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1 1. Introdução A guerra. Sempre a guerra. Da Pré-História aos dias atuais, o homem não parou de guerrear. Como objeto da História, a atividade bélica é tão antiga quanto as primeiras tentativas de escrita de um relato verídico do passado, como atestam as obras de Heródoto (485? a.C. – 420 a.C.), Tucídides (460/455 a.C. – c. 400 a.C.) e Políbio (210/200 a.C. – c. 127 a.C.). Das suas narrativas aos mais recentes estudos, a História Militar manteve-se em contato com o presente quiçá mais que qualquer outra parte da História, explicando em parte o porquê de sempre despertar interesse. A forma e a intensidade como se tem estudado o tema variou e se diversificou. Consequentemente, o olhar sobre a atividade militar se enriqueceu e abarca hoje quase todas as suas nuances. Lawrence H. Keeley, autor do recém-lançado A guerra antes da civilização – o mito do bom selvagem, diz que a guerra “permanece a mais teatral de todas as atividades humanas, combinando tragédia, drama, melodrama, espetáculo, ação, farsa e até mesmo comédia de situação. A guerra mostra os extremos da condição humana."1 Foi a partir de aspetos ligados a esse rico fenômeno social e cultural que este trabalho foi produzido. Assim, a análise acompanha os rumos tomados pela História Militar na atualidade. Já faz um bom tempo que os historiadores militares deixaram de focar exclusivamente uma “História das batalhas.” O campo de pesquisa estendeu-se a várias outras direções: o estudo das relações entre exércitos e sociedades, o lugar do exército no Estado, a ética militar, o lugar ocupado pela guerra na História, dentre outras.2 O presente trabalho, tendo como pano de fundo o fenômeno da guerra, abordará as mudanças no sacramentum dos soldados romanos e suas relações com o Estado romano do século IV. 1 Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/1058612-em-livro-antropologo-explica-o- fascinio-pela-guerra.shtml>. Acesso em 09 de abril de 2012. 2 CORVISIER, A. Militar [História]. In: BURGUIÈRE, A. (org.). Dicionário das Ciências Históricas. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p. 548. 2 Quão árdua é essa tarefa! Trata-se de uma pesquisa sobre um objeto muito recuado no tempo, bastante interpretado e reinterpretado (apesar da escassez de fontes), e sobre o qual se projetam tantos preconceitos contemporâneos. Como foi observado, Nada se encontra mais longe de nós do que esta antiga civilização; é exótica, extinguindo-se, e os objetos que encontramos nas escavações são tão surpreendentes como aerólitos. O pouco que passou para nós da herança de Roma está em nós em doses a que ponto diluídas, e pelo preço de que novas interpretações! Entre os Romanos e nós, um abismo foi cavado pelo cristianismo, pela filosofia alemã, pelas revoluções tecnológica, científica e económica, por tudo o que constitui a nossa civilização. E é por isso que a história romana é interessante: obriga-nos a sair de nós próprios e a explicitar as diferenças que nos separam dela.3 No esforço para compreender uma realidade tão distante, optou-se pela hermenêutica. Esta pode ser definida essencialmente como a tarefa de compreender textos. É o estudo da compreensão, um método de decifração da “marca” humana numa obra, o seu “significado.”4 Ocupa-se assim “com o aspeto interno no uso do universo semântico, ou melhor, com o processo interno da fala, que visto de fora, apresenta-se como a utilização de um universo de signos”. Trata-se de uma direção de questionamento e investigação surgidos “por detrás do campo de investigação que analisa a constituição da linguagem de um texto como um todo e que destaca sua estrutura semântica (...).” A hermenêutica fundamenta-se no facto “de que a linguagem nos remete tanto para além dela mesma como para além da expressividade que ela representa. Não se esgota no que diz, ou seja, no que nela vem à fala.”5 Assim, o historiador trabalha como verdadeiro “arqueólogo das palavras.”6 Um primeiro dado causador de estranhamento acerca do passado a ser tratado aqui era a coexistência num mesmo plano de áreas que no Ocidente estão hoje separadas. No Mundo Antigo, diferentemente, a religião, a política e a guerra eram indissociáveis. A separação entre a vida civil e a militar se deu tardiamente, em fins do século II a.C., 3 VEYNE, P. O inventário das diferenças. Lisboa: Gradiva, 1989, p. 9. 4 PALMER, R. E. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: 70, 1986, p. 19. 5 GADAMER, H. - G. Verdade e método II. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista, São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2002, pp. 205 e 209. 6 Cf. COSTA, R. O conhecimento histórico e a compreensão do passado: o historiador e a arqueologia das palavras. In: Outros Tempos, vol. 1, pp. 53-65. Disponível em <http://www.ricardocosta.com/pub/vol%2001%20art04%20.pdf>. Acesso em 20 de janeiro de 2012. 3 como será explicado adiante. E a separação total no campo institucional só se deu no século IV, quando os senadores foram definitivamente afastados dos comandos militares. Portanto, a Antiguidade e a Antiguidade Romana, em especial, foram marcadas pelo intercâmbio constante entre a poder estatal, a religião e o exército, sendo que cada uma destas esferas concedia força, legitimação e identidade7 para a outra. Já na lenda da origem da cidade de Roma8 essa questão aparecia. Marte, o principal deus da guerra, teria fecundado Reia Sílvia. Esta então deu à luz aos gêmeos Rômulo e Remo, que foram jogados no Tibre e depois amamentados por uma loba. O fundador da urbs, Rômulo, teria delimitado-a mediante um fosso, o pomoerium. Este limite militar e religioso foi ousadamente transposto por Remo, que assim lançava um desafio militar e cometia um sacrilégio. Consequentemente, Rômulo, investido como legítimo rei e sacerdote da urbs, matou o irmão, culpado por desrespeitar a inviolabilidade do pomoerium.9 Desta forma, Roma estaria ligada a um ancestral bélico e a origens violentas. Seu destino seria conquistar os outros povos, como fica claro em uma obra como a Eneida10, de Vergílio (70 a.C. – 19 a.C.). Importa menos que a urbs tenha demorado cerca de quinhentos anos para tomar o orbis, e que obras laudatórias como a Eneida tenha sido em grande parte fruto de uma propaganda muito posterior aos acontecimentos. O que interessa aqui é apontar um substrato muito antigo sobre o qual se construiu a íntima relação entre a política, a religiosidade e o militarismo romano. Uma das instituições mais ilustrativas dessa relação foi o colégio dos feciais. Surgido durante a Realeza (753 a.C. – 509 a.C.), este colégio era composto por vinte sacerdotes selecionados por cooptação. Tomavam a si a responsabilidade de toda matéria de política estrangeira. Não era permitido declarar a guerra ou firmar um tratado 7 Esta dissertação toma como pressuposto que a identidade sustenta-se a partir da exclusão, bem como através de símbolos. “Assim, a construção da identidade é tanto simbólica quanto social” (WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. (org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, pp. 9-10). Assim, os militares romanos se caracterizavam a partir dos valores da romanidade que os colocavam em distinção com o mundo civil e bárbaro, contribuindo para tanto uma abundância de símbolos materiais e imateriais. A identidade militar romana assentava-se também em um forte componente religioso, e em algum momento ligou-se às identidades locais provincianas. Ao longo do trrabalho a questão da identidade dos soldados romanos será mais bem discutida. 8 Cf. a localização das principaiscidades do Ocidente romano no anexo 1. 9 TITO LIVIO. Historia de Roma desde su fundación. Introducción general de Ángel Sierra, traducción y notas de José A. Villar Vidal. Madrid: Gredos, 1997, 1.4-7. 10 VERGÍLIO. Eneida. Tradução de Cristina A. Guerreiro e Ana A. T. L. Alves, coordenação, revisão e notas de Luís M. G. Cerqueira, 3ª edição revista. Lisboa: Bertrand, 2011. 4 de paz sem sua participação, imprescindível, inclusive, nas delegações diplomáticas. Se as reparações exigidas à cidade agressora não fossem atendidas, os feciais invocavam Júpiter e os demais deuses e proclamavam que a causa da guerra era justa. O ritual incluía o sacrifício de um porco e o fincamento de uma lança em solo inimigo – símbolo da declaração de guerra. Como os feciais só existiam na Itália Central, sua atividade religiosa aos poucos foi esquecida quando a expansão de Roma extrapolou os limites dessa região. O gradual esvaziamento da atividade diplomática dos feciais deu lugar aos embaixadores seculares, que eram já os intermediadores convencionais das outras cidades. Mas o declínio definitivo do colégio dos feciais só se deu no início do Principado (27 a.C. – 284).11 Isso não significou o fim da importância da religião como força legitimadora de um poder que extraía do exército a sua principal força. A lei fecial, por exemplo, e a ideia de que o sucesso dos Romanos na guerra se devia aos seus escrúpulos religiosos exerceu um efeito duradouro sobre a mentalidade romana. Assim, as relações entre a guerra e a religião, fortes em todas as sociedades antigas, em nenhuma outra foram mais íntimas que em Roma.12 O panteão da cidade, extraordinariamente repleto de deuses da guerra, e o calendário religioso, cheio de festivais militares, não deixam dúvidas de que os Romanos não separavam a guerra da religião. Como já foi referido, as transformações políticas e sociais do fim do século I a.C. não produziram uma secularização das guerras de Roma. O que mudou foi que o foco da articulação entre a política, a guerra e a religião foi redirecionado a um só homem. Para cada uma dessas áreas (que, no entanto, não se separavam), ele recebeu um título: era o princeps, o primeiro cidadão do Senado, o imperator, chefe supremo do exército e o pontifex maximus, o sumo sacerdote. Desta forma, ele assumiu a governação da Res publica e o protagonismo da intermediação com o divino. Ninguém questionava uma guerra por ele declarada. O sacramentum, o juramento de fidelidade feito pelos soldados, passou a ser-lhe pessoalmente direcionado. Como será discutido, esse 11 AZEVEDO, A. C. A. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp. 183-184. 12 DAWSON, D. A. As origens da Guerra no Ocidente. Tradução de José Olívio Dantas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1999, pp. 196-197. 5 juramento possuía forte carga religiosa que cimentava a relação dos militares com seus superiores. Nem após a morte o princeps desligava-se da religião. Pelo contrário. Tal como ocorrera ao dictator Júlio César (101-44 a.C.), após o falecimento o governante supremo passou a ser divinizado. A sedução do poder, contudo, exerceu uma força irresistível sobre soberanos mais autoritários, que procuraram ser proclamados deuses em vida. Tal foi o caso dos imperadores Calígula (37-41), Domiciano (81-96), Cômodo (180-192) e Heliogábalo (218-222). Mesmo que alguns pudessem efetivamente tê-los considerado deuses, eles não poderiam alcançar grande vulto na imensidão do panteão greco-romano. De modo geral, era grande o desprezo ou indiferença por esses imperadores narcisistas. O sentimento de repulsa deve ter sido especialmente forte entre aqueles que, sob o governo despótico de Calígula, se lembravam de Augusto, princeps que preservou traços do regime republicano. Os coetâneos do vaidoso Domiciano deviam ter clara a memória do arrojo dos seus antecessores imediatos. Os primeiros anos da dinastia dos Antoninos (96-192) foram caracterizados pelo exercício moderado do poder imperial e pelas boas relações com o Senado, pelo que o seu último representante, Cômodo, fez relembrar aos historiadores os velhos tempos de “tirania”. Desta forma, até o final do século II, a divinização da figura imperial em vida foi percebida pelos historiadores da época (e provavelmente não só) como uma exceção motivada por um caráter deformado. O século III foi marcado por certo despertar religioso, inclusive por parte dos imperadores, que se viam na obrigação de renovar o pacto com os deuses. Graves problemas político-militares os impeliram a se aproximar do divino, e isso acabou por acelerar o processo de sacralização do poder imperial. A completa mistificação da realeza pode ter sido uma reação às frequentes usurpações e guerras civis. Essas e outras alterações no espaço sócio-político romano levaram ao surgimento do Dominato (284- 476).13 No início do século IV, a surpreendente adoção da crença monoteísta por parte dos imperadores não conteve o processo de sacralização do poder, mas o reforçou. Houve uma fusão de elementos pagãos com a mensagem cristã, o que forjou uma imagem de imperador supremo, todo-poderoso, inacessível, e quase divino. 13 Cf. infra, p. 45 e ss. 6 Durante esses três séculos, o cristianismo, a religião monoteísta supracitada, havia se espalhado por quase todo o Império. Sua origem se deu numa província remota e agitada – a Judéia. A religião cristã foi fundada por Jesus de Nazaré, um pregador e milagreiro judeu itinerante da primeira metade do século I. O ministério de Jesus, reformista e popular, logo suscitou forte oposição por parte das autoridades religiosas judaicas. Assim, por pressão dos seus próprios compatriotas, Jesus foi crucificado pelos Romanos. Nos anos que se seguiram, seus discípulos levaram sua mensagem ao mundo helenístico governado pelos Romanos. Os adeptos da nova religião cresceram vigorosamente, sobretudo nos meios urbanos humildes de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma.14 O facto de ser monoteísta não era o único elemento que a diferenciava das religiões tradicionais do mundo mediterrâneo. Era uma religião exclusivista, proselitista, pregadora do amor e da redenção, e que foi construindo doutrinas, hierarquia e organização eclesiástica bem definidos. Com diferenças tão marcantes, logo os grupos cristãos e não-cristãos entraram em colisão. Qualquer forma de superstitio que, como a cristã, se manifestava publicamente e atraía um extraordinário número de adeptos, era considerada uma séria ofensa aos deuses e um ataque direto ao Estado romano. Tal foi a política seguida em 186 a.C., quando os iniciados nos ritos de Baco foram perseguidos e sumariamente assassinados.15 A mesma política foi aplicada depois, no início do século I, na forma da legislação contra os druidas gauleses.16 A superstitio supostamente implicava numa 14 Cf. a localização das principais cidades do Oriente romano no anexo 2. 15 Cf. TITO LIVIO. Op. cit., 39.8-18. Os decretos sobreviventes concentram-se na estrutura das células báquicas – seus juramentos de lealdade, sua organização e financiamento, seus membros, sua propriedade. Supõem-se daí que foi o poder dos líderes das células sobre os adoradores, rompendo os padrões tradicionais de família e autoridade, que perturbou o Senado, ao invés dos alegados atos criminosos ou ritos orgiásticos. Estas alegações, como quaisquer outras que poderiam surgir, teriam servido para minar o crédito de um culto então poderoso e com muitos seguidores (HORNBLOWER, S.; SPAWFORTHY, A. [eds.]. The Oxford companion to Classical Civilization. New York: Oxford University Press, 2004, p. 110). As bacanais, no entanto, não foram suprimidas.De acordo com o relato de Lívio, apenas se regulou o número de pessoas reunidas para o culto e, em particular, o número de homens em cada grupo. 16 Assim como as bacanais, o culto “nacional” dos druidas apresentava, aos olhos dos Romanos, claros indícios de sedição política. Essas religiões reuniam seguidores das aristocracias romana e gaulesa, respetivamente, pelo que foram encaradas como uma ameaça à Res publica romana. Apenas por isso receberam sanções, uma vez que os Romanos, historicamente, não perseguiam por motivos religiosos (não obstante todo o desprezo que nutriam contra o que consideravam superstitio). Portanto, as ações que tomaram contra os dois cultos em questão mostram, em primeiro lugar, a preocupação de se precaverem contra formas de associação potencialmente subversivas. Todavia, as perseguições contra os cristãos nos séculos III e IV, podem ter constituído uma exceção à regra: teriam sido motivadas antes pelo fervor 7 reversão da ordem natural e era, portanto, um ataque direto à pietas,17 virtude romana por excelência. Não só era tido como uma ameaça à pietas romana, mas também como uma doença contagiosa que se alastrava, representando um perigo real para a humanidade. Assim, a tenaz recusa cristã em aceitar a veneração do imperador e preconceitos das mais diversas origens complicaram a situação dos “nazarenos”. Além disso, o cristianismo era uma religião proselitista e a conversão de um Romano significava um rompimento completo com o mos maiorum,18 com os costumes e a religião de seus ancestrais. Os cristãos afastavam-se do nomen Romanum e constituíam um nomen próprio, o nomen Christianum, o que para o governo romano derivava de suas mens insana.19 Com tantos ingredientes explosivos, bastaram algumas situações particularmente delicadas para que os imperadores se convencessem de que deveriam redobrar o zelo pela pietas e perseguir os inimigos do Estado. É geralmente aceite que não houve perseguição de cristãos por parte do governo romano antes do ano 64.20 Neste ano, um terrível incêndio devastou boa parte da cidade de Roma. Logo se espalharam rumores de que o próprio imperador, Nero (54-68), teria provocado a destruição a fim de reconstruir a urbs de forma mais racional, segundo seus padrões estéticos. Então, para dissipar os boatos, ele tomou uma série de iniciativas religiosas e administrativas. Como isso não surtiu efeito, voltou-se contra os cristãos: Et haec quidem humanis consiliis providebantur, mox petita [a] dis piacula aditique Sibyllae libri, ex quibus supplicatum Volcano et Cereri renovado dos imperadores de então pela religiosidade tradicional. Adiante essa questão será melhor explicada. 17 “A pietas define-se habitualmente como um sentimento de obrigação para com aqueles a quem o homem está ligado por natureza (pais, filhos, parentes). Quer dizer, por conseguinte, que liga entre si membros da comunidade familiar, unidos sob a égide da patria potestas, e projectada no pretérito pelo culto dos antepassados. Está, pois, firmada nos sentimentos religiosos dos Romanos (...)”(ROCHA PEREIRA, M. H. Estudos de História da cultura clássica, II volume – Cultura Romana. 4ª edição revista e actualizada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, pp. 338-339). 18 “Os Romanos tinham como suporte fundamental e modelo do seu viver comum a tradição, no sentido de observância dos costumes dos antepassados, mos maiorum” (Idem, p. 457). 19 Cf. JANSSEN, L. F. ‘Superstitio’ and the persecution of the Christians. Vigiliae Christianae, vol. 33, nº 2 (jun. 1979), pp. 131-159. Disponível em <www.jstor.org/stable/1583266>. Acesso em 16 de maio de 2011. 20 GRIG, L. Making martyrs in Late Antiquity. London: Duckworthy, 2004, p. 12. 8 Proserpinaeque, ac propitiata Iuno per matronas, primum in Capitolio, deinde apud proximum in Capitolio, deinde apud proximum maré, unde hausta aqua templum et simulacrum deae perspersum est; et sellisternia ac perviglia celebravere feminae, quibus mariti erant. Sed non ope humana, non largitionibus principis aut deum placamentis decedebat infâmia, quin iussum incendium crederetur. Ergo abolendo rumori Nero subdidit reos et quaesitissimis poenis adfecit, quos per flagitia invisos vulgus Chrestianos appellabat. Auctor nominis eius Christus Tibero imperitante per procuratorem Pontium Pilatum supplicio adfectus erat; repressaque in praesens exitiablilis superstitio rursum erumpebat, non modo per Iudaeam, originem eius Mali, sed per urbemetiam, quo cuncta undique atrocia aut pudenda confluunt celebranturque. Igitur primum correpti qui fatebantur, deinde indicio eorum multitudo igens haud proinde in crimine incendii quam ódio humani generis convicti sunt. Et pereuntibus addita ludibria, ut ferarum tergis contecti laniatu canum interirent aut crucibus adfixi [aut flammandi atque], ubi defecisset dies, in usu [m] nocturni luminis uerentur. Hortos suos ei spectaculo Nero obtulerat, et circense ludicrum edebat, habitu aurigae permixtus plebivel currículo insistens. Unde quamquam adversus sontes et novíssima exempla maeritos miseratio oriebatur, tamquam non utilitate publica, sed in saevitiam unius absumerentur.21 21 “Eram estas as medidas sugeridas pela prudência humana. Sacrifícios expiatórios foram feitos para apaziguar os deuses, os livros de Sibila consultados e, a eles obedecendo, fizeram-se súplicas a Vulcano, a Ceres e Proserpina. Damas romanas foram propiciar Juno, primeiramente no Capitólio, depois junto à mais próxima praia do mar, donde apanharam água para espargir no templo e na estátua da deusa e as mulheres que tinham maridos, celebraram as selistérnias, e vigílias religiosas. Mas nem por meios humanos, nem pelas liberalidades do imperador nem pelas expiações religiosas se apagava o rumor infamante que atribuía o incêndio às ordens de Nero. Para destruir tais murmúrios ele procurou pretensos culpados e fê-los sofrer as mais cruéis torturas, pobres indivíduos odiados pelas suas torpezas e vulgarmente chamados cristãos. Quem lhes dava este nome, Cristo, no tempo de Tibério foi condenado ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos. Embora reprimida no momento, esta perigosa superstição irrompia de novo, não só na Judéia, berço desse flagelo, mas até mesmo na própria Roma, para onde afluem do mundo inteiro e conquistam voga todas as coisas horríveis e vergonhosas. Logo a princípio foram presos os que se confessavam cristãos, depois pelas revelações destes grande multidão foi convencida não do crime do incêndio, mas de odiar o gênero humano. Ao suplício dos que morriam juntava-se o escárnio, pois envolviam as vítimas com peles de feras, e as expunham às lacerações dos cães, ou eram amarradas em cruzes ou destinadas a serem queimadas e, desde que acabava o dia, eram destruídas pelo fogo à guisa de tochas noturnas. Nero tinha cedido seus jardins para esses espetáculos e ao mesmo tempo celebrava jogos no circo, confundindo-se com a plebe, em hábitos de auriga, conduzindo carros. Então, posto que os castigos se dirigissem aos cristãos culpados e merecedores dos maiores suplícios, levantava-se por eles comovida compaixão, porque eram imolados menos por um motivo público que pela crueldade de um só homem” (TÁCITO. Anais. Tradução de Leopoldo Pereira. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1964, 15.44). Negritos acrescentados. Sobre essa questão, e tudo o que está à sua volta, há muitos debates historiográficos. Há quem cogite, inclusive, a possibilidade de os cristãos terem sido mesmo os responsáveis pelo incêndio de Roma (cf. FINI, M. Nero – o imperador maldito: dois mil anos de mentiras. Tradução de Mércia Justum e Alessandro Giannini. São Paulo: Scritta, 1993). Uma discussãopormenorizada fugiria aos objetivos desta dissertação. 9 Para os objetivos deste estudo, mais importante que apresentar uma longa discussão acerca do episódio acima, é destacar a repulsa anticristã da sociedade romana de então. Mas não eram apenas os Romanos que os cristãos deviam temer. Os judeus também eram hostis aos cristãos, embora muitos destes partilhassem com aqueles a mesma origem étnica. Dois anos antes do incêndio de Roma, o sumo-sacerdote de Jerusalém promoveu uma onda de perseguições contra os cristãos. E provavelmente foram os judeus de Roma que apresentaram a denúncia e a acusação de incendiários feita contra os “nazarenos”. Certamente os perseguidores foram bem informados, visto que desempenharam com êxito o seu trabalho.22 Embora os judeus gozassem o status de religio licita, e colaborassem com as autoridades romanas, como no episódio acima, a situação deles para com o Império não era das melhores. O judaísmo era considerado superstitio, assim como os demais cultos nacionais da população não-romana. Assim, ao menos parte da animosidade dos Romanos contra o cristianismo decorria do facto de esta religião ser considerada um ramo heterodoxo do judaísmo. As fricções entre os representantes do Estado romano e a sociedade judaica se acumulavam desde o início da ocupação romana da Judéia, e eram alimentadas por um messianismo político-religioso judaico que aspirava a libertação. A tensão latente acabou por desembocar numa rebelião aberta pouco após o incêndio de Roma, no ano 66. Nem a destruição do Templo e a dispersão dos judeus, no ano 70, foram suficientes para evitar duas outras rebeliões judaicas, no século II. O enfrentamento aberto tornou ainda mais precário o estatuto do judaísmo. Por sua ligação umbilical com tal religião, muitos politeístas tradicionais acreditavam que os cristãos também estavam obcecados pelos mesmos sentimentos antirromanos, o mesmo irracional odium humani generis.23 22 RODRIGUES, N. S. Iudaei in Vrbe: os judeus em Roma de Pompeio aos Flávios. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 598-600. 23 No entanto, após o incêndio de Roma em 64, os Romanos aparentemente começaram a ter consciência das diferenças religiosas entre o cristianismo e o judaísmo (RODRIGUES, N. S. Op. cit., p. 601). Mas os preconceitos romanos eram duradouros e, juntamente com o espírito de rebelião dos judeus, contribuíram para que os cristãos se afastassem do judaísmo e constituíssem uma religião autônoma. Os cristãos procuraram então se destacar como ramo religioso divergente do judaísmo, valorizando a paz com a ordem secular. Diferentemente dos judeus, não possuíam quaisquer reinvindicações nacionalistas ou étnicas. Esse processo de afastamento da “fervente” religião judaica determinou a formação dos dogmas da Igreja. Assim, por exemplo, ela paulatinamente abandonou o repouso no sétimo dia da semana, identificado ao Sabbath judaico, e adotou o descanso dominical. Para este não existe nenhuma sustentação bíblica direta, o que reforça a tese de que a razão da mudança esteve mesmo ligada ao esforço 10 Entre a primeira perseguição de Nero, que se concentrou em Roma, e a “Grande Perseguição” (303-313), de alcance muito mais amplo, em várias ocasiões pontuais os cristãos sofreram com a violência originada da pressão popular ou dos vários níveis da administração romana. Essas perseguições não foram ininterruptas ou uniformes em alcance e em intensidade sobre as cidades e províncias do Império. Mas há registos de cristãos que foram banidos de funções públicas, presos, condenados às minas24, torturados, mutilados25 ou mesmo mortos.26 Procurava-se manter a ordem no mundo, punir os transgressores, assegurar o favor dos deuses tão ofendidos com a “impiedade” cristã e preservar os valores tradicionais. O exército era o instrumento chave dos imperadores nessa árdua tarefa. Era também o primeiro foco das ações de intolerância: procurava-se “purgá-lo” do elemento cristão, tão hostil à ordem natural das coisas. Não obstante as perseguições, os conversos se multiplicavam por toda a parte. O exército não passou incólume, muito embora fosse um bastião do paganismo e dos valores tradicionais romanos. Por isso e pela resistência dos sacerdotes e apologistas cristãos em permitirem o alistamento de batizados, a “conversão” dessa instituição foi lenta. Quando, afinal, foi concedida plena liberdade de culto aos cristãos, no início do século IV, e medidas foram aplicadas a fim de tornar o cristianismo a religião de Estado, tudo indica que o número de cristãos no exército e no Império ainda fosse minoritário. Uma das prioridades dos imperadores passou a ser o exército, por vários motivos. O objetivo central deste trabalho é discutir esse processo. Da inserção de símbolos de separação absoluta do judaísmo. Para um vigoroso estudo sobre esta questão, cf. BACCHIOCCHI, S From Sabbath to Sunday – a historical investigation of the rise of Sunday observance in Early Christianity. Roma: The Pontifical Gregorian University Press, 1977. Vale a pena ressaltar que, analisando em retrospectiva, a perseguição aos judeus impulsinou a constituição do cristianismo como religião autônoma e, em última análise, o seu êxito no séc. IV, quando a Igreja se ligou ao Estado. Mas, no início, quando os Romanos perseguidores não distinguiam claramente os dois ramos religiosos, ninguém poderia prever que algum dia os “nazarenos” obteriam o reconhecimento, e muito menos o favorecimento oficial do Estado romano. 24 Cf. “Condenados a las minas bajo Valeriano”, in: Actas de los Mártires. Texto bilingüe, introducciones, notas y versión española por Daniel Ruiz Bueno, quinta edición. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1996, pp. 702-717. 25 As mutilações, em específico, exceto em situações de guerra, não foram praticadas antes da “Grande Perseguição” acima mencionada. Depois os cristãos também a praticaram contra aqueles que rotularam como “hereges”, os cristãos heterodoxos (MONTSERRAT TORRENTS, J. El desafío cristiano – Las razones del perseguidor. Madrid; Milão: Anaya & Mario Muchnik, 1992, p. 151). 26 Os mortos, no entanto, sempre constituíram uma minoria, mesmo no auge das perseguições. 11 cristãos nos estandartes militares, às preces antes das batalhas, à assistência de sacerdotes cristãos aos militares e a “cristianização” do sacramentum, será discutido aqui como se forjou essa “espada” tão necessária ao basileus. E este não foi o único beneficiado, como se verá. Os soldados encontraram no cristianismo não sua fraqueza, como quis Gibbon no século XVIII. Como se pretende aqui mostrar, eles encontraram sim, uma identidade que lhes forneceu força, motivação e um alento por que lutar no final do Império, posto que a Pátria que defendiam era uma Res publica christiana. *** Esta dissertação foi redigida segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 e que passou a vigorar entre 2010 e 2012. De modo geral, o texto se aproxima mais da variante brasileira da Língua Portuguesa, embora apresente algumas afinidades à sintaxe e termos mais usuais do Português europeu. A fim de tornar a narrativa inteligível aos leitores em geral, procurou-se fornecer a contextualização política e militar, dos primórdios da civilização romana ao fim do século IV. Naturalmente, os primeiros séculos foram analisados muito mais brevemente que o período que constituiu o foco do estudo. As datas e nomes não foram citados fortuitamente, e sim para orientar o leitor. Com a mesma de meta de clarear o quadro histórico, foi estabelecida a ligação entre os “protagonistas” da História. Assim, ao discutir a cristianizaçãodo exército no século IV, procurou-se explicar também os processos de sucessão e outros pormenores políticos, a fim de que não existissem lacunas narrativas. Além disso, dois mapas e duas imagens de peças de arte, importantes para a compreensão geral, constam nos anexos, ao final da dissertação. Tendo isso em vista, após esta introdução há um esboço da formação do Império Romano e seu exército, bem como a problemática que envolveu os cristãos e o serviço militar (capítulo I); segue a apresentação de um importante testemunho de fins do século IV e o debate sobre o sacramentum cristão (capítulo II); por fim, constam as considerações finais (capítulo III), a bibliografia (capítulo IV) e os anexos. 12 1. A guerra na Roma Antiga 1.1 Dos primórdios ao início do século IV: o exército romano tradicional A estrutura, a disciplina e a identidade do exército romano forjaram-se com a expansão imperialista romana. Esta ação conquistadora pretendia mais do que a posse e exploração de novos territórios. Ela deveria promover o estilo de vida e valores culturais romanos entre os provincianos. Orgulhosa, Roma arrogava a si um estágio de civilização mais avançado, pelo que teria a missão de estender os seus valores aos povos mais “atrasados”. Isso se dava com a ação do exército, com a criação e o desenvolvimento de cidades e pela introdução de regras jurídicas.27 As linhas gerais desse processo histórico são facilmente mapeadas. Segundo a tradição, os reis etruscos criaram mecanismos que possibilitaram a expansão romana pela Itália e além. De entre esses reis se destacou Sérvio Túlio (578-534 a.C.) que, por meio do censo, repartiu os encargos civis e militares proporcionalmente à fortuna pessoal de cada cidadão.28 Assim, até à conquista da Itália (400-270 a.C.) a guerra romana era marcada por traços aristocráticos: os patrícios exerciam papel militar único e tomavam quase todo o espólio de guerra. Foi principalmente sob a República (509-27 a.C.) que Roma constituiu seu imperium. A conquista da península itálica, impulsionada pela infantaria então recém- criada (séc. V a.C.), desenvolveu a cultura militar romana.29 Por conseguinte, a fase militar aristocrática foi gradualmente superada. Tornando a “expansão um objetivo público e religiosamente sancionado”30 (cf. supra, pp. 3-4), os conquistadores estenderam a cidadania aos novos aliados. Estes, em troca, deviam-lhes unicamente o 27 MARTIN, J.-P. As províncias romanas da Europa Ocidental e Central. Portugal: Europa-América, 1999, pp. 181-182. 28 AZIZ, P. A civilização dos etruscos. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1978, p. 104. 29 FUNARI, P. P. A. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, C. B. & PINSKY, J. (orgs). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 51. 30 DAWSON, D. A. Op. cit., p. 198. 13 serviço militar. Consequentemente, Roma formou uma reserva militar inalcançável para os seus inimigos. Esse sistema sustentou as três guerras púnicas que garantiu aos Romanos o controlo sobre o Mediterrâneo ocidental (270-200 a.C.). A etapa derradeira da constituição do imperium romanorum deu-se após a conquista do mundo helênico (200- 146 a.C.). Em essência, estava formada uma unidade territorial que se manteve em relativa integridade até o século V. *** Antes da ascensão da nova potência, a Grécia inspirou a constituição das tropas romanas que combatiam a pé, as precursoras das legiões. E as contribuições helênicas permaneceram com as legiões, que se tornaram as unidades mais prestigiadas do exército romano. Seu contingente variou muito no decorrer de sua existência, mas girou em torno de 4200 e 5 mil homens, além de 300 cavaleiros. Todo aquele que aspirasse a uma magistratura deveria cumprir o mínimo de dez anos de serviço militar. Assim, sempre existiam patrícios interessados no comando legionário, que era constituído, da base para o topo, por 59 centuriões; um tribuno (ou vários), que comandava a cavalaria; cinco tribunos (“angusticlávios”) da ordem equestre, cada qual responsável por duas coortes; um prefeito do acampamento; um tribuno designado “laticlávio” e, finalmente, um legado da legião, ambos procedentes da ordem senatorial.31 Além das questões práticas da vida militar, a hierarquia também era importante para a vida espiritual das legiões, visto que era através de sua intermediação que as sensibilidades dos soldados se impregnavam pela religião, então percebida mais como uma obrigação coletiva que individual. Os “sincretismos de associação” eram provavelmente mais comuns entre os militares do que entre os civis, visto que eles buscavam assegurar toda a proteção divina possível. A noção do sagrado entre os 31 POLIBIO. Historias. Introducción de A. Díaz Tejera, traducción y notas de Manuel Balasch Recort. Madrid: Gredos, 1991, 6. 19-42 e BOHEC, Y. L. El ejército romano. Traducción de Ignacio Hierro. Barcelona: Ariel, 2004, pp. 33-34. 14 soldados romanos possuiu também uma dimensão espacial – o pomoerium, já mencionado, era o limite sagrado da cidade na época republicana.32 Sob o Império, o conceito sofreu uma transferência e se aplicou também ao limes, a zona fronteiriça que além de ser uma barreira militar possuía valor jurídico e religioso. Portanto, o Império era protegido também por uma milícia celestial.33 A guerra romana era uma adaptação da guerra hoplita grega, e a legião, “uma adaptação da falange grega.” A legião dividia-se em várias linhas, cada uma subdividida em pequenas unidades capazes de manobra independente.34 Mesmo os escudos legionários, por exemplo, se basearam em modelos gregos (embora o gládio fosse hispânico, e o pilum, samnita).35 Portanto, foram principalmente elementos gregos e romanos que, unidos, moldaram a legião. Esta, no entanto, acabou por desenvolver-se opostamente ao modelo da falange hoplítica e adquiriu sua identidade clássica já nos primórdios do século III a.C.36 Assim surgiu um sistema militar sempre vitorioso sobre tropas desorganizadas quando o terreno era favorável. Tal fenômeno levou alguns estudiosos a acreditarem que a disciplina militar romana, combinada com seu sistema de organização tática, foi provavelmente a mais eficaz do mundo.37 Assentado nessa disciplina38, tal sucesso 32 Cf. supra, a lenda da fundação de Roma e as razões do fratricídio cometido por Rômulo (p. 3). 33 BOHEC, Y. L. Op. cit., pp. 332-334. 34 DAWSON, D. A. Op. cit., pp. 191-92. 35 GRIMAL, P. O Império Romano. Lisboa, Edições 70, 1999, p. 119. 36 BRIZZI, G. O guerreiro, o soldado e o legionário. Tradução de Sílvia Massimini. São Paulo: Madras, 2003, pp. 26-27. 37 FERRILL, A. A queda do Império Romano – a explicação militar. Tradução de Octavio A. Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p. 30. 38 A disciplina entre os romanos não significava necessariamente uma obediência mecânica às ordens. Se isso ocorria, era mais como consequência. Na palavra latina disc-iplina há a raiz disc-o, -ere, verbo que significa “aprender”. Em síntese, todos os códigos da conduta de um soldado para com seu superior pautavam-se em uma relação semelhante à de um aluno para com seu professor (BOHEC, Y. L. Op. cit., p.144). Em situações adequadas, a iniciativa e agressão individuais eram muito encorajadas pelos militares romanos, visto que a atitude de alguns homens podia ser decisiva em uma batalha (GOLDSWORTHY, A. Generais romanos. Tradução de Carlos Fabião. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2007, p. 484). Este conceito distingue-se radicalmente de como a disciplina se apresenta na contemporaneidade: portadora de um conteúdo no qual o que interessa é “apenas a execução da ordem recebida, coerentemente racionalizada, metodicamente treinada, e exata, na qual toda críticapessoal é incondicionalmente eliminada e o agente se torna um mecanismo preparado exclusivamente para a realização da ordem” (WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1974, p. 292). O melhor estudo sobre a disciplina militar romana é PHANG, S. E. Roman military service – ideologies of discipline in the Late Republic and Early Principate. New York: Cambridge University Press, 2008. A autora observa que mesmo punições exigem legitimação e a ideia de uma obediência dos soldados como categórica e absoluta foi mais um ideal da elite que uma realidade (p. 111). Toda essa questão pode ser 15 reprimia severamente a ferocitas daqueles que desrespeitavam o sistema de combate em fileiras.39 Apesar disso, a ferocidade distinguiu o modo de guerrear dos romanos do de seus contemporâneos.40 Ainda que a legião tivesse consolidado sua identidade, não possuía ainda uma estrutura militar profissional. A Roma de então desconhecia distinções entre civis e militares e entre cidadãos e soldados. Os cidadãos eram convocados sempre que surgia uma guerra ou ameaça externa, após as quais eram desmobilizados e retornavam à vida civil. Essa realidade mudou sensivelmente a partir de fins do século II a.C. Em 129 a.C. o Senado reduziu o patrimônio mínimo requerido para ingresso na classe V do exército. Em 107 a.C., Gaio Mário (157-86 a.C.) oficializou uma reforma que finalmente profissionalizou o exército. A carreira civil separou-se da militar, algo que muito contribuiu para a consolidação de uma identidade militar. No entanto, tal mudança cobrou seu preço à res publica, visto que, em última análise, Mário fundou “um forte laço de fidelidade e dependência entre o general e o soldado, e não mais entre o Estado e o soldado.”41 Como observa Norma Mendes, após Júlio César essa nova forma de relacionamento entre as legiões e seu general tornou-se irreversível. Eleito cônsul em 59 a.C., César formou o primeiro triunvirato com Pompeio (106 a.C. – 48 a.C.) e Crasso (115 a.C. – 53 a.C.). Recebeu as províncias da Gália Cisalpina e, depois, as da Gália Transalpina. A seguir, dedicou-se à conquista do resto da Gália. Com a morte de Crasso, o conflito com Pompeio tornou-se inevitável. A essa altura, já contava com a fidelidade plena dos seus veteranos. condensada por Políbio, para o qual as conquistas romanas se explicavam não só pelos castigos, mas também pelas honras militares (op cit., 6.39). 39 O combate fora das fileiras, algo como o duelo, só era lícito quando excepcionalmente permitido pelos superiores. Assim, o soldado Tito Mânlio, após receber a autorização do dictator que então governava, matou um Galo que desafiava os romanos. Em recompensa, recebeu uma coroa de ouro e, inclusive, o apelido “Torquato”, que fez com que até os seus descendentes fossem honrados (TITO LIVIO. Op. cit., 7.9-10). Posteriormente, outro Tito Mânlio, desprezando a ordem expressa dos cônsules que proibia qualquer enfrentamento fora das fileiras, envolveu-se num combate singular contra um Tusculano, guerreiro famoso pela sua linhagem e pelos seus feitos. Após matá-lo e recolher os despojos, Mânlio retornou ao acampamento, onde foi ovacionado pelo seu esquadrão de reconhecimento. Sua proeza, contudo, não o livrou da pena capital, ordenada pelo cônsul e pai. O terrível incidente deixou uma lição duradoura: a de que ninguém quebraria a disciplina militar e ficaria impune (idem, 8.7). 40 KEEGAN, J. Uma história da guerra. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 343. 41 MENDES, N. M. Roma Republicana. São Paulo: Ática, 1988, pp. 65-66. 16 O partido senatorial, encabeçado por Pompeio, acabou derrotado em Farsália (09 de agosto de 48 a.C.). César então decidiu reconquistar o Oriente, ocupando o Egito após a tomada de Alexandria. Entre abril de 46 e março de 45, esmagou o que restava das forças de Pompeio na África, Tasos e na Hispânia (Munda). Após sair vitorioso e celebrar seus cinco triunfos, recompensou com prodigalidade os soldados tão notáveis por sua fidelidade pessoal. 42 Vitorioso, popular e dispondo de tropas tão fiéis, César se tornou um dictator poderoso. No entanto, acabou executado por opositores antes de consolidar seu projeto pró-monárquico. Mesmo assim, deixou as bases sobre as quais seu herdeiro, Otávio, tornou-se o primeiro princeps. Para assegurar o poder, Otávio teve que iniciar outra sangrenta guerra civil. Ao fim dela, seu inimigo Marco Antônio (83 a.C. – 30 a.C.) acabou derrotado e morto. Otávio deu grande contribuição ao exército, embora tenha comandado diretamente as legiões em apenas duas ocasiões.43 É evidente que não inventou tudo: em muitos casos recorreu à herança do exército republicano. Mesmo assim, ele forjou a organização militar do Alto Império: a distinção entre a guarnição de Roma e a das províncias, a diferença entre unidades auxiliares e legiões, o comando de uma e outras, os modelos de recrutamento e a estratégia implantada nas fronteiras datam de seu principado.44 Além disso, a enfermaria de campanha estava à disposição dos feridos. O serviço dos efetivos, as licenças, a certeza de que o exército é uma profissão, a reforma e as representações teatrais para as tropas também já eram conhecidos.45 A partir do reinado de Otávio Augusto, os recrutas, uma vez integrados na sociedade militar, aprendiam diversos aspetos da cultura romana, e desenvolviam comunitariamente um nível particular de consciência imperial. Os militares desenvolveram assim um distinto modo de vida, com um horário particular de deveres militares e religiosos que formavam parte de suas atividades cotidianas. Esta cultura militar também gravitava em torno da ligação de cada soldado para com o regime imperial. 42 SUETÔNIO. Os doze césares. Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo: Germape, 2003, César, 38, p. 29). 43 Isso aconteceu na Dalmácia, quando ainda era bem novo, e na Cantábria, após derrotar Marco Antônio (SUETÔNIO. A vida do Divino Augusto, 20. In: AUGUSTO; SUETÔNIO. A vida e os feitos do Divino Augusto. Tradução de Matheus Trevizam, Paulo S. Vasconcellos e Antônio M. de Rezende. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007, p. 64). 44 BOHEC, Y. L. Op. cit., p. 255. 45 CARRIÉ, J. M. O soldado. In: GIARDINA, A. (dir.). O homem romano. Tradução de Maria J. V. de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 89. 17 Contudo, a principal fonte de unidade relacionava-se mais com uma distinta identidade militar, disciplina, rotina e camaradagem, ao invés de uma “ideologia” global romana. Resultou de formação e aculturação no seio de um modo de vida militar que se distinguia por variáveis como estilos de vestimenta militar, arquitetura de fortes e fortalezas, e do latim, língua comum a muitos soldados e que também forneceu coerência à vida da caserna. Além disso, muitos soldados foram deslocados para as regiões fronteiriças, onde se tornaram um grupo especial, graças a fatores como o poder proporcionado por sua identidade militar e sua importância econômica. Assim, em províncias como Britânia e Germânia (mas não só), soldados na ativa e, principalmente, veteranos reformados, ligaram-se às elites locais. Formaram assim uma identidade que deve ter forjado formas de solidariedade imperial que estavam além da elite imperial. Esta identidade militar pode ser definida pela conexão com outras formas de cultura da não-elite romana, ou cultura “subordinada” que, embora recorresse a algumas fontes comuns à identidade da elite, foi definida e manifestada de muitos modos diferentes.46 O principado de Otávio não foi marcado apenas por avanços na área militar. Foi também um período de intensa propagandaimperial destinada a construir a imagem do princeps da Pax Romana. Um dos pontos altos dessa propaganda se deu no ano 13, quando o imperador possuía (para a época) a extraordinária idade de 76 anos. Nessa altura ele gravou suas realizações no Res gestae Diui Augusti.47 No trecho abaixo referido, Augusto elencou algumas de suas realizações militares e diplomáticas, fazendo questão de passar a imagem de um general justo: Omnium prouiciarum populi Romani, quibus finitimae fuerunt gentes quae non pererent imperio nostro, fines auxi. Gallias et Hispanias prounicias, item Germaniam qua includit Oceanus a Gadibus ad ostium Albis fluminis pacaiu. Alpes a regione ea, quae proxima est Hadriano mari, usque ad Tuscum pacificaui, nulli genti bello per iniuriam inlato. Classis mea per Oceanum ab ostio Rheni ad solis orientis regionem usque ad fines Cimbrorum nauigauit, quo neque terra neque mari quisquam Romanus ante id tempus adit, Cimbrique et Charydes et Semnones et euisdem tractus alii Germanorum populi per legatos amicitiam meam et populi Romani petierunt. Meo iussu et auspicio ducti sunt duo exercitus eodem fere tempore 46 HINGLEY, R. Globalizing Roman culture – unity, diversity and Empire. New York: Routledge, 2005, pp. 93 e 94. 47 Cf. CORASSIN, M. L. Comentário sobre as RES GESTAE DIVI AVGVSTI. In: JOLY, F. D. (org.). História e retórica – ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, pp. 97-118. 18 in Aethiopiam et in Arabiam, quae appellatur Eudaemon, maxima eque hostium gentis utriusque copiae caesae sunt in acie et complura oppida capta. In Aethiopiam usque ad oppidum Nabata peruentum est, cui proxima est Meroe: in Arabiam usque in fines Sabaeorum processit exercitus ad oppidum Mariba.48 O primeiro imperador construiu assim a imagem de general. Ao lado dela, usufruiu da imagem religiosa de “Augusto” (venerável) e a imagem cívica de “Pai da Pátria.”49 Embora se mostrasse preocupado com a extensão territorial e a afirmação de Roma como superpotência, ao menos na propaganda procurava assegurar antes disso a segurança e a paz dos cidadãos, como atesta a magnífica Ara Pacis. Como observou Aurélio Vítor, o imperador Iactantisque esse ingenii et leuissimi dicebat ardore triumphandi et ob lauream coronam, id est folia infructuosa, in discrimen per incertos euentus certaminum securitatem ciuium praecipitare, neque imperatori bono quidquam minus quam temeritatem congruere. Satis celeriter fieri, quidquid commode gereretur, armaque, nisi maioris emolumenti spe, nequam mouenda esse. Ne compendio tenui, iactura grani, petita uictoria similis sit hamo aureo piscantibus, cuius abrupti amissique detrimentum nullo capturae lucro pensari potest.50 48 “Aumentei os territórios de todas as províncias do povo romano, onde havia povos vizinhos que não obedeciam a nosso poder. Pacifiquei as províncias das Gálias e das Espanhas, bem como a Germânia: aquém do Oceano, de Gades [Cádiz] até a foz do rio Elba. Tornei pacíficos os Alpes desde a região que é próxima ao mar Adriático até o Tirreno, a nenhum povo levando injustamente a guerra. Minha esquadra navegou pelo Oceano da foz do Reno para o Oriente, até o território dos címbrios, aonde romano algum havia chegado por terra ou mar. Os címbrios, cárides, sêmnones e outros povos germânicos das mesmas regiões rogaram por embaixadores a minha amizade e a do povo romano. Por minha ordem e iniciativa foram levados dois exércitos, quase ao mesmo tempo, à Etiópia e à Arábia que se chama ‘Feliz’; um enorme número de inimigos dos dois povos foi morto em batalha e muitas cidades tomadas. Foi-se à Etiópia até a cidade de Nabata, perto da qual se encontra Meroé; o outro exército prosseguiu na Arábia ao território dos sabeus, até a cidade de Mariba” (AUGUSTO. Feitos do Divino Augusto, 26. In: AUGUSTO; SUETÔNIO. Op. cit., p. 135 e p. 123, respetivamente). Negritos acrescentados. 49 Os títulos destacados foram concedidos pelo senado (idem, 34 e 35, pp. 137-138). 50 “Dizia ser próprio de um espírito presunçoso e mais do que fútil ceder à paixão dos triunfos e a uma coroa de louro, isto é, a folhas estéreis, a segurança dos cidadãos e precipitá-la no perigo dos incertos desfechos de batalhas. Nada convém menos ao bom general que a temeridade; fazer algo depressa o bastante é fazê-lo bem. Jamais se deve pegar em armas senão na esperança de um interesse maior; a busca de uma vitória de ganho exíguo e graves perdas não deve ser como a dos que pescam com anzol de ouro: impossível compensar com o lucro de captura alguma o prejuízo de quebrá-lo e perdê-lo” (SEXTO AURÉLIO VíTOR. Vida e costumes dos imperadores romanos – V. Augusto, 2. In: NERI, M. L.; NOVAK, M. G.; PETERLINI, A. A. (orgs.). Historiadores latinos: antologia bilíngue. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 278-279). 19 O sistema político-administrativo e, sobretudo, a estrutura militar montada por Augusto estavam fadados a durar. Após ele, a primeira guerra civil só ocorreu entre 68 e 69, no chamado “ano dos quatro imperadores” (quando, após o suicídio de Nero, Otão, Galba e Vitélio se sucederam até que Vespasiano restabeleceu a ordem política). Também ocorreram algumas rebeliões provinciais, dentre as quais as judaicas, já mencionadas, representaram a maior ameaça. Ainda assim, nos três primeiros séculos do exército imperial, predominaram as características do modelo augustano. Houve pouco espaço para alterações ou evolução. Mesmo Trajano (98-117) praticamente não alterou a organização herdada, que foi mantida durante suas expedições vitoriosas contra os Dácios e os Partos. Ao longo do século II cresceu a importância do exército enquanto elemento basilar da força imperial. Nesse período, o auge da influência dos militares para com o poder central provavelmente se deu com Septímio Severo (193-211). De entre as principais medidas deste imperador destacam-se um aumento considerável do soldo e a autorização para que os soldados se casassem legalmente. Há que destacar que o aumento de soldos e donativos concedidos por ele e seus filhos ao exército não foi tão grande a ponto de ter se constituído uma “monarquia militar.” Tal termo, aliás, é inadequado por outro motivo – o principado romano sempre se apoiou no exército, e não apenas com a Dinastia dos Severos. Conta-se que, em seu leito de morte, Severo recomendou aos filhos e sucessores que beneficiassem os soldados e esquecessem os demais. Não é possível confirmar a autenticidade dessa anedota. Em todo caso, embora Severo tenha sido o primeiro imperador que as legiões impuseram ao Senado, este não deixou de ser procurado como base para a legitimação de seu poder.51 Portanto, também é equivocada a ideia segundo a qual sua “monarquia militar” sustentava-se unicamente pela força das armas. O fim da dinastia dos Severos abriu um período de enfraquecimento político e desordens generalizadas. Tudo culminou no que a historiografia denominou “anarquia militar” (235-284). Esse período de quase meio século foi marcado por sucessivos golpes de Estado, guerras civis, assassinatos de imperadores, protagonismo do exército 51 Cf. GONÇALVES, A. T. M. Os Severos e a Anarquia Militar. In: MENDES, N. M. & SILVA, G. V. Repensando o Império Romano. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória: Edufes, 2006, pp. 175-191. 20 como instrumento político e governos tão breves que não chegaram a imprimir uma diretriz administrativa. Tudo isso foi aproveitado pelos inimigos germânicos e Persas, que infligiram várias derrotas às legiões. A anarquia terminou com Diocleciano (285-305), que restaurou a ordem ao mundo romano. Tendo em conta as dificuldades para governar sozinho um Império tão vasto e perturbado, instituiu primeiro uma “diarquia” aonomear Maximiano primeiro como “César” e, depois, como “Augusto” do Ocidente (286-305). Fala-se em “diarquia” (com aspas) porque o soberano mais antigo resguardou para si a proeminência e o Império permaneceu um patrimônio indivisível (patrimonium indiuisum) a ele submetido. Em 01 de março de 293 proclamaram-se dois Césares: Constâncio52, associado a Maximiano em Milão, e Galério53, associado a Diocleciano em Nicomédia. Era a tetrarquia, sistema de governo marcado por uma teologia política segundo a qual Diocleciano (Iouius, “descendente de Júpiter”) e Maximiano (Herculeus, “descendente de Hércules”) teriam os Césares como filhos.54 Os laços dessa família “divina” foram reforçados por meio de casamentos com mulheres das famílias dos tetrarcas. Segundo Lactâncio, um autor cristão e crítico mordaz de Diocleciano, este teria quadruplicado o exército, subdividido as províncias “ao extremo” e elevado as exações a um nível insuportável.55 Quanto ao aumento do contingente militar, é consenso na historiografia que Lactâncio exagerou e que o imperador teria, no máximo, duplicado os efetivos. Embora seja difícil determinar o total de homens das novas unidades, não restam dúvidas de que Diocleciano substituiu o princípio baseado na qualidade do recrutamento por outro que insistia no aspeto quantitativo.56 Houve, portanto, um aumento significativo da força militar e da burocracia civil. O objetivo era não só proteger o Império dos inimigos externos mas também resguardar a autoridade imperial de usurpadores e das guerras civis. A importância do exército para o novo sistema de governo depreende-se da propaganda tetrárquica, que enfatizou 52 César entre 293-305 e Augusto entre 305 -306. 53 César entre 293-305 e Augusto entre 305-3011. 54 Os Augustos, após experimentarem o “segundo nascimento” (note a semelhança com o batismo cristão), passaram a celebrar os seus aniversários divinos no mesmo dia (geminis natalis). O parentesco divino foi uma ideia familiar nas culturas helenísticas e romana: Júlio César, mais de trezentos anos antes de Diocleciano, já havia se proclamado descendente de Vênus (WILLIAMS, S. Diocletian and the Roman recovery. London: Routledge, 2000, p. 59). 55 LACTÂNCIO. Sobre la muerte de los Perseguidores. Introducción, traducción y notas de Ramón Teja. Madrid: Gredos, 1982, 7. 56 BOHEC, Y. L. Op. cit., p. 361. 21 grandemente a apresentação do imperador como soldado. O soberano passou a retratar a si próprio em moedas e estátuas com a barba de um dia, e vestindo e retirando o barrete, como suas tropas muitas vezes o viam. A relação entre os imperadores e os soldados como indivíduos foi reforçada pelos donativos, doações em dinheiro feitas pelo imperador aquando da sua elevação como César ou Augusto e depois em intervalos de cinco anos. Dádivas menores eram concedidas também nos aniversários imperiais e consulados.57 1.2 Os cristãos no exército romano (séc. I – início séc. IV) Até aqui foram sumarizadas as realizações do exército romano, e como este foi moldado a fim servir aos interesses da República e do Império. É sem dúvida insuficiente, mesmo como panorama daquele que foi um dos maiores instrumentos de conquista de todos os tempos. Mas esta não é uma dissertação sobre as suas conquistas, e sim sobre como este foi conquistado. E esta referência não diz respeito ao modo como foi conquistado por qualquer força invasora, mas sim como foi conquistado por uma força muito mais subtil: a da fé cristã. Essa “conquista” não lhe trouxe um prejuízo evidente, pelo contrário. Ao contrário das teses formuladas ainda na época do Iluminismo, no século XVIII, tentar-se-á explicar como o cristianismo foi positivo ao exército romano e aos imperadores tardios, que acabaram por também adotar essa religião. No entanto, antes dessas questões que ocuparão a parte final deste estudo, cumpre analisar a problemática dos cristãos no exército romano não-cristão. 1.2.1 Os fundamentos bíblicos para as objeções cristãs ao serviço militar 57 ELTON, H. Warfare and the military. In: LENSKI, N. (ed.). The Cambridge companion to the Age of Constantine. New York: Cambridge University Press, 2006, p. 338. 22 Além do elemento bélico, intrínseco de qualquer milícia, o exército romano, enquanto propagador dos valores romanos, também era um baluarte do politeísmo greco-romano que tanto ofendia os cristãos. Considerando que a fé cristã se baseia nas Escrituras (a Bíblia cristã), cumpre esboçar o que esses textos trazem sobre a guerra e sobre a idolatria. Estes passos serviram de fundamento aos objetores de consciência cristãos e aos teólogos e autoridades da Igreja quando condenaram o envolvimento de seus fiéis no serviço militar. Em relação às duas problemáticas colocadas – guerra (incluindo violência de um modo geral) e idolatria (adoração de imagens) – cumpre destacar que a última é bastante assertiva na Bíblia. Não há margem para qualquer dúvida, pelo que era um ponto pacífico aos cristãos dos primeiros séculos. Talvez essa seja uma das maiores heranças judaicas para o cristianismo, religião intransigente na condenação à adoração de imagens de deuses pagãos. O primeiro e o segundo mandamento do Decálogo condenam a adoração a outros deuses e a fabricação de imagens de escultura (Êx. 20, 3- 4; cf. Dt. 4, 24). O Novo Testamento (conjunto de livros escritos após a vida de Jesus e que pertencem somente ao cânone da Bíblia cristã) manteve o tom de forte condenação à idolatria (cf. Mc. 12, 28-34). Segundo as palavras que teriam sido ditas pelo próprio Jesus, “Deus é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo. 4, 24). Isso significa que o Deus dos judeus e dos cristãos não poderia ser representado, de tal modo era fundamental o princípio monoteísta.58 Encerrada a exposição do posicionamento bíblico com relação à idolatria, seguem os aspetos relacionados com a guerra. O primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, trata das origens dos céus e da Terra. Tudo teria sido criado na mais absoluta perfeição, até que uma serpente falante teria tentado a mulher do primeiro casal a pecar. Na concepção bíblica, o mal – do qual a guerra é uma das puras expressões – passou então a grassar entre os homens. Os antecedentes deste relato surgem a posteriori, no último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse. O embate cósmico entre o Bem (representado por Miguel) e 58 Como se sabe, o cristianismo tardo antigo e medieval evoluiu no sentido de harmonizar o substrato politeísta ao monoteísmo cristão, não só através da veneração dos mártires, das suas relíquias e mais tarde dos santos, como pela cristianização de festivais e de templos dedicados aos deuses tradicionais. A Reforma Luterana do século XVI procurou recuperar na disciplina religiosa a centralidade do culto ao Deus único, secundarizando a veneração dos santos, mas essa questão escapa aos objetivos desta dissertação. 23 o Mal (representado pelo “Dragão”, “a antiga serpente”, ou seja, Satanás [Ap. 20, 2]) teria iniciado no céu, com uma batalha na qual o Dragão teria sido derrotado. Após o relato das origens do homem seguem-se narrativas envolvendo violência e batalhas nas quais os patriarcas tomaram parte. A seguir, Javé, o Deus dos Hebreus, ordenou que o seu povo escolhido conduzisse uma guerra de extermínio contra Hititas, Amorritas, Cananeus, Ferezeus, Heveus e Jebuseus. O próprio Javé teria endurecido o coração desses povos para que fossem destruídos (Jz. 11, 20); por outro lado, permitiu que esse processo demorasse para que Israel permanecesse fiel (Jz. 2, 20-23). Javé era consultado antes das batalhas (Jz. 1, 1) e teria prescrito fórmulas para descartar recrutascobardes ou desmotivados, bem como teria definido as situações em que os sitiados por Israel deveriam ser escravizados ou exterminados (Dt. 20). É verdade que existe uma perspectiva de que no futuro as nações não mais travariam guerras e as espadas seriam transformadas em “relhas de arado”, e as lanças em “foices” (Is. 2, 4). No entanto, no campo prático a guerra era considerada parte intrínseca da vida terrena, e funcionava como um instrumento divino para punir os iníquos, quer fossem os ímpios Cananeus ou os Hebreus “rebeldes.” Assim, em resumo, na Bíblia hebraica (chamada de Antigo Testamento pelos cristãos) a guerra era uma forma pela qual Javé cumpria os seus propósitos. O posicionamento do Novo Testamento em relação à guerra e à atividade militar não muda radicalmente em relação ao Antigo Testamento. João Baptista, precursor de Cristo, aconselhou aos soldados que não cometessem extorsões, que não fizessem denúncias falsas e que se contentassem com o soldo (Lc. 3, 14). Não lhes recomendou a deserção ou a demissão do serviço militar; seu desejo era apenas que não ocorresse nenhum abuso de autoridade por parte dos militares. Jesus também não condenou a carreira militar em si mesma, e exaltou a fé do centurião de Cafarnaum (Lc. 7, 9). Portanto, para esses dois personagens fundamentais dos Evangelhos (os quatro primeiros livros do Novo Testamento), a carreira militar (e, por consequência, a guerra) era se não recomendável, pelo menos tolerada e reconhecida como uma profissão. Um crente sincero poderia engajar-se nela desde que não se corrompesse e oprimisse os outros. 24 Mas, sob outra perspectiva, Jesus e a natureza dos Evangelhos apontam para uma direção oposta à da guerra. Como se pode notar nas Bem-Aventuranças que constam no Evangelho de Mateus (cap. 5), paciência, mansidão, pacifismo e tranquilidade diante da perseguição são exaltados. O verso 39 desse mesmo capítulo mostra que a autodefesa não era aceite. Jesus teria também, de alguma forma, condenado os que empunhavam a espada: eles morreriam por ela (Mt. 26, 52). No julgamento que acabou por condená-lo à morte, o líder galileu declarou que seu reino não era do mundo terreno, pelo que seus servos não se envolveriam em qualquer mobilização militar (Jo. 18, 36). Esses e muitos outros passos são mais significativos do que os raros nas quais as palavras de Jesus podem ter alguma conotação bélica (Mt. 10, 34; 11, 12). A confissão de fé de Jesus por ocasião de seu batismo (cf. Mt. 3, 16 e 17; Mc. 1, 9-11; Lc. 3, 27) até pode conter semelhanças com um juramento militar, como defendeu Harnack,59 mas, no geral, os passos anti-violência e anti-belicistas têm um peso mais consistente. Por isso a primeira geração de cristãos opôs-se a tudo que fosse bélico.60 Após a morte de Jesus e o início da evangelização dos gentios essa determinação pacifista cedeu um pouco. O centurião Cornélio, varão “temente a Deus”, foi convertido ao cristianismo (Act. 10). O livro de Hebreus (11, 32-34) não apresenta juízo desfavorável às guerras das quais tomaram parte as doze tribos de Israel. O cristianismo herdou do judaísmo o elemento bélico a partir da sua expectativa messiânica e do sentido alegórico da linguagem dos profetas e salmistas que floresceram em inúmeras imagens (batalha espiritual, armamento espiritual, etc.). Esta é a origem das admoestações e das ilustrações de teor bélico dos escritos de Paulo (Rm. 6, 13, 14 e 23; 13, 12; 2 Cor. 6, 7; 1 Ts. 5, 8; Ef. 6, 10-18). Além disso, sua contundente exortação à 59 HARNACK, A. von. Militia Christi: the Christian religion and the military in the first three centuries. Translated by David McInnes Gracie. Philadelphia: Fortress Press, 1981, p. 28. É facto que, além da fundamentação bíblica, outros motivos, quiçá até mais fortes, concorreram para que os primeiros cristãos rechaçassem a atividade guerreira. Um deles tem a ver com o fundo milenarista do primeiro cristianismo, ou seja, a crença na eminência da segunda vinda de Cristo. O Apocalipse foi fruto desse espírito. As perseguições aos cristãos e, sobretudo, a Queda do Templo de Jerusalém em 70 (episódio simbólico gravoso, mesmo para os cristãos), se conjugavam num quadro escatológico. Diante disso, os cristãos se questionavam acerca da razão dos esforços humanos, procriação, trabalho, e, acima de tudo, o porquê de combaterem por um mundo condenado que os perseguia. Isso tudo ajuda a explicar a razão de não colaborarem com o “século.” 60 Idem, p. 27. 25 sujeição às autoridades constituídas, para muitos significava que ele tolerava o serviço militar, caso este viesse a ser exigido: Πᾶσα ψυχᾶ ᾶξουσᾶαις ᾶπερεχοᾶσαις ᾶποτασσᾶσθω. οᾶ γᾶρ ᾶστιν ᾶξουσᾶα εᾶ µᾶ ᾶπᾶ θεοᾶ, αᾶ δᾶ οᾶσαι ᾶπᾶ θεοᾶ τεταγµᾶναι εᾶσᾶν. ᾶστε ᾶ ᾶντιτασσᾶµενος τᾶ ᾶξουσᾶᾶ τᾶ τοᾶ θεοᾶ διαταγᾶ ᾶνθᾶστηκεν, οᾶ δᾶ ᾶνθεστηκᾶτες ᾶαυτοᾶς κρᾶµα λᾶµψονται. οᾶ γᾶρ ᾶρχοντες οᾶκ εᾶσᾶν φᾶβος τᾶ ᾶγαθᾶ ᾶργᾶ ᾶλλᾶ τᾶ κακᾶ. θᾶλεις δᾶ µᾶ φοβεᾶσθαι τᾶν ᾶξουσᾶαν· τᾶ ᾶγαθᾶν ποᾶει, καᾶ ᾶξεις ᾶπαινον ᾶξ αᾶτᾶς· θεοᾶ γᾶρ διᾶκονᾶς ᾶστιν σοᾶ εᾶς τᾶ ᾶγαθᾶν. ᾶᾶν δᾶ τᾶ κακᾶν ποιᾶς, φοβοᾶ· οᾶ γᾶρ εᾶκᾶ τᾶν µᾶχαιραν φορεᾶ· θεοᾶ γᾶρ διᾶκονᾶς ᾶστιν ᾶκδικος εᾶς ᾶργᾶν τᾶ τᾶ κακᾶν πρᾶσσοντι. διᾶ ᾶνᾶγκη ᾶποτᾶσσεσθαι, οᾶ µᾶνον διᾶ τᾶν ᾶργᾶν ᾶλλᾶ καᾶ διᾶ τᾶν συνεᾶδησιν. διᾶ τοᾶτο γᾶρ καᾶ φᾶρους τελεᾶτε· λειτουργοᾶ γᾶρ θεοᾶ εᾶσιν εᾶς αᾶτᾶ τοᾶτο προσκαρτεροᾶντες. ᾶπᾶδοτε πᾶσιν τᾶς ᾶφειλᾶς, τᾶ τᾶν φᾶρον τᾶν φᾶρον, τᾶ τᾶ τᾶλος τᾶ τᾶλος, τᾶ τᾶν φᾶβον τᾶν φᾶβον, τᾶ τᾶν τιµᾶν τᾶν τιµᾶν.61 A escatologia apocalíptica apresenta aspetos de elementos bélicos messiânicos transferidos para Jesus e aponta que o fim dos tempos se daria precisamente através de uma guerra. Embora não seja do derradeiro livro bíblico que nasceu a consciência de ser miles Christi, ele contribuiu para que os cristãos não se afastassem totalmente da guerra.62 Em suma, embora com papel menos destacado do que no Antigo Testamento, o serviço militar não é explicitamente proibido em nenhuma parte do Novo Testamento. O cristianismo fundamentava-se num evangelho, isto é, “boa nova” de paz, que ainda assim não descartava a necessidade do exército. 61 “Todo homem se submete às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. Os que governam incutem medo quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres então não ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receberá elogios, pois ela é instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares o mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada; ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem pratica o mal. Por isso é necessário submeter-se não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. É também por isso que pagais impostos, pois os que governam são servidores de Deus, que se desimcumbem com zelo do seu ofício. Daí a cada um o que lhe é devido; o imposto a quem é devido; a taxa a quem é devida; a reverência a quem é devida; a honra a quem é devida” (Rm. 13, 1-7). *** Para uma explicação desse passo a partir do contexto histórico e do pensamento de Paulo, cf. ELLIOT, N. “Romanos 13, 1-7 no contexto da propaganda imperial.” In: HORSLEY, R. A. (org.). Paulo e o Império. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 184-202. 62 HARNACK, A. von. Op. cit., pp. 32 e ss. 26 O cristianismo primitivo, por um lado, condenou perentoriamente o uso não justificado da espada, mas, por outro, teve um posicionamento muito mais condescendente e tolerante para com os soldados e guerreiros do seu tempo.63 Em escritos cristãos não-canónicos do século I é possível encontrar referências sobre isso. ClementeRomano escreveu uma carta aos Coríntios por volta de 96 na qual fez um grande louvor à disciplina militar (37, 1-3). Considerava análoga a relação entre obediência cristã e a militar, pelo que dificilmente poderia se opor ao serviço militar. Como ele, Inácio de Antioquia (c. 35 – c. 107) considerou todos os cristãos como soldados de Deus. Em sua admoestação – redigida em grego –, ele utilizou vários termos técnicos militares latinos. Em outro lugar, Inácio fez menção ao “estandarte” que Jesus teria erguido após a sua Ressurreição. A cruz como vexillum Christi tornou-se uma imagem muito amada nos anos subsequentes.64 Mais à frente o tom parece ter se alterado ligeiramente. Em meados do século II Justino (100-165) insistia na não-violência cristã em sua primeira Apologia (1-4). Um contemporâneo, Irineu de Lião (c. 130-202), defendia que a ação pacificadora de Cristo, quer ao nível pessoal, quer em nível social, teria o poder de destruir a guerra (Contra os hereges, 4.34.4). No mesmo século, Atenágoras (c. 133-190) dizia que os cristão eram educados em um clima de não-violência (Legt. Chr. 11.2). Portanto, os melhores intelectuais cristãos do século II eram pacifistas, assim como a Igreja antiga.65 Isso não significa, contudo, que não reflectissem sobre a necessidade de um exército que levasse a cabo uma guerra, sobretudo se esta fosse defensiva. Clemente de Alexandria (c. 150 – 215) (viveu nessa cidade entre 190 e 202, período da perseguição de Septímio Severo) considerava o serviço militar uma profissão como outras.66 Para ele o importante era adequar a profissão aos ensinamentos de Deus. Chegou mesmo a 63 HERNÁNDEZ, F. J. C. Aproximación a las concepciones militarista y antimilitarista del cristianismo primitivo. In: La tradición en la Antiguedad Tardía, Antig. Crist. (Murcia) XIV, 1997, p. 161-178. Disponível em: < http://revistas.um.es/ayc/article/view/65311/62931>. Acesso em 02 de junho de 2011, p. 165. 64 HARNACK, A. von. Op. cit., pp. 41-42. 65 BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, J. M. Los cristianos contra la milicia imperial. La objeción de conciencia en el cristianismo primitivo. Antigua: Historia y Arqueología de las civilizaciones. Otra edición en: Historia 16, nº 154, 1989, 68-76. Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com/obra/los-cristianos- contra-la-milicia-imperial-la-objecin-de-conciencia-en-el-cristianismo-primitivo-0/>. Acesso em 30 de maio de 2011, p. 68. 66 CLEMENTE DE ALEJANDRÍA. Protréptico. Introducción, traducción y notas de Mª Consolación Isart Hernández. Revisión de Helena Ramos. Madrid: Gredos, 1994, 10.100.4. 27 desenvolver uma imagem de guerra espiritual composta por trombeta, anúncio de guerra (feito por Cristo), e “soldados de paz”, os cristãos, aos quais era confiado o reino dos céus.67 Assim, o tom geral de sua obra é de pelo menos aquiescência com relação à carreira no exército. Um dos primeiros autores cristãos latinos, Tertuliano (c. 160 – c. 220), historiador, jurista e autor de obras contra o paganismo e a heterodoxia cristã, é um caso que merece ser estudado mais detidamente. Filho de centurião, ele inicialmente reconheceu a necessidade da guerra, e apelou aos cristãos para que orassem por exércitos valentes, um senado fiel, pela paz mundial e a segurança do Império. Assim, alguns dos motivos pelos quais os cristãos deveriam orar pelo imperador são os que se seguem: Scitote ex illis praeceptum esse nobis ad redundantiam benignitatis etiam pro inimicis deum orare et persecutoribus nostris bona precari. Qui magis inimici et persecutores Christianorum quam de quorum maiestate convenimur in crimen? Sed etiam nominatim atque manifeste, Orate, inquit, pro regibus et pro principibus et potestatibus, ut omnia tranquilla sint vobis. Cum enim concutitur imperium concussis etiam ceteris membris eius utique et nos, licet extranei a turbis aestimemur, in aliquo loco casus invenimur.68 Por mais estranho que pudesse parecer aos coevos, os cristãos deviam orar pelos inimigos, e o imperador, enquanto perseguidor encaixava-se nessa categoria. Como todo Romano, Tertuliano temia a possibilidade de os bárbaros se tornarem capazes de invadir o Império; este foi comparado a um corpo do qual os cristãos faziam parte, ainda que fossem a parte “fraca.” Por isso também deveriam orar, o que acaba por ser uma admissão velada da necessidade da guerra defensiva. A seguir (cap. 32) ele coloca que o 67 Idem, 11.116.2. 68 “Y no sólo debemos rogar por ellos a título de enemigos, sino porque expresamente, señalando sus nombres, nos manda nuestra ley rogar a Dios por los príncipes. ‘Rogad, dice, por los reyes, por las potestades, para que viva en tranquilidad la república.’ Y debemos cuidar mucho de este precepto, porque en vuestro provecho tiene fiador nuestra importancia. Si con alguna alteración sediciosa os inquietáis vosotros, que sois señores del mundo, se ha de turbar el imperio; que recibiendo un golpe la cabeza, los miembros se estremecen, y nosotros parte somos, aunque flaca, de este cuerpo, que puede algún vaivén descomponernos; y aunque el vulgo nos mire como a extraños del linaje humano, en algún lugar vivimos, donde si no rogamos por la quietud del imperio nos puede alcanzar alguna parte de la universal tribulación” (TERTULIANO. Apología contra los gentiles. Traducción y notas por Fr. Pedro Manero. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina, 1947, 31. 2-3). Negritos acrescentados. 28 Anticristo sucederia ao Império Romano, e os cristãos deveriam orar para que isso se retardasse. Por tudo isso fica claro que o grande apologista pode ter lamentado, mas, ao menos no início de seu ministério, não rejeitou a presença de cristãos no exército. A Grande Igreja passou o século II a formular suas doutrinas e instituições administrativas. Ao fim desse século o número de seus membros já havia crescido vertiginosamente. Em reação a tudo isso, Montano fundou, por volta de 156, uma seita que ficou conhecida como montanismo. Sem atacar qualquer doutrina aceite, eles pregavam uma religião mais livre e emocional, ao mesmo tempo que defendiam uma Igreja menor, mas com fiéis absolutamente dedicados. O montanismo, portanto, não era tão divergente em sua doutrina, mas era reformista na atitude e na disciplina, aliás, como foi característico nas heterodoxias originadas no mundo latino. Seu objetivo era um padrão mais elevado de moralidade e um afastamento completo do mundo. No início do século III Tertuliano aderiu aos montanistas.69 Assim, desde então Tertuliano passou a manifestar objeções à participação de cristãos no serviço militar. Seus argumentos partiam, sobretudo, da aversão contra as observâncias religiosas vigentes no exército romano. De forma mais específica suas críticas concentravam-se contra os juramentos e estandartes militares e, sobretudo, contra o mitraísmo, culto oriental bastante popular no exército. O antagonismo com o qual ele opôs o cristianismo a essa religião foi ao máximo. Desta forma, ele comparou a igreja ao acampamento da luz, ao passo em que a religião de Mitra seria o das trevas. Seu ódio contra essa religião, tão enraizada nos meios militares, “azedou” o tom de críticas de Tertuliano contra o serviço militar. Desta forma, Tertuliano estava convencido de que o cristão não deveria compactuar com o juramento ao imperador, o que implicaria em reconhecer outro comandante supremo para o exército que não Cristo: Possit in isto capitulo etiam de militia definitum uideri, quae inter dignitatem et potestatem est. At nunc de isto quaeritur, na fidelis ad militiam conuerti possit et na militia ad fidem admitti, etiam caligata uel inferior quaeque, cui non sit necessitas immolationum uel capitalium iudiciorum. 69 O’GRADY, J. Heresia: