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141 ÉTICA MODERNA: HUME E KANT 1. OBJETIVOS • Compreender a proposta do empirista David Hume so- bre a moral. • Analisar a concepção de moral no criticismo de Immanuel Kant. 2. CONTEÚDOS • O método empirista de David Hume. • O criticismo de Immanuel Kant. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Como forma de sensibilização ao conteúdo tratado nes- ta unidade, indicamos que assista os seguintes filmes: • Amadeus, de 1984, com direção de Milos Forman. • Barry Lyndon, de 1975, com direção de Stanley Kubrick. • Danton, o processo da Revolução, de 1982, com di- reção de Andrzej Wajda. UNIDADE 3 142 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT 2) Para iniciar nossa especulação sobre Kant e Hume, in- dicamos os vídeos a seguir: • SAVATER, F. La Aventura del Pensamiento – Immanuel Kant. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=jNPRlhJlj2A>. Acesso em: 25 ago. 2015. • ______. La Aventura del Pensamiento – David Hume. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=vHUNfRLZKhA>. Acesso em: 23 abr. 2015. • GHIRALDELLI, P. Kant e a subjetividade moderna 1. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch ?v=SGPK7tGiXg0&feature=relmfu>. Acesso em: 25 ago. 2015. • ______. Kant e a subjetividade moderna 2. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=3gQamHOPtn4>. Acesso em: 25 ago. 2015. 4. INTRODUÇÃO Entre os anos de 1680 e 1715, verifica-se uma crise cultural na Europa. Tudo que constituía a base da sociedade tradicional será passado sob o crivo da razão. É o Século das Luzes (Iluminis- mo), movimento intelectual, social e político de todas as classes cultas. São características desse movimento: 1) O método da observação controlada dos fatos em bus- ca de leis universais, modelo de investigação inspirado na construção da Física de Newton. 2) Crítica ao racionalismo dogmático que concebe a razão como detentora de todo conhecimento. A razão pode tudo conhecer, desde que bem conduzida. 143© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT 3) Herança de Descartes: só o que for reconhecido legí- timo pela razão do sujeito individual deve e pode ser considerado como tal. 4) Início da era industrial, com o crescimento do interesse pelos fenômenos econômicos. 5) A salvação passa a não mais depender de Deus, mas da boa vontade de cada um: a origem do mal está na intenção daquele que age; o homem, ao contrário do que ensinava a religião, não é incapaz, por sua queda ou pecado original, de chegar à verdade e ao bem. 6) Em política, a legitimidade do poder não é mais atri- buída a uma ordem divina ou natural, mas fundada na vontade dos indivíduos. Duas grandes revoluções, a americana e a francesa, resultam desse processo de emancipação. 7) A visão do ser humano, que, no século 16, se caracte- rizava por uma profunda relação com a natureza, tor- na-se predominantemente histórica. Cada vez mais, a humanidade se volta para uma existência baseada em projetos e não na repetição de ideias, hábitos e cos- tumes tradicionais, visualizando-se como passível de constante aperfeiçoamento, por meio da educação e da história. a) Na segunda metade do século 18, o progresso no campo da difusão do conhecimento levará à for- mação de uma opinião pública mais esclarecida, o que permitirá reformas do estado social e político. b) Grande progresso das ciências e técnicas. c) A burguesia foi a principal responsável pelo movi- mento resultou na globalização da economia. 144 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT d) Grande preocupação com o conhecimento, incidin- do sobre ele a chamada interpretação fenomenista, presente na história da Filosofia desde a Antiguida- de (por exemplo, os céticos) e que, como já disse- mos, consiste (no caso do conhecimento) em negar a possibilidade de conhecimento de todo "em si". 8) No campo das questões filosóficas propriamente ditas, temos o desenvolvimento do empirismo na Inglaterra, sua introdução na França, o desenvolvimento do racio- nalismo na Alemanha culminando com a superação de si mesmo, tornando-se, como consequência do pen- samento kantiano, uma filosofia transcendental (no sentido de uma filosofia que submete tudo ao crivo da razão). 9) No que diz respeito à moral, surgem inúmeras posi- ções, pois o desenvolvimento do empirismo abala de maneira significativa o caráter absoluto que era confe- rido à moral até então, relativizando-a. Temos: a) Jeremy Bentham (1748-1832), defensor de uma moral utilitarista, segundo a qual o fundamento da moral é a felicidade dos indivíduos sem prejuízo para o bem-estar coletivo. Sistematizou o princípio da utilidade. Trata-se de uma doutrina para a qual toda ação ou inação deverá promover o bem-estar de todos os seres. Observemos que tal posição já se encontra na Filosofia Antiga em Epicuro. • Importante para o utilitarismo não são os agen- tes morais (se são bons, generosos ou não), mas as consequências dos atos, uma vez que, dentro de circunstâncias diferentes, um mesmo ato pode ser moral ou imoral, dependendo de 145© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT suas consequências boas ou más. É o que se denomina de "consequencialismo": agir sem- pre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar possível. • O critério para classificar o ato como bom ou mau seriam os resultados em todos os indiví- duos afetados pela ação, ou seja, a quantidade total de bem-estar produzida. Assim, é válido sa- crificar uma minoria, pois o bem-estar de cada indivíduo tem o mesmo peso, com relação ao bem-estar geral. Em outras palavras, atribuem- -se valores ao bem-estar, independentemente de indivíduos e culturas. Há, dessa maneira, um universalismo. b) Temos, ainda, como representante da posição uti- litarista, James Mill (1733-1836), filósofo e histo- riador escocês. c) Bernard de Mandeville (1670-1733), filósofo ho- landês, segundo o qual não há princípios morais de valor absoluto que fundamentem os atos sociais. Os homens agem de acordo com seus interesses individuais; portanto, a moral se basearia em fato- res referentes aos interesses dos indivíduos, expe- rimentalmente comprovados. d) Adam Smith (1723-1790), filósofo e economista escocês, concebe a moral também baseada na experiência. Para ele, a "simpatia" seria o critério da moralidade. Por simpatia entendia a comunica- ção à nossa alma das emoções de outrem. Agimos bem quando o que fazemos merece a simpatia a mais universal possível. 146 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT 10) Como reação ao empirismo, temos a chamada Escola Escocesa. Origina-se na Sociedade Filosófica fundada pelo filósofo escocês Thomas Reid (1710-1796). É tam- bém chamada Escola do Senso Comum. Um de seus re- presentantes principais foi Anthony A. C. Shaftesbury, fi- lósofo inglês, cuja posição sobre a moral é denominada de moral do sentimento. Baseia sua concepção de moral nos juízos do senso comum e também na existência de Deus, uma vez que o senso comum seria inspirado por Deus. Para ele, embora a fonte comum do conhecimen- to seja a experiência, existem algumas ideias peculiares que acompanham as sensações, como as ideias do bem e do belo, que são inatas, não resultam da experiência. Surgem como uma disposição especial da alma. São imediatas, universais, desinteressadas. Trata-se de uma faculdade moral que tem por objeto a bondade moral. Na presente unidade, selecionamos, para um estudo mais aprofundado, dois dos mais influentes representantes das posi- ções empirista e racionalista no século 18 e que são, respectiva- mente, David Hume e Immanuel Kant. 5. DAVID HUME (1711-1776) Nascido em Edimburgo (Escócia), Hume lutou, desde o iní- cio, para poder se dedicar à literatura e à Filosofia, opondo-se à própria família, quedesejava vê-lo seguir a carreira jurídica. Também o sucesso demorou a acontecer. Com o sucesso, porém, sua filosofia é ainda hoje consi- derada como uma das grandes influências sobre o pensamen- to contemporâneo, tanto no que concerne à chamada Filosofia 147© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT Analítica (que reduz a Filosofia a uma pesquisa sobre a lingua- gem) quanto no que se refere a filosofias como a Fenomenologia de Edmund Husserl, que busca levar a atitude de Descartes às suas últimas consequências, visando a uma fundação radical do conhecimento. A primeira e mais detalhada explicação da teoria moral de Hume encontra-se no livro 3, intitulado "Da Moral', de sua obra Tratado da natureza humana. O fenômeno da moralidade, segundo Hume, surge no rela- cionamento dos indivíduos entre si. Para Hume, não é concebível que todos os atos das pessoas sejam tidos como moralmente equivalentes, que todos os atos sejam igualmente dignos de es- tima e consideração. As distinções morais são para ele uma rea- lidade. Seu objetivo é descobrir quais são os princípios univer- sais dos quais deriva toda censura ou aprovação e quais tipos de percepções nos permitem fazer distinções morais, como entre o bem e o mal, entre o certo e o errado etc. Busca, igualmente, saber em quais circunstâncias essas percepções surgem. Hume entende a questão moral como uma questão de leis e regras de funcionamento da natureza humana: nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa, a menos que haja na na- tureza humana algum motivo que a produza. A teoria moral de Hume não tem, pois, como referência um transcendente independente da experiência dos sentidos, como a vontade de Deus ou uma razão a priori. Volta sua reflexão para a interioridade pura, pressupondo que a alma seja um campo de percepções, impressões e ideias. Para o filósofo, nada existe previamente no nosso pensamento. Tudo vem da experiência e é, portanto, de natureza sensível. 