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ENSINO_DE_HISTORIA_MEDIEVAL_E_HISTORIA_P

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ANDRÉ BUENO · RENAN BIRRO · RENATO BOY 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL 
E HISTÓRIA PÚBLICA 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Ficha Catalográfica 
 
 
Bueno, André; Birro, Renan; Boy,Renato (org.) 
Ensino de História Medieval e história Pública. 1ª Ed. Rio de 
Janeiro: Sobre Ontens/UERJ,2020. ISBN: 978-65-00-02127-1 
199pp. 
 
Ensino de História; História Medieval; História Pública. 
 
Reitor 
Ricardo Lodi Ribeiro 
 
Vice-Reitor 
Mario Sérgio Alves Carneiro 
 
Chefe de Gabinete 
Domenico Mandarino 
 
 
 
Edições Especiais Sobre Ontens 
Comissão Editorial & Científica 
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS] 
Everton Crema [UNESPAR] 
Carla Fernanda da Silva [UFPR] 
Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS] 
Gustavo Durão [UFPI] 
José Maria Neto [UPE] 
Leandro Hecko [UFMS] 
Luis Filipe Bantim [UFRJ] 
Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP] 
Maytê R. Vieira [UFPR] 
Nathália Junqueira [UFMS] 
Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER] 
Thiago Zardini [Saberes] 
Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO] 
Washington Santos Nascimento [UERJ] 
 
Rede: 
www.revistasobreontes.site 
 
Coordenador 
José Maria Neto 
 
http://www.revistasobreontes.site/
 
 
Sumário 
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL E HISTÓRIA PÚBLICA: DESAFIOS ATUAIS EM FORMATO DE 
APRESENTAÇÃO por Renan Birro & Renato Viana Boy................................................................. 5 
A EXTREMA-DIREITA BRASILEIRA E SUA VISÃO (IDEOLÓGICA) DA CAVALARIA MEDIEVAL por 
Ana Lucia Santos Coelho e Ygor Klain Belchior ........................................................................ 12 
O CINEMA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: REFLEXÕES E PROPOSTAS por Flávia Amaral 19 
DIÁLOGOS E CAMINHOS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por 
Isabela Albuquerque .................................................................................................................... 26 
A UTILIZAÇÃO DE “BATALHAS CAMPAIS” COMO FERRAMENTA DE ENSINO-APRENDIZAGEM por 
Marcio Felipe Almeida da Silva ............................................................................................... 39 
O ENSINO DA IDADE MÉDIA NA CONTEMPORANEIDADE: A INQUISIÇÃO COMO OBJETO DE 
ESTUDO/EXEMPLO por Adrienne Peixoto Cardoso .................................................................... 47 
A RELIGIÃO ANALISADA POR MEIO DO MEDIEVALISM: A NARRATIVA DE JOANA D’ARC PELOS 
ARAUTOS DO EVANGELHO por Clinio de Oliveira Amaral e João Guilherme Lisbôa Rangel ...... 53 
A HISTÓRIA PÚBLICA E A REDENÇÃO DO MEDIEVO por Eduardo Leite Lisboa .......................... 59 
REPRESENTAÇÕES DE EVA E MARIA NA IDADE MÉDIA: A CONDIÇÃO FEMININA NO 
PENSAMENTO RELIGIOSO E IMAGENS MEDIEVAIS por Esteffane Viana Felisberto e Marcos de 
Araújo Oliveira ............................................................................................................. 65 
A IDADE MÉDIA E O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL À LUZ DA HISTÓRIA PÚBLICA: O SITE 
THE PUBLIC MEDIEVALIST por George Araújo ........................................................... 75 
ESTUDAR A PESTE NEGRA EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS: RELAÇÕES ENTRE A IDADE MÉDIA E 
O TEMPO PRESENTE NO ENSINO DE HISTÓRIA por Geraldo Neto ............................................ 81 
A NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN E AS TRANSFORMAÇÕES DA IDENTIDADE CRISTÃ NA 
PRIMEIRA IDADE MÉDIA ATRAVÉS DOS SERMÕES SOBRE A QUEDA DE ROMA por Geraldo 
Rosolen Junior ............................................................................................................................. 90 
OS USOS DA ESCRITA DA HISTÓRIA CAROLÍNGIA EM SEU TEMPO por Guilherme Tavares Lopes 
Balau ...................................................................................................................................... 97 
MEDIEVO NA REDE: ELABORAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA por 
Jefson Bezerra de Azevedo Filho e Vanessa Spinosa ................................................................ 103 
OS DITOS CRUZADOS DO SÉCULO XXI: O BRASIL E A IDEALIZAÇÃO CONSERVADORA ACERCA DA 
PRIMEIRA CRUZADA por Juan Stephanié Leal Araújo .............................................................. 111 
LITERATURA ESCANDINAVA NO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por Lucas Pinto Soares ...... 118 
HELOÍSA: O CONHECIMENTO POR TRÁS DAS EPÍSTOLAS por Luciana Alves Maciel ................. 125 
MEDIEVALISMO E O ENSINO DE HISTÓRIA: SOBRE BRUXOS, CASTELO E MAGIA HARRY POTTER 
(2001-2011) por Jônatas José da Silva e José Natal Souto Maior Neto ................................... 133 
3 
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, ESQUEMATISMO E TELEOLOGIA por Manoel Adir Kischener e 
Everton Marcos Batistela ........................................................................................... 141 
O FENÔMENO “BOLENA”: PROTAGONISMO FEMININO E NOVAS REPRESENTAÇÕES DE ANA 
BOLENA (1501-1536), A “RAINHA DE MAIO” por Marcos de Araújo Oliveira ......................151 
A IMPORTÂNCIA DE MARTINHO LUTERO NO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL por Marcos 
Vinícius da Silva Ramos ......................................................................................................159 
A HISTÓRIA DAS ENFERMIDADES: DA POSSÍVEL CAUSA DA PESTE NEGRA AO SURGIMENTO DO 
MÉDICO DA PESTE [SÉC. XIII-XIV] por Mauricio Ribeiro Damaceno .................................167 
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL, EUROCENTRISMO E BNCC (2015-2018): UM DEBATE 
RECENTE? por Renan Marques Birro .................................................................................175 
AS COMUNIDADES CRISTÃS PRÉVIAS À CONSOLIDAÇÃO DO CORPO ECLESIÁSTICO NA 
ESCANDINÁVIA MEDIEVAL por Rodrigo Kmiecik ..............................................................184 
O CONTO DO GRAAL E SUA DESCRIÇÃO SOBRE A CAVALARIA FRANCESA DA SEGUNDA METADE 
DO SÉCULO XII por Wesley Bruno Andretta .......................................................................192 
4 
DIÁLOGOS E CAMINHOS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO 
ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL 
Isabela Albuquerque 
 
