
ideias adequadas
Dentro	desse	contexto	de	pensamento	sobre	Deus,	a	alma	
e	o	corpo,	Spinoza	classifica	como	segundo	gênero	de	conheci-
mento	as	noções	comuns	ou	ideias	adequadas.	Aqui	se	inicia	o	
exercício	da	razão	enquanto	conhecimento	do	que	está	fora	de	
nós,	daquilo	que	existe.
Dessa	maneira,	devemos	compreender	nossos	afetos	e	os	
dos	demais	seres	humanos	por	meio	de	noções	comuns,	obtidas	
pela	razão.	Para	tanto,	faz-se	necessário,	de	acordo	com	Spinoza,	
viver	em	um	meio	humano	buscando	o	útil	em	comum.
Nada	mais	útil	ao	homem	do	queo	homem;	os	homens,	digo,	
não	podem	desejar	nada	de	maior	valor	para	a	conservação	de	
seu	ser	do	que	concordarem	todos	sobre	todas	as	coisas	de	ma-
neira	que	as	Almas	e	os	Corpos	de	todos	componham	uma	só	
Alma	e	um	só	Corpo,	nada	de	maior	valor	do	que	se	esforçarem	
todos	em	conjunto	para	 conservar	 seu	 ser	e	procurar	 tudo	o	
que	 lhes	é	útil	em	comum;	do	que	se	conclui	que	os	homens	
que	são	governados	pela	Razão,	isto	é,	aqueles	que	procuram	
o	que	lhes	é	útil	conduzindo-se	pela	Razão,	não	desejam	para	
eles	mesmos	nada	que	não	desejem	 também	para	os	outros	
homens,	e	são	justos,	de	boa	fé	e	honestos.
Tais	 são	os	comandos	da	Razão	que	 tinha	me	proposto	dar	a	
conhecer	 aqui,	 em	 poucas	 palavras,	 antes	 de	 começar	 a	 de-
monstrá-los	em	ordem,	de	maneira	mais	prolixa,	e	o	meu	moti-
vo	para	fazê-lo	foi	o	de	chamar,	se	possível,	a	atenção	daqueles	
que	creem	que	este	princípio:	cada	um	deve	procurar	o	que	lhe	
é	útil,	é	a	origem	da	imoralidade,	não	da	virtude	e	da	morali-
dade.	Depois	de	ter	mostrado	brevemente	que	é	exatamente	
o	 contrário,	 continuo	demonstrando-o	 com	os	mesmos	argu-
mentos	apresentados	até	aqui	em	nosso	caminhar	(SPINOZA	in	
ROUX-LANIER,	1995,	p.	259,	tradução	nossa).
114 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
Spinoza,	em	seu	Tratado Político,	dá	como	exemplo	desse	
segundo	gênero	de	conhecimento	pelas	ideias	comuns,	conquis-
tadas	 pela	 razão,	 o	 "poder"	 da	 "cidade".	O	poder	 da	 "cidade"	
vem	do	fato	de	que	nela	os	homens	têm	desejos	comuns	e	ela	só	
conserva	esse	poder	na	medida	em	que	consegue	unir	os	dese-
jos	dos	homens.	A	dimensão	social	da	cidade	oferece	às	paixões	
individuais	um	lugar	de	coexistência,	em	que	os	homens	podem	
evitar	os	efeitos	negativos	da	tristeza	e	do	ódio.
