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DiscutinDo a história 11 Vamos entender: está implícito no nome “Brasil colô- nia” a mentalidade de que o período colonial seria o embrião da futura nação brasileira. Dessa forma, os historiadores do século XIX, contemporâneos da recente independência po- lítica (1822) e da instauração da República (1889), procura- vam justificar a existência da nação brasileira já no passado colonial, usando para isso referenciais do momento em que viviam. No entanto, esses referenciais não existiam e nem faziam sentido para os séculos XVI, XVII e XVIII. O arranjo político feito com o projeto vitorioso que ins- taurou o Império brasileiro livre de Portugal era mais con- vincente quando se assegurava que a nação já existia antes de ser independente, o que não é verdade. O território que hoje constitui o Brasil, além de ter sido habitado por cen- tenas de povos diferentes antes da chegada dos europeus, teve partes que pertenceram a outras metrópoles europeias (Espanha, Países Baixos, França) e a outros países sul-ame- ricanos (Paraguai, Guiana Francesa, Bolívia). Além disso, foi mais do que uma colônia portuguesa: foi também Reino Unido a Portugal e Algarves e, ainda que por pouco tempo, já este- ve dividido em mais de um país independente (durante a Confederação do Equador ou a Revolução Farroupilha, por exemplo). Todas essas possibilidades foram vencidas, e o Brasil que conhece- mos hoje é apenas o resultado do sucesso de um dos projetos em jogo. Dessa forma, cometeríamos um grande erro se procurássemos compreen- der o passado de uma nação considerando somente o que ela se tornou. Estaríamos fazendo do presente o limitador absoluto do passado, des- considerando as possibilidades não viabilizadas. Idade Moderna: europa coMo centro do Mundo A expressão Idade Moderna dá ideia de algo renovador, progressis- ta. Para o historiador francês Jean Chesneaux1, essa expressão “tempos modernos” está ligada à tentativa da burguesia de se colocar, no campo das ideias e dos valores, como impulsionadora da história. Essa classe so- cial de fato está envolvida nas principais transformações do período que você irá estudar, desde a constituição dos Estados nacionais modernos, com o estabelecimento do Antigo Regime, até a sua derrubada ou a trans- formação das monarquias absolutistas em monarquias constitucionais. Para o filósofo Enrique Dussel2, a Europa, até 1492, pode ser inter- pretada como mera periferia do mundo muçulmano. Com poucas cida- des, riqueza escassa, população relativamente pequena, artes e ciências engatinhando ou submetidas ao domínio da Igreja, o mundo europeu era Confederação do Equador: conflito emancipacionista ocorrido em 1824, contrário à centralização política im- perial. iniciou-se na província de Per- nambuco e posteriormente envolveu várias outras províncias próximas. Revolução Farroupilha: também de- nominada Guerra dos Farrapos, ocorreu nos territórios que hoje cor- respondem ao rio Grande do sul e santa catarina, entre 1835 e 1845; o movimento proclamou a república rio-Grandense (rs) e a república Ju- liana (sc). p no instituto histórico e Geográfico do Brasil (ihGB) iniciou-se a construção da história do Brasil, de acordo com a visão e os interesses do império. na foto, de 2010, o prédio do ihGB, no rio de Janeiro (rJ). 1 No livro Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. São Paulo: Ática, 1995. p. 96. 2 No livro 1492: o encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes, 1993. J o ã o R . W . F a is s a l/ T y b a HGB_v2_PNLD2015_008a026_u1c01.indd 11 3/21/13 3:23 PM 12 EuroPa, o cEntro Do munDo inexpressivo se comparado ao mundo muçulmano. O Império Árabe do- minava as principais rotas de comércio do Velho Mundo, o mar Mediter- râneo e os conhecimentos náuticos; tinha cultura e ciência relativamente mais exuberantes que os europeus, com ricas cidades e uma extensão geopolítica que envolvia partes da África, Ásia e Europa (península Ibéri- ca e leste europeu). Com as viagens dos “descobrimentos”, que levaram à conquista de povos e territórios até então desconhecidos e ao estabelecimento de ro- tas comerciais em vários pontos do planeta, o continente europeu deixa a sua condição de periferia e passa a ocupar um lugar cada vez mais central no cenário mundial. Espanha e Portugal fi rmam-se como as primeiras sociedades da Europa a ter a experiência de descobrir outros povos (os nativos, cujas culturas eram absolutamente desconhecidas para os euro- peus), de subjugá-los e de controlá-los. A expansão do poder e da infl uência europeia representa uma ca- racterística importante da modernidade: de periferia do mundo muçul- mano, a Europa passa a ser um “construtor de periferias”, e a América Latina é a sua primeira grande experiência de dominação sobre povos e terras desconhecidos até então. Em 1992, época