Breve panorama da medievalística brasileira 
Como qualquer país do continente americano, o Brasil não vivenciou a 
Idade Média. Enquanto um campo de estudos, frequentemente os 
pesquisadores da área buscavam – e ainda buscam em certa medida – 
legitimar o porquê dos estudos medievísticos no Brasil e qual a relevância 
em se estudar o período em detrimento a outras áreas como História do 
Brasil ou História Contemporânea. 
 
A organização dos estudos medievais nos cursos de História nas 
universidades brasileiras ocorreu mais pela necessidade da compreensão do 
período para a formação geral da história a partir de uma formação 
integrada, do que para buscarmos nossas identidades enquanto Estado 
Nacional. Isso posto, sua inserção nos currículos não foi estabelecida 
necessariamente a partir de uma vinculação identitária a nível cultural ou 
acadêmica com o período, a fim de justificar nosso passado e nossas 
origens. A exceção a respeito do medievo talvez esteja presente, de forma 
mais específica, nas atenções voltadas para a história portuguesa, 
especialmente para seu precoce Estado nacional e os desdobramentos 
decorrentes para o a formação do império português. [Almeida, 2013, p. 2] 
 
Na Europa, o estudo da Idade Média justificou-se a partir da segunda 
metade do século XIX, balizando sua narrativa na busca das origens dos 
povos europeus. Vinculado a essa ideia, apresentava-se o conceito de etnia, 
que muitas vezes acompanhava pari passu o nacionalismo, mantendo suas 
raízes fincadas nos tempos da Antiguidade Tardia, sobretudo após a 
desagregação do mundo romano e seguido pelo assentamento e 
constituição dos reinos germânicos. Ao longo do XIX, historiadores, 
arqueólogos e linguistas contemplavam o período medieval e a organização 
dos grupos étnicos em busca da gênese de seus Estados Nacionais, 
vislumbrando a possibilidade de dar coesão aos grupos humanos que 
compunham suas fronteiras. Logo, na relação entre o passado medieval e o 
fortalecimento do Estado Nacional, trata-se o mesmo de uma comunidadeimaginada, no qual as tradições, os símbolos e os heróis, por exemplo, são 
criados, a fim de legitimá-lo [Anderson, 2008] e é justamente nos primeiros 
tempos do medievo a qual essa gênese remonta. 
 