Como	 no	 estado	 natural	 cada	 um	 é	 seu	 próprio	mestre,	 en-
quanto	não	sofrer	a	opressão	de	outro,	e	no	qual	 sozinho	 se	
esforça	para	se	proteger	de	todos,	enquanto	o	direito	natural	
humano	for	determinado	pelo	poder	de	cada	um,	este	direito	
na	 realidade	 será	 inexistente,	 ou	pelo	menos	não	 terá	 senão	
uma	 existência	 puramente	 teórica,	 pois	 não	 se	 tem	 nenhum	
meio	seguro	de	conservá-lo.	É	certo	também	que	cada	um	tem	
menos	 poder	 e	 consequentemente	menos	 direito	 na	medida	
em	que	 tiver	mais	 razões	 de	 temer.	 Acrescentemos	 que	 sem	
auxílio	mútuo	os	homens	não	podem	manter	sua	vida	e	cultivar	
sua	alma.	Chegamos,	pois,	a	esta	conclusão:	o	direito	natural,	
no	que	concerne	propriamente	ao	gênero	humano,	dificilmente	
pode	ser	concebido	a	não	ser	quando	os	homens	têm	direitos	
comuns,	terras	que	podem	habitar	e	cultivar	juntos,	quando	po-
dem	velar	pela	manutenção	de	seu	poder,	proteger-se,	repelir	
toda	violência	e	viver	de	acordo	com	uma	vontade	comum	a	
todos.	Quanto	maior	for	o	número	dos	que	assim	se	reunirem,	
mais	direito	terão	em	comum	(SPINOZA	in	ROUX-LANIER,	1995,	
p.	260,	tradução	nossa).
E,	um	pouco	mais	adiante	naquela	mesma	obra:
Conhece-se	 facilmente	 qual	 é	 a	 condição	 de	 qualquer	 Estado	
considerando	o	fim	em	vista	do	qual	um	estado	civil	é	fundado;	
esse	fim	não	é	outro	senão	a	paz	e	a	segurança	da	vida.	Conse-
quentemente,	o	melhor	governo	é	aquele	sob	o	qual	os	homens	
passam	sua	vida	na	concórdia	e	cujas	 leis	 são	observadas	sem	
violação.	É	certo,	de	fato,	que	as	revoltas,	as	guerras	e	o	despre-
zo	ou	transgressões	das	leis	são	imputáveis	não	tanto	à	malícia	
115© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
das	pessoas,	mas	a	um	vício	do	regime	instituído.	Os	homens,	de	
fato,	não	nascem	cidadãos,	mas	tornam-se.	As	afecções	naturais	
que	se	encontram	são,	além	disso,	as	mesmas	em	todo	país;	se,	
pois,	uma	malícia	maior	reina	em	uma	cidade	e	se	ali	se	cometem	
pecados	em	maior	número	do	que	em	outras,	 isso	provém	do	
fato	de	ela	não	ter	obtido	concórdia	suficiente,	de	suas	institui-
ções	não	serem	suficientemente	prudentes	e	de	não	ter,	conse-
quentemente,	estabelecido	em	absoluto	um	direito	civil.	[...]
Se	em	uma	cidade	as	pessoas	tomam	armas	porque	estão	sob	o	
império	do	terror,	deve-se	dizer	não	que	ali	a	paz	não	reina,	mas	
que	ali	a	guerra	não	reina.	A	paz,	efetivamente,	não	é	a	ausên-
cia	de	guerra,	é	uma	virtude	que	tem	sua	origem	na	força,	pois	a	
obediência	é	uma	vontade	constante	da	alma	de	fazer	o	que,	de	
acordo	com	o	direito	comum	da	Cidade,	deve	ser	feito.	Uma	ci-
dade	é	preciso	ainda	dizer,	onde	a	paz	é	um	efeito	da	inércia	de	
sujeitos	conduzidos	como	um	rebanho	e	educados	unicamente	
para	servir,	merece	o	nome	de	deserto	em	vez	de	cidade.
Quando	dizemos	que	o	melhor	Estado	é	aquele	em	que	os	ho-
mens	 vivem	na	 concórdia,	 entendo	que	eles	 vivem	uma	vida	
propriamente	humana,	uma	vida	que	não	se	define	pela	circu-
lação	do	sangue	e	pela	realização	das	outras	funções	comuns	a	
todos	os	outros	animais,	mas	que	se	define	principalmente	pela	
razão,	pela	virtude	da	alma	e	pela	vida	verdadeira	(SPINOZA	in	
ROUX-LANIER,	1995,	p.	261,	tradução	nossa).
