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1 ANDRÉ BUENO · RENAN BIRRO · RENATO BOY ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL E HISTÓRIA PÚBLICA 2 Ficha Catalográfica Bueno, André; Birro, Renan; Boy,Renato (org.) Ensino de História Medieval e história Pública. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UERJ,2020. ISBN: 978-65-00-02127-1 199pp. Ensino de História; História Medieval; História Pública. Reitor Ricardo Lodi Ribeiro Vice-Reitor Mario Sérgio Alves Carneiro Chefe de Gabinete Domenico Mandarino Edições Especiais Sobre Ontens Comissão Editorial & Científica Dulceli Tonet Estacheski [UFMS] Everton Crema [UNESPAR] Carla Fernanda da Silva [UFPR] Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS] Gustavo Durão [UFPI] José Maria Neto [UPE] Leandro Hecko [UFMS] Luis Filipe Bantim [UFRJ] Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP] Maytê R. Vieira [UFPR] Nathália Junqueira [UFMS] Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER] Thiago Zardini [Saberes] Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO] Washington Santos Nascimento [UERJ] Rede: www.revistasobreontes.site Coordenador José Maria Neto http://www.revistasobreontes.site/ Sumário ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL E HISTÓRIA PÚBLICA: DESAFIOS ATUAIS EM FORMATO DE APRESENTAÇÃO por Renan Birro & Renato Viana Boy................................................................. 5 A EXTREMA-DIREITA BRASILEIRA E SUA VISÃO (IDEOLÓGICA) DA CAVALARIA MEDIEVAL por Ana Lucia Santos Coelho e Ygor Klain Belchior ........................................................................ 12 O CINEMA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: REFLEXÕES E PROPOSTAS por Flávia Amaral 19 DIÁLOGOS E CAMINHOS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por Isabela Albuquerque .................................................................................................................... 26 A UTILIZAÇÃO DE “BATALHAS CAMPAIS” COMO FERRAMENTA DE ENSINO-APRENDIZAGEM por Marcio Felipe Almeida da Silva ............................................................................................... 39 O ENSINO DA IDADE MÉDIA NA CONTEMPORANEIDADE: A INQUISIÇÃO COMO OBJETO DE ESTUDO/EXEMPLO por Adrienne Peixoto Cardoso .................................................................... 47 A RELIGIÃO ANALISADA POR MEIO DO MEDIEVALISM: A NARRATIVA DE JOANA D’ARC PELOS ARAUTOS DO EVANGELHO por Clinio de Oliveira Amaral e João Guilherme Lisbôa Rangel ...... 53 A HISTÓRIA PÚBLICA E A REDENÇÃO DO MEDIEVO por Eduardo Leite Lisboa .......................... 59 REPRESENTAÇÕES DE EVA E MARIA NA IDADE MÉDIA: A CONDIÇÃO FEMININA NO PENSAMENTO RELIGIOSO E IMAGENS MEDIEVAIS por Esteffane Viana Felisberto e Marcos de Araújo Oliveira ............................................................................................................. 65 A IDADE MÉDIA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL À LUZ DA HISTÓRIA PÚBLICA: O SITE THE PUBLIC MEDIEVALIST por George Araújo ........................................................... 75 ESTUDAR A PESTE NEGRA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS: RELAÇÕES ENTRE A IDADE MÉDIA E O TEMPO PRESENTE NO ENSINO DE HISTÓRIA por Geraldo Neto ............................................ 81 A NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN E AS TRANSFORMAÇÕES DA IDENTIDADE CRISTÃ NA PRIMEIRA IDADE MÉDIA ATRAVÉS DOS SERMÕES SOBRE A QUEDA DE ROMA por Geraldo Rosolen Junior ............................................................................................................................. 90 OS USOS DA ESCRITA DA HISTÓRIA CAROLÍNGIA EM SEU TEMPO por Guilherme Tavares Lopes Balau ...................................................................................................................................... 97 MEDIEVO NA REDE: ELABORAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA por Jefson Bezerra de Azevedo Filho e Vanessa Spinosa ................................................................ 103 OS DITOS CRUZADOS DO SÉCULO XXI: O BRASIL E A IDEALIZAÇÃO CONSERVADORA ACERCA DA PRIMEIRA CRUZADA por Juan Stephanié Leal Araújo .............................................................. 111 LITERATURA ESCANDINAVA NO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por Lucas Pinto Soares ...... 118 HELOÍSA: O CONHECIMENTO POR TRÁS DAS EPÍSTOLAS por Luciana Alves Maciel ................. 125 MEDIEVALISMO E O ENSINO DE HISTÓRIA: SOBRE BRUXOS, CASTELO E MAGIA HARRY POTTER (2001-2011) por Jônatas José da Silva e José Natal Souto Maior Neto ................................... 133 3 ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, ESQUEMATISMO E TELEOLOGIA por Manoel Adir Kischener e Everton Marcos Batistela ........................................................................................... 141 O FENÔMENO “BOLENA”: PROTAGONISMO FEMININO E NOVAS REPRESENTAÇÕES DE ANA BOLENA (1501-1536), A “RAINHA DE MAIO” por Marcos de Araújo Oliveira ......................151 A IMPORTÂNCIA DE MARTINHO LUTERO NO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por Marcos Vinícius da Silva Ramos ......................................................................................................159 A HISTÓRIA DAS ENFERMIDADES: DA POSSÍVEL CAUSA DA PESTE NEGRA AO SURGIMENTO DO MÉDICO DA PESTE [SÉC. XIII-XIV] por Mauricio Ribeiro Damaceno .................................167 ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, EUROCENTRISMO E BNCC (2015-2018): UM DEBATE RECENTE? por Renan Marques Birro .................................................................................175 AS COMUNIDADES CRISTÃS PRÉVIAS À CONSOLIDAÇÃO DO CORPO ECLESIÁSTICO NA ESCANDINÁVIA MEDIEVAL por Rodrigo Kmiecik ..............................................................184 O CONTO DO GRAAL E SUA DESCRIÇÃO SOBRE A CAVALARIA FRANCESA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XII por Wesley Bruno Andretta .......................................................................192 4 DIÁLOGOS E CAMINHOS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL Isabela Albuquerque Breve panorama da medievalística brasileira Como qualquer país do continente americano, o Brasil não vivenciou a Idade Média. Enquanto um campo de estudos, frequentemente os pesquisadores da área buscavam – e ainda buscam em certa medida – legitimar o porquê dos estudos medievísticos no Brasil e qual a relevância em se estudar o período em detrimento a outras áreas como História do Brasil ou História Contemporânea. A organização dos estudos medievais nos cursos de História nas universidades brasileiras ocorreu mais pela necessidade da compreensão do período para a formação geral da história a partir de uma formação integrada, do que para buscarmos nossas identidades enquanto Estado Nacional. Isso posto, sua inserção nos currículos não foi estabelecida necessariamente a partir de uma vinculação identitária a nível cultural ou acadêmica com o período, a fim de justificar nosso passado e nossas origens. A exceção a respeito do medievo talvez esteja presente, de forma mais específica, nas atenções voltadas para a história portuguesa, especialmente para seu precoce Estado nacional e os desdobramentos decorrentes para o a formação do império português. [Almeida, 2013, p. 2] Na Europa, o estudo da Idade Média justificou-se a partir da segunda metade do século XIX, balizando sua narrativa na busca das origens dos povos europeus. Vinculado a essa ideia, apresentava-se o conceito de etnia, que muitas vezes acompanhava pari passu o nacionalismo, mantendo suas raízes fincadas nos tempos da Antiguidade Tardia, sobretudo após a desagregação do mundo romano e seguido pelo assentamento e constituição dos reinos germânicos. Ao longo do XIX, historiadores, arqueólogos e linguistas contemplavam o período medieval e a organização dos grupos étnicos em busca da gênese de seus Estados Nacionais, vislumbrando a possibilidade de dar coesão aos grupos humanos que compunham suas fronteiras. Logo, na relação entre o passado medieval e o fortalecimento do Estado Nacional, trata-se o mesmo de uma comunidadeimaginada, no qual as tradições, os símbolos e os heróis, por exemplo, são criados, a fim de legitimá-lo [Anderson, 2008] e é justamente nos primeiros tempos do medievo a qual essa gênese remonta. Voltando ao caso da academia brasileira, dos idos de 1990 para cá, o crescimento de pesquisas dentro dos medievísticos no Brasil, numa ação conjunta de cursos de pós-graduação, laboratórios, grupos e centros de pesquisa foram responsáveis pelo aumento no volume de estudos sobre o período. Apesar de relativamente recentes quando comparados com a academia europeia e estadunidense, desenvolveram-se não como uma resposta às demandas na área de História, mas graças ao aumento do incentivo à pesquisa, ao alocar jovens doutores em universidades públicas e proporcioná-los o desenvolvimento de suas pesquisas. [Almeida, 2013, p. 26 7-8] Desde então o interesse de estudantes em universidades brasileiras pelo período medieval cresceu consideravelmente, o que pode ser atestado pelo aumento do número de dissertações e teses defendidas na área de História Medieval. No caso específico da UFRJ, por exemplo, de 1990 a 2017 foram defendidas 111 trabalhos – entre teses e dissertações – que correspondem a área de História Medieval. [Silva; Silva; Silva, 2019, p 351 e 359]. Nos últimos anos o medievo tem sido alvo nas mídias, nos discursos lugares-comum e de personalidades políticas. Se de um lado observamos o crescimento do que Umberto Eco chamou de “Idade Média sonhada”, por outro há a adoção de narrativas que reforçam as representações negativas sobre o período, cercada de juízos de valores e tornando ainda mais difícil desconstruí-las. Jérôme Baschet, na Introdução do seu livro A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América, afirma que a imagem sobre a Idade Média é ambígua, pois, simultaneamente à simpatia pelos castelos, pela literatura sobre a Távola Redonda, o deslumbramento pelas catedrais góticas, denota também o obscurantismo, o atraso e a barbárie. [2006, p. 23-24] Todavia, discussões e reformulações das concepções acerca do medievo já foram feitas em diversos artigos e livros de historiadores brasileiros e estrangeiros. Nos últimos trinta anos, principalmente, muito já foi discutido sobre os estereótipos a respeito da Idade Média e em como os mesmos são tendenciosos – para não dizer danosos – para a compreensão do período dentro do universo não-acadêmico, e não cabe aqui retomarmos a esse tópico no momento, pois foge do nosso escopo de análise. O objetivo deste artigo não é exaurir ainda mais esse debate, que outros medievalistas já fizeram tão pujante e brilhantemente. A finalidade de nosso texto é discutir e propor novas abordagens, olhares e análises a serem trabalhadas em sala de aula sobre o período medieval, trazendo à luz recentes debates travados. Tanto na Educação Básica quanto nas Universidades, o ensino de História Medieval ainda é expressivamente marcado pela visão de uma Idade Média tipicamente ocidentalizada, eurocêntrica e marcada por um viés francófano, sobretudo por conta da influência francesa em nossa tradição historiográfica. Tal fato extrapola ao considerarmos o acesso limitado a maior parte da bibliografia traduzida do inglês ou do alemão – em comparação com as traduções da língua francesa e a produção ibérica – à qual normalmente os estudantes de graduação têm acesso. A partir dos estudos pós-colonialistas e de novos paradigmas discutidos e incorporados pela História Global buscaremos contribuir com novos olhares e abordagens dentro estudos medievalísticos. A contribuição dos estudos pós-colonialistas na História Antes de iniciarmos nossa discussão, convém melhor elucidarmos o que entendemos por estudos pós-coloniais. Embora não esteja sistematizado como teoria propriamente, mas enquanto um campo de estudos que sinaliza novos paradigmas metodológicos para análise das relações sociais e da análise cultural, o termo foi empregue inicialmente no contexto pós- 27 guerra, mas seu uso ganhou mais força a partir da década de setenta, dentro dos estudos literários. A obra de Salman Rushdie The empire writes back: theory and practice in post-colonial literatures (1989) é considerada um dos primeiros livros a abrir os estudos pós-coloniais como um campo de investigação. Em linhas gerais, os estudos pós-colonialistas correspondem ao apelo e ao compromisso ético em se “desocidentalizar” e “deseuropeizar” às perspectivas de mundo e as formas de saber, lembrando que as ideologias presentes nos modelos pré-existentes e nas representações tendem a naturalizar a subalternidade, a exclusão e o estatuto periférico, impondo uma expressiva carga darwinista e juízos de valores e estéticos. [Mata, 2014, p. 30] Sua importância reside justamente no fato de desconstruir e desnaturalizar tais estereótipos, trazendo a discussão mais ampla de como as estruturas do saber estão vinculadas a aspectos ideológicos e, consequentemente, servindo também a estruturas de poder. Os estudos pós-colonialistas salientam, portanto, que é preciso tomar certos cuidados com as construções epistemológicas e na forma em que as mesmas abordam as relações de poder e em atividades marcadas pela diferença, como etnia, religião, orientação sexual, gênero, classe, dentre outros, pois tendem a não problematizar processos históricos, sobretudo quanto às relações centro versus periferia e colonizador versus colonizado. Para tanto, entraram no bojo da discussão conceitos como cultura, identidade e etnicidade, por exemplo. Um dos destaques recentes dentro deste campo de estudos tem sido o acadêmico indiano Homi K. Bhabha (1949-). Influenciado pelo pensador pós-colonialista Franz Fanon (1925-1961) e partindo de pressupostos teóricos dentro da linguística e da psicanálise, Bhabbha, ao abandonar as teorias que privilegiam o binarismo maniqueísta, busca compreender de que maneiras as relações entre colono e colonizador foram constituídas, indo além da representação que a literatura faz dos sujeitos envolvidos neste contexto. O autor convida-nos ainda a refletir acerca das relações que perpassam a construção das identidades de colonizador e colonizado e o espaço de circunscrição da identidade que ultrapassam os símbolos e signos visuais. De acordo com essa perspectiva, o autor tece algumas considerações “Primeira: existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou locus. (...) “É a relação dessa demanda com o lugar do objeto que ela reivindica que se torna base de identificação”. Este processo é visível na troca de olhares entre o nativo e colono, que estrutura sua relação psíquica na fantasia paranóide da posse sem limites e sua linguagem familiar de reversão: “Quando seus olhares se encontram, ele [o colono] verifica com amargura, sempre na defensiva, que ‘Eles querem tomar nosso lugar’. E é verdade, pois não há um nativo que não sonhe pelo menos uma vez por dia se ver no lugar do colono”. É sempre em relação ao lugar do Outro que o desejo colonial é articulado: o espaço fantasmático da 28 posse, que nenhum sujeito pode ocupar sozinho ou de modo fixo e, portanto, permite o sonho da inversão de papéis”. [Bhabha, 1998, p. 76] As reflexões de Bhabha permitem-nos vislumbrar como se desenrolam as relações entre nativo e colono sob o prisma do primeiro. A partir do momento em que o nativo tem suas liberdades cerceadas e reduzidas por conta de um domínio político, social, econômico, cultural e militar estabelecido, seu objeto de desejo passa a ser poder desempenhar o papel do colono, ao qual, no momento, ele é obrigado a se sujeitar. O nativo, ao lembrar o que perdeu, deseja, na verdade, inverter esse jogo e transmutar- se no papel do colonizador. No processo de violência física e psíquica ao qual é submetido não existe apenas o desejo de que o colono se ausente do território que outrora era seu, mas levar ao rancor vingativo, o qual o impele à vontade de desempenharo papel do colono, numa espécie de revanchismo que mantém viva a memória do que é ser colonizado. Análise de Bhabha complexifica as relações sociais envolvidas neste espaço, enriquecendo e acrescentando à ideia binária que define quem é o colono e quem é o colonizado. O processo de construção das identidades de nativo e colono é realizado no espaço de cisão, o hiato que faz com que a distância tome uma proporção – como ele mesmo definiu – perturbadora. O ser diferente traduz, mesmo que de forma inconsciente, uma relação de alteridade. [Bhabha, 1998, p. 77)] O colonizador constitui o colonizado tanto quanto o colonizado constitui o colonizador, um papel agonístico e antagonístico ao mesmo tempo e é justamente nesse espaço intersticial onde as identidades de ambos são forjadas. Logo, no entendimento de Bhabha, o processo de formação das identidades ocorre num nível psicológico bem mais profundo e complexo do que as relações sociais tendem a presumir. Bhabha atenta ainda para o fato também que o colonizado, ao mesmo tempo em que deseja ocupar o local do colonizador, também não quer abrir mão do papel de colonizado. Tal explicação reside no fato de que, por ser colonizado, está intrínseco à sua natureza um desejo de vingança e, caso este objetivo seja atingido, ele perde a sua identidade com relação ao colonizador. [Sousa, 2004, p. 121] O conceito de identidade proposta por Bhabha nos levam a refletir sobre a própria construção dos grupos sociais na Idade Média. Em constantes interações, seja por meio de conflitos ou de forma amistosa, os espaços medievais estavam marcados por constantes contatos culturais, que mutuamente também se influenciam, e foram parte integrantes na organização dos mesmos e na organização de suas identidades. A ideia de que as identidades são constituídas num espaço de cisão, intertiscial – inbetween – nos levam a pensar em que medida as denominações de que lançamos mão para explicar grupos específicos no medievo são de fato válidas. Classificar a Inglaterra anglo-escandinava ou Al-Andaluz no século X como um amálgama ou fruto de um simples hibridismo é desconsiderar o processo de interação entre grupos distintos e relativizar sua complexidade. 29 O que torna um indivíduo ou um grupo franco, bretão, moçárabe, etíope, sassânida como tantas vezes empregamos esses vocabulários? O que o torna cavaleiro, mercador, herege, sodomita, judeu? A revisão dos conceitos adotados deve sempre fazer parte do exercício do historiador. O sentido das palavras não são dotados de vida própria e contextualizar seu surgimento e propósito se faz mister, tanto para questões de compreensão do posicionamento do pesquisador e de sua filiação teórica, quanto para não incorrer na banalização do seu uso. [Silveira, 2016 p.49] História Global, periodização do tempo e “desocidentalização” da História Tempo e espaço não são meros coadjuvantes no processo histórico, desempenhando o papel de cenário – onde e quando uma narrativa se passa. Constituem-se como elementos fundamentais que são responsáveis por conectar pessoas, ideias, bens materiais, dentre outros. Partindo de outra perspectiva teórico-metodológica a respeito do que esses dois componentes, podemos repensar também a maneira como lidamos com essas categorias na nossa prática historiográfica e no Ensino de História. A periodização da História – e consequentemente os reflexos gerados no seu Ensino – estão marcados por episódios considerados expressivos à luz do Ocidente. A nossa divisão tradicional, por exemplo, em quatro grandes períodos (Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea) remete a momentos considerados cruciais para o mundo ocidental: o colapso do Império Romano do Ocidente (476), o Renascimento (século XIV), a Revolução Francesa (1789), a Revolução Industrial (século XVIII). Nosso objetivo não é desmerecer ou diminuir a importância da periodização do tempo, haja vista que não há como fazer pesquisa na área deixando de lado a organização como tempo histórico, mas atentarmos que tais marcos não são puros e naturais e que se ordenam a partir de construções narrativas. Nos últimos vinte e cinco anos, muito tem se discutido sobre novos arcabouços metodológicos e conceituais para o estudo da história, dos quais História Cruzada, Histórias Conectadas, História Transnacional e História Global são apenas alguns desses exemplos. No caso específico da História Global, uma série de obras, seminários, grupos de pesquisas e periódicos organizaram suas pesquisas a partir desse novo paradigma historiográfico. Em síntese, pode-se afirmar que a História Global baseia-se em duas principais características: superar o nacionalismo metodológico como principal forma de análise das sociedades e evitar o eurocentrismo/ocidentalismo. [Santos Júnior; Sochaczewski, 2017,p. 491] No entanto, o que essa modalidade historiográfica traz de novo em comparação com a chamada História Universal? Em seu artigo Experiências do tempo: da história universal à história global?, o historiador francês François Hartog afirma que enquanto a primeira tendeu a naturalizar ou absolutizar a história da Europa – a ponto de transformá-la num parâmetro narrativo para toda uma história da humanidade – a segunda privilegia a busca por conexões, numa espécie de rede, na qual não há, consequentemente, uma visão única a seu respeito. [Hartog, 2013, p. 170] 30 A ideia de uma História Universal, que caminha inevitavelmente para o futuro, centrada na concepção de progresso, tal como pensavam os intelectuais do século XVIII, não faz mais sentido nos dias de hoje. Não obstante, a história não poderia ser apenas uma mera soma de diversas conexões, como uma colcha de retalhos, prontos a serem costurados e formar um desenho, numa espécie de quebra-cabeça. Não há um roteiro ou um manual prévio o qual consultar, pois é o próprio historiador que (re)organiza essas conexões, a partir de seus objetivos, objetos, recorte, teoria, metodologia, conferindo novas formas de interpretação. Logo, a perspectiva da História Global ultrapassa a simples ideia da busca por conexões entre culturas e sociedades, contribuindo com um novo olhar sobre as sociedades como objeto de estudo e para a tessitura de novas interpretações e narrativas. As perspectivas da História Global, sobretudo no que tange à desocidentalização da história, trazem à tona questão da organização do tempo e a periodização. Para que a divisão em temporalidades específicas faça sentido dentro da história, a mesma deve vir acompanhada de dois conceitos fundamentais para a disciplina: as concepções de permanência e mudança, pois a transição de um período para o outro deve estar precisamente marcada pela dissolução de antigas características de um período e o início de novas particularidades, sem perder de vista que, distintamente das ciências naturais, as classificações na história refletem as escolhas de quem a analisa e classifica, no caso, o historiador. [Green, 1992, p. 14] Sobre as relações entre a História, construção de sua(s) narrativa(s) e o tempo, o historiador indiano A. Gangatharan afirma que “O conceito de periodização está essencialmente ligado à nossa compreensão do passado e em como analisamos metodologicamente o desdobramento dos eventos de um tempo para outro, de uma época para outra. Desnecessário dizer que a objetificação do tempo a partir de categorias reconhecíveis e com sua coesão interna oferece uma lógica significativa para entender a natureza compreensiva dos eventos históricos, correspondente ao seu contexto sociocultural”. [2008, p. 864] Organizar o tempo em períodos diz respeito a uma ferramenta metodológica para a disciplina, com o objetivo de facilitar a análise do historiador frente ao seu objeto de estudo e, por mais que se saiba que a divisão do tempo é uma operação arbitrária e baseada em quesitos específicos, não seria possível fazer história sem talvariável em nossa equação. Sem ele não seria possível delimitar os ritmos e as dinâmicas que compõem as transformações na sociedade. A partir de uma teoria da mudança, supõem-se que as épocas históricas devem exibir importantes continuações em longo prazo, ao passo que as transições de um período para outro devam envolver a dissolução de antigas continuidades e a construção de novas formas de organização. Esse processo, entretanto, não é isento de valores, haja vista que toda teoria 31 está baseada e reflete onde residem as prioridades do pesquisador. [Green, 1995, p. 101] e cabe aí verificar quais os objetivos que se almeja atingir. Logo, repensar a maneira como demarcamos os períodos da nossa disciplina leva-nos a pensar questões pertinentes de uma maneira global, afinal, se utilizamos os mesmos referenciais de uma história europeia ocidental para abordarmos sociedades diversas, como tal periodização pode ser fortuita? Ao utilizamos expressões como China medieval, Japão feudal e Índia moderna, de que forma não estamos tentando também encaixar modelos de uma história ocidental? Nesse sentido, é preciso “desocidentalizar” a história. A célebre obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, de Edward Said, ainda é um dos principais fundamentos na discussão e na compreensão das representações ocidentais acerca do Oriente. Ora um local de abundância e exótico, ora caótico e incoerente, a forma como os ocidentais compreendem-no nada mais é do que fruto de uma invenção europeia, influenciada, principalmente, pelas visões do imperialismo britânico e francês e reproduzidos posteriormente. [Said, 1990, p. 14-15] Ao desnaturalizar os conceitos de Oriente e Ocidente, Said evoca sua construção enquanto um fato político, rompendo com a ideia de que se tratam de entidades geográficas, culturais e históricas pré-determinadas. O intelectual britânico-palestino completa sua ideia afirmando que o orientalismo não seria uma mera fantasia da Europa sobre o Oriente, “mas um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas gerações um considerável investimento material.”. [Said, 1990, p. 18] (Re)construindo novas abordagens para o Ensino da Idade Média Como pensar ou aplicar pressupostos epistemológicos dos estudos pós- colonialistas e dos paradigmas da História Global na medievalística e no Ensino de História Medieval? A começar, a reflexão sobre o próprio nome atribuído ao período – Idade Média –, o qual reforça aspectos da colonização do tempo. Por não partir de uma perspectiva própria do ou sobre o período, mas de autores da chamada Modernidade, sobretudo do contexto do movimento do Renascimento, o período medieval já nasce colonizado. A ideia de Modernidade vem dessa forma associada a uma visão positiva, a uma perspectiva mais ampla e ao anseio pela mudança, numa espécie de contraponto ao mundo medieval, retrógrado e obscuro. Apesar de recorrentemente problematizado pelos medievalistas, o vocábulo "Idade Média" não foi substituído, repensado ou readotado e que se referir a uma Idade Média pós-colonial seria, no mínimo, um oxímoro, para não dizer um anacronismo. [Cohen, 2000, p. 4] Desde a maneira como os currículos nas instituições de ensino superior estão estruturados à divisão por disciplinas ainda em esquemas bastante tradicionais e que remontam uma história dividida em quatro grandes eixos cronológicos (Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), pode-se atestar como nossa principal forma de concepção e de organização da passagem do tempo ainda é composto por elementos de uma tradição, digamos, colonizadora. 32 Entretanto, mesmo ainda presos a essa organização, tal assertiva não significa que os historiadores abstiveram-se de debater, propor, repensar e dialogar com outras áreas do saber para questionar os limites que a organização de um tempo cronológico impunha à nossa disciplina. Ao tomar consciência de que tanto o tempo quanto a própria história foram alvo da colonização, não fomos inertes às discussões, nem permanecemos obcecados com a objetividade de que as fontes documentais eram dotadas de vozes próprias, prontas para revelar o que tinham a comunicar. No caso específico da medievalística, os pesquisadores também contribuíram dentro desse processo. Ao escrever sobre a descolonização do Ensino de Idade Média, Macedo aborda-a como uma crítica ao ponto de vista que parte da própria Europa, a partir da ideia de centro e periferia. Enquanto muitas vezes os conteúdos lecionados nas instituições de educação básica focam nos recortes geográficos que correspondem aos atuais Estados de França, Inglaterra, Alemanha e Itália, tendem a negligenciar territórios considerados de segunda importância, como Península Ibérica, os Bálcãs ou o Leste Europeu, por exemplo. [Macedo, 2009, p. 115] No caso específico da Península Ibérica, faria até mais sentido, tendo em vista que, como um país colonizado por Portugal, somos herdeiros dessa tradição ibero-americana. A descolonização abordada por Macedo, portanto, ainda está centrada em visões tipicamente eurocêntricas, muito embora o autor proponha um olhar mais atento a algumas questões como a convivência entre cristãos, muçulmanos e judeus na Espanha medieval, a qual proporcionaria a discussão de temáticas como intolerância e liberdade religiosa, conflitos étnicos e as relações com o Outro. [Macedo, 2009, p. 116] Apesar de uma proposta bastante válida, gostaríamos de avançar mais no debate. Vislumbramos a necessidade de novos referenciais teóricos e metodológicos que nos auxiliem na maneira como enxergamos e entendemos a Idade Média, a fim de assentar as bases de sua (re)construção no que tange ao Ensino de História Medieval. A primeira perspectiva versa sobre a concepção de temporalidade na história. Considerando que tanto as organizações do tempo quanto da história também são alvo de um processo de colonização, pautado em disputas de poder e tensões políticas e, portanto, nunca neutros, o tempo não é um objeto inocente e inerte aguardando ser escavado e desvendado pelo historiador. Tendo em vista que a Idade Média surge dentro dessa perspectiva já colonizada, ausente de voz própria quanto à sua temporalidade, mas apenas confinada a metade entre dois outros períodos, os estudos medievalísticos buscaram aprimorar sua capacidade de se reinventar. A compreensão de que a disciplina foi forjada no seio da chamada Modernidade gerou uma espécie de trauma, ao mesmo tempo em que possibilitou alianças trans-históricas e transformações recíprocas [Cohen, 2000, p. 5], como uma forma de superar esse “trauma”. 33 O passado não é estático e passível de investigação como um mero objeto de estudo – ou ao menos não deveria ser. O Ensino de História Medieval deve permitir analisar as relações entre temporalidades distintas para além da perspectiva de uma mera relação de alteridade, mas como um passado que descortina um presente para novas possibilidades num futuro. Na introdução da obra organizada pelo acadêmico estadunidense Jeffrey Jerome Cohen, The Postcolonial Middle Ages [Palgrave Macmillan, 2000], o autor questiona em que e com o que os estudos medievísticos podem contribuir dentro da abordagem pós-colonialista. Como uma Idade Média colonizada, que corresponde a um tempo longínquo - se comparada com o próprio fenômeno do neocolonialismo no século XIX - pode auxiliar nos estudos pós-colonialistas dentro do Ensino de História? A resposta vem na forma de cinco temáticas: 1) Abandonar os modelos explicativos generalizantes; 2) Desnaturalizar as concepções de verdade dentro da disciplina, geralmente vinculados a projetos de poder; 3) Desestabilizar identidades hegemônicas, no que concerne a etnias, orientação sexual, religião, classe, idade, dentre outros; 4) Relativizar a posição dominante do cristianismo dentro da sociedade medieval; 5) Descentralizar a Europa e reconfigurar geograficamente o mapa da IdadeMédia ao incluir Ásia, África e o Oriente Médio. [Cohen, 2000, p. 6-7] Os estudos sobre identidade auxiliam nessa visão de uma Idade Média a partir da alteridade. Conteúdos antes identificados como marginalizados, tais como o incesto, masoquismo, estupro e travestismo, são agora reintroduzidos como objetos importantes nos estudos medievísticos, não apenas com o objetivo principal de expandir, enriquecer ou complexificar nosso entendimento sobre a cultura medieval, mas para a compreensão de que foram categorias de análise excluídas na representação medieval e também das nossas representações acerca da Idade Média. [Freedman; Spiegel, 1998, p. 699] Quanto às possibilidades de visões que essas novas abordagens proporcionam, ao analisar temáticas do gênero, devemos rejeitar a ideia de que se tratava de uma visão alternativa sendo meramente reprimida, excluída ou abandonada, substituindo-a por um campo mais amplo de possibilidades, negado durante o momento de estabelecimento de representações. [Freedman; Spiegel, 1998, p.700] Como foram negligenciadas como escopo da medievalística tradicional, tendemos a analisá-los como ausentes ou marginais dentro da sociedade medieval, como se houvesse uma Idade Média oficial e outra excluída. Entretanto, de todas as assertivas, as três primeiras cabem não apenas ao estudo da Idade Média, mas àqueles circunscritos a outras temporalidades. Os grandes modelos explicativos tendem a estabelecer visões reducionistas, ao tentar encaixar os olhares sobre um objeto a partir de um viés homogeneizante. Como exemplo, podemos incluir como a historiografia tradicional francesa abordou temas como o sistema feudal, na tentativa de fazer dele um modelo explicativo que corresponde aos territórios 34 administrados pelos carolíngios e depois “exportado” pelos normandos para a Inglaterra no século XI como presente em outras regiões do continente de forma adaptada ou modificada. Focaremos aqui nas duas últimas, pois julgamos serem as maiores contribuições dentro dos estudos sobre o medievo. A alusão a uma Idade Média dominada pela Igreja e pelo cristianismo, sem levar em consideração que havia outras formas de religiosidade concomitante ao mesmo. O discurso eclesiástico, apesar de dominante na documentação escrita produzida ao longo do medievo, não era a única forma de concepção, leitura e interpretação de mundo e analisá-lo a partir das conexões com islamismo, judaísmo e religiões pré-cristãs é mais producente do que explorá-los apenas pelo viés do discurso cristão. Havia formas heterogêneas de cristianismos, frequentemente em disputas, até sua tentativa de sistematização e unificação em torno de um ideal de cristandade presente nas Reformas Gregorianas (1050-1150). Quanto às reflexões relativas às representações geográficas e o espaço na Idade Média, Kathleen Biddick elucida de que forma o espaço e a cartografia também foram colonizados ao longo do século XV e em como isso contribuiu para a concepção de mapas produzidos nos século seguinte, já sobre a égide do chamado Mundo Moderno. Ao analisar projetos de cartografia de finais da Idade Média, a historiadora americana deparou-se com duas tradições distintas. A primeira delas corresponde aos chamados mappae mundi (cartografia responsável pela representação do século XII ao XV) e mais racional e "moderno" mapa ptolomaico – em referência a Claudio Ptolomeu (90-168), considerado pai da cartografia – que se tornou predominante na Europa Ocidental a partir no século XV. A concepção de mapa que adotamos nos nossos dias não está pautada nos mesmos elementos para o homem medieval. A cartografia não existia enquanto uma ciência ou uma disciplina no período e a produção de mapas estava diretamente vinculada a aspectos do universo clerical. Os mappae mundi não tinham por objetivo apenas a descrição do espaço ou determinar a localização de um território, mas, antes de tudo, correspondia a uma representação de mundo, seguindo regras muito particulares, com informações geralmente oriundas de obras dos padres da Igreja, da narrativa bíblica e de fragmentos de informações da Antiguidade. [Deus, 2001, p. 178] Os mappae mundi tendem a ser identificados como narrativas para fins didático e simbólico, representando a fé a partir versões morais situadas entre a Criação e o Juízo Final, enquanto que as instruções de Ptolomeu quanto à compilação dos mapas eram estritamente prática e mais racionais. O mapa de Hereford, produzido provavelmente entre os anos de 1276 e 1285 e vinculado à catedral da cidade, situada nas Midlands Ocidentais, é um dos mais famosos por ser o maior em extensão que tenha sobrevivido aos nossos dias. Um dos aspectos particularmente interessante desse mapa está, na vinculação dos judeus aos povos do Gog e Magog, presentes na tradição apocalíptica e referenciados na cartografia como Outro [Soares, 35 2012, p. 220] e cabe ressaltar que isso era algo relativamente comum na cartografia medieval. Com o dos estudos humanistas, os mappae mundi abriram espaço aos mapas ptolomaicos, os quais começaram a ganhar espaço a partir do século XV. A primeira tradução do grego para o latim da "Geografia" de Ptolomeu foi entre os anos de 1405-09, como um guia prático para construção de mapas – baseado em longitude e latitude – e composto de uma lista dessas coordenadas e uma relação de oito mil nomes relacionados a regiões imperiais no mundo tardo antigo. [Hoogvliet, 2002, p. 8] Biddick destaca em sua obra que, a partir do século XV, os estudos humanísticos procuraram excluir a participação dos judeus no processo de produção das interpretações a respeito desses espaços, enquanto as posições importantes dentro estudos hebraicos passaram a ser ocupadas por classicistas [1998, p. 287], o que se seguiu a recorrente adoção do alfabeto latino em sua escrita buscou excluir intelectuais judeus da especialidade dos estudos hebraico-cristãos. Não apenas o tempo e sua representação foram colonizados, mas o espaço e a cartografia também. Analisar os mapas produzidos no período medieval não inclui apenas descentralizar a Europa e incluir também Ásia, África e o Oriente Médio, - geralmente representados como meras periferias do mundo medieval - e compreendê-los como participantes e intercambiantes de um mundo largo e ao mesmo tempo fragmentado em suas localidades e especificidades geográficas. Tal estudo desloca a perspectiva de regiões caracterizadas como periferias, são identificadas a partir de lógica interna, como seus próprios centros. É necessária a compreensão também de como esses mapas reproduzem discursos e interpretações que remetem a colonização do espaço, das representações cartográficas e de quem está autorizado a produzi-las. A cartografia na época também não estava associada a objetividade ou neutralidade e sua produção estava marcada também por relações de poder, como no exemplo da exclusão dos judeus no século XV. Considerações finais Atividades de pesquisa e ensino não vêm dissociadas. As investigações sobre a medievística refletem nossa forma de pensar a história e as teorias e ferramentas de que dispomos em nosso fazer historiográfico. O caminho para o medievalista desconstruir os pré-conceitos e estereótipos dentro da sua disciplina é árduo, pois, se a Idade Média não foi uma Era de Ouro, tampouco foi um período de trevas. É preciso estudá-lo a partir dos objetos recortados e dos objetivos acadêmicos os que se almeja alcançar.As reflexões advindas dos estudos pós-colonialistas reforçam o olhar cuidadoso acerca dos objetos de investigação do medievo, da importância de uma análise a partir de dinâmicas próprias e desnaturalizando conceitos cristalizados na medievalística. 36 Contudo, é inegável que aquilo que o período de que denominamos de Medievo não correspondia a espaços fechados, ausentes de conexões e trocas das mais diversas naturezas. Tampouco o mundo medieval estava restritoapenas ao continente europeu, sobretudo à sua porção ocidental. Tomar consciência dessa dimensão espacial mais ampla permite vislumbrar uma Idade Média a partir das conexões entre Europa, Oriente e África, bem como considerar que esses elos não devem ser analisados de uma perspectiva eurocêntrica. Nesse aspecto, os pressupostos teórico- metodológicos da História Global endossam quanto à observação das trocas culturais, rompendo o paradigma ocidental e eurocêntrico e relativizando os conceitos de Oriente e Ocidente. Deste entroncamento dos estudos pós-colonialistas e dos pressupostos metodológicas da História Global, podemos vislumbrar novas perspectivas, objetos, recortes e horizontes dentro dos estudos medievais. Referências Isabela Albuquerque é Professora Adjunta do Curso de História da Universidade de Pernambuco – Campus Garanhuns e Doutora em História Comparada pela Universdade Federal do Rio de Janeiro. E-mail para contato: isabela.albuquerque@upe.br ALMEIDA, Néri de Barros. “A História Medieval no Brasil” in: Revista Signum, 2013, vol. 14, n. 1. p. 1-16. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BASCHET, Jérôme. “Por que se interessar pela Europa Medieval?” in: A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. 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