148 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT A questão moral está fundada no movimento emotivo ou "emoção" e não no entendimento A primeira questão colocada por Hume é a de saber se as distinções morais são derivadas da razão. Entende a razão como um puro cálculo de meios, capaz apenas de avaliar os melhores meios para um determinado fim, mas sem o poder de demons- trar o caráter desejável ou não desses fins em si mesmos. Uma ação não é virtuosa ou viciosa pelo fato de obedecer à razão, mas pelo fato de nos proporcionar uma sensação agradável ou desagradável. Ao entender a razão teórica como um puro cálculo de meios, Hume postula uma moral fundada inteiramente em uma capacidade "emotiva", ou seja, na capacidade humana de agir impulsionada por um "motivo", por "algo que move", ou "que causa ou dá origem a algo". Para Hume, a ação é apenas um sinal externo, pois a ava- liação moral diz respeito ao motivo que produziu a ação. A ação moralmente correta, segundo o filósofo, seria aquela na qual o agente age movido por um motivo virtuoso, mesmo no caso de não realização da ação em razão de outras causas. É o que vere- mos no texto do filósofo a seguir: 2. É evidente que, quando elogiamos uma determinada ação, consideramos apenas os motivos que a produziram, e tomamos a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter. A realização externa não tem nenhum mérito. Te- mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali- dade moral. Ora, como não podemos fazê-lo diretamente, fixa- mos nossa atenção na ação, como signo externo. Mas a ação é considerada apenas um signo; o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu. 149© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT 3. Do mesmo modo, sempre que exigimos que uma pessoa rea- lize uma ação, ou a censuramos por não realizá-la, estamos su- pondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação, e consideramos vicioso que o te- nha desconsiderado. Se após investigarmos melhor a situação, descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em seu coração, embora sua operação tenha sido impedida por algu- ma circunstância que nos era desconsiderada, retiramos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que te- ríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exigíamos (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1). Segundo Hume, portanto, a razão tem apenas um papel instrumental, o papel de ser apenas guia da ação: a razão não diz quais devem ser os nossos objetivos, apenas o que devemos fazer para atingi-los; pode nos dizer em que acreditamos, mas não pode nos dizer no que devemos acreditar. A aprovação moral, logo, não é um juízo da razão sobre conceitos ou fatos. Em outras palavras, não basta conhecer o ca- ráter de virtude de uma ação, o sentido de sua dimensão moral; é necessário agir movido por um motivo virtuoso. A ação moral- mente virtuosa não é aquela em que o agente é simplesmente movido pelo caráter de virtude da ação, mas, aquela em que o agente é movido por um motivo virtuoso. Vejamos um texto de Hume a esse respeito: 4. Vemos, portanto, que todas as ações virtuosas derivam seu mérito unicamente de motivos virtuosos, sendo tidas apenas como signos desses motivos. Desse princípio, concluo que o pri- meiro motivo virtuoso, que confere mérito a uma ação, nunca pode ser uma consideração pela virtude dessa ação, devendo ser antes algum outro motivo ou princípio natural. Supor que a mera consideração pela virtude da ação possa ser o primeiro motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um raciocínio circular. Pra que possamos ter tal consideração, a ação tem de 150 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT ser realmente virtuosa; e essa virtude tem de ser derivada de algum motivo virtuoso; conseqüentemente, o motivo virtuoso precisa ser diferente da consideração pela virtude da ação. É preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne vir- tuosa. Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter consideração por sua virtude. Portanto, algum motivo virtuoso tem de anteceder essa consideração. [...] 7. Em resumo, podemos estabelecer como uma máxima indu- bitável que nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa, a menos que haja na natureza humana algum motivo que a produza, distinto do sentido de sua moralidade (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1). Hume dá como exemplo uma ação de honestidade, e faz a dis- tinção entre o simples conhecimento do caráter de virtude de uma ação de honestidade e a existência ou não de um motivo virtuoso propriamente dito. Mostra que não é simplesmente o agir por con- siderar a honestidade uma virtude que torna a ação honesta, mas o motivo virtuoso presente ou não no interior da natureza do agente. 9. Agora apliquemos tudo isso ao caso presente. Suponhamos que uma pessoa tenha me emprestado uma soma em dinheiro, sob a condição de que eu lhe restituísse essa soma em alguns dias; suponhamos também que, no fim do prazo combinado, ela me peça o dinheiro de volta. Pergunto: que razão ou motivo tenho para devolver-lhe o dinheiro? Dir-se-á, talvez, que meu respeito pela justiça e minha repulsa à vilania e à desonestida- de são para mim razões suficientes, se possuo um mínimo de honestidade ou sentido do dever e da obrigação. Sem dúvida, essa resposta é correta e satisfatória para o homem em seu es- tado de civilização, e quando formado segundo certa discipli- na e educação. Mas, em sua condição rude e mais natural (se quereis chamar de natural tal condição), essa resposta seria re- jeitada como completamente ininteligível e sofística. Pois uma pessoa que se encontrasse nessa situação imediatamente vos perguntaria: em que consiste essa honestidade e justiça que encontrais na restituição de um empréstimo e na abstenção da 151© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANTpropriedade alheia? Certamente não está na ação externa. Por conseguinte, tem de estar no motivo de que essa externa foi derivada. Esse motivo nunca poderia ser a consideração pela honestidade da ação, pois é uma clara falácia dizer que é preci- so um motivo virtuoso para tornar uma ação honesta, e ao mes- mo tempo em que a consideração pela honestidade é o moti- vo da ação. Só podemos ter consideração pela virtude de uma ação se a ação for de antemão virtuosa. Ora, uma ação só pode ser virtuosa se procede de um motivo virtuoso. Um motivo vir- tuoso, portanto, deve anteceder a consideração pela virtude; é impossível que o motivo virtuoso e a consideração pela virtude sejam a mesma coisa (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1). Quando o motivo de uma ação for tão somente o sentido da moralidade ou do dever, ela pode estar expressando uma ca- rência. É o que diz Hume: 8. Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode produzir uma ação sem qualquer outro motivo? Respondo que sim, mas que isso não constitui uma objeção à presente doutri- na. Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na na- tureza humana, uma pessoa que sente seu coração desprovido desse motivo pode odiar a si mesma por essa razão, e pode rea- lizar a ação sem o motivo, apenas por certo sentido do dever, ao menos para disfarçar para si mesma, tanto quanto possível, sua carência. Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão em seu íntimo pode, apesar disso, ter prazer em praticar cer- tos atos de gratidão, pensando desse modo ter realizado o seu dever. As ações inicialmente são consideradas somente como signos de motivos; mas o que costuma ocorrer, nesse caso e em todos os demais, é que acabamos fixando nossa atenção apenas nos signos, negligenciando em parte a coisa significada (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1). E Hume conclui: 10. É preciso encontrar, portanto, para os atos de justiça e ho- nestidade, algum motivo distinto de nossa consideração pela honestidade; e é nisso que está a grande dificuldade. Porque 152 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT se disséssemos que a preocupação com nosso interesse priva- do ou com a nossa reputação é o motivo legítimo de todas as ações honestas, seguir-se-ia que sempre que cessa tal preocu- pação, a honestidade não poderia mais ter lugar. Mas, é certo que o amor a si próprio, quando age livremente em vez de nos levar a ações honestas, é fonte de toda injustiça e violência; e ninguém pode corrigir esses vícios sem corrigir e restringir os movimentos naturais desse apetite (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1). Essa capacidade "emotiva" que propicia ações moralmente vir- tuosas é, para Hume, uma "percepção" Por influência da "teoria do