Segundo	Spinoza,	quanto	mais	a	alma	conhece	à	maneira	
do	terceiro	gênero	de	conhecimento	(beatitude)	e	desse	segun-
do	gênero	de	conhecimento	(noções	comuns	e	adequadas),	mais	
ela	segue	unicamente	a	necessidade	de	sua	natureza.
O primeiro gênero de conhecimento: as ideias gerais e a ima-
ginação não nos permitem chegar ao conhecimento libertador
Os	 homens,	 observa	 o	 filósofo,	 partem	 das	 percepções	
sensíveis	e,	incapazes	de	considerá-las	isoladamente	por	não	en-
116 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
tenderem	que	as	coisas	se	produzem	de	si	mesmas	(imanência	
divina),	 formam	"ideias	gerais"	daquilo	que	se	repete	frequen-
temente.	 Baseados	 na	 mesma	 ignorância	 da	 natureza	 divina,	
os	homens	exercem	a	imaginação,	que	consiste	em	estabelecer	
uma	distância	entre	o	"ser"	e	o	"dever	ser",	desconhecendo	que	
não	há	nenhum	"dever	ser"	que	possa	ser	aplicado	ao	plano	do	
ser,	pois	esse	é	o	plano,	repetimos,	da	imanência	divina.
Constituem	ambas,	as	ideias	gerais	e	a	imaginação,	o	que	
Spinoza	denomina	de	conhecimento	inadequado.	Uma	das	con-
sequências	desse	conhecimento	inadequado	seriam	as	paixões.	
Ao	entendermos	"inadequadamente"	nossas	afecções	ou	afetos,	
estes	 se	 transformam	em	paixões.	A	paixão	é	 "desapropriação	
de	si",	ou	seja,	alienação.	 Isso	acontece,	segundo	Spinoza,	por	
não	compreendermos	o	"desejo"	como	sendo	o	efeito	em	nós	do	
poder	eterno	e	infinito	de	Deus,	acreditando	tratar-se	de	uma	ca-
rência.	Daí	a	absorção	do	espírito	na	busca	do	prazer,	da	riqueza	
e	da	honra	para	suprir	essa	carência	enganosa.
As	ocorrências	mais	frequentes	na	vida,	aquelas	que	os	homens,	
como	transparecem	em	todas	as	suas	obras,	tomam	como	sen-
do	o	soberano	bem,	se	referem	de	fato	a	três	objetos:	riqueza,	
honra,	prazer	dos	sentidos.	Ora,	cada	um	destes	distrai	o	espírito	
de	todo	pensamento	relativo	a	um	outro	bem;	no	prazer	a	alma	
é	suspensa	como	se	ela	tivesse	encontrado	um	bem	no	qual	pu-
desse	descansar;	ela	se	encontra	no	mais	alto	ponto	 impedida	
de	pensar	em	um	outro	bem:	após	o	prazer,	por	outro	lado,	vem	
uma	extrema	tristeza	que,	se	não	suspende	o	pensamento,	o	per-
turba	e	o	enfraquece.	A	busca	da	honra	e	da	riqueza	não	absor-
ve	menos	o	espírito:	a	da	riqueza,	sobretudo	quando	é	buscada	
por	si	mesma,	pois	que	lhe	é	dado	um	grau	de	soberano	bem;	
quanto	à	honra,	absorve	o	espírito	de	uma	maneira	ainda	bem	
mais	exclusiva,	porque	nunca	se	deixa	de	considerá-la	uma	coisa	
boa	em	si	mesma,	e	como	um	fim	último	em	direção	ao	qual	vão	
todas	as	ações.	Além	disso,	a	honra	e	a	riqueza	não	são	seguidas	
de	arrependimento	como	o	prazer;	ao	contrário,	quanto	mais	se	
117© ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
possui	seja	uma	seja	outra,	mais	a	satisfação	que	se	experimenta	
é	maior,	daí	a	consequência	de	se	sentir	cada	vez	mais	 levado	
a	aumentá-las;	mas,	se	em	alguma	ocasião	nos	enganamos	em	
nossa	esperança,	então	surge	uma	tristeza	extrema.	A	honra,	en-
fim,	é	ainda	um	grande	impedimento	pelo	fato	de	que	para	atin-
gi-la	énecessário	dirigir	a	própria	vida	de	acordo	com	a	maneira	
de	ver	dos	homens,	isto	é,	fugir	do	que	comumente	eles	fogem	
e	buscar	o	que	eles	buscam.	A	servidão	passional	nasce,	assim,	
da	 ignorância	e	a	alimenta,	dividindo	o	mundo	em	coisas	boas	
e	coisas	más,	acreditando	saber	quais	nos	convêm	e	quais	não	
nos	convêm.	Trata-se	de	um	pseudoconhecimento	das	"causas	
finais",	o	que	leva	à	superstição	religiosa	com	a	ideia	de	um	Deus	
arbitrário	distribuindo	intencionalmente	o	bem	e	o	mal,	em	fun-
ção	do	culto	que	lhe	rendemos	(SPINOZA	in	ROUX-LANIER,	1995,	
p.	251,	tradução	nossa).
Consequências do conhecimento inadequado
O preconceito natural ou crença nas causas finais é o princípio 
de todos os nossos erros, diz Spinoza
Se	tudo	o	que	existe	é	emanação	de	uma	substância	única	e	
ilimitada,	Deus	como	causa	imanente	da	natureza,	identificando-
-se,	nesse	sentido,	com	ela,	estando	totalmente	nela	presente,	
não	depende	a	natureza	da	afirmação	ou	negação	de	nenhuma	
vontade	outra,	 de	nenhum	princípio	 transcendente	para	 ser	o	
que	ela	é	(sua	substancialidade).
Não	há,	pois,	"vontade"	entendida	como	o	poder	de	afir-
mar	ou	negar	o	que	é	verdadeiro	ou	o	que	é	falso,	assim	como	
não	há	"finalidade"	ou	"causas	finais",	uma	vez	que	não	há	uma	
essência	imóvel	e	transcendente	em	vista	da	qual	foram	as	coisas	
criadas.
118 © ÉTICA II
UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
É	suficiente	no	momento	colocar	em	princípio	o	que	todos	de-
vem	reconhecer:	que	 todos	os	homens	nascem	sem	nenhum	
conhecimento	das	causas	das	coisas,	e	que	todos	são	levados	a	
buscar	o	que	lhes	é	útil	e	do	qual	têm	consciência.	Daí	se	segue	
que:	1°	os	homens	se	imaginam	livres,	porque	têm	consciência	
de	seus	desejos	e	do	que	lhes	apetece	e	não	pensam,	nem	em	
sonho,	sobre	as	causas	que	os	levam	a	desejar	e	a	querer,	não	
tendo	sobre	isso	nenhum	conhecimento.	Daí	se	segue:	2°	que	
os	homens	agem	sempre	em	vista	de	um	fim,	saber	o	útil	que	
os	apetece.	Disso	resulta	que	se	esforçam	sempre	unicamente	
no	 sentido	de	 conhecer	as	 causas	 finais	das	 coisas	 realizadas	
e	descansam	quando	são	informados	sobre	elas,	não	existindo	
para	eles	mais	nenhuma	razão	de	se	inquietar.	[...]	Como,	por	
outro	lado,	encontram	em	si	mesmos	e	fora	de	si	mesmos	um	
grande	número	de	meios	 que	 contribuem	grandemente	para	
atingir	o	útil,	assim,	por	exemplo,	os	olhos	para	ver,	os	dentes	
para	mastigar,	as	ervas	e	os	animais	para	a	alimentação,	o	sol	
para	clarear,	o	mar	para	alimentar	os	peixes,	passam	a	conside-
rar	todas	essas	coisas	como	sendo	meios	para	seu	uso.	Sabendo	
ter	encontrado	esses	meios,	mas	não	os	tendo	procurado,	con-
cluem	que	alguém	os	providenciou	para	o	seu	uso.	Não	podem,	
de	 fato,	após	considerar	as	coisas	como	meios,	acreditar	que	
elas	se	produzem	de	si	mesmas,	mas,	tirando	sua	conclusão	dos	
meios	que	costumam	utilizar,	se	persuadem	de	que	existem	um	
ou	mais	condutores	da	natureza,	dotados	da	liberdade	huma-
na,	 que	 suprem	 a	 todos	 as	 suas	 necessidades,	 fazendo	 tudo	
para	sua	utilização	(SPINOZA	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	255,	tra-
dução	nossa).
Ao	 ignorar,	 assim,	as	 razões	ou	causas	das	 coisas,	passa-
mos	a	ter	do	mundo	uma	visão	fundada	em	milagres:	crença	em	
deuses	que	conduzem	a	natureza	para	satisfazer	nossos	desejos;	
crença	de	que	as	coisas	naturais	foram	criadas	tendo	em	vista	o	
homem.	Como	a	experiência	não	valida	tais	crenças,	os	homens	
são	levados	às	superstições,	buscando	adivinhos	para	interpretar	
os	fenômenos.
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UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
Por	sua	vez,	essa	servidão	a	causas	finais
[...]	favorece	as	"paixões	tristes",	o	ódio	da	vida,	a	amargura	com	
relação	a	tudo	o	que	é.	[...]	levando	os	homens	a	confrontar	o	
real	com	um	ideal	ilusório,	proíbe	amar	o	que	é	e	conhecê-lo	na	
alegria.	Acreditando	na	realidade	do	mal,	 lastimam	sua	sorte,	
pensam	que	a	perfeição	não	é	deste	mundo	e	que	a	verdadeira	
vida	está	em	outro	 lugar.	Essa	extensão	da	 tristeza	multiplica	
as	ocasiões	de	ódio	entre	os	homens,	os	ódios	os	mais	terríveis	
como	os	que	inspiram	as	diferentes	superstições	religiosas	(SPI-
NOZA	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	251,	tradução	nossa).
Não há livre arbítrio ou liberdade nas coisas e nos homens. Só 
Deus é livre
Outra	consequência	do	conhecimento	inadequado	seria	a	
crença	no	livre	arbítrio.	Vejamos	o	que	diz	Spinoza:
Chamo	livre,	no	que	me	concerne,	algo	que	é	e	age	unicamente	
segundo	a	necessidade	da	natureza:	coagido	é	aquele	que	é	deter-
minado	por	outro	a	existir	e	a	agir	de	certa	maneira	determinada.	
Deus,	por	exemplo,	existe	livremente,	ainda	que	necessariamente,	
porque	existe	unicamente	em	função	da	necessidade	de	sua	na-
tureza.	Também	Deus	conhece	a	si	mesmo	e	todas	as	coisas	livre-
mente,	porque	decorre	de	sua	própria	natureza	de	Deus	conhecer	
todas	as	coisas.	Veja	bem,	não	concebo	a	liberdade	consistindo	em	
um	livre	decreto,	mas	em	uma	necessidade	livre.
Mas,	desçamos	às	 coisas	 criadas	que	são	 todas	determinadas	a	
existir	e	a	agir	de	certa	maneira	definida.	Para	tornar	isso	claro	e	
inteligível,	concebamos	algo	muito	simples:	uma	pedra,	por	exem-
plo,	recebe	certa	quantidade	de	movimento	de	uma	causa	exterior	
que	a	move	e,	cessando	o	impulso	da	causa	exterior,	ela	continuará	
a	se	mover	necessariamente.	Essa	persistência	da	pedra	em	seu	
movimento	é	uma	coerção,	não	por	necessidade,	mas	se	define	
como	um	impulso	de	uma	causa	exterior.	E	o	que	é	verdadeiro	com	
relação	à	pedra	deve	sê-lo	no	que	se	refere	a	toda	coisa	singular,	
qualquer	que	seja	a	complexidade	que	se	queira	lhe	atribuir,	não	
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UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO
importando	quão	numerosas	 forem	suas	aptidões,	porque	 toda	
coisa	singular	é	necessariamente	determinada	a	existir	e	a	agir	de	
certa	maneira	determinada	por	uma	causa	exterior.
Concebamos	 agora	 que	 a	 pedra,	 enquanto	 continua	 a	 se	mover,	
pensa	e	sabe	que	ela	faz	esforço,	tanto	quanto	pode,	para	se	mover.	
Essa	pedra	seguramente,	pois	que	ela	tem	somente	consciência	de	
seu	esforço	e	que	ela	não	é	de	maneira	alguma	indiferente,	acredita-
rá	que	é	muito	livre	e	que	não	persevera	em	seu	movimento	porque	
não	quer.	Tal	é	essa	liberdade	humana	de	que	todos	se	vangloriam	
de	possuir	e	que	consiste	unicamente	no	fato	de	que	os	homens	têm	
consciência	de	seus	apetites	e	ignoram	as	causas	que	os	determi-
nam	(SPINOZA	in	ROUX-LANIER,	1995,	p.	261,	tradução	nossa).
Segundo	Spinoza,	tanto	a	decisão	da	mente	quanto	o	ape-
tite	e	a	determinação	do	corpo	são	uma	só	e	mesma	coisa:	"as	
decisões	da	mente	nada	mais	são	do	que	os	próprios	apetites"	
(Ética,	Parte	3,	Proposição	2,	Escólio).
Um	homem	embriagado	também	acredita	que	é	pela	livre	de-
cisão	de	sua	mente	que	fala	aquilo	sobre	o	qual,	mais	tarde,	já	
sóbrio,	preferiria	ter-se	calado.	 Igualmente,	o	homem	que	diz	
loucuras,	a	mulher	que	fala	demais,	a	criança	e	muitos	outros	
do	mesmo	gênero	acreditam	que	assim	se	expressam	por	uma	
livre	decisão	da	mente,	quando,	na	verdade,	não	são	capazes	
de	 conter	 o	 impulso	 que	os	 leva	 a	 falar.	 Assim,	 a	 própria	 ex-
periência	ensina,	não	menos	 claramente	que	a	 razão,	que	os	
homens	se	julgam	livres	apenas	porque	são	conscientes	de	suas	
ações,	mas	desconhecem	as	causas	pelas	quais	são	determina-
dos.	Ensina	também	que	as	decisões	da	mente	nada	mais	são	
do	que	os	próprios	apetites:	elas	variam,	portanto,	de	acordo	
com	a	variável	disposição	do	corpo.	Assim,	cada	um	regula	tudo	
de	acordo	com	o	seu	próprio	afeto	e,	além	disso,	aqueles	que	
são	afligidos	por	afetos	opostos	não	sabem	o	que	querem,	en-
quanto	 aqueles	que	não	 têm	nenhum	afeto	 são,	 pelo	menor	
impulso,	arrastados	de	um	lado	para	outro.	Sem	dúvida,	tudo	
isso	mostra	claramente	que	tanto	a	decisão	da	mente,	quanto	
o	apetite	e	a	determinação	do	corpo	são,	por	natureza,	coisas	
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simultâneas,	ou	melhor,	são	uma	só	e	mesma	coisa,	que	cha-
mamos	 decisão	 quando	 considerada	 sob	 o	 atributo	 do	 pen-
samento

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