do aniversário dos 500 anos da chegada de Cristó- vão Colombo à América, houve intensos e acalorados debates entre euro- peus e americanos. Os poderes constituídos e as classes dominantes na Espanha propunham uma grande comemoração do que, para eles, foi o encontro entre dois mundos, o que possibilitou o surgimento das nações da América. Entretanto, partes das populações latino- -americanas, principalmente os indígenas e os negros, protestaram e defenderam a necessidade de refl exão sobre o signifi cado desse marco his- tórico. Para eles, a violência e a destruição física e cultural que decorreram da chegada dos euro- peus ao continente americano eram não só dados importantes para se compreender o passado, mas também fenômenos que permaneciam ativos no presente, ainda que sob outras formas. No Brasil, em 2000, no aniversário dos 500 anos da chegada de Cabral ao nosso território, a situação não foi di- ferente, e os manifestantes foram violentamente reprimidos. Se os “descobrimentos” possibilitaram o surgimento das nações que conhecemos hoje na América, também signifi caram extermínio de vidas, de culturas, exploração do trabalho e de riquezas nativas. No Brasil, se lu- tamos, atualmente, para construir uma nação soberana e justa, boa parte das difi culdades e das possibilidades estão contidas no próprio processo de construção desse Novo Mundo. Antes de estabelecer um julgamento moral sobre esse processo, é preciso estudar, refl etir, entender, para agir conscientemente. p a nau de nicolau coelho, um dos ca- pitães da armada de Pedro Álvares cabral. ilustração do livro de Lisuarte de abreu, do século XVi. p indígena terena utiliza seu próprio corpo para tentar impedir o avanço de policiais (Porto seguro, Bahia, 22 de abril de 2000). Diversos povos in- dígenas realizaram protestos durante as comemorações dos 500 anos da chegada de portugueses ao atual ter- ritório do Brasil. Lula Marques/Folha Imagem R e p ro d u ç ã o /B ib li o te c a P ie rp o n t M o rg a n , N o v a Y o rk , E U A . HGB_v2_PNLD2015_008a026_u1c01.indd 12 3/21/13 3:23 PM DiscutinDo a história 13 A n g e li /A c e rv o d o c a rt u n is ta Agora, sim, estamos em condições de compreender um pouco me- lhor a história que vamos estudar neste livro. Foi durante a assim chama- da Idade Moderna que a Europa passou a centralizar o poder mundial, de acordo com a teoria de que a história teria um movimento evolutivo, tendo a própria Europa como eixo. O filósofo alemão Georg Hegel foi um dos muitos formuladores des- sa tese, na passagem do século XVIII para o XIX. O resultado é a criação das bases para o que conhecemos como história universal: um conheci- mento do passado que, em resumo, é a explicação (ou a justificação) do poderio europeu. Por isso, tradicionalmente, o estudo da história começa pelo estudo das civilizações antigas da orla do mar Mediterrâneo, continua com Gré- cia e Roma clássicas, avança para o feudalismo e aborda, em seguida, o mundo como um apêndiceda Europa. A partir daí, povos, lugares e civili- zações só aparecem à medida que navegadores e comerciantes europeus atingem suas terras. Assim, para essa abordagem histórica, o Brasil só entra em cena com a chegada de Cabral. O modelo dessa história levou à conhecida periodização em Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea, o chamado modelo quadri- partite. Sobre ele, o historiador Jean Chesneaux faz a sua crítica: o quadripartismo tem como resultado privilegiar o papel do oci- dente na história do mundo e reduzir quantitativa e qualitativamente o lugar dos povos não europeus na evolução universal. Por essa razão, faz parte do aparelho intelectual do imperialismo. os marcos escolhidos não têm significado algum para a imensa maioria da humanidade: fim do império romano, queda de Bizâncio. Esses mesmos marcos desta- cam a história das superestruturas políticas, dos Estados, o que tam- bém não é inocente. chEsnEauX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. são Paulo: Ática, 1995. p. 95. A ideia construída pelos europeus, comprometidos com a dominação de outros povos, de que seriam o ápice da humanidade e o centro da história, está ligada àquelas de desenvolvimento, de progresso e, mais recentemente, de “ingresso no Primeiro Mundo” ou “mundo desenvol- vido”. Estabelece-se a concepção de que um povo, para atingir seus anseios, deve “desenvolver-se” ou “civilizar-se”, isto é, deve imitar o modelo dos colonizadores. De diver- sas formas, essas ideias perpassaram a história e a política brasileira, ocultando que não somos uma continuidade do mundo europeu, mas uma síntese inacabada de diversas contribuições étnicas, culturais e políticas. As guerras mundiais do século XX serviram de con- traposição à ideia de progresso. A historiadora Gertrude Himmelfarb, criticando essa ideia de progresso, destacou que durante o século XX aprendemos que: Para o historiador francês François Furet, a elite europeia no século XViii sentia-se culturalmente ligada à an- tiguidade grega e romana, e essa é a base que se coloca para o próprio estudo e ensino da história como os conhecemos atualmente (em A ofici- na da História. Lisboa: Gradiva, s.d. p. 113). π A nova ordem mundial, charge de angeli. HGB_v2_PNLD2015_008a026_u1c01.indd 13 3/21/13 3:23 PM 14 EuroPa, o cEntro Do munDo [...] até mesmo as mais impressionantes descobertas científi- cas podem ser usadas da maneira mais grotesca; que uma política social generosa pode criar tantos problemas quanto os que solucio- na; que até mesmo os mais benignos governos sucumbem ao peso morto da burocracia, enquanto os menos benignos mostram-se cria- tivos na invenção de novos e horrendos modos de tirania; que as pai- xões religiosas se exacerbam num mundo crescentemente secular, as paixões nacionais, num mundo fatalmente interdependente; que os países mais avançados e poderosos podem tornar-se reféns de um bando de terroristas primitivos; que nossos mais amados princí- pios – liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, mesmo paz – foram pervertidos e degradados de maneiras nem sonhadas por nossos an- tepassados. a cada passo somos confrontados por promessas que- bradas, esperanças fenecidas, dilemas irreconciliáveis, boas inten- ções que se desviaram, escolhas entre males, um mundo à beira do desastre – tudo isto já virou clichê, mas é verdadeiro demais e parece desmentir a ideia de progresso. himmELFarB, Gertrude. the new history and the old: critical essays and reappraisals. cambridge: harvard university Press, 1987. p. 155. in: carDoso, ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: Edusc, 2005. p. 22. Reforçando a importância e amplitude do debate sobre essa ques- tão, cabe acrescentar a observação de um importante historiador brasi- leiro da atualidade, Ciro Flamarion Cardoso. Segundo ele, apesar da ne- cessária refutação de várias modalidades de evolucionismo: [...] neste início do século XXi, tanto quanto antes, continua sendo possível afirmar tranquilamente coisas como estas: a sociedade baseada na agricultura não pôde surgir pela primeira vez no mundo (ou surgir in- dependentemente) antes da sociedade de caçadores-coletores; a socie- dade urbana, ao surgir pela pri- meira vez no mundo (ou ao surgir independentemente), não podia preceder o conhecimento da agri- cultura; a sociedade industrial, ao aparecer historicamente pela pri- meira vez neste planeta, não pôde fazê-lo antes de existirem agricul- tura e cidades. carDoso, ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: Edusc, 2005. p. 25 e 26. Banaras Khan/Agência France-Presse ∏ Paquistaneses observam os danos ma- teriais após um atentado terrorista em Quetta, em novembro de 2012. além dos danos materiais, o atentado causou a morte de quatro soldados paquistaneses e uma mulher. HGB_v2_PNLD2015_008a026_u1c01.indd 14 3/21/13 3:23 PM 15 a expansão europeia1 Capítulo p Embarcações portuguesas em ilustração do século XVi. A lb u m /L a ti n s to c k a unificação do mundo O mundo por volta de 1500 pode ser descrito em parte pelas civi- lizações e culturas que o compunham: Europa cristã, o Império Turco, uma África com forte presença islâmica ao norte e composta por diversos reinos, tribos e impérios na sua parte meridional. Na Índia, o Sultanato de Délhi seria substituído em pouco tempo pelo Império Grão-Mogol, islâmico, mas tolerante com o hinduísmo. No Sudeste Asiático, a cidade mercantil de Málaca exercia infl uência sobre toda a região, e facilitava a expansão do islamismo para a região da Insulíndia, até as Filipinas. O ar- quipélago que hoje é a Indonésia assistia ao fi m de um império de origem hinduísta, e mergulhava na fragmentação. A China, livre da dominação mongol desde o século XIV, amealhava territórios que iam desde a Coreia até o Sudeste Asiático. Sem contar a América e a África, destacavam-se três grandes impérios: turco, indiano e chinês, assim como uma bem arti- culada economia no oceano Índico. A Europa não passava de uma periferia apagada. A Idade Moderna é o período em que se estuda como foi que a Europa criou, ao longo dos séculos seguintes, e sob sua liderança, uma economia mundial. Não foram apenas as navegações europeias as responsáveis por isso. Embora o comércio tenha existido desde os primórdios da humanidade, e o lucro tenha sido a base disso, o capitalismo foi a “invenção” que permitiu – e exigiu – essa transformação mundial. Mas o que é, afi nal, o capitalismo? Ele tem sido sempre o mesmo desde o seu surgimento? A quem ele benefi cia, e a quem prejudica? Nos próximos capítulos, vamos somar elementos para que você possa cons- truir suas respostas a essas perguntas. para pensar HistOricaMente HGB_v2_PNLD2015_008a026_u1c01.indd 15 3/21/13 3:23 PM