senso comum" dos moralistas ingleses e escoceses (de que falamos na introdução desta unida- de), Hume concebe essa capacidade emotiva como sendo uma faculdade de percepção moral, imediata e desinteressada, simi- lar às faculdades de percepção sensorial, uma faculdade que de- tectaria qualidades morais em pessoas, ações, comportamentos e situações, tal como nossos sentidos externos captam qualida- des nos objetos externos. Ao examinar o que nos motiva a agir de certa maneira, podemos determinar a natureza de uma virtu- de, especificamente se ela é natural ou artificial. Virtudes naturais e artificiais As virtudes naturais seriam aquelas "naturalmente" apro- vadas: a benevolência, a humildade, a caridade, a generosidade. As virtudes artificiais, por sua vez, seriam as mais necessá- rias, porque, segundo Hume, os valores morais mais importantes são uma questão de convenção social. São elas: a justiça, o cum- primento de promessas, a lealdade, a modéstia etc. 153© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT No homem, observa-se uma conjunção antinatural de fragilida- de e de necessidade Hume afirma: 2. De todos os animais que povoam nosso planeta, à primeira vista parece ser o homem aquele contra o qual a natureza foi mais cruel, dadas as inúmeras carências e necessidades com que o cobriu e os escassos meios que lhe fornece para aliviar essas necessidades. Em outras criaturas, esses dois pontos em geral se compensam mutuamente. Se considerarmos que o leão é um animal voraz e carnívoro, descobriremos que é cheio de necessidades; mas se prestarmos atenção em sua constitui- ção e temperamento, sua agilidade, sua coragem, suas armas e sua força, veremos que nele as vantagens são proporcionais às carências. O carneiro e o boi carecem de todas essas vanta- gens, mas seus apetites são moderados e seu alimento é fácil de obter. Apenas no homem se pode observar, em toda a sua perfeição, essa conjunção antinatural de fragilidade e necessi- dade. Não somente o alimento necessário para sua subsistência escapa a seu cerco e aproximação, ou, ao menos, exige traba- lho para ser produzido, como, além disso, o homem precisa de roupas e abrigo para se defender das intempéries. Entretanto, considerado apenas em si mesmo, ele não possui armas, força ou qualquer outra habilidade natural que seja em algum grau condizente com as necessidades (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2). Pela sociedade e pela formação da família, o homem se torna superior às demais criaturas Para o filósofo: 3. Somente pela sociedade ele é capaz de suprir suas deficiên- cias, igualando-se às demais criaturas, e até mesmo adquirindo uma superioridade sobre elas. Pela sociedade, todas as suas de- bilidades são compensadas; embora, nessa situação, suas ne- cessidades se multipliquem a cada instante, suas capacidades 154 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT se ampliam ainda mais, deixando-o, em todos os aspectos, mais satisfeito e mais feliz do que jamais poderia se tornar em sua condição selvagem e solitária. Quando cada indivíduo trabalha isoladamente, e apenas para si mesmo, sua força é limitada de- mais para executar qualquer obra considerável; tem de empre- gar seu trabalho para suprir as mais diferentes necessidades, e sua força e seu sucesso não são iguais o tempo todo, a menor falha em um dos dois deve inevitavelmente trazer a ruína e a infelicidade. A sociedade fornece um remédio para esses três inconvenientes. A conjunção de forças amplia nosso poder; a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade; e o auxílio mú- tuo nos deixa menos expostos à sorte e aos acidentes. É por essa força, capacidade e segurança adicionais que a sociedade se torna vantajosa. 4. Mas para que a sociedade se forme, não basta que ela seja vantajosa; os homens também têm de se dar conta de suas vantagens. Entretanto, em seu estado selvagem e inculto [...] é impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse conhecimento. Felizmente, junto com essas necessidades cujos remédios são remotos e obscuros existe uma outra necessida- de, que, por ter um remédio mais imediato e evidente, pode ser legitimamente considerada o princípio primeiro e original da sociedade humana. Essa necessidade não é outra senão aquele apetite natural que existe entre os sexos, unindo-os e preser- vando sua união até o surgimento de um outro laço, ou seja, a preocupação com sua prole comum. Essa nova preocupação também se torna um princípio de união entre os pais e os filhos, formando uma sociedade mais numerosa, em que os pais go- vernam em virtude da superioridade de sua força e sabedoria, e, ao mesmo tempo, têm o exercício de sua autoridade limitado pela afeição natural que sentem por seus filhos. Em pouco tem- po, o costume e o hábito, agindo sobre as tenras mentes dos filhos, tornam-nos sensíveis às vantagens que podem extrair da sociedade, além de gradualmente formá-los para essa socieda- de, aparando as duras arestas e afetos adversos que impedem sua coalizão (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2). 155© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT O poder das paixões pode ser um obstáculo ao exercícioda ge- nerosidade advinda do convívio social Hume diz: 6. Entretanto, embora devamos reconhecer, em honra da na- tureza humana, a existência dessa generosidade, podemos ao mesmo tempo observar que essa paixão tão nobre, em vez de preparar os homens para a vida em sociedades, é quase tão contrária a estas quanto o mais acirrado egoísmo. Pois, enquanto cada pessoa amar a si mesma mais que a qualquer outro, e, em seu amor pelos demais, sentir maior afeição por seus parentes e amigos, essa situação deve necessariamente produzir uma oposição de paixões e, conseqüentemente, uma oposição de ações; e, para uma união recém-estabelecida, isso só pode ser perigoso. 7. Note-se, entretanto, que essa contrariedade de paixões se- ria pouco perigosa se não coincidisse com uma peculiaridade nas circunstâncias externas, que dá a ela oportunidade de se exercer. Os bens que possuímos podem ser de três espécies diferentes: a satisfação interior do espírito, as qualidades ex- teriores de nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com o nosso trabalho e nossa boa sorte. Podemos usufruir dos primeiros com plena segurança, os segundos podem nos ser tomados, mas não beneficiam em nada a quem deles nos priva. Apenas os últimos podem ser transferidos sem sofrer alguma perda ou alteração; além disso, não existem em quan- tidade suficiente para suprir os desejos e as necessidades de todas as pessoas. Por isso, assim como o aperfeiçoamento desses bens é a principal vantagem da sociedade, assim tam- bém a instabilidade de sua posse, justamente com a sua es- cassez, é seu maior impedimento (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2). 156 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT A solução são as virtudes artificiais: a necessidade de uma con- venção social O filósofo afirma: 9. O remédio, portanto, não vem da natureza, mas do artifício; ou, mais corretamente falando, a natureza fornece, no juízo e no entendimento, um remédio para o que há de irregular e inconveniente nos afetos. Porque quando os homens, em sua primeira educação na sociedade, tornam-se sensíveis às infi- nitas vantagens que dela resultam, e, além disso, adquiriram um novo gosto pelo convívio e pela conversação; e quando observam que a principal perturbação da sociedade se deve a esses bens que denominamos externos, a sua mobilidade e à facilidade com que se transmitem de uma pessoa a outra, en- tão precisam buscar um remédio que ponha esses bens, tanto quanto possível, em pé de igualdade com as vantagens firmes e constantes da mente e do corpo. Ora, o único meio de rea- lizar isso é por uma convenção, de que participam todos os membros da sociedade, para dar estabilidade à posse desses bens externos, permitindo que todos gozem pacificamente da- quilo que puderam adquirir por trabalho ou boa sorte. Desse modo, cada qual sabe aquilo que pode possuir com segurança e as paixões têm restringidos seus movimentos parciais e con- traditórios. Tal restrição não é contrária às paixões; se o fosse, jamais poderia ser feita, nem mantida. É contrária apenas a seu movimento cego e impetuoso. Em vez de abrir mão de nossos interesses próprios, ou do interesse de nossos amigos mais próximos, abstendo-nos dos bens alheios, não há melhor meio de atender a ambos que por essa convenção, porque é desse modo que mantemos a sociedade, tão necessária a seu bem-estar e subsistência, como também aos nossos (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2). 157© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT A ideia de justiça é uma virtude artificial, porque é obtida por uma convenção social e funda e explica as ideias de proprieda- de, de direito e de obrigação Hume prossegue: 11. Uma vez firmada essa convenção sobre a abstinência dos bens alheios, e uma vez todos tendo adquirido uma estabilidade em suas posses, surgem imediatamente as idéias de justiça e de in- justiça, bem como as de propriedade, direito e obrigação. Essas últimas são absolutamente ininteligíveis sem a compreensão das primeiras. Nossa propriedade não é senão aqueles bens cuja posse constante é estabelecida pelas leis da sociedade, isto é, pelas leis da justiça. Portanto, aqueles que utilizam as palavras propriedade, direito ou obrigação sem ter antes explicado a origem da justiça, ou que fazem uso daquelas para explicar essa última, estão come- tendo uma falácia grosseira, mostrando-se incapazes de raciocinar sobre um fundamento sólido. A propriedade de uma pessoa é um objeto a ela relacionado; essa relação não é natural, mas moral, e fundada na justiça. É absurdo, portanto, imaginar que podemos ter uma idéia de propriedade sem compreender completamente a natureza da justiça e mostrar sua origem no artifício e na invenção humana. A origem da justiça explica a da propriedade. Ambas são geradas pelo mesmo artifício. Como nosso primeiro e mais natural sentimento moral está fundado na natureza de nossas paixões, e dá preferência a nós e a nossos amigos sobre estranhos, é impos- sível que exista naturalmente algo como um direito ou uma pro- priedade estabelecida, enquanto as paixões opostas dos homens impelem em direções contrárias e não são restringidas por nenhu- ma convenção ou acordo (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2). Um ato isolado de justiça não atinge a sua finalidade porque, sendo isolado e único, é frequentemente contrário ao interesse público Sendo a justiça produto de uma convenção social, tem como fim o interesse público. Portanto, um ato isolado e privado de justiça não atingiria a sua finalidade. 158 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT 22. Quando um homem de mérito, dado à caridade restitui uma grande fortuna a um avaro ou a um enganador desleal, ele agiu de maneira justa e louvável, mas o grupo sofrerá as conseqüên- cias. Todo ato isolado de justiça, considerado separadamente, não contribui nem ao interesse privado nem ao interesse público e poderemos facilmente conceber de que maneira alguém pode empobrecer em conseqüência de um caso isolado de integridade e em razão de desejar que por um só ato, as leis da justiça sejam, em todo o universo, suspensas por um instante. Mas, embora os atos isolados de justiça sejam contrários ao interesse públi- co e privado, é certo que um plano ou esquema de vários atos contribuem altamente, através da verdade, e são absolutamente necessários à sustentação da sociedade e um benefício para cada indivíduo. É impossível separar o bem do mal. [...] Ainda que um grupo sofra em determinado caso, este mal temporário é grande- mente compensado pela obediência constante à regra e pela paz e ordem que ela institui na sociedade (HUME, 1991, p. 98-99). Considerações finais Finalizando, gostaríamos de assinalar que o afastamento de uma razão abstrata e conceitual como fonte ética da ação moral conduz Hume na direção do que entendemos como sen- do uma das facetas essenciais do ético propriamente dito, tal como o estamos compreendendo nesta obra, e que consiste em contemplar o caráter intencional, singular de cada ato, compor- tamento e situação. Contemplar o caráter intencional de uma ação, comportamento ou situação é contemplar sua "morada interior" e não a "morada exterior", ou o fato da ação em si: "A realização externa não tem nenhum mérito", diz Hume. Vimos como o filósofo descreve essa "morada interior", fundamentando-a na "motivação". O que importa é o caráter "emotivo" da ação, aquilo que a move e que a distingue da "mo- rada exterior", que é a ação apenas como puro sinal. 159© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT No tópico seguinte a este, trabalharemos a posição do filóso- fo Immanuel Kant, cujas reflexões sobre a moral receberam, como ele mesmo diz, grande influência do pensamento de Hume, a quem atribui o despertar do "sono dogmático" em que se encontrava. 6. IMMANUEL KANT (1724-1804)Kant nasceu, viveu e morreu em Königsberg (Prússia Oriental, atual Alemanha). Nasceu em uma família de poucos recursos finan- ceiros. Recebeu uma educação, particularmente de sua mãe, fun- dada nos princípios do pietismo (corrente radical do protestantismo prussiano, originário de um movimento da Igreja Luterana alemã do século 18), lutou sempre com dificuldades tanto materiais quanto no que se refere à compreensão de sua proposta filosófica inovado- ra. Manteve-se, porém, firme em seu trabalho de grande rigor. A época em que viveu Kant, o século 18, como foi dito na introdução desta unidade, é chamada de Século das Luzes ou Ilu- minismo, ou ainda, Era da Razão, época da qual é um dos maio- res representantes e que tinha por objetivo principal reformar a sociedade contra a intolerância da Igreja e do Estado. Kant não nega a importância da religião, que tem, segundo ele, sua razão de ser, uma vez que existe todo um mundo que escapa às capacidades da razão. Porém, quer mostrar que o fun- damento do conhecimento e da moral pode ser encontrado fora da religião, que até então dominara. Segundo Kant, não podemos pretender conhecer realida- des transcendentes, às quais não temos acesso. Devemos nos li- mitar a buscar conhecer a realidade que é objeto de experiência para nós. E, para tanto, faz-se necessário esclarecer qual seria a estrutura de nossas capacidades cognitivas, aquelas que não de- 160 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT correm de experiências individuais e particulares, mas que dizem respeito a toda a humanidade como tal. A conclusão a que chega é que as duas fontes do conheci- mento (sensibilidade e entendimento) estão no sujeito e não no mundo (leia o tópico "Kant e o Iluminismo" desta mesma unidade). Kant e a moral As quatro principais obras de Kant em que a moral é trata- da mais longamente são: • Fundamentação da metafísica dos costumes (1785); • Crítica da razão prática (1788); • Crítica da faculdade de julgar (1790); • A paz perpétua: um projeto filosófico (1795). A teoria da "boa vontade" Kant começa afirmando que a única coisa que merece a denominação de "bem" e de "bom" é o que chamou de "boa vontade". A "boa vontade" é, no dizer de Kant, o que é possí- vel conceber no ou fora do mundo como bom, sem restrição. Os diversos talentos do espírito, como inteligência, capacidade de julgar, coragem, decisão, perseverança e temperança, serão coisas boas ou ruins, dependendo das disposições próprias ou do "caráter" da vontade que os esteja usando. Poderíamos dizer o mesmo de dons como poder, riqueza, felicidade. Tais talentos ou dons trazem, segundo o filósofo, uma confiança em si que, frequentemente, na ausência de uma boa vontade, se conver- tem em presunção. NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrição possa ser considerada boa, a 161© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT não ser uma só: uma BOA VONTADE. A inteligência, o dom de apreender as semelhanças das coisas, a faculdade de julgar, e os demais talentos do espírito, seja qual for o nome que se lhes dê, ou a coragem, a decisão, a perseverança nos propósitos, como qualidades do temperamento, são sem dúvida, sob múl- tiplos respeitos, coisas boas e apetecíveis; podem, entretanto, estes dons da natureza tornar-se extremamente maus e preju- diciais, se não for boa vontade que deles deve servir-se e cuja especial disposição se denomina caráter. O mesmo se diga dos dons da fortuna. O poder, a riqueza, a honra, a própria saúde e o completo bem-estar e satisfação do próprio estado, em resu- mo o que se chama felicidade, geram uma confiança em si mes- mo que muitas vezes se converte em presunção, quando falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para fins universais tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também o princípio da ação. Isto, sem contar que um especta- dor razoável e imparcial nunca lograria sentir satisfação em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os desejos de uma pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade; donde parece que a boa vontade constitui a condição indispensável para ser feliz (KANT, 1994, p. 4). A boa vontade é boa em si mesma, não está condicionada a circunstâncias. O homem é regido por ele mesmo, é criador de valores morais. Essa consciência moral não é nem instintiva nem emotiva. É a própria razão. Kant e Hume Para Kant, a razão não tem apenas um papel instrumental, como para Hume. Toda moralidade funda sua autoridade apenas na razão. Só a razão determina se uma ação é boa ou má, inde- pendentemente de nossos desejos. Enquanto seres sensíveis, estamos submissos ao mecanis- mo natural, porém, como seres dotados de inteligência, somos 162 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT capazes de pensar, conhecer a nós mesmos e emitir juízos mo- rais, o que nos torna capazes de escapar ao determinismo da natureza. Apenas em alguns casos, nossas ações podem ser produ- zidas por desejos e crenças. Isso acontece quando agimos por inclinação. Quando nossas ações são guiadas por considerações morais, a razão determina não apenas os meios, mas também os fins de nossas ações. A questão que se coloca é, então, a se- guinte: que razão é essa que, por si mesma, ordena "o que deve" acontecer, independentemente de todo e qualquer fenômeno e, portanto, universalmente, a todo ser