Voltando ao caso da academia brasileira, dos idos de 1990 para cá, o 
crescimento de pesquisas dentro dos medievísticos no Brasil, numa ação 
conjunta de cursos de pós-graduação, laboratórios, grupos e centros de 
pesquisa foram responsáveis pelo aumento no volume de estudos sobre o 
período. Apesar de relativamente recentes quando comparados com a 
academia europeia e estadunidense, desenvolveram-se não como uma 
resposta às demandas na área de História, mas graças ao aumento do 
incentivo à pesquisa, ao alocar jovens doutores em universidades públicas e 
proporcioná-los o desenvolvimento de suas pesquisas. [Almeida, 2013, p. 
26 
7-8] Desde então o interesse de estudantes em universidades brasileiras 
pelo período medieval cresceu consideravelmente, o que pode ser atestado 
pelo aumento do número de dissertações e teses defendidas na área de 
História Medieval. No caso específico da UFRJ, por exemplo, de 1990 a 2017 
foram defendidas 111 trabalhos – entre teses e dissertações – que 
correspondem a área de História Medieval. [Silva; Silva; Silva, 2019, p 351 
e 359]. 
 
Nos últimos anos o medievo tem sido alvo nas mídias, nos discursos 
lugares-comum e de personalidades políticas. Se de um lado observamos o 
crescimento do que Umberto Eco chamou de “Idade Média sonhada”, por 
outro há a adoção de narrativas que reforçam as representações negativas 
sobre o período, cercada de juízos de valores e tornando ainda mais difícil 
desconstruí-las. Jérôme Baschet, na Introdução do seu livro A civilização 
feudal: Do ano mil à colonização da América, afirma que a imagem sobre a 
Idade Média é ambígua, pois, simultaneamente à simpatia pelos castelos, 
pela literatura sobre a Távola Redonda, o deslumbramento pelas catedrais 
góticas, denota também o obscurantismo, o atraso e a barbárie. [2006, p. 
23-24] 
 
Todavia, discussões e reformulações das concepções acerca do medievo já 
foram feitas em diversos artigos e livros de historiadores brasileiros e 
estrangeiros. Nos últimos trinta anos, principalmente, muito já foi discutido 
sobre os estereótipos a respeito da Idade Média e em como os mesmos são 
tendenciosos – para não dizer danosos – para a compreensão do período 
dentro do universo não-acadêmico, e não cabe aqui retomarmos a esse 
tópico no momento, pois foge do nosso escopo de análise. O objetivo deste 
artigo não é exaurir ainda mais esse debate, que outros medievalistas já 
fizeram tão pujante e brilhantemente. 
 
A finalidade de nosso texto é discutir e propor novas abordagens, olhares e 
análises a serem trabalhadas em sala de aula sobre o período medieval, 
trazendo à luz recentes debates travados. Tanto na Educação Básica quanto 
nas Universidades, o ensino de História Medieval ainda é expressivamente 
marcado pela visão de uma Idade Média tipicamente ocidentalizada, 
eurocêntrica e marcada por um viés francófano, sobretudo por conta da 
influência francesa em nossa tradição historiográfica. Tal fato extrapola ao 
considerarmos o acesso limitado a maior parte da bibliografia traduzida do 
inglês ou do alemão – em comparação com as traduções da língua francesa 
e a produção ibérica – à qual normalmente os estudantes de graduação têm 
acesso. A partir dos estudos pós-colonialistas e de novos paradigmas 
discutidos e incorporados pela História Global buscaremos contribuir com 
novos olhares e abordagens dentro estudos medievalísticos. 
 
A contribuição dos estudos pós-colonialistas na História 
Antes de iniciarmos nossa discussão, convém melhor elucidarmos o que 
entendemos por estudos pós-coloniais. Embora não esteja sistematizado 
como teoria propriamente, mas enquanto um campo de estudos que 
sinaliza novos paradigmas metodológicos para análise das relações sociais e 
da análise cultural, o termo foi empregue inicialmente no contexto pós- 
27 
guerra, mas seu uso ganhou mais força a partir da década de setenta, 
dentro dos estudos literários. A obra de Salman Rushdie The empire writes 
back: theory and practice in post-colonial literatures (1989) é considerada 
um dos primeiros livros a abrir os estudos pós-coloniais como um campo de 
investigação. 
 
Em linhas gerais, os estudos pós-colonialistas correspondem ao apelo e ao 
compromisso ético em se “desocidentalizar” e “deseuropeizar” às 
perspectivas de mundo e as formas de saber, lembrando que as ideologias 
presentes nos modelos pré-existentes e nas representações tendem a 
naturalizar a subalternidade, a exclusão e o estatuto periférico, impondo 
uma expressiva carga darwinista e juízos de valores e estéticos. [Mata, 
2014, p. 30] Sua importância reside justamente no fato de desconstruir e 
desnaturalizar tais estereótipos, trazendo a discussão mais ampla de como 
as estruturas do saber estão vinculadas a aspectos ideológicos e, 
consequentemente, servindo também a estruturas de poder. 
 
Os estudos pós-colonialistas salientam, portanto, que é preciso tomar certos 
cuidados com as construções epistemológicas e na forma em que as 
mesmas abordam as relações de poder e em atividades marcadas pela 
diferença, como etnia, religião, orientação sexual, gênero, classe, dentre 
outros, pois tendem a não problematizar processos históricos, sobretudo 
quanto às relações centro versus periferia e colonizador versus colonizado. 
Para tanto, entraram no bojo da discussão conceitos como cultura, 
identidade e etnicidade, por exemplo. 
 
