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77 ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO 1. OBJETIVOS • Conhecer as mudanças epistemológicas da Modernida- de e relacioná-las com as propostas da moral e da Ética do racionalismo e do empirismo modernos. • Compreender a proposta de uma moral de provisão em René Descartes. • Analisar os desdobramentos, na proposta de Spinoza, de uma Ética puramente racional-intuitiva, demonstra- da à maneira dos geômetras. • A moral e o estado de direito em Thomas Hobbes e John Locke. • O empirismo e o início de uma moral utilitarista com John Locke. 2. CONTEÚDOS • René Descartes. • Baruch Spinoza. • Thomas Hobbes. • John Locke. UNIDADE 2 78 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para saber mais sobre a liberdade em Spinoza, sugeri- mos que não deixe de ler o seguinte artigo: • FRAGOSO, E. A. R. O conceito de liberdade na Éti- ca de Benedictus de Spinoza. Revista Conatus – Filosofia de Spinoza, v. 1, n. 1, p. 27-36, jul. 2007. Disponível em: <http://benedictus.dominiotem- porario.com/doc/Revista_Conatus_V1N1_Artigo_ Emanuel_Fragoso.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2015. 2) O tema da liberdade em Spinoza é bastante interessan- te; para aprofundá-lo, sugerimos que assista ao vídeo do Prof. Claudio Ulpiano, Pensamento e Liberdade em Espinosa. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=KMhuVkSDQPs>. Acesso em: 18 ago. 2015. 3) Sobre Hobbes, assista ao vídeo do programa de TV Café Pensamento, da Mackenzie, na entrevista com o professor Marcelo Bueno sobre a filosofia de Thomas Hobbes. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=4-1WURiF0nM>. Acesso em: 18 ago. 2015. 4) Indicamos, também, os seguintes filmes: • Sobre o século 17: Cromwell, O Chanceler de Ferro, de 1970, direção de Ken Hugues (a revolução puri- tana na Inglaterra). • Sobre o século 18 (a Revolução Francesa): Danton, O Processo da Revolução, de 1982, direção de Andrzej Wajda. 79© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO • Baseado na obra de mesmo nome, o filme Ponto de Mutação, de 1983, com direção de Bernt Capra, aborda questões sociais, políticas, econômicas e mudanças de tendências (passagem do velho para o novo e renovação do velho). 4. INTRODUÇÃO Dentro do que temos nos proposto a trabalhar, no que diz respeito à distinção entre o ético e o moral, veremos, no século 17, tema desta unidade, o estabelecimento de uma estrutura de saber favorável ao desenvolvimento da noção de moral que se presta ao conceito de regras e princípios gerais, em detrimento do que entendemos por ético propriamente dito. De fato, no século 17, passa a predominar um interesse cada vez maior em um saber racional-teórico, fundamentado em um universal-geral, iniciando-se, assim, de maneira sistemáti- ca, o pensamento chamado moderno, com suas características específicas. Veremos, a seguir, alguns pontos básicos desse novo para- digma de saber, o conhecimento científico ou a ciência. Iniciemos com a nova noção de mundo. Durante a Idade Média, a ideia de mundo era a aristotélica, ou seja, um todo or- denado (o cosmos) limitado e hierarquizado, onde cada coisa ti- nha o seu lugar próprio, segundo sua natureza. Porém, descober- tas significativas surgem no século 17 que parecem negar essa visão. Um exemplo é a lei da inércia, inicialmente formulada por Descartes e, posteriormente, por Newton, segundo a qual um corpo uma vez em movimento conservará para sempre esse mo- vimento, com a mesma velocidade, se não sofrer nenhuma outra 80 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO ação, como acontece no vácuo. Essa lei significa que o univer- so todo está em movimento e, portanto, em vez de um mundo fechado, limitado e hierarquizado, como se pensava, temos um universo sem limites. Essa visão, a partir de uma lei universal- -geral, consiste em uma visão abstrata do universo. O mundo passa a ser visto como uma grande máquina, previsível e passível de ser conhecida racionalmente. Um todo em movimento, movimento esse não em busca de um fim, mas inteiramente decorrente de leis matemáticas. Em outras pala- vras, ao contrário do cosmos antigo, em que, sob a inspiração aristotélica, se explicavam as coisas pela finalidade, o universo agora se apresenta reduzido a um puro mecanismo. Não há lugares naturais, com leis próprias, como ensina- va Aristóteles; o espaço é homogêneo, geométrico, nele reina a identidade universal da lei ou a relação matemática constante. A ordem cósmica dos antigos é substituída pela ordem rigorosa da matemática que se torna o modelo do pensamento verdadeiro. Das inúmeras substâncias concebidas pelo pensamento greco-romano restam apenas três fundamentais: a extensão (res extensa), o pensamento (res cogitans) e o infinito (a substância divina). No pensamento moderno, só é conhecimento aquele que explica a partir da causa e apenas duas causas são admitidas: a causa eficiente (relação direta da causa e de seu efeito) e a causa final, que seria aquela existente entre Deus e os homens, enquanto os gregos, romanos e medievais concebiam as causas como sendo quatro (classificação de Aristóteles): 1) a causa material (aquilo de que algo é feito); 2) a causa formal (a coisa em si); 81© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO 3) a causa eficiente (o que dá origem ao processo do qual algo surge); 4) a causa final (aquilo para o qual algo é feito). Outra questão que dominará a Idade Moderna é a questão do método. Para se chegar ao conhecimento pelas causas, faz-se necessário um método ou um caminho. A opção é pelo método da Matemática (ordem e medida), por ser este o caminho do conhecimento completo, que domina inteiramente seu objeto. No que diz respeito à nossa temática da Ética e da moral, o surgimento do pensamento moderno, com exceção do pensa- mento de Baruch Spinoza, foi, pelas características epistêmicas aqui referidas, favorável à expansão da questão moral. É o que veremos a seguir. 5. RENÉ DESCARTES (1596-1650) E UMA "MORAL DE PROVISÃO" Descartes, como sabemos, é o filósofo do "método" ou do caminho para se chegar a verdades claras e exatas. Em 1619, es- tando combatendo os espanhóis, no exército do príncipe holan- dês Maurício de Nassau, Descartes tem três visões ou sonhos a partir dos quais concebe "os fundamentos de uma ciência admi- rável", sobre a qual, por volta de 1620, começa a redigir a obra Regras para a direção do espírito, obra essa que só será publica- da em 1701. Considerado o grande fundador do pensamento racionalis- ta moderno, sua marca inconfundível é o princípio da "dúvida": tudo o que pensamos saber ou acreditamos existir deverá passar pelo crivo da dúvida. 82 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO Nesse sentido, em Meditações (Meditação 1), afirma: 1. Há algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primei- ros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer- -me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente, desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Mas, parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse mais apto para executá-la; o que me fez diferi- -la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta para agir. Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numapacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade a destruir em geral todas minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e in- dubitáveis, do que às que parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar, bastará para me levar a rejeitar todas (DESCARTES, 1973a, p. 93). A questão da moral em Descartes: uma moral de "provisão" Descartes propõe, inicialmente, em sua famosa obra Dis- curso do Método, o que chamou de "moral de provisão", par- tindo para o estabelecimento de normas ou máximas que nos permitissem nos aproximar da verdadeira virtude – normas ou máximas que são, no entanto, segundo o filósofo, imperfeitas, necessitando de aperfeiçoamento. Trata-se de uma moral pro- 83© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO visória, elaborada antes da construção das bases do edifício do saber a que se propunha e que permitiria orientar a conduta até que fosse possível a elaboração de uma moral definitiva, a qual seria o ponto mais alto do referido edifício do saber. São três as máximas por ele estabelecidas na obra citada: 1) a vida de cada um deve ser conforme os desígnios de Deus e as leis e costumes de seu país; 2) a "prudência" é a atitude que supriria a imperfeição; 3) deve-se procurar vencer a si mesmo, mudando os pró- prios desejos e não a ordem do mundo. A primeira máxima A vida de cada um deve ser não apenas conforme os desíg- nios divinos, que seriam os mais justos, mas, ainda, conforme a conduta daqueles que seguem as leis e os costumes de seu país e que são os moderados e sensatos. Referindo-se a essa primeira regra, diz Descartes: A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de vi- ver. Pois, começando desde então a não contar para nada com minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas a exame, estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos. E, embora haja talvez, entre os persas e chine- ses, homens tão sensatos como entre nós, parecia que o mais útil seria pautar-me por aqueles entre os quais teria de viver (DESCARTES, 1973a, p. 49-50). 84 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO A segunda máxima: a "prudência" Em vez de adotarmos teimosamente uma decisão ou de permanecermos indecisos, quando não possuímos todas as in- formações necessárias, é prudente tomar a decisão de agir (re- solução) em uma determinada direção. Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalgu- ma floresta, não devem errar volteando, ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá- -lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado sua escolha: pois, por este meio, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão no fim a al- guma parte, onde verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não su- portam às vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algumas e considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadei- ras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal. E isto me permitiu, desde então, libertar- -me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que depois julgam más (DESCARTES, 1973a, p. 50-51). 85© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO A terceira máxima: a conduta correta é aquela que respeita as possibilidades de um mundo regido por leis imutáveis e acima de nosso alcance Descartes afirma que Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à sorte, e de antes modificar os meus dese- jos do que a ordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exte- riores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. E só isso me parecia suficiente para impedir-me, no futuro, de desejar algo que não pudesse adquirir, e, assim, me tornar contente. Pois, inclinando-se a nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que se acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder, não lamentaremos mais a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles formos privados sem culpa nossa, do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México; e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ou estar livres, estando na prisão, do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas para voar como as aves (DESCARTES, 1973a, p. 51). Tal conduta exigiria preparo: Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma me- ditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas; e creio que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos, que puderam outro- ra subtrair-se ao império da fortuna e, malgrado as dores e a pobreza, disputar felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando- -se incessantemente em considerar os limites que lhes eram impostos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de 86 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava para impedi-los de sentir qualquer afecção por outras coisas; e dispunham deles tão absolutamente, que tinham neste particular certa razão de se julgarem mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens, que, não tendo esta filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, jamais dispõem assim de tudo quanto querem (DESCARTES, 1973a, p. 51). Porém, em suas demais obras, como Meditações, e parti- cularmente em sua correspondência com a princesa do Palatino, Isabel da Boêmia, a quem prometeu e escreveu o Tratado das Paixões da Alma, sua última obra publicada em 1649, poucos meses antes de sua morte, encontraremos mais subsídios para a possível configuração de uma moral cartesiana. Nessas suas últimas obras, Descartes procura elaborar uma moral mais per- feita, retomando em novos contextos o que dissera na moral de provisão. Veremos, nesses seus escritos, que Descartes, no que concerne à questão da conduta moral correta, fundamenta-se em algumas verdades que considera essenciais: a existência de Deus; o fenômenoda vontade ilimitada; a limitação do entendi- mento; o recurso ao hábito; razão e liberdade; a "unidade" da alma; a união da alma e do corpo e as paixões; a virtude como soberano bem. A existência de Deus: Ele existe, pois sua existência pode ser demonstrada Diz Descartes: Entendo por Deus uma substância infinita, eterna, imutável, independente, puro conhecimento, puro poder, pelo qual eu próprio e tudo o que existe (se é verdade que há algo existen- 87© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO te) foi criado e produzido. Ora, tais vantagens são tão grandes e admiráveis que quanto mais atentamente eu as considero, mais me convenço de que a ideia de Deus não pode se originar unicamente de mim. E, consequentemente, se faz necessário concluir que Deus existe: pois, embora a ideia de substância exista em mim, uma vez que sou uma substância, não teria, en- tretanto, a ideia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se tal ideia não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que não fosse verdadeiramente infinita. E, não devo imaginar que tal concepção de infinito não seja uma verdadeira ideia, mas somente resultado da negação do que é finito, da mesma maneira que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz: isso porque vejo claramente que existe mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, em consequência, tenho em mim a noção de infinito e de Deus antes da noção de finito e de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse saber que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou perfeito, se não tivesse em mim a ideia de um ser mais perfeito do que o meu ser, em comparação com o qual eu pudesse ter o conhecimento dos defeitos de minha natureza? (DESCARTES apud ROUX-LANIER; et al., 1995, p. 224, tradução nossa). O fenômeno da vontade: temos todos uma vontade ilimitada porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus E, sobre o fenômeno da vontade, Descartes conclui: Não há senão a vontade que experimento em mim ser tão gran- de, que não concebo nenhuma outra mais ampla e mais ex- tensa: de maneira que é ela principalmente que me faz saber que trago em mim a imagem e a semelhança de Deus. Pois, ainda que ela seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim, seja em razão do conhecimento e do poder, que nele se encontram unidos, tornando-a mais firme e mais eficaz, seja em razão do objeto, uma vez que ela se refere e se estende a um número infinitamente maior de coisas, ela não me parece, en- 88 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO tretanto, maior, se eu a considero formalmente e precisamente nela mesma. Pois ela consiste tão somente no fato de que po- demos fazer algo, ou não (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes, apenas afirmar ou negar, perseguir ou fugir das coisas que o entendimento nos propõe, sem sentir que alguma força exterior nos obrigue (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 225, tradução nossa). A questão da vontade e do entendimento: o erro Vimos, no texto anteriormente citado, que a vontade hu- mana é concebida por Descartes como sendo análoga à vontade divina. Descartes afirma, nesse texto, a "infinitude" da vontade humana quando diz que, embora a vontade divina seja "incom- paravelmente mais firme e mais eficaz" do que a vontade huma- na, quando considerada em si mesma, em sua forma, a vontade divina "não me parece maior". Isso significa que a nossa vontade é ilimitada como a vontade divina. Mas, e o entendimento? Em sua terceira máxima, como vimos, Descartes afirma que o mundo é regido por leis imutáveis, acima de nosso alcan- ce. Portanto, nosso entendimento é limitado. Desse confronto entre uma vontade ilimitada e um enten- dimento limitado surgiria a possibilidade de errar. Erramos, não porque nossas ideias sejam falsas: o erro não estaria na ideia ou na pura representação do objeto, mas no julgamento pelo qual afirmamos ou negamos que o objeto seja isso ou aquilo. E a vontade é justamente essa capacidade de afirmar ou negar algo. Como a vontade é ilimitada e o entendimento, limitado, o ser humano é capaz de não apenas julgar sobre o que ele pode reconhecer com certeza, mas também aceitar como válido um 89© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO conhecimento duvidoso, podendo, dessa maneira, cair no erro. O erro decorre de um ato de nossa vontade quando esta não é mantida nos limites do entendimento. O poder de dizer sim ou não é infinito e nos permite pronunciar mesmo quando não temos clareza de entendimento. Portanto, o conhecimento deve sempre preceder à determinação da vontade, se não quisermos errar. No que concerne à conduta moral, nem sempre há certezas ab- solutas, e sim apenas probabilidades Embora toda conduta correta e verdadeiramente livre con- sista em se basear em conhecimentos claros e evidentes, deve- mos, na ausência de maiores conhecimentos, seguir as condutas mais equilibradas, sensatas e de maior probabilidade de acerto, porque nem sempre temos o tempo necessário para chegar a conhecimentos claros a respeito de uma situação. É o que afirma o filósofo, como vimos em sua primeira e segunda máximas. Há, segundo Descartes, que "ir alcançando gradualmente conhecimentos firmes sobre a correta natureza das coisas", re- construindo opiniões de acordo com esses conhecimentos, por meio da vivência com os outros. E, como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conver- sando com os homens do que prosseguindo por mais tempo encerrado no quarto aquecido, onde me haviam ocorrido esses pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não acabara. E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se re- presentam; e, efetuando particular reflexão, em cada matéria, sobre o que podia torná-la suspeita e dar ocasião de nos equi- vocarmos, desenraizava, entrementes, do meu espírito todos os erros que até então nele se houvessem insinuado. Não que 90 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por du- vidar e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu intuito tendia tão-somente a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila. O que consegui muito bem, parece-me, tanto mais que, pro- curando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não me deparava com quaisquer tão duvidosa que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa, quando mais não fosse a de que não continha nada de certo. E, como, ao demolir uma velha casa, reservam-se comumente os escombros para servir à construção de outra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas, fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que me serviram depois para estabelecer outras mais certas (DES- CARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 225, tradução nossa). A liberdade está fundada no conhecimento, e não na vontade: a liberdade não é uma escolha aleatória e indiferente, não de- pende da vontade, pois esta é indiferente, mas se funda em conhecimentos claros e evidentes A indiferença é o mais baixo grau de liberdade, é a carên- cia de conhecimento. Se tivéssemos sempre um conhecimento claro daquilo que julgamos, seríamos completamente livres. A vontade é livre quando não há limite externo, ou seja, quando está sujeita a uma determinação interior ou quando se sente in- clinada por um conhecimento certo e distinto ou, ainda, por uma graça divina. Pois para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indi- ferente a escolher umou outro de dois contrários; mas quanto mais tendo para um, seja porque conheço de maneira evidente que nele se encontram o bem e o verdadeiro, seja porque Deus assim dispõe o interior de meu pensamento, mais livremente faço a escolha e a assumo. E, certamente, a graça divina e o 91© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO conhecimento natural, longe de diminuir minha liberdade, a aumentam e a fortificam. De maneira que esta indiferença que sinto, quando não tendo nem para um lado nem para o outro, por força de alguma razão, é o grau mais baixo de liberdade, assemelhando-se mais a um defeito do conhecimento do que a uma perfeição da vontade; pois se conheço sempre claramente o que é verdadeiro e o que é bom, jamais teria dificuldade em deliberar qual julgamento e qual escolha deveria fazer; e assim eu seria inteiramente livre sem jamais ser indiferente (DESCAR- TES in ROUX-LANIER, 1995, p. 225, tradução nossa). A Alma: todo conhecimento se fundamenta na identidade "una" da alma A alma é uma "substância pensante" (do latim res cogitans). A substância da alma é o pensamento, somos uma substância cuja essência e natureza consiste em pensar. Deve ser atribuído a nossa alma tudo o que existe em nós e que não concebemos como passível de pertencer a um corpo, como os pensamentos. A alma é "una", não extensa, indissolúvel e simples É o que diz Descartes na obra Regras para a orientação do espírito (Regra 1): Os homens têm o hábito, cada vez que descobrem uma seme- lhança entre duas coisas, de atribuir tanto a uma quanto à ou- tra, mesmo naquilo que as distingue, o que reconheceram como sendo verdadeiro em uma delas. Assim, fazendo uma compara- ção falsa entre ciências, que se encontram inteiramente no co- nhecimento que tem o espírito, e as artes, que requerem certo exercício e certa disposição do corpo, e vendo, por outro lado, que todas as artes não poderiam ser aprendidas ao mesmo tem- po pelo mesmo homem, mas que aquele que cultiva uma única arte torna-se mais facilmente um excelente artista, porque as mesmas mãos não podem cultivar, ao mesmo tempo, os campos 92 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO e tocar citara, ou cultivar várias artes diferentes tão facilmente quanto uma só, acreditaram que o mesmo se passaria também com as ciências e as distinguiram umas das outras de acordo com a diversidade de seus objetos, pensaram que se fazia necessário cultivar cada uma à parte, sem se ocupar de todas as outras. E, nisto, se enganaram. Pois, tendo em vista que todas as ciências não são outra coisa que sabedoria humana, que permanece una e sempre a mesma, por mais diferentes que sejam os objetos aos quais ela se aplique, e que não é modificada pela mudança de seus objetos mais do que a luz do sol o é pela variedade das coisas que ela ilumina, não há necessidade de impor limites ao espírito: o conhecimento de uma verdade não nos impede de descobrir outra, como o exercício de uma arte nos impede de aprender outra arte, mas, pelo contrário, nos ajuda (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 219-220, tradução nossa). A união da alma e do corpo A união da alma e do corpo resultaria, segundo Descartes, de um ato de vontade de Deus e foge a uma compreensão clara e evidente. Embora possamos conhecer separadamente a alma e o corpo, da união entre eles só existem, diz o filósofo, ideias confusas. Quando sentimos dor, fome, sede, por exemplo, não percebemos essa dor, fome e sede pelo entendimento, de fora para dentro, mas via sentimentos que são modos de pensar con- fusos, porque procedem e dependem de uma interação de mo- vimentos entre a alma e o corpo. Diferentemente de Aristóteles, Descartes concebe a alma e o corpo como duas substâncias de natureza diferente: uma é não extensa (a alma) a outra é extensa (o corpo). Portanto, a união da alma e do corpo, que em Aristóteles era essencial, passa a não ser essencial em Descartes. São distintas, pois, de um lado, tenho uma ideia clara de mim mesmo como uma coisa pensante 93© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO e não extensa e, de outro, tenho uma ideia também clara de que sou um corpo, uma coisa extensa que não pensa. Meu eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteiramente distinta de meu corpo, podendo existir sem ele. Os pensamentos são atribuídos pelo filósofo à alma; o mo- vimento e o calor, na medida em que não dependem do pensa- mento, são atribuídos ao corpo. O corpo é concebido como uma máquina que obedece às leis da natureza. Todos os movimentos que fazemos que não dependam de nossa vontade, como andar, respirar, comer, enfim, todas as ações que são comuns a nós e aos animais dependem da conformação de nossos membros e do que chamou de "espíritos animais", entendendo por isso as partes mais sutis e voláteis do sangue (os circuitos elétricos de hoje, talvez), seguindo para o cérebro via nervos e músculos, tal como o movimento de um relógio, movimento esse produzido exclusivamente pela força da mola do relógio e da forma de suas rodas. A união da alma e do corpo é de tal maneira íntima, que a ação de um é sempre referente ao- outro, porém não consiste em uma ação "direta", porque a alma e o corpo permanecem duas substâncias completas e opostas. O corpo humano, afeta- do pelos eventos externos, faz com que a alma sinta, perceba. Assim, as percepções, os conhecimentos em nós não são feitos pela alma; são recebidos das coisas e representados pela alma, por meio de suas ideias. Descartes dá um exemplo, que se tornou célebre. Em Me- ditações (Meditação 2), diz: Tomemos como exemplo este pedaço de cera que acaba de ser retirado da colmeia: ele ainda não perdeu a doçura do mel que continha, continua a apresentar o odor das flores das quais foi recolhido; sua cor, sua figura, seu tamanho são aparentes; é 94 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO duro, frio, pode ser tocado e se nele batermos emitirá um som. Enfim, tudo que nos permite constatar a existência de um corpo nele se encontra. Mas, eis que, enquanto falo, aproximo-o do fogo: o que nele restava de sabor se exala, o odor desaparece, sua cor muda, ele esquenta, mal posso tocá-lo e, embora nele bata, não emi- tirá mais nenhum som. Trata-se da mesma cera, após essa mu- dança? É preciso admitir que permanece o mesmo pedaço de cera, ninguém pode negar. O que, então, neste pedaço de cera é conhecido como tal? Certamente nada do que foi constatado pelos sentidos, uma vez que tudo aquilo que veio pelo pala- dar, pelo olfato, pela vista, pelo tato ou pelo ouvido se encontra modificado e, no entanto, a cera permanece a mesma. Talvez, penso agora, a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me era dado sob essas formas e que agora se apresenta sob outras formas. Mas, o que exatamente imagino, quando a concebo dessa maneira? Consideremos a cera atentamente, afastando tudo o que não lhe pertence, e vejamos o que resta. O que é certo é que não resta senão algo extenso, flexível e mutável. Ora, o que é isto: flexível e mutável? Não seria o fato de que imagino que esta cera, sendo redonda, pode vir a ser quadrada e passar de quadrada a uma figura triangular? Não, certamen- te, não seria isso, pois a concebo capaz de receber uma infinida- de de semelhantes mudanças, mas não seria, entretanto, capaz de percorrer essa infinidade de mudanças com a minha imagi- nação, o que me faz concluir que essa concepção que tenho da cera não se dá por meio da faculdade de imaginar (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 223-224, tradução nossa). A afirmação da permanência da cera nas diferentes modifi- cações percebidas não resultaria nem da imaginação, pois somos incapazes de percorrer com a imaginação a infinidade de mudan- çaspassíveis de serem recebidas pela cera, e nem da percepção, uma vez que toda percepção é contemporânea do que percebe 95© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO (cada modificação da cera é objeto de uma percepção) e a todo instante ultrapassamos cada percepção de uma modificação, afirmando a permanência da cera. A afirmação da permanên- cia da cera nas diferentes modificações recebidas resultaria das representações pela alma dessas modificações mediante uma ideia, a de extensão. Em outras palavras, todo corpo é conhecido como corpo, (aquilo que permanece a despeito de modificações e variações), por meio de uma ideia ou julgamento: a ideia de extensão, ideia essa de um sujeito conhecedor, a alma. Só a ideia de extensão torna possível a representação de um corpo como tal. Em outras palavras, o que temos é a representação de um corpo, graças a uma ideia, a ideia de extensão e esta, como já foi dito, é produto da alma. Ações e paixões Quando a alma busca imaginar o que não existe ou conce- be algo puramente inteligível, estaríamos diante de "ações", ou seja, de percepções dependentes principalmente da vontade. As "paixões", diferentemente, se situariam no domínio da união da alma e do corpo. As paixões Os eventos externos causam na alma as paixões, que são, assim, a mediação entre as duas substâncias: corpo e alma, res- ponsáveis pela comunicação entre elas. Paixões seriam, portan- to, percepções, sentimentos ou emoções que vêm à alma pelos nervos (podem também vir, segundo Descartes, do movimento dos "espíritos animais"). As que são vinculadas a objetos exterio- 96 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO res se referem ao conhecimento das coisas exteriores que afe- tam nossos sentidos, fazendo com que a alma os sinta. As que são vinculadas ao corpo, como a fome, a sede, a dor etc., senti- mos em nossos próprios membros e não em corpos externos. Há ainda um terceiro tipo de percepções, sentimentos e emoções que vinculamos à própria alma, como alegria, tristeza, cólera etc. As paixões, segundo Descartes, são inseparáveis das ações que as provocam; assim, o seu estudo também é inseparável do estudo do corpo que é o agente dessas ações Descartes elege a glândula pineal (situada entre os olhos) como a sede da alma, por ser a única parte do corpo conhecida na época que não seria dupla. Os olhos são duplos, os ouvidos são duplos, mas o pensamento não é; por isso, a glândula pineal seria a sede do pensamento ou da alma. Essa glândula é cercada de pequenas ramificações das carótidas (as principais artérias do pescoço), que trariam os "espíritos animais" ao cérebro. O poder da vontade, ilimitado quanto à própria capacidade de querer, não seria ilimitado com relação ao corpo e às percepções da alma, porque a natureza estabelece uma ligação entre cada vontade e o movimento da glândula com base na conservação da união, não no arbítrio. Um exemplo é o fato de que, se quisermos ver algo de perto, haverá uma redução da pupila, porém, se simplesmente quisermos reduzi-la só por querer, a redução não se dará. As seis paixões primitivas Descartes, na segunda parte de seu Tratado das Paixões da Alma, enumera, segundo o efeito dos objetos em nós, seis 97© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO paixões que considera como primitivas: admiração, amor, ódio, alegria e tristeza. • A admiração: constitui-se de uma súbita surpresa da alma. É causada pela impressão que se tem no cérebro representando o objeto como raro e extraordinário. Ocorre antes de sabermos se o objeto é conveniente ou não. É a primeira paixão, pois, sem uma admiração inicial, isto é, sem um contemplar com surpresa e como- ção, não seria possível surgirem paixões. A admiração é positiva quando nos leva à aquisição de conhecimento; pode, porém, ser nociva quando em excesso, como o "espanto". No espanto, percebemos apenas a primeira face apresentada pelo objeto, o que nos impede de ad- quirir conhecimentos mais profundos. Por essa razão, seria aconselhável, segundo Descartes, nos exercitar na consideração das coisas que nos parecem estranhas. • O amor e o ódio: tais paixões envolveriam o "unir-se ou separar-se voluntariamente". No amor, unimo-nos ao que amamos, como um todo do qual seríamos uma parte e a coisa amada seria a outra parte. No ódio, dá- -se o contrário, nos consideramos um todo totalmente separado da coisa que repudiamos. • Desejo: essa paixão se manifesta quando desejamos que se apresentem em nosso futuro aquilo que nos é conveniente e que não o temos, como aquilo que nos é conveniente e temos no presente. Além disso, essa pai- xão também se manifesta quando desejamos que um mal atualmente existente não venha a continuar, como algum mal eventual que possa vir a ocorrer no futuro. 98 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO • A alegria e a tristeza: a alegria é o gozo do bem pre- sente; a tristeza é o sentimento de algo incômodo que buscamos repelir. Todas essas paixões servem, segundo Descartes, à conser- vação e ao aperfeiçoamento do corpo. A alma só é advertida das coisas que a prejudicam pelo sentimento da dor que inicialmen- te a entristece, em seguida a faz odiar e, finalmente, leva-a a desejar se livrar daquele mal, repelindo o que a pode destruir. Assim, para Descartes, todas as paixões são boas em si mesmas. No entanto, é preciso e é possível regulamentá-las para não pervertê-las. Como foram instituídas pela natureza, faz-se necessário conhecer as leis dessa instituição para poder agir so- bre elas. Busca, portanto, explorar racionalmente este obscuro campo da união que são as paixões. As paixões e a vida moral Segundo Descartes, a vida moral se situa na união da alma e do corpo, pois é por causa dessa união que a avaliação do que é ou não bom é perturbada pelas paixões. As paixões são moral- mente relevantes porque influenciam nossas ações por meio do desejo, pelo qual regulam nossos costumes. A função da moral seria regrar e controlar o desejo. Portanto, a moral cartesiana se fundamenta no melhor conhecimento possível e no correto manejo das paixões ou controle do "desejo". As paixões dispõem a alma a querer as coisas para as quais preparam o corpo. A vida moral colocará em questão certas ações assim corroboradas pelas paixões, exigindo um redirecio- namento destas pela razão. E, para tanto, é preciso distinguir as coisas que dependem inteiramente de nós daquelas que não de- 99© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO pendem. Portanto, segundo o filósofo, é preciso rejeitar a afir- mação comum de que existe fora de nós uma espécie de sorte que faz com que as coisas venham ou não a nós a seu bel prazer. Tudo é conduzido pela providência divina e nada acontece que não seja necessário. Desejar que acontecesse de outra forma é cometer um erro. É necessário, pois, limitar o campo do possível, regulando o desejo pelo conhecimento verdadeiro não do bem em geral, mas do bem que depende de nós. É o que vimos em essência na terceira máxima da moral provisória. Ainda segundo Descartes, a alma pode dominar as paixões menores, desviando o corpo para outros objetos. Nas paixões muito violentas, não há como superá-las, porém pode-se sus- pender os movimentos a que elas dispõem o corpo, por exem- plo: não consigo deixar de sentir medo, mas, posso conter-me e não correr. O conceito de "virtude" Por "virtude" entende o filósofo o hábito da alma que a orienta para determinados pensamentos, pensamentos esses gerados pela alma e muitas vezes fortalecidos por movimentos dos "espíritos", o que faz com que sejam, ao mesmo tempo, "vir- tudes" e "paixões". Trata-se da firme resolução de não nos des- viarmos, pelo desejo, em direção ao que não depende de nós.As almas fortes são virtuosas, têm poder sobre as paixões com armas próprias, ou seja, com "juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal", à luz dos quais decidiu conduzir suas ações. A ação moral, para Descartes, não deve estar fundada ape- nas no conhecimento possível, mas, também, no correto con- 100 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO trole das paixões, pois são elas que, pelo "desejo", comandam a passagem do pensamento à ação e esse comando, quando vol- tado para o possível, dando-se à luz do livre-arbítrio, é a própria "virtude", operando por meio da "generosidade". Na terceira parte do Tratado sobre as Paixões da Alma, Descartes apresenta as paixões derivadas das primitivas. Dentre essas paixões, destaca-se a da "generosidade". Virtude e hábito: a "generosidade" A generosidade é o hábito que leva a alma a pensar no sentido e na grandiosidade do "livre-arbítrio, gerando a firme re- solução de usá-lo corretamente". O homem cartesiano é o homem generoso, que valoriza a sua liberdade, que soube descobrir em si o poder de duvidar, que assume a responsabilidade pelos seus erros, que sabe agir diante da obscuridade da vida (ROUX-LANIER, 1995, p. 218). Podemos desenvolver, segundo Descartes, as virtudes. Se- riam as próprias paixões, segundo o filósofo, que indicariam de si mesmas a maneira segundo a qual podemos agir sobre elas. Diz ele: Nossas paixões [...] não podem ser provocadas nem eliminadas por nossa vontade, mas podem ser indiretamente, pela repre- sentação das coisas que habitualmente costumam se associar às paixões que queremos ter e que são contrárias às que que- remos rejeitar (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 228, tra- dução nossa). Assim, embora não possamos combater diretamente as paixões, é possível fazê-lo indiretamente, criando hábitos basea- dos nas ideias contrárias a determinadas paixões. Poderíamos, 101© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO por exemplo, desenvolver a generosidade, buscando o que ha- bitualmente costuma representá-la, como a sabedoria de que todo louvor ou recriminação se refere unicamente ao uso que fazemos do bem e do mal e o fato de, sentindo-nos capazes de ações virtuosas, acreditarmos que, assim como nós, todos os ou- tros também são capazes, pois isso não depende de circunstân- cias alheias, mas somente da boa vontade. É o que diz Descartes: Assim, creio que a verdadeira generosidade, que faz com que um homem se estime no mais alto grau possível de se estimar de maneira legítima, consiste simplesmente: em parte no fato de saber que nada verdadeiramente lhe pertence a não ser essa livre disposição de suas vontades, que não existe outra razão para ser louvado ou recriminado a não ser pelo uso que faz do bem ou do mal, e, em parte, no fato de sentir, em si mesmo, um poder de decisão, firme e constante, de fazer bom uso de suas capacidades, isto é, de nunca falhar na vontade de empreender e executar todas as coisas que julgar serem as melhores; isto é seguir perfeitamente a virtude. Aqueles que têm esse conhecimento e sentimento de si mes- mos são facilmente convencidos de que todos os outros ho- mens os têm igualmente, porque não há nada em tal situação que dependa do outro. É, por isso, que jamais desprezam al- guém, e que, embora vejam frequentemente os outros come- terem erros que revelam a sua fraqueza, tendem, entretanto, a desculpá-los em vez de recriminá-los, e a acreditar que é mais por desconhecimento do que por falta de vontade que cometem tais faltas; e, como não pensam serem inferiores aos que possuem mais bens ou honras, ou têm mais espírito, mais saber, mais beleza, ou os superam em algumas outras perfei- ções, não se consideram, da mesma maneira, superiores aos que ultrapassam, porque todas essas coisas lhes parecem de pouco valor, em comparação com o fato de se ter boa vontade, única qualidade que possui, para eles, valor, qualidade que su- põem também existir ou, pelo menos, poder existir, em todos os homens (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 228, tradução nossa). 102 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO Considerações finais Dentro da orientação básica do presente estudo, distin- guindo essencialmente o ético do moral, gostaríamos de en- fatizar, nestas considerações finais, as dificuldades do filósofo francês em abarcar a questão da consciência moral em sua tota- lidade, mediante o método por ele proposto. De fato, encontramos, em Descartes, os pilares da consti- tuição do que entendemos por "moral". São estes pilares: a no- ção de uma razão generalizante cuja meta é o individual e o geral (as máximas), os hábitos ou costumes e a noção de "bom senso". Inspirado, segundo alguns, sobretudo em Aristóteles, concebe a criação do hábito, como vimos, como uma das realidades funda- mentais no que concerne à conduta moral. Porém, embora configurando uma moral racional, não chega Descartes a uma moral científica. Começa por distinguir pensamento da ação: podemos pensar de uma maneira e agir de outra. É na ação, porém, que residiria a dimensão moral da conduta. Em contrapartida, podemos ser virtuosos mesmo não possuindo um conhecimento claro e distinto, pois os juízos mo- rais podem não ser absolutamente certos, embora devam ser os melhores possíveis. A virtude, base de toda conduta moral, consistiria no esforço para compreender o melhor possível e, de acordo com isso, agir o melhor possível. Reconhece, portanto, Descartes as dificuldades em esta- belecer uma moral definitiva fundada na verdade e na ciência. As decisões morais, segundo ele, estão baseadas em ideias con- fusas, uma vez que a união da alma e do corpo foge às nossas possibilidades de conhecimento. O conhecimento da consciên- cia moral é obscuro, embora acredite o filósofo que seja possí- 103© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO vel melhorar esse conhecimento gradualmente, estimulando o entendimento. Trabalharemos, a seguir, o cartesiano Spinoza, que irá to- mar, diante das dificuldades presentes no pensamento de Des- cartes, sobretudo no que diz respeito ao problema da consciência moral, uma direção totalmente nova, optando por considerá-la em sua dimensão eminentemente ética. Veremos, com Spinoza, que, embora tudo pareça indicar não ser possível a construção de uma moral baseada em um co- nhecimento exato, como é o conhecimento científico, pode ser possível pensar a consciência moral em sua dimensão ética, via um saber rigoroso, que é o saber "compreensivo", rigoroso por- que busca considerar todas as nuances possíveis constituintes do objeto, trabalhado na sua "singularidade". 6. BARUCH SPINOZA (1632-1677) Consta que Spinoza, como pessoa, era gentil, apaixonado pelo conhecimento e pela cultura e cultivador de amizades. Sa- be-se que foi perseguido e expulso da comunidade judaica, prin- cipalmente por criticar o conceito judaico de Deus. Dominava várias línguas, inclusive o português, idioma fa- lado correntemente nas ruas de Amsterdam na época, onde ha- via uma grande comunidade judaica de origem portuguesa. Grande conhecedor do Velho Testamento, publicou, em vida, duas obras: Os princípios da filosofia de Descartes, em 1663, e Tractatus Theologico-Politicus, em 1670, obra que proje- tou Spinoza fora de seu país. 104 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO A obra Ética, de Spinoza, da qual trataremos neste estudo, foi escrita por Spinoza durante sua estadia em Rijinsburg, perto de Leyde (cidade situada na Holanda do Sul), onde possuía mui- tos amigos. Foi editada após a sua morte. Sobre ela, encontra- mos o seguinte texto de uma carta de Spinoza escrita em 1665 para Guillaume de Blyenberg: Entendo por um homem justo aquele que deseja constante- mente que cada um possua o que lhe é devidoe demonstro em minha Ética (não ainda editada) que esse desejo nos homens piedosos tem necessariamente sua origem no conhecimento claro que possuem tanto de si mesmos quanto de Deus (SPINO- ZA, 1965, prefácio, tradução nossa). A escolha da Geometria como linguagem O discurso de Spinoza, ao desenvolver sua concepção de Ética, é o da Geometria. A linguagem geométrica é a linguagem do "imaginário". O imaginário é um dado da reflexão, como se pode dizer da Filosofia da Matemática. Foi trabalhado por Gauss, que demonstrou sua importância na fundamentação da Geometria. Na linguagem do imaginário, a atenção e o interesse se concentram não mais na diversidade do efetivamente dado, mas na maneira segundo a qual os elementos procedem uns dos ou- tros ou se relacionam uns com os outros. Tal linguagem não se fecha nas limitações da representação, mas fixa-se na dedução dos princípios que regem o encadeamento das condições orde- nadoras do que é percebido, de maneira que os juízos e enuncia- dos que decorrem desse processo de dedução constituem pro- jeções, em estado puro, das relações nas quais se funda o que é observado. 105© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO Spinoza constrói seu discurso sob o modelo da Geome- tria, mediante proposições seguidas rigorosamente das respec- tivas demonstrações, explicações, axiomas etc. Deduz, assim fundamentando, a existência de Deus como substância única e singular; a beatitude como terceiro gênero de conhecimento (o conhecimento libertador); a alma, o corpo; o segundo gênero de conhecimento, que se dá pelas ideias comuns; o primeiro gênero de conhecimento, constituído de ideias abstratas e da imaginação. Ética e razão intuitiva Se quiséssemos sintetizar, em um único princípio, o pensa- mento de Spinoza sobre a questão da Ética, talvez pudéssemos fazê-lo repetindo suas próprias palavras: "O esforço para com- preender é a primeira e única base da virtude". O que é compreender segundo Spinoza? Compreender é chegar ao conhecimento libertador, me- diante uma razão intuitiva. É o que denomina de "beatitude" e classifica como o terceiro gênero de conhecimento. Consiste es- sencialmente em uma visão de toda existência como inseparável da substância infinita e eterna, Deus. Em outras palavras, a bea- titude é um perceber a si mesmo, a tudo e a todos como "parte integrante e necessária da natureza de Deus". Essa percepção intuitiva de que somos partes integrantes dessa substância única e singular, que é Deus, é a compreensão de que fazemos parte da essência de Deus e, como tal, somos uma extensão da potência divina. 106 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO Deus é uma substância singular e única A substância, segundo Spinoza, não possui causa fora de si; é uma causa não causada, ou seja, uma causa em si. A substância é em si e é concebida por si, cujo conceito não é formado por outro conceito. Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado (SPI- NOZA, 2008, p. 13). A substância, portanto, é singular a ponto de não poder ser concebida por outra coisa que não ela mesma. Como não pode ser produzida por outra substância, não existe nada que a limite, sendo ela, portanto, infinita. Trata-se de uma substância cuja essência é existir, pois, se pudesse não existir, haveria uma divisão e seria, então, limitada por outra. Essa substância única e absolutamente infinita é Deus ou a Natureza. Não há, pois, "criação", mas produção imanente de uma única substância: Deus ou a Natureza. Em outras palavras, não existe a obra de um Deus transcendente, separado do mundo. A beatitude ou compreensão libertadora Essa compreensão intuitiva que é a "Beatitude" não é uma experiência mística. O estado de beatitude é conseguido por meio de um esforço árduo, contínuo e dedicado ao exercício de uma captação pela razão intuitiva, por meio da qual vamos além da percepção limitada da unidade dos sentidos e das imagens, para nos perceber universais. Para Spinoza, o mundo de Deus ou da Natureza é essen- cialmente um mundo de rigor matemático. Vejamos, na quinta 107© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO parte da Ética, o discurso de Spinoza sobre a beatitude, inspirado nos princípios do discurso da Geometria. Proposição 42. A beatitude não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não a desfrutamos porque refreamos os ape- tites lúbricos, mas, em vez disso, podemos refrear os apetites lúbricos porque a desfrutamos. Demonstração. A beatitude consiste no amor para com Deus (pela prop. 36, juntamente com seu esc.), o qual provém, cer- tamente, do terceiro gênero de conhecimento (pelo corol. da prop. 32). Por isso, esse amor (pelas prop. 56 e 3 da p. 3) deve estar referido à mente, à medida que esta age, e, portanto (pela def. 8 da p. 4), ele é a própria virtude. Era este o primeiro pon- to. Por outro lado, quanto mais a mente desfruta desse amor divino ou dessa beatitude, tanto mais compreende (pela prop. 32), isto é (pelo corol. da prop. 3), tanto maior é o seu poder de refrear os afetos e (pela prop. 38) tanto menos ela padece dos afetos que são maus. Assim, porque a mente desfruta desse amor divino ou dessa beatitude, ela tem o poder de refrear os apetites lúbricos. E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusivamente no intelecto, ninguém desfruta, pois, dessa beatitude porque refreou os afetos, mas, em vez disso, o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da beatitude. C. Q. D. Escólio. [...] Torna-se, com isso, evidente o quanto vale o sábio e o quanto ele é superior ao ignorante, que se deixa levar apenas pelo apetite lúbrico. Pois o ignorante, além de ser agitado, de muitas maneiras, pelas causas exteriores, e de nunca gozar da verdadeira satisfação de ânimo, vive, ainda, quase inconsciente de si mesmo, de Deus e das coisas, e tão logo deixa de padecer, deixa também de ser. Por outro lado, o sábio, enquanto con- siderado como tal, dificilmente tem o ânimo perturbado. Em vez disso, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma certa necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas desfruta, sempre, da verdadeira satisfação do ânimo. Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece muito árduo, ele pode, entretanto, ser encontrado. E deve ser 108 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO certamente árduo aquilo que tão raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro (SPINOZA, 2008, p. 411). Escólio: anotação em geral breve, com a finalidade de explicar, esclarecer. Essa busca das diferentes direções do tema considerado (no caso, a beatitude) consiste essencialmente em um processo rigoroso de produção de novas possibilidades. Ao exercer esse terceiro gênero de conhecimento, o homem constitui-se a si mesmo a partir de forças que vêm de dentro do próprio movi- mento de todas as coisas existentes, à maneira de Deus ou da Natureza e só nessa condição é livre. A alma e o corpo Continuando seu discurso dedutivo, diz Spinoza: não so- frendo o conceito de "substância", em princípio, nenhuma limi- tação, compreende uma infinidade de atributos, dos quais cada um, não podendo ser limitado senão por ele mesmo, é infinito em seu gênero. O atributo "é aquilo que, da substância, o intelec- to percebe como constituindo a sua essência" (SPINOZA, 2008, p. 23). O entendimento percebe, assim, a substância como ela é na realidade (Ética, Primeira Parte, Proposição 10, Demonstra- ção). Desses atributos,nosso entendimento, segundo Spinoza, só pode conhecer o "pensamento" e a "extensão". Em contrapartida, da mesma maneira que as propriedades do triângulo decorrem geometricamente de sua essência, dos 109© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO atributos da substância divina decorre uma infinidade de "mo- dos", que são, segundo Spinoza, modificações ou afecções da substância que se apresentam no real. Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido (SPINOZA, 2008, p. 13). Essas modificações da substância ou "modos" são classifi- cadas por Spinoza em cinco categorias: 1) Os modos infinitos imediatos do pensamento que é todo o entendimento absolutamente infinito (o pró- prio intelecto de Deus). 2) Os modos infinitos da extensão: que são as leis univer- sais imutáveis. 3) Os modos infinitos mediatos que são a essência do mundo físico. 4) Os modos finitos do pensamento que são as ideias, mentes, almas. 5) Os modos finitos da extensão que são todo o universo material: corpos, movimento, repouso. A alma humana e o corpo humano são, pois, dois "modos" de Deus, dois efeitos da substância única e infinita que é Deus. A alma se refere ao atributo pensamento, o corpo ao atributo extensão. Não podemos formar a ideia da alma humana senão nos referindo ao atributo do pensamento, e a ideia do corpo humano senão nos referindo ao atributo da extensão. Por isso, embora substanciais (porque se referem a atributos da substância), alma e corpo não são duas substâncias distintas (contrariando aqui Descartes). 110 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO A união da alma e do corpo A união da alma e do corpo não consistiria nem em uma mistura, nem em uma ação recíproca de um sobre o outro. Di- ferentemente do que afirma Descartes, Spinoza nega que possa haver alguma forma de controle da mente sobre o corpo. Mente e corpo não podem ser concebidos e nem existem um sem o outro (Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio). Isso porque um é a manifes- tação mesma do outro: nada afeta o corpo que a mente não capte. Ainda que a natureza das coisas não permita duvidar sobre esta questão, creio, entretanto, que a menos que se dê desta verdade uma confirmação experimental, os homens dificilmente serão leva- dos a examinar esse ponto com um espírito de isenção; de tal ma- neira estão persuadidos que o Corpo ora se mexe, ora cessa de se mover por um simples comando da Alma, e que realiza um grande número de atos que dependem unicamente da vontade da alma e de sua arte de pensar. Ninguém, é verdade, determinou até o pre- sente momento o que pode o Corpo, isto é, a experiência não en- sinou a ninguém até o momento o que, unicamente pelas leis da Natureza, considerada enquanto corporal, o Corpo pode fazer e o que não pode fazer a não ser determinado pela Alma. Ninguém de fato conhece tão exatamente a estrutura do Corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções, para não falar do que se observa inúmeras vezes nos animais que ultrapassa de muito a sagacidade humana, e do que fazem frequentemente os sonâmbulos durante o sono que não ousariam fazer quando acordados e isso mostra sufi- cientemente que o Corpo pode, só pelas leis de sua natureza, fazer muitas coisas que causam surpresa à sua Alma. Ninguém sabe, por outro lado, em qual condição ou por quais meios a Alma move o Corpo, nem quantos graus de movimento ela pode lhe impor e com qual rapidez ela pode movê-lo. De onde se conclui que, quando os homens dizem que tal ou tal ação do Corpo vem da Alma, a qual tem um domínio sobre o Corpo, não sabem o que dizem e não fazem mais do que confessar em uma linguagem especial sua ignorância da verdadeira causa de uma ação que não provoca neles espanto (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 137-138, tradução nossa). 111© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO É preciso, para compreender a união da alma e do corpo, con- siderar a unicidade da potência divina, exprimindo-se por meio de cada um de seus atributos. A potência divina implica, de um lado, uma perfeita identidade entre a ordem e a conexão das coisas e, de outro, a ordem e a conexão das ideias. A alma não é assim mais do que a ideia do corpo, o corpo nada mais é do que o objeto da alma: é o que se chama "paralelismo" da alma e do corpo. Enquanto ideia do corpo existindo no tempo e no espaço, a alma é, pela sua existência, uma parte perecível do entendimen- to de Deus; enquanto ideia da essência eterna desse corpo, ela é, por sua essência, uma parte eterna do entendimento de Deus. A parte perecível da alma é constituída por sua imaginação e per- cepção do que sofre o corpo humano em seus encontros com outros corpos humanos. A parte eterna da alma é constituída pelo seu entendimento, lugar do conhecimento verdadeiro. No que concerne ao corpo, segundo Spinoza, ele se indivi- dualizaria não em função de uma substância particular, mas por meio do tempo e da mudança, devido ao movimento e ao repou- so, à velocidade e à lentidão. Em outras palavras, como identida- de individual, o corpo resultaria de um processo de manutenção de suas partes em uma determinada proporção de movimento e repouso, proporção essa que o corpo humano conseguiria man- ter ao passar por uma série de modificações (afecções e afetos) impostas pelo movimento e repouso de outros corpos. Na parte sobre a natureza e a origem da alma de sua obra Ética, Spinoza apresenta os seguintes postulados sobre o corpo: I. O Corpo humano é composto de um grande número de in- divíduos (de natureza diversa) e cada indivíduo é também composto. 112 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO II. Dos indivíduos dos quais o Corpo humano é composto alguns são fluidos, alguns são moles, alguns, enfim, são duros. III. Os indivíduos que compõem o Corpo humano são afetados, e consequentemente o Corpo humano é ele próprio afetado, de inúmeras maneiras diferentes advindas de corpos exteriores. IV. O Corpo humano tem necessidade, para se conservar, de um grande número de outros corpos, por meio dos quais ele é con- tinuamente conservado. V. Quando uma parte fluida do Corpo humano é afetada por um corpo exterior de maneira a tocar frequentemente uma parte mole, ela muda a superfície desta e imprime nela, por assim dizer, certos vestígios do corpo exterior que a afeta. VI. O Corpo humano pode mover de várias maneiras e dispor os corpos exteriores de inúmeras formas (SPINOZA, 1965, p. 91, tradução nossa). Uma ética da alegria Alegria e tristeza são afecções ou afetos. A alegria é o afe- to que aumenta a capacidade do corpo de manter a sua potên- cia de agir e pensar e, quando associada a uma causa exterior, transforma-se em "amor". A tristeza, ao contrário, é sempre des- trutiva e, quando associada a uma causa exterior, transforma-se em "ódio". Por essa razão, a ética de Spinoza é denominada de "ética da alegria". Os indivíduos se esforçam para ter alegria, buscando man- ter sua existência tanto quanto possível. Esse esforço é denomi- nado, por Spinoza, de "desejo" ou conatus (palavra do latim que significa esforço ou determinação para sobreviver). 113© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO O segundo gênero de conhecimento: as noções comuns ou ideias adequadas Dentro desse contexto de pensamento sobre Deus, a alma e o corpo, Spinoza classifica como segundo gênero de conheci- mento as noções comuns ou ideias adequadas. Aqui se inicia o exercício da razão enquanto conhecimento do que está fora de nós, daquilo que existe. Dessa maneira, devemos compreender nossos afetos e os dos demais seres humanos por meio de noções comuns, obtidas pela razão. Para tanto, faz-se necessário, de acordo com Spinoza, viver em um meio humano buscando o útil em comum. Nada mais útil ao homem do queo homem; os homens, digo, não podem desejar nada de maior valor para a conservação de seu ser do que concordarem todos sobre todas as coisas de ma- neira que as Almas e os Corpos de todos componham uma só Alma e um só Corpo, nada de maior valor do que se esforçarem todos em conjunto para conservar seu ser e procurar tudo o que lhes é útil em comum; do que se conclui que os homens que são governados pela Razão, isto é, aqueles que procuram o que lhes é útil conduzindo-se pela Razão, não desejam para eles mesmos nada que não desejem também para os outros homens, e são justos, de boa fé e honestos. Tais são os comandos da Razão que tinha me proposto dar a conhecer aqui, em poucas palavras, antes de começar a de- monstrá-los em ordem, de maneira mais prolixa, e o meu moti- vo para fazê-lo foi o de chamar, se possível, a atenção daqueles que creem que este princípio: cada um deve procurar o que lhe é útil, é a origem da imoralidade, não da virtude e da morali- dade. Depois de ter mostrado brevemente que é exatamente o contrário, continuo demonstrando-o com os mesmos argu- mentos apresentados até aqui em nosso caminhar (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 259, tradução nossa). 114 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO Spinoza, em seu Tratado Político, dá como exemplo desse segundo gênero de conhecimento pelas ideias comuns, conquis- tadas pela razão, o "poder" da "cidade". O poder da "cidade" vem do fato de que nela os homens têm desejos comuns e ela só conserva esse poder na medida em que consegue unir os dese- jos dos homens. A dimensão social da cidade oferece às paixões individuais um lugar de coexistência, em que os homens podem evitar os efeitos negativos da tristeza e do ódio. Como no estado natural cada um é seu próprio mestre, en- quanto não sofrer a opressão de outro, e no qual sozinho se esforça para se proteger de todos, enquanto o direito natural humano for determinado pelo poder de cada um, este direito na realidade será inexistente, ou pelo menos não terá senão uma existência puramente teórica, pois não se tem nenhum meio seguro de conservá-lo. É certo também que cada um tem menos poder e consequentemente menos direito na medida em que tiver mais razões de temer. Acrescentemos que sem auxílio mútuo os homens não podem manter sua vida e cultivar sua alma. Chegamos, pois, a esta conclusão: o direito natural, no que concerne propriamente ao gênero humano, dificilmente pode ser concebido a não ser quando os homens têm direitos comuns, terras que podem habitar e cultivar juntos, quando po- dem velar pela manutenção de seu poder, proteger-se, repelir toda violência e viver de acordo com uma vontade comum a todos. Quanto maior for o número dos que assim se reunirem, mais direito terão em comum (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 260, tradução nossa). E, um pouco mais adiante naquela mesma obra: Conhece-se facilmente qual é a condição de qualquer Estado considerando o fim em vista do qual um estado civil é fundado; esse fim não é outro senão a paz e a segurança da vida. Conse- quentemente, o melhor governo é aquele sob o qual os homens passam sua vida na concórdia e cujas leis são observadas sem violação. É certo, de fato, que as revoltas, as guerras e o despre- zo ou transgressões das leis são imputáveis não tanto à malícia 115© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO das pessoas, mas a um vício do regime instituído. Os homens, de fato, não nascem cidadãos, mas tornam-se. As afecções naturais que se encontram são, além disso, as mesmas em todo país; se, pois, uma malícia maior reina em uma cidade e se ali se cometem pecados em maior número do que em outras, isso provém do fato de ela não ter obtido concórdia suficiente, de suas institui- ções não serem suficientemente prudentes e de não ter, conse- quentemente, estabelecido em absoluto um direito civil. [...] Se em uma cidade as pessoas tomam armas porque estão sob o império do terror, deve-se dizer não que ali a paz não reina, mas que ali a guerra não reina. A paz, efetivamente, não é a ausên- cia de guerra, é uma virtude que tem sua origem na força, pois a obediência é uma vontade constante da alma de fazer o que, de acordo com o direito comum da Cidade, deve ser feito. Uma ci- dade é preciso ainda dizer, onde a paz é um efeito da inércia de sujeitos conduzidos como um rebanho e educados unicamente para servir, merece o nome de deserto em vez de cidade. Quando dizemos que o melhor Estado é aquele em que os ho- mens vivem na concórdia, entendo que eles vivem uma vida propriamente humana, uma vida que não se define pela circu- lação do sangue e pela realização das outras funções comuns a todos os outros animais, mas que se define principalmente pela razão, pela virtude da alma e pela vida verdadeira (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 261, tradução nossa). Segundo Spinoza, quanto mais a alma conhece à maneira do terceiro gênero de conhecimento (beatitude) e desse segun- do gênero de conhecimento (noções comuns e adequadas), mais ela segue unicamente a necessidade de sua natureza. O primeiro gênero de conhecimento: as ideias gerais e a ima- ginação não nos permitem chegar ao conhecimento libertador Os homens, observa o filósofo, partem das percepções sensíveis e, incapazes de considerá-las isoladamente por não en- 116 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO tenderem que as coisas se produzem de si mesmas (imanência divina), formam "ideias gerais" daquilo que se repete frequen- temente. Baseados na mesma ignorância da natureza divina, os homens exercem a imaginação, que consiste em estabelecer uma distância entre o "ser" e o "dever ser", desconhecendo que não há nenhum "dever ser" que possa ser aplicado ao plano do ser, pois esse é o plano, repetimos, da imanência divina. Constituem ambas, as ideias gerais e a imaginação, o que Spinoza denomina de conhecimento inadequado. Uma das con- sequências desse conhecimento inadequado seriam as paixões. Ao entendermos "inadequadamente" nossas afecções ou afetos, estes se transformam em paixões. A paixão é "desapropriação de si", ou seja, alienação. Isso acontece, segundo Spinoza, por não compreendermos o "desejo" como sendo o efeito em nós do poder eterno e infinito de Deus, acreditando tratar-se de uma ca- rência. Daí a absorção do espírito na busca do prazer, da riqueza e da honra para suprir essa carência enganosa. As ocorrências mais frequentes na vida, aquelas que os homens, como transparecem em todas as suas obras, tomam como sen- do o soberano bem, se referem de fato a três objetos: riqueza, honra, prazer dos sentidos. Ora, cada um destes distrai o espírito de todo pensamento relativo a um outro bem; no prazer a alma é suspensa como se ela tivesse encontrado um bem no qual pu- desse descansar; ela se encontra no mais alto ponto impedida de pensar em um outro bem: após o prazer, por outro lado, vem uma extrema tristeza que, se não suspende o pensamento, o per- turba e o enfraquece. A busca da honra e da riqueza não absor- ve menos o espírito: a da riqueza, sobretudo quando é buscada por si mesma, pois que lhe é dado um grau de soberano bem; quanto à honra, absorve o espírito de uma maneira ainda bem mais exclusiva, porque nunca se deixa de considerá-la uma coisa boa em si mesma, e como um fim último em direção ao qual vão todas as ações. Além disso, a honra e a riqueza não são seguidas de arrependimento como o prazer; ao contrário, quanto mais se 117© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO possui seja uma seja outra, mais a satisfação que se experimenta é maior, daí a consequência de se sentir cada vez mais levado a aumentá-las; mas, se em alguma ocasião nos enganamos em nossa esperança, então surge uma tristeza extrema. A honra, en- fim, é ainda um grande impedimento pelo fato de que para atin- gi-la énecessário dirigir a própria vida de acordo com a maneira de ver dos homens, isto é, fugir do que comumente eles fogem e buscar o que eles buscam. A servidão passional nasce, assim, da ignorância e a alimenta, dividindo o mundo em coisas boas e coisas más, acreditando saber quais nos convêm e quais não nos convêm. Trata-se de um pseudoconhecimento das "causas finais", o que leva à superstição religiosa com a ideia de um Deus arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal, em fun- ção do culto que lhe rendemos (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 251, tradução nossa). Consequências do conhecimento inadequado O preconceito natural ou crença nas causas finais é o princípio de todos os nossos erros, diz Spinoza Se tudo o que existe é emanação de uma substância única e ilimitada, Deus como causa imanente da natureza, identificando- -se, nesse sentido, com ela, estando totalmente nela presente, não depende a natureza da afirmação ou negação de nenhuma vontade outra, de nenhum princípio transcendente para ser o que ela é (sua substancialidade). Não há, pois, "vontade" entendida como o poder de afir- mar ou negar o que é verdadeiro ou o que é falso, assim como não há "finalidade" ou "causas finais", uma vez que não há uma essência imóvel e transcendente em vista da qual foram as coisas criadas. 118 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO É suficiente no momento colocar em princípio o que todos de- vem reconhecer: que todos os homens nascem sem nenhum conhecimento das causas das coisas, e que todos são levados a buscar o que lhes é útil e do qual têm consciência. Daí se segue que: 1° os homens se imaginam livres, porque têm consciência de seus desejos e do que lhes apetece e não pensam, nem em sonho, sobre as causas que os levam a desejar e a querer, não tendo sobre isso nenhum conhecimento. Daí se segue: 2° que os homens agem sempre em vista de um fim, saber o útil que os apetece. Disso resulta que se esforçam sempre unicamente no sentido de conhecer as causas finais das coisas realizadas e descansam quando são informados sobre elas, não existindo para eles mais nenhuma razão de se inquietar. [...] Como, por outro lado, encontram em si mesmos e fora de si mesmos um grande número de meios que contribuem grandemente para atingir o útil, assim, por exemplo, os olhos para ver, os dentes para mastigar, as ervas e os animais para a alimentação, o sol para clarear, o mar para alimentar os peixes, passam a conside- rar todas essas coisas como sendo meios para seu uso. Sabendo ter encontrado esses meios, mas não os tendo procurado, con- cluem que alguém os providenciou para o seu uso. Não podem, de fato, após considerar as coisas como meios, acreditar que elas se produzem de si mesmas, mas, tirando sua conclusão dos meios que costumam utilizar, se persuadem de que existem um ou mais condutores da natureza, dotados da liberdade huma- na, que suprem a todos as suas necessidades, fazendo tudo para sua utilização (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 255, tra- dução nossa). Ao ignorar, assim, as razões ou causas das coisas, passa- mos a ter do mundo uma visão fundada em milagres: crença em deuses que conduzem a natureza para satisfazer nossos desejos; crença de que as coisas naturais foram criadas tendo em vista o homem. Como a experiência não valida tais crenças, os homens são levados às superstições, buscando adivinhos para interpretar os fenômenos. 119© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO Por sua vez, essa servidão a causas finais [...] favorece as "paixões tristes", o ódio da vida, a amargura com relação a tudo o que é. [...] levando os homens a confrontar o real com um ideal ilusório, proíbe amar o que é e conhecê-lo na alegria. Acreditando na realidade do mal, lastimam sua sorte, pensam que a perfeição não é deste mundo e que a verdadeira vida está em outro lugar. Essa extensão da tristeza multiplica as ocasiões de ódio entre os homens, os ódios os mais terríveis como os que inspiram as diferentes superstições religiosas (SPI- NOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 251, tradução nossa). Não há livre arbítrio ou liberdade nas coisas e nos homens. Só Deus é livre Outra consequência do conhecimento inadequado seria a crença no livre arbítrio. Vejamos o que diz Spinoza: Chamo livre, no que me concerne, algo que é e age unicamente segundo a necessidade da natureza: coagido é aquele que é deter- minado por outro a existir e a agir de certa maneira determinada. Deus, por exemplo, existe livremente, ainda que necessariamente, porque existe unicamente em função da necessidade de sua na- tureza. Também Deus conhece a si mesmo e todas as coisas livre- mente, porque decorre de sua própria natureza de Deus conhecer todas as coisas. Veja bem, não concebo a liberdade consistindo em um livre decreto, mas em uma necessidade livre. Mas, desçamos às coisas criadas que são todas determinadas a existir e a agir de certa maneira definida. Para tornar isso claro e inteligível, concebamos algo muito simples: uma pedra, por exem- plo, recebe certa quantidade de movimento de uma causa exterior que a move e, cessando o impulso da causa exterior, ela continuará a se mover necessariamente. Essa persistência da pedra em seu movimento é uma coerção, não por necessidade, mas se define como um impulso de uma causa exterior. E o que é verdadeiro com relação à pedra deve sê-lo no que se refere a toda coisa singular, qualquer que seja a complexidade que se queira lhe atribuir, não 120 © ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO importando quão numerosas forem suas aptidões, porque toda coisa singular é necessariamente determinada a existir e a agir de certa maneira determinada por uma causa exterior. Concebamos agora que a pedra, enquanto continua a se mover, pensa e sabe que ela faz esforço, tanto quanto pode, para se mover. Essa pedra seguramente, pois que ela tem somente consciência de seu esforço e que ela não é de maneira alguma indiferente, acredita- rá que é muito livre e que não persevera em seu movimento porque não quer. Tal é essa liberdade humana de que todos se vangloriam de possuir e que consiste unicamente no fato de que os homens têm consciência de seus apetites e ignoram as causas que os determi- nam (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 261, tradução nossa). Segundo Spinoza, tanto a decisão da mente quanto o ape- tite e a determinação do corpo são uma só e mesma coisa: "as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites" (Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio). Um homem embriagado também acredita que é pela livre de- cisão de sua mente que fala aquilo sobre o qual, mais tarde, já sóbrio, preferiria ter-se calado. Igualmente, o homem que diz loucuras, a mulher que fala demais, a criança e muitos outros do mesmo gênero acreditam que assim se expressam por uma livre decisão da mente, quando, na verdade, não são capazes de conter o impulso que os leva a falar. Assim, a própria ex- periência ensina, não menos claramente que a razão, que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determina- dos. Ensina também que as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites: elas variam, portanto, de acordo com a variável disposição do corpo. Assim, cada um regula tudo de acordo com o seu próprio afeto e, além disso, aqueles que são afligidos por afetos opostos não sabem o que querem, en- quanto aqueles que não têm nenhum afeto são, pelo menor impulso, arrastados de um lado para outro. Sem dúvida, tudo isso mostra claramente que tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do corpo são, por natureza, coisas 121© ÉTICA II UNIDADE 2 – ÉTICA MODERNA: RACIONALISMO E EMPIRISMO simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que cha- mamos decisão quando considerada sob o atributo do pen- samento
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