humano? Propõe Kant a si, então, a tarefa de circunscrever os limites de possibilidade tanto da razão responsável pelo conhecimento (a especulativa) quanto da razão responsável pela moral. A razão responsável pela moral é a razão prática Ao tentar fundamentar a moral, Kant é levado à proposi- ção de uma razão distinta da razão especulativa. É a razão que denominou de "prática". A consciência moral é a razão prática, segundo Kant. Como observa García Morente, em Fundamentos da filosofia (1980), Kant vai buscar em Aristóteles essa denomi- nação, em cuja também a moral significa "razão prática". Razão prática quer dizer que, na consciência moral, atua algo que se assemelha à razão, mas não é a razão especulativa. A consciência moral ou razão prática contém princípios racionais, em virtude dos quais nós, seres humanos, regemos nossa vida. É a razão aplicada à ação. Essa razão prática contém qualificativos como bom, mal, moral, imoral etc. Não tendo a ra- zão prática (como tem a razão especulativa, que rege o conheci- 163© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT mento) por meta determinar a essência das coisas, seus qualifi- cativos não se aplicam a coisas (as coisas não são boas ou más, morais ou imorais), mas só se aplicam ao homem. Os qualificati- vos morais se aplicam ao que o homem "quer fazer", ou seja, ao exercício da vontade. Assim, por exemplo, se alguém comete um erro involuntariamente, não podemos qualificá-lo nem de bom, nem de mau, nem de moral, nem de imoral, porque o ato não foi cometido no exercício de sua vontade. As três grandes dimensões da consciência moral ou razão prática Trabalharemos a noção de razão prática ou consciência moral em Kant, a partir de três grandes dimensões a ela con- feridas pelo filósofo. São elas: a dimensão da universalidade, a dimensão da autonomia e a dimensão da liberdade. A dimensão da universalidade: a razão pura prática ou consciência moral determina a vontade a partir de imperativos O critério fundamental racional para qualificar uma ação como ação moral, isto é, como ação universalmente válida, se- ria, segundo Kant, a existência dessa razão pura prática capaz de estabelecer uma universalidade no que se refere à moral, assim como a razão pura especulativa ou teórica estabelece uma uni- versalidade no que diz respeito ao conhecimento. Temos, então, uma razão pura universal que se diferencia em razão pura espe- culativa e razão pura prática. A razão pura especulativa possuiriaa capacidade de determinar a priori o conhecimento do sujeito cognoscitivo e a razão pura prática possuiria essa mesma capaci- dade de determinar a priori a vontade do sujeito agente. 164 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT A razão pura prática daria à vontade de cada um (vontade subjetiva particular) ordenamentos objetivos. Esses ordenamen- tos seriam "imperativos". Diz Kant: A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fór- mula do mandamento chama-se imperativo (KANT, 1960, p. 48). Em outras palavras, todo ato voluntário se apresenta à ra- zão na forma de um imperativo, ou seja, todo ato, ao se realizar, aparece à consciência à maneira de um mandamento (faça isto; não aja assim). Os imperativos, diz Kant, podem ser hipotéticos ou cate- góricos. Os imperativos hipotéticos sujeitam o mandamento em questão a uma condição (se queres obter x, faça y). Nos impe- rativos categóricos, ao contrário, o mandamento não está sob nenhuma condição, impera de maneira absoluta. Vejamos, a res- peito, um texto de Kant: Ora todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categori- camente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O impera- tivo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade (KANT, 1960, p. 48-51). O imperativo da moralidade é um imperativo categórico Toda ação moral indica que a referida ação é objetivamen- te necessária e boa em si mesma; portanto, o imperativo da "moralidade" é um imperativo categórico. Há por fim um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comporta- mento, ordena imediatamente este comportamento. Este im- 165© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT perativo é categórico. Não se relaciona com a matéria da acção e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na acção reside na disposição Gesinnung, seja qual for o resultado. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da moralidade (KANT, 1960, p. 52, grifo nosso). A lei moral, enquanto imperativo categórico, é universal O imperativo categórico é universal porque contém, ao mesmo tempo, a lei e o princípio da necessidade de se confor- mar com essa lei. Como não há condição que limite a lei, todo imperativo categórico é universal. Vejamos o texto de Kant a esse respeito: Quando penso um imperativo hipotético em geral, não sei de an- temão o que ele poderá conter. Só o saberei quando a condição me seja dada. Mas se pensar um imperativo categórico, então sei imediatamente o que é que ele contém. Porque, não contendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima que manda conformar-se com esta lei, e não contendo a lei nenhuma condição que a limite, nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da acção // deve ser conforme, conformidade essa que só o imperativo nos representa propria- mente como necessária (KANT, 1960, p. 58-59). Consequentemente, a vontade divina e a vontade santa não são passíveis de imperativos Querer o bem ou a busca do bem não poderia, portanto, segundo Kant, fazer parte da moralidade, pois o princípio moral é, por sua própria natureza, independente de crenças, culturas e tradições. Fundamenta-se em algo universal, a lei. Assim, uma vontade perfeitamente boa, como seriam a vontade divina e a vontade santa, não são passíveis de imperativos, não se apresen- tam como obrigadas a leis. Diz Kant que: 166 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT Uma vontade perfeitamente boa estaria, portanto, igualmente submetida a leis objectivas (do bem), mas não se poderia repre- sentar como obrigada a acções conformes à lei, pois que pela sua constituição subjectiva ela só pode ser determinada pela representação do bem. Por isso os imperativos não valem para a vontade divina nem, em geral, para uma vontade santa; o de- ver (Sollen) não está aqui no seu lugar, porque o querer coincide já por si necessariamente com a lei (KANT, 1960, p. 48-51). A dimensão da autonomia: toda ação moral é uma ação autônoma As leis morais seriam, segundo Kant, destituídas de todo valor moral se seu princípio determinante tivesse outra origem que não fosse a lei que traz nela mesma essa certeza apodítica (certeza evidente). Assim, ao contrário da ação heterônoma, que é instintiva e não decorre da vontade do agente, como seria o caso da moral aristocrática, que depende de ideais transcendentes e da mo- ral utilitarista (que depende de ideais que emanam de coisas), a ação moral, segundo Kant, é uma ação autônoma. Esse princípio de autonomia da ação moral consiste no fato de as regras ou máximas serem compreendidas como leis univer- sais, que não advêm da experiência, que são absolutamente in- dependentes e necessárias, que comandam apoditicamente (de maneira necessariamente verdadeira), opondo-se ao empírico (o que vem da experiência), que é contingente e generalizável. O indivíduo deve estar livre para agir, ou seja, não obede- cer a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente se dá, enquanto possuidor de uma vontade, e não em virtude de qualquer outro motivo prático ou de qualquer vantagem futura. Por essa razão, o princípio que rege a ação de uma vontade li- 167© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT vre legisladora universal, que é a ação moral, é, como vimos, um imperativo categórico que, por ser universal, não se funda em nenhuma condição, em nenhuma hipótese. Assim o princípio, segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas má- ximas, se fosse seguramente estabelecido, conviria perfeitamente ao imperativo categórico no sentido de que, exactamente por cau- sa da idéia da legislação universal, ele se não funda em nenhum interesse, e portanto, de entre todos os imperativos possíveis, é o único que pode ser incondicional; ou, melhor ainda, invertendo a proposição: se há um imperativo categórico (isto é uma lei para a vontade de todo o ser racional), ele só pode ordenar que tudo se faça em obediência à máxima de uma vontade que simultanea- mente se possa ter a si mesma por // objecto como legisladora universal; pois só então é que o princípio prático e o imperativo a que obedece podem ser incondicionais, porque não têm interesse algum sobre que se fundem (KANT, 1960, p. 74). Trata-se de uma Ética "deontológica" A Ética de Kant é, portanto, "deontológica", ou seja, defen- de que o valor moral de uma ação reside na própria ação e não em suas consequências. É o que veremos, mais claramente, a seguir a partir da noção kantiana de "Dever". Deontologia é um termo criado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) e se refere à ética como tendo por objeto de estudo os fundamentos do dever e das normas enquanto de- correntes de uma ação considerada em si mesma. Compreende, por exemplo, o conjunto de princípios e regras de conduta ou deveres decorrentes de uma determinada ação profissional. O primeiro Código de Deontologia foi da área da medicina e foi fei- to nos Estados Unidos da América do Norte. A palavra é formada por "deon" (dever, obrigação em grego) e logos (ciência). 168 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT O Dever Este agir sem qualquer motivação, livre de interesses, subordi- nando a vontade a uma legislação universal, eis o "dever". Diz Kant: Pois o dever deve ser a necessidade prática-incondicionada da ac- ção; tem de valer portanto para todos os seres racionais (os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo), e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana (KANT, 1960, p. 64).Na moralidade, o "dever" não é, porém, a mera conformidade com o que prescreve a lei Na moralidade, o dever é essencialmente impulso para o dever, o dever pelo dever, inexiste qualquer outro motivo. O va- lor moral de um ato funda-se na pureza de intenção, na medida em que ela independe de qualquer outro motivo que não seja o cumprimento do dever pelo dever. Vejamos o que diz Kant: É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador inexperiente, e, quando o movimento do negócio é grande, o comerciante esperto também não faz se- melhante coisa, mas mantém um preço fixo geral para toda a gente, de forma que uma criança pode comprar na sua mer- cearia tão bem como qualquer outra pessoa. É-se, pois, servido honradamente; mas isso ainda não é bastante para acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e princí- pios de honradez; o seu interesse assim o exigia; mas não é de aceitar que ele além disso tenha tido uma inclinação imediata para os seus fregueses, de maneira a não fazer, por amor deles, preço mais vantajoso a um do que a outro. A acção não foi, por- tanto, praticada nem por dever nem por inclinação imediata, mas somente com intenção egoísta (KANT, 1960, p. 27). 169© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT E isto porque uma ação só é moral quando realizada "por dever" e não "conforme ao dever" Diz Kant: Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação ime- diata. Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens conservam a sua vida conforme // ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as con- trariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a amar, não por inclina- ção ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem conteúdo moral (KANT, 1960, p. 27). Fazer a caridade não por inclinação, mas "por dever" O filósofo alemão afirma: Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem ne- nhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o conten- tamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectiva- mente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequente- mente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever. Admitindo, pois, que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pes- soal que apaga toda // a compaixão pela sorte alheia, e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, 170 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma inclinação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e prati- casse a acção sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral. Mais ainda: – Se a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pou- ca simpatia, se ele (homem honrado de resto) fosse por tempera- mento frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo dotado especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas próprias dores e por isso pressupor e exigir as mesmas quali- dades dos outros; se a natureza não tivesse feito de um tal homem (que em boa verdade não seria o seu pior produto) propriamente um filantropo, – não poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que o dum temperamento bondoso? Sem dúvida! – É exactamen- te aí é que começa o valor do carácter, que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto, e que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever (KANT, 1960, p. 28). Portanto, a essência do cumprimento "por dever" estaria na capacidade da vontade de contrariar as tendências naturais, não se deixando causar por fatores externos, mas atender a im- perativos como: agir como se o princípio de nossa ação pudesse ser erigido em lei universal da natureza. Essa autonomia da razão prática ou consciência moral é o fun- damento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional, tornando-as um fim e não um meio Diz Kant: Ora digo eu: – O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racio- nal, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem // a outros seres racionais, ele tem sempre de ser con- siderado simultaneamente como fim (KANT, 1960, p. 68). 171© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT O imperativo é: aja de tal maneira que a humanidade seja tratada tão bem na nossa pessoa como na pessoa de qualquer outro e sempre como um fim e nunca como meio. A terceira dimensão da ação moral: a da "liberdade" A possibilidade da moral, segundo Kant, não depende nem da ciência, nem da religião, nem da metafísica; ela está fundada na ideia de uma vontade livre. A vontade, segundo Kant, é um "poder agir" ou um "poder causar", ou, ainda, um "poder querer" livres, porque possui justa- mente esta propriedade de ser a sua própria lei, uma vez que não é determinada por causas estranhas, como influências e interes- ses sensíveis; do contrário, não se trataria de um ato de vontade. A liberdade, portanto, embora não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais (na natureza, nos seres irracio- nais, impera e domina a necessidade), é propriedade da vontade nos seres racionais. Sobre a vontade enquanto "poder causador", próprio aos seres racionais, e a liberdade como propriedade desse mesmo "poder causador", independentemente de causas estranhas, diz Kant: [...] é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto ra- cionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estra- nhas que a determinem; assim como a necessidade é a proprie- dade dos seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas (KANT, 1960, p. 93-94, grifo nosso). 172 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT Mas a liberdade, enquanto propriedade da vontade, não seria desprovida de lei A liberdade não seria desprovida de lei, pois é a proprieda- de de um "poder causador" (vontade), ou seja, de uma relação de causa e efeito e, como tal, é baseada em leis imutáveis. Diz Kant: Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis se- gundo as quais, por meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta outra // coisa que se chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade livre seria absurdo (KANT, 1960, p. 93-94). Isso porque uma vontade só é livre quando regida por leis imutáveis, independentes de circunstâncias particulares. Trata-se, portanto, de uma "liberdade transcendental", se- gundo a expressão de Kant, em que o "poder querer" ou a von- tade antecede a experiência e independe dela. A moral kantiana é uma moral não eudaimônica, ou seja, não tem por meta a "felicidade" Eudaimonia: palara de origemgrega (eu = bem + daimon = es- pírito), significando "felicidade" não no sentido de uma emoção ou de uma visão utilitarista, mas no sentido em que foi empre- gada no pensamento grego antigo: "bem-viver", "prosperidade". Embora Kant considere que o fim do homem seja a procura da felicidade (como Platão e Aristóteles), distingue felicidade de moralidade. A razão prática não nos pode ensinar e nem defi- 173© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT nir o que é a felicidade, apesar desta ser a finalidade dos seres racionais. Observa que, embora "estar bem" não se oponha a "fa- zer bem", o fato de "se estar bem", não significa "fazer bem". A moral nos ensina ou nos leva a ser merecedores da felicidade, porém não nos torna felizes. O caminho para a felicidade, segundo Kant, é o dever. O cumprimento do dever, embora consista em obediência incondi- cional, não significa renunciar à felicidade, porém também não significa subordinação à procura da felicidade. Na obra Crítica da Razão Prática, Kant observa que a feli- cidade não seria o objetivo e fundamento da moralidade, pois é um conceito empírico, consistindo em um sentimento do agen- te. Para Kant, a felicidade provém da satisfação dos nossos dese- jos, e, por essa razão, ela não depende de nós, uma vez que esse satisfazer nossos desejos se subordina a circunstâncias externas à nossa vontade. O homem é um ser que pertence à natureza, sua felicidade escapa à sua vontade. E, se escapa à vontade do agente, como poderia ser um objetivo da moralidade? Relacionada à alegria e aos prazeres, a felicidade não dis- tingue entre prazeres superiores e inferiores. Em outras palavras, não é possível definir racionalmente a felicidade, independente- mente da experiência. A felicidade de cada um depende de sua sensibilidade aos diferentes prazeres da vida. Assim, pode-se ser feliz com a riqueza, beleza, inteligência etc. Não há conexão necessária no homem entre a moralidade e a felicidade, uma vez que a felicidade é dependente de bens contingentes. O cumprimento das exigências da lei moral não 174 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT nos concederá, por si só, nenhuma felicidade, a não ser em uma situação absolutamente contingente. Diz Kant: A felicidade é o estado no mundo de um ser racional para o qual, na totalidade da sua existência, tudo corre segundo o seu desejo e a sua vontade e funda-se, pois, na harmonia da natureza com o fim integral desse ser e igualmente com o principio determi- nante essencial da sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto lei da liberdade, ordena por princípios determinantes que devem ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade de desejar (como móbeis); mas o ser racional agente no mundo não é, contudo, simultaneamente causa do mundo e da própria natureza. Portanto, não existe na lei moral a menor conexão necessária entre moralidade e felicidade a ela proporcionada de um ser que, fazendo parte do mundo e, por- tanto, dele dependendo, não pode por isso mesmo ser pela sua vontade causa desta natureza e fazê-la por suas próprias forças coadunar-se inteiramente [...] (KANT, 1994, p. 143). A razão é contrária à felicidade Segundo Kant, podemos mesmo dizer que a razão é con- trária à felicidade. [...] quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verda- deiro contentamento; e daí provém que em muitas pessoas, e nomeadamente nas mais experimentadas no uso da razão, se elas quiserem ter a sinceridade de o // confessar, surja um cer- to grau de misologia, quer dizer de ódio à razão. E isto porque, uma vez feito o balanço de todas as vantagens que elas tiram, não digo já da invenção de todas as artes do luxo vulgar, mas ainda das ciências (que a elas lhes parecem no fim e ao cabo serem também um luxo do entendimento), descobrem contu- do que mais se sobrecarregaram de fadigas do que ganharam em felicidade, e que por isso finalmente invejam mais do que desprezam os homens de condição inferior que estão mais pró- ximos do puro instinto natural e não permitem à razão grande 175© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT influência sobre o que fazem ou deixam de fazer (KANT, 1960, p. 24-26). Enfim, o supremo destino da razão prática é a fundação de uma vontade e não da felicidade Kant afirma: [...] Portanto, se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objectos // e à satisfação de todas as nossas necessidades (que ela mesma – a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a este fim, e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como facul- dade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente neces- sária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos. Esta vontade não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade. E neste caso é fácil de conci- liar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e incondicio- nal intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida, a consecução da segunda, que é sempre condicionada, quer dizer, da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a menos de nada, sem que com isto a natureza falte à sua finalidade, por- que a razão, que reconhece o seu supremo destino prático na fundação duma boa vontade, ao alcançar esta intenção é capaz duma só satisfação conforme à sua própria índole, isto é a que pode achar ao atingir um fim que só ela (a razão) // determina, ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins da inclinação (KANT, 1960, p. 24-26). 176 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT Kant e o Iluminismo Em seu texto sobre o Iluminismo, respondendo, em 1784, à pergunta de uma revista alemã de Berlim, Kant expõe seu ideal de apelo ao exercício autônomo da razão aqui descrito. Reflete sobre o momento social e político de sua época, visando à elevação do homem à sua condição singular e única de ser livre. Cada um é responsável por essa liberação da "me- noridade". Somente cada um, com liberdade, pode dela se livrar. Essa liberação só é possível com o esclarecimento do próprio pensar, esclarecimento que deve ser contínuo, de maneira a po- der ver o mundo com outros olhos, livres de conceitos e normas estabelecidos. A liberdade de fazer uso público do pensar esclarecido per- mite, por sua vez, a discussão e o intercâmbio de ideias, o qual fundamentará a realização da ação transformadora. Ético é, pois, para Kant, conquistar deliberadamente a pró- pria liberdade incondicionada, servindo-se de sua capacidade ra- cional. Este seria o caráter singular e único de toda ação humana. Observação: a palavra alemã Aufklärung é traduzida por escla- recimento, ilustração, Iluminismo. Diz Kant (2015, p. 1-2): lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menorida- de é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. 177© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do con- trole alheio (naturaliter maiorennes), [482] continuarem, toda-via, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que em vez de mim tem cons- ciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreende- rão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais do- mésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pací- ficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores. É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou [483] quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu pró- prio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer seme- lhante tentativa. Regras e fórmulas "são laços de uma menoridade eterna": Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso, por- que não está habituado ao movimento livre. São, pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro (KANT, 2015, p. 2). 178 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT Com liberdade é possível sair do estado de "menoridade": Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for con- cedida a liberdade. Sempre haverá, de facto, alguns que pen- sam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem para pensar por si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles sujeito a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de qual- quer ilustração, é a isso [484] incitado. Semear preconceitos é muito danoso, porque acabam por se vingar dos que pessoal- mente, ou os seus predecessores foram os seus autores. Por conseguinte, um público só muito lentamente consegue chegar à ilustração. Por meio de uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento (KANT, 2015, p. 2). A liberdade em que se funda a ação moral é aquela que faz uso público da própria razão em todos os campos. Mas, para esta ilustração [leia-se esclarecimento], nada mais se exige do que a liberdade; e, claro está, a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos. Agora, po- rém, de todos os lados ouço gritar: não raciocines! Diz o oficial: não raciocines, mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finan- ças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita! (Apenas um único senhor no mundo diz: raciocinai tanto quan- to quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade. Mas qual é a restrição que se opõe ao Iluminismo? Qual a restrição que o não impede, antes o fomenta? 179© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT Respondo: o uso público da própria razão deve sempre ser livre e só ele pode, entre os homens, levar a cabo a ilustração [485]; mas o uso privado da razão pode, muitas vezes, coarctar-se [restringir-se] fortemente sem que, no entanto, se entrave as- sim notavelmente o progresso da ilustração (KANT, 2015, p. 3). Kant (2015, p. 3-4) distingue o uso público do uso privado da razão: Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele con- fiado. Ora, em muitos assuntos que têm a ver com o interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade se comportarão de um modo puramente passivo com o propósito de, mediante uma unanimidade artificial, serem orientados pelo governo para fins públicos ou de, pelo menos, serem impedidos de destruir tais fins. Neste caso, não é decerto permitido raciocinar, mas tem de se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera também como elemento de uma co- munidade total, e até da sociedade civil mundial, portanto, na qualidade de um erudito que se dirige por escrito a um público em entendimento genuíno, pode certamente raciocinar sem que assim sofram qualquer dano os negócios a que, em parte, como membro passivo, se encontra sujeito. Seria, pois, muito pernicioso se um oficial, a quem o seu superior ordenou algo, quisesse em serviço sofismar em voz alta [486] acerca da incon- veniência ou utilidade dessa ordem; tem de obedecer, mas não se lhe pode impedir de um modo justo, enquanto perito, fazer observações sobre os erros do serviço militar e expô-las ao seu público para que as julgue. O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; e uma censura imperti- nente de tais obrigações, se por ele devem ser cumpridas, pode mesmo punir-se como um escândalo (que poderia causar uma insubordinação geral). Mas, apesar disso, não age contra o de- ver de um cidadão se, como erudito, ele expuser as suas idéias 180 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescri- ções. Do mesmo modo, um clérigo está obrigado a ensinar os instruídos de catecismo e a sua comunidade em conformidade com o símbolo da Igreja, a cujo serviço se encontra, pois ele foi admitido com esta condição. Mas, como erudito, tem plena liberdade e até a missão de participar ao público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e bem-intenciona- dos sobre o que de erróneo há naquele símbolo, e as propostas para uma melhor regulamentação das matérias que respeitam à religião e à Igreja. Nada aqui existe que possa constituir um peso na consciência. Com efeito, o que ele ensina em virtude da sua função, como ministro da Igreja, expõe-no como algo em relação [487] ao qual não tem o livre poder de ensinar segun- do a sua opinião própria, mas está obrigado a expor segundo a prescrição e em nome de outrem. Dirá: a nossa Igreja ensina isto ou aquilo; são estes os argumentos comprovativos de que ela se serve. Em seguida, ele extrai toda a utilidade prática para a sua comunidade de preceitos que ele próprio não subscre- veria com plena convicção, mas a cuja exposição se pode, no entanto, comprometer, porque não é de todo impossível que neles resida alguma verdade oculta. De qualquer modo, porém, não deve neles haver coisa alguma que se oponha à religião interior, pois se julgasse encontrar aí semelhante contradição, então não poderia em consciência desempenhar o seu ministé- rio; teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor contratado faz da sua razão perante a sua comunidadeé apenas um uso privado, porque ela, por maior que seja, é sempre ape- nas uma assembleia doméstica; e no tocante a tal uso, ele como sacerdote não é livre e também o não pode ser, porque exerce uma incumbência alheia. Em contrapartida, como erudito que, mediante escritos, fala a um público genuíno, a saber, ao mun- do, por conseguinte, o clérigo, no uso público da sua razão, goza de uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão e de falar em seu nome próprio. 181© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT O avanço progressivo no esclarecimento é uma deter- minação original da natureza humana e um sagrado direito da humanidade. A pedra de toque [489] de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo reside na pergunta: poderia um povo impor a si próprio essa lei? Seria decerto possível, na expectativa, por assim dizer, de uma lei melhor, por um determinado e curto prazo, para introduzir uma certa ordem. Ao mesmo tempo, facultar-se-ia a cada cidadão, em especial ao clérigo, na qua- lidade de erudito, fazer publicamente, isto é, por escritos, as suas observações sobre o que há de erróneo nas instituições anteriores; entretanto, a ordem introduzida continuaria em vi- gência até que o discernimento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado publicamente que os cidadãos, unindo as suas vozes (embora não todas), poderiam apresentar a sua proposta diante do trono a fim de protegerem as comunidades que, de acordo com o seu conceito do melhor discernimento, se teriam coadunado numa organização religio- sa modificada, sem todavia impedir os que quisessem ater-se à antiga. Mas é de todo interdito coadunar-se numa constituição religiosa pertinaz, por ninguém posta publicamente em dúvi- da, mesmo só durante o tempo de vida de um homem e deste modo aniquilar, por assim dizer, um período de tempo no pro- gresso da humanidade para o melhor e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um homem, para a sua pessoa, [490] e mesmo então só por algum tempo, pode, no que lhe incumbe saber, adiar a ilustração; mas renunciar a ela, quer seja para si, quer ainda mais para a descendência, significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da humanidade. O que não é lícito a um povo decidir em relação a si mesmo menos o pode ainda um monarca decidir sobre o povo, pois a sua autorida- de legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade unificar a vontade conjunta do povo. Quando ele vê que toda a melhoria verdadeira ou presumida coincide com a ordem ci- vil, pode então permitir que em tudo o mais os seus súbditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a sal- vação da sua alma. Não é isso que lhe importa, mas compete- 182 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT -lhe obstar a que alguém impeça à força outrem de trabalhar segundo toda a sua capacidade na determinação e fomento da mesma (KANT, 2015, p. 5). Considerações finais Vimos que Kant, ao se ocupar do fundamento da moral, é levado a postular outra razão distinta da razão teórica ou espe- culativa (própria do conhecimento científico), razão que chamou de "razão prática". A moralidade não decorreria das regras de um código de conduta, não se limitaria em agir de acordo com normas. Para Kant, regras morais se identificam facilmente com causas exteriores à razão. São do domínio das leis enquanto con- venções sociais e do Direito positivo. Variam segundo as culturas e épocas. Não são os hábitos de conduta e de comportamento que nos levam a optar pelo cumprimento do dever ou decisões con- duzidas pela boa vontade. Em outras palavras, não são a trans- missão e o respeito a um código de conduta que nos levarão a um comportamento moral. Propõe, assim, uma moralidade autônoma, fundada na teoria dos imperativos categóricos essencialmente universais. Daí o nome de "universalismo ético", dado à posição kantiana. Uma moralidade dependente inteiramente de uma razão práti- ca, ou seja, independente de condicionamentos externos, sejam eles históricos, étnicos, sociais etc. A razão prática é a razão que guia a ação. É uma forma pura que pode ser aplicada a qualquer situação. Tem a validade universal das leis que regem a natureza. Assumida como algo ab- soluto, não pode ser exercida sob condições. Sua inteligibilidade pode ser alcançada, porém não pela razão teórica. 183© ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT A razão prática não depende de nada, a não ser de si mes- ma, é absolutamente livre e nisso é o contrário da natureza: esta atua segundo leis; a razão prática, que é a vontade racional hu- mana, "atua segundo a ideia de lei", ultrapassando tudo o que seja sensível para ser ela mesma. Causa incondicionada de si mesma, é a manifestação da "razão" como tal, em toda a sua força e superioridade. Embora considere as leis morais semelhantes às leis cien- tíficas, porque, como estas, são igualmente universais e im- pessoais (não se referem a pessoas, lugares ou épocas), Kant assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos de leis: enquanto o conceito científico se funda em uma universalidade "mediata", ou seja, é construído "mediante" uma generalização de conteúdos advindos da experiência empírica, a máxima em que se baseia a lei moral não decorre de nenhum processo de generalização, não contém conteúdo empírico, mas é de nature- za imediata. Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar, por meio do pensamento de diferentes filósofos, a presença de uma dimensão ética propriamente dita, não passível de ser trabalha- da à luz da razão especulativa generalizante. Um saber daquela "morada interior" singular e única, e nem por isso menos uni- versal, provida de uma inteligibilidade pura, isenta de conteúdos sensíveis, saber que nos põe em contato com uma dimensão hu- mana não cognoscitiva, mas de natureza "valorizadora". 7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: 184 © ÉTICA II UNIDADE 3 – ÉTICA MODERNA: HUME E KANT 1) Com base no trecho de Hume a seguir, presente em sua célebre obra in- titulada Tratado da natureza humana, redija um comentário, procuran- do sinalizar em que medida está presente na reflexão humeana o ético, "morada interior", e o moral, "morada exterior", na forma como estamos tentando encontrar essa distinção na História da Filosofia. 2. É evidente que, quando elogiamos uma determinada ação, consideramos apenas os motivos que a produziram, e tomamos a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter. A realização externa não tem nenhum mérito. Te- mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali- dade moral. Ora, como não podemos fazê-lo diretamente, fixa- mos nossa atenção na ação, como signo externo. Mas a ação é considerada apenas um signo; o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu. 3. Do mesmo modo, sempre que exigimos que uma pessoa re- alize uma ação, ou a censuramos por não realizá-la, estamos supondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação, e consideramos vicioso que o tenha desconsiderado. Se após investigarmos melhor a situa- ção, descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em seu coração, embora sua operação tenha sido impedida por alguma circunstância que nos era desconsiderada, retiramos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exi- gíamos (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1). 2) De que forma Kant une a vontade livre a uma causalidade da vontade? a) Para Kant, a causalidade é uma propriedade apenas da natureza, em que um objeto determina o outro necessariamente. Nesse sentido, a causalidade da vontade determinaria um outro objeto a agir
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