Um dos destaques recentes dentro deste campo de estudos tem sido o 
acadêmico indiano Homi K. Bhabha (1949-). Influenciado pelo pensador 
pós-colonialista Franz Fanon (1925-1961) e partindo de pressupostos 
teóricos dentro da linguística e da psicanálise, Bhabbha, ao abandonar as 
teorias que privilegiam o binarismo maniqueísta, busca compreender de que 
maneiras as relações entre colono e colonizador foram constituídas, indo 
além da representação que a literatura faz dos sujeitos envolvidos neste 
contexto. O autor convida-nos ainda a refletir acerca das relações que 
perpassam a construção das identidades de colonizador e colonizado e o 
espaço de circunscrição da identidade que ultrapassam os símbolos e signos 
visuais. De acordo com essa perspectiva, o autor tece algumas 
considerações 
 
“Primeira: existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade, 
seu olhar ou locus. (...) “É a relação dessa demanda com o lugar do objeto 
que ela reivindica que se torna base de identificação”. Este processo é 
visível na troca de olhares entre o nativo e colono, que estrutura sua 
relação psíquica na fantasia paranóide da posse sem limites e sua 
linguagem familiar de reversão: “Quando seus olhares se encontram, ele [o 
colono] verifica com amargura, sempre na defensiva, que ‘Eles querem 
tomar nosso lugar’. E é verdade, pois não há um nativo que não sonhe pelo 
menos uma vez por dia se ver no lugar do colono”. É sempre em relação ao 
lugar do Outro que o desejo colonial é articulado: o espaço fantasmático da 
28 
posse, que nenhum sujeito pode ocupar sozinho ou de modo fixo e, 
portanto, permite o sonho da inversão de papéis”. [Bhabha, 1998, p. 76] 
 
As reflexões de Bhabha permitem-nos vislumbrar como se desenrolam as 
relações entre nativo e colono sob o prisma do primeiro. A partir do 
momento em que o nativo tem suas liberdades cerceadas e reduzidas por 
conta de um domínio político, social, econômico, cultural e militar 
estabelecido, seu objeto de desejo passa a ser poder desempenhar o papel 
do colono, ao qual, no momento, ele é obrigado a se sujeitar. O nativo, ao 
lembrar o que perdeu, deseja, na verdade, inverter esse jogo e transmutar- 
se no papel do colonizador. No processo de violência física e psíquica ao 
qual é submetido não existe apenas o desejo de que o colono se ausente do 
território que outrora era seu, mas levar ao rancor vingativo, o qual o 
impele à vontade de desempenharo papel do colono, numa espécie de 
revanchismo que mantém viva a memória do que é ser colonizado. 
 
Análise de Bhabha complexifica as relações sociais envolvidas neste espaço, 
enriquecendo e acrescentando à ideia binária que define quem é o colono e 
quem é o colonizado. O processo de construção das identidades de nativo e 
colono é realizado no espaço de cisão, o hiato que faz com que a distância 
tome uma proporção – como ele mesmo definiu – perturbadora. O ser 
diferente traduz, mesmo que de forma inconsciente, uma relação de 
alteridade. [Bhabha, 1998, p. 77)] O colonizador constitui o colonizado 
tanto quanto o colonizado constitui o colonizador, um papel agonístico e 
antagonístico ao mesmo tempo e é justamente nesse espaço intersticial 
onde as identidades de ambos são forjadas. Logo, no entendimento de 
Bhabha, o processo de formação das identidades ocorre num nível 
psicológico bem mais profundo e complexo do que as relações sociais 
tendem a presumir. 
 
Bhabha atenta ainda para o fato também que o colonizado, ao mesmo 
tempo em que deseja ocupar o local do colonizador, também não quer abrir 
mão do papel de colonizado. Tal explicação reside no fato de que, por ser 
colonizado, está intrínseco à sua natureza um desejo de vingança e, caso 
este objetivo seja atingido, ele perde a sua identidade com relação ao 
colonizador. [Sousa, 2004, p. 121] 
 
O conceito de identidade proposta por Bhabha nos levam a refletir sobre a 
própria construção dos grupos sociais na Idade Média. Em constantes 
interações, seja por meio de conflitos ou de forma amistosa, os espaços 
medievais estavam marcados por constantes contatos culturais, que 
mutuamente também se influenciam, e foram parte integrantes na 
organização dos mesmos e na organização de suas identidades. A ideia de 
que as identidades são constituídas num espaço de cisão, intertiscial – 
inbetween – nos levam a pensar em que medida as denominações de que 
lançamos mão para explicar grupos específicos no medievo são de fato 
válidas. Classificar a Inglaterra anglo-escandinava ou Al-Andaluz no século 
X como um amálgama ou fruto de um simples hibridismo é desconsiderar o 
processo de interação entre grupos distintos e relativizar sua complexidade. 
29 
O que torna um indivíduo ou um grupo franco, bretão, moçárabe, etíope, 
sassânida como tantas vezes empregamos esses vocabulários? O que o 
torna cavaleiro, mercador, herege, sodomita, judeu? A revisão dos 
conceitos adotados deve sempre fazer parte do exercício do historiador. O 
sentido das palavras não são dotados de vida própria e contextualizar seu 
surgimento e propósito se faz mister, tanto para questões de compreensão 
do posicionamento do pesquisador e de sua filiação teórica, quanto para 
não incorrer na banalização do seu uso. [Silveira, 2016 p.49] 
 
História Global, periodização do tempo e “desocidentalização” da 
História 
Tempo e espaço não são meros coadjuvantes no processo histórico, 
desempenhando o papel de cenário – onde e quando uma narrativa se 
passa. Constituem-se como elementos fundamentais que são responsáveis 
por conectar pessoas, ideias, bens materiais, dentre outros. Partindo de 
outra perspectiva teórico-metodológica a respeito do que esses dois 
componentes, podemos repensar também a maneira como lidamos com 
essas categorias na nossa prática historiográfica e no Ensino de História. 
 
A periodização da História – e consequentemente os reflexos gerados no 
seu Ensino – estão marcados por episódios considerados expressivos à luz 
do Ocidente. A nossa divisão tradicional, por exemplo, em quatro grandes 
períodos (Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade 
Contemporânea) remete a momentos considerados cruciais para o mundo 
ocidental: o colapso do Império Romano do Ocidente (476), o Renascimento 
(século XIV), a Revolução Francesa (1789), a Revolução Industrial (século 
XVIII). Nosso objetivo não é desmerecer ou diminuir a importância da 
periodização do tempo, haja vista que não há como fazer pesquisa na área 
deixando de lado a organização como tempo histórico, mas atentarmos que 
tais marcos não são puros e naturais e que se ordenam a partir de 
construções narrativas. 
 
Nos últimos vinte e cinco anos, muito tem se discutido sobre novos 
arcabouços metodológicos e conceituais para o estudo da história, dos quais 
História Cruzada, Histórias Conectadas, História Transnacional e História 
Global são apenas alguns desses exemplos. No caso específico da História 
Global, uma série de obras, seminários, grupos de pesquisas e periódicos 
organizaram suas pesquisas a partir desse novo paradigma historiográfico. 
Em síntese, pode-se afirmar que a História Global baseia-se em duas 
principais características: superar o nacionalismo metodológico como 
principal forma de análise das sociedades e evitar o 
eurocentrismo/ocidentalismo. [Santos Júnior; Sochaczewski, 2017,p. 491] 
No entanto, o que essa modalidade historiográfica traz de novo em 
comparação com a chamada História Universal? Em seu artigo Experiências 
do tempo: da história universal à história global?, o historiador francês 
François Hartog afirma que enquanto a primeira tendeu a naturalizar ou 
absolutizar a história da Europa – a ponto de transformá-la num parâmetro 
narrativo para toda uma história da humanidade – a segunda privilegia a 
busca por conexões, numa espécie de rede, na qual não há, 
consequentemente, uma visão única a seu respeito. [Hartog, 2013, p. 170] 
30 
 
A ideia de uma História Universal, que caminha inevitavelmente para o 
futuro, centrada na concepção de progresso, tal como pensavam os 
intelectuais do século XVIII, não faz mais sentido nos dias de hoje. Não 
obstante, a história não poderia ser apenas uma mera soma de diversas 
conexões, como uma colcha de retalhos, prontos a serem costurados e 
formar um desenho, numa espécie de quebra-cabeça. Não há um roteiro ou 
um manual prévio o qual consultar, pois é o próprio historiador que 
(re)organiza essas conexões, a partir de seus objetivos, objetos, recorte, 
teoria, metodologia, conferindo novas formas de interpretação. Logo, a 
perspectiva da História Global ultrapassa a simples ideia da busca por 
conexões entre culturas e sociedades, contribuindo com um novo olhar 
sobre as sociedades como objeto de estudo e para a tessitura de novas 
interpretações e narrativas. 
 
As perspectivas da História Global, sobretudo no que tange à 
desocidentalização da história, trazem à tona questão da organização do 
tempo e a periodização. Para que a divisão em temporalidades específicas 
faça sentido dentro da história, a mesma deve vir acompanhada de dois 
conceitos fundamentais para a disciplina: as concepções de permanência e 
mudança, pois a transição de um período para o outro deve estar 
precisamente marcada pela dissolução de antigas características de um 
período e o início de novas particularidades, sem perder de vista que, 
distintamente das ciências naturais, as classificações na história refletem as 
escolhas de quem a analisa e classifica, no caso, o historiador. [Green, 
1992, p. 14] Sobre as relações entre a História, construção de sua(s) 
narrativa(s) e o tempo, o historiador indiano A. Gangatharan afirma que 
 
“O conceito de periodização está essencialmente ligado à nossa 
compreensão do passado e em como analisamos metodologicamente o 
desdobramento dos eventos de um tempo para outro, de uma época para 
outra. Desnecessário dizer que a objetificação do tempo a partir de 
categorias reconhecíveis e com sua coesão interna oferece uma lógica 
significativa para entender a natureza compreensiva dos eventos históricos, 
correspondente ao seu contexto sociocultural”. [2008, p. 864] 
 
Organizar o tempo em períodos diz respeito a uma ferramenta metodológica 
para a disciplina, com o objetivo de facilitar a análise do historiador frente 
ao seu objeto de estudo e, por mais que se saiba que a divisão do tempo é 
uma operação arbitrária e baseada em quesitos específicos, não seria 
possível fazer história sem talvariável em nossa equação. Sem ele não 
seria possível delimitar os ritmos e as dinâmicas que compõem as 
transformações na sociedade. 
 
A partir de uma teoria da mudança, supõem-se que as épocas históricas 
devem exibir importantes continuações em longo prazo, ao passo que as 
transições de um período para outro devam envolver a dissolução de 
antigas continuidades e a construção de novas formas de organização. Esse 
processo, entretanto, não é isento de valores, haja vista que toda teoria 
31 
está baseada e reflete onde residem as prioridades do pesquisador. [Green, 
1995, p. 101] e cabe aí verificar quais os objetivos que se almeja atingir. 
 
Logo, repensar a maneira como demarcamos os períodos da nossa 
disciplina leva-nos a pensar questões pertinentes de uma maneira global, 
afinal, se utilizamos os mesmos referenciais de uma história europeia 
ocidental para abordarmos sociedades diversas, como tal periodização pode 
ser fortuita? Ao utilizamos expressões como China medieval, Japão feudal e 
Índia moderna, de que forma não estamos tentando também encaixar 
modelos de uma história ocidental? 
 
Nesse sentido, é preciso “desocidentalizar” a história. A célebre obra 
Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, de Edward Said, ainda 
é um dos principais fundamentos na discussão e na compreensão das 
representações ocidentais acerca do Oriente. Ora um local de abundância e 
exótico, ora caótico e incoerente, a forma como os ocidentais 
compreendem-no nada mais é do que fruto de uma invenção europeia, 
influenciada, principalmente, pelas visões do imperialismo britânico e 
francês e reproduzidos posteriormente. [Said, 1990, p. 14-15] 
 
Ao desnaturalizar os conceitos de Oriente e Ocidente, Said evoca sua 
construção enquanto um fato político, rompendo com a ideia de que se 
tratam de entidades geográficas, culturais e históricas pré-determinadas. O 
intelectual britânico-palestino completa sua ideia afirmando que o 
orientalismo não seria uma mera fantasia da Europa sobre o Oriente, “mas 
um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas gerações um 
considerável investimento material.”. [Said, 1990, p. 18] 
 
(Re)construindo novas abordagens para o Ensino da Idade Média 
Como pensar ou aplicar pressupostos epistemológicos dos estudos pós- 
colonialistas e dos paradigmas da História Global na medievalística e no 
Ensino de História Medieval? A começar, a reflexão sobre o próprio nome 
atribuído ao período – Idade Média –, o qual reforça aspectos da 
colonização do tempo. Por não partir de uma perspectiva própria do ou 
sobre o período, mas de autores da chamada Modernidade, sobretudo do 
contexto do movimento do Renascimento, o período medieval já nasce 
colonizado. A ideia de Modernidade vem dessa forma associada a uma visão 
positiva, a uma perspectiva mais ampla e ao anseio pela mudança, numa 
espécie de contraponto ao mundo medieval, retrógrado e obscuro. 
 
Apesar de recorrentemente problematizado pelos medievalistas, o vocábulo 
"Idade Média" não foi substituído, repensado ou readotado e que se referir 
a uma Idade Média pós-colonial seria, no mínimo, um oxímoro, para não 
dizer um anacronismo. [Cohen, 2000, p. 4] Desde a maneira como os 
currículos nas instituições de ensino superior estão estruturados à divisão 
por disciplinas ainda em esquemas bastante tradicionais e que remontam 
uma história dividida em quatro grandes eixos cronológicos (Antiga, 
Medieval, Moderna e Contemporânea), pode-se atestar como nossa 
principal forma de concepção e de organização da passagem do tempo 
ainda é composto por elementos de uma tradição, digamos, colonizadora. 
32 
 
Entretanto, mesmo ainda presos a essa organização, tal assertiva não 
significa que os historiadores abstiveram-se de debater, propor, repensar e 
dialogar com outras áreas do saber para questionar os limites que a 
organização de um tempo cronológico impunha à nossa disciplina. Ao tomar 
consciência de que tanto o tempo quanto a própria história foram alvo da 
colonização, não fomos inertes às discussões, nem permanecemos 
obcecados com a objetividade de que as fontes documentais eram dotadas 
de vozes próprias, prontas para revelar o que tinham a comunicar. No caso 
específico da medievalística, os pesquisadores também contribuíram dentro 
desse processo. 
 
Ao escrever sobre a descolonização do Ensino de Idade Média, Macedo 
aborda-a como uma crítica ao ponto de vista que parte da própria Europa, a 
partir da ideia de centro e periferia. Enquanto muitas vezes os conteúdos 
lecionados nas instituições de educação básica focam nos recortes 
geográficos que correspondem aos atuais Estados de França, Inglaterra, 
Alemanha e Itália, tendem a negligenciar territórios considerados de 
segunda importância, como Península Ibérica, os Bálcãs ou o Leste 
Europeu, por exemplo. [Macedo, 2009, p. 115] No caso específico da 
Península Ibérica, faria até mais sentido, tendo em vista que, como um país 
colonizado por Portugal, somos herdeiros dessa tradição ibero-americana. 
 
A descolonização abordada por Macedo, portanto, ainda está centrada em 
visões tipicamente eurocêntricas, muito embora o autor proponha um olhar 
mais atento a algumas questões como a convivência entre cristãos, 
muçulmanos e judeus na Espanha medieval, a qual proporcionaria a 
discussão de temáticas como intolerância e liberdade religiosa, conflitos 
étnicos e as relações com o Outro. [Macedo, 2009, p. 116] 
 
Apesar de uma proposta bastante válida, gostaríamos de avançar mais no 
debate. Vislumbramos a necessidade de novos referenciais teóricos e 
metodológicos que nos auxiliem na maneira como enxergamos e 
entendemos a Idade Média, a fim de assentar as bases de sua 
(re)construção no que tange ao Ensino de História Medieval. 
 
A primeira perspectiva versa sobre a concepção de temporalidade na 
história. Considerando que tanto as organizações do tempo quanto da 
história também são alvo de um processo de colonização, pautado em 
disputas de poder e tensões políticas e, portanto, nunca neutros, o tempo 
não é um objeto inocente e inerte aguardando ser escavado e desvendado 
pelo historiador. Tendo em vista que a Idade Média surge dentro dessa 
perspectiva já colonizada, ausente de voz própria quanto à sua 
temporalidade, mas apenas confinada a metade entre dois outros períodos, 
os estudos medievalísticos buscaram aprimorar sua capacidade de se 
reinventar. A compreensão de que a disciplina foi forjada no seio da 
chamada Modernidade gerou uma espécie de trauma, ao mesmo tempo em 
que possibilitou alianças trans-históricas e transformações recíprocas 
[Cohen, 2000, p. 5], como uma forma de superar esse “trauma”. 
33 
O passado não é estático e passível de investigação como um mero objeto 
de estudo – ou ao menos não deveria ser. O Ensino de História Medieval 
deve permitir analisar as relações entre temporalidades distintas para além 
da perspectiva de uma mera relação de alteridade, mas como um passado 
que descortina um presente para novas possibilidades num futuro. 
 
Na introdução da obra organizada pelo acadêmico estadunidense Jeffrey 
Jerome Cohen, The Postcolonial Middle Ages [Palgrave Macmillan, 
2000], o autor questiona em que e com o que os estudos medievísticos 
podem contribuir dentro da abordagem pós-colonialista. Como uma Idade 
Média colonizada, que corresponde a um tempo longínquo - se comparada 
com o próprio fenômeno do neocolonialismo no século XIX - pode auxiliar 
nos estudos pós-colonialistas dentro do Ensino de História? 
 
A resposta vem na forma de cinco temáticas: 1) Abandonar os modelos 
explicativos generalizantes; 2) Desnaturalizar as concepções de verdade 
dentro da disciplina, geralmente vinculados a projetos de poder; 3) 
Desestabilizar identidades hegemônicas, no que concerne a etnias, 
orientação sexual, religião, classe, idade, dentre outros; 4) Relativizar a 
posição dominante do cristianismo dentro da sociedade medieval; 5) 
Descentralizar a Europa e reconfigurar geograficamente o mapa da IdadeMédia ao incluir Ásia, África e o Oriente Médio. [Cohen, 2000, p. 6-7] 
 
Os estudos sobre identidade auxiliam nessa visão de uma Idade Média a 
partir da alteridade. Conteúdos antes identificados como marginalizados, 
tais como o incesto, masoquismo, estupro e travestismo, são agora 
reintroduzidos como objetos importantes nos estudos medievísticos, não 
apenas com o objetivo principal de expandir, enriquecer ou complexificar 
nosso entendimento sobre a cultura medieval, mas para a compreensão de 
que foram categorias de análise excluídas na representação medieval e 
também das nossas representações acerca da Idade Média. [Freedman; 
Spiegel, 1998, p. 699] 
 
Quanto às possibilidades de visões que essas novas abordagens 
proporcionam, ao analisar temáticas do gênero, devemos rejeitar a ideia de 
que se tratava de uma visão alternativa sendo meramente reprimida, 
excluída ou abandonada, substituindo-a por um campo mais amplo de 
possibilidades, negado durante o momento de estabelecimento de 
representações. [Freedman; Spiegel, 1998, p.700] Como foram 
negligenciadas como escopo da medievalística tradicional, tendemos a 
analisá-los como ausentes ou marginais dentro da sociedade medieval, 
como se houvesse uma Idade Média oficial e outra excluída. 
 
Entretanto, de todas as assertivas, as três primeiras cabem não apenas ao 
estudo da Idade Média, mas àqueles circunscritos a outras temporalidades. 
Os grandes modelos explicativos tendem a estabelecer visões reducionistas, 
ao tentar encaixar os olhares sobre um objeto a partir de um viés 
homogeneizante. Como exemplo, podemos incluir como a historiografia 
tradicional francesa abordou temas como o sistema feudal, na tentativa de 
fazer dele um modelo explicativo que corresponde aos territórios 
34 
administrados pelos carolíngios e depois “exportado” pelos normandos para 
a Inglaterra no século XI como presente em outras regiões do continente de 
forma adaptada ou modificada. 
 
Focaremos aqui nas duas últimas, pois julgamos serem as maiores 
contribuições dentro dos estudos sobre o medievo. A alusão a uma Idade 
Média dominada pela Igreja e pelo cristianismo, sem levar em consideração 
que havia outras formas de religiosidade concomitante ao mesmo. O 
discurso eclesiástico, apesar de dominante na documentação escrita 
produzida ao longo do medievo, não era a única forma de concepção, 
leitura e interpretação de mundo e analisá-lo a partir das conexões com 
islamismo, judaísmo e religiões pré-cristãs é mais producente do que 
explorá-los apenas pelo viés do discurso cristão. Havia formas heterogêneas 
de cristianismos, frequentemente em disputas, até sua tentativa de 
sistematização e unificação em torno de um ideal de cristandade presente 
nas Reformas Gregorianas (1050-1150). 
 
Quanto às reflexões relativas às representações geográficas e o espaço na 
Idade Média, Kathleen Biddick elucida de que forma o espaço e a cartografia 
também foram colonizados ao longo do século XV e em como isso contribuiu 
para a concepção de mapas produzidos nos século seguinte, já sobre a 
égide do chamado Mundo Moderno. Ao analisar projetos de cartografia de 
finais da Idade Média, a historiadora americana deparou-se com duas 
tradições distintas. A primeira delas corresponde aos chamados mappae 
mundi (cartografia responsável pela representação do século XII ao XV) e 
mais racional e "moderno" mapa ptolomaico – em referência a Claudio 
Ptolomeu (90-168), considerado pai da cartografia – que se tornou 
predominante na Europa Ocidental a partir no século XV. 
 
A concepção de mapa que adotamos nos nossos dias não está pautada nos 
mesmos elementos para o homem medieval. A cartografia não existia 
enquanto uma ciência ou uma disciplina no período e a produção de mapas 
estava diretamente vinculada a aspectos do universo clerical. Os mappae 
mundi não tinham por objetivo apenas a descrição do espaço ou determinar 
a localização de um território, mas, antes de tudo, correspondia a uma 
representação de mundo, seguindo regras muito particulares, com 
informações geralmente oriundas de obras dos padres da Igreja, da 
narrativa bíblica e de fragmentos de informações da Antiguidade. [Deus, 
2001, p. 178] Os mappae mundi tendem a ser identificados como narrativas 
para fins didático e simbólico, representando a fé a partir versões morais 
situadas entre a Criação e o Juízo Final, enquanto que as instruções de 
Ptolomeu quanto à compilação dos mapas eram estritamente prática e mais 
racionais. 
 
O mapa de Hereford, produzido provavelmente entre os anos de 1276 e 
1285 e vinculado à catedral da cidade, situada nas Midlands Ocidentais, é 
um dos mais famosos por ser o maior em extensão que tenha sobrevivido 
aos nossos dias. Um dos aspectos particularmente interessante desse mapa 
está, na vinculação dos judeus aos povos do Gog e Magog, presentes na 
tradição apocalíptica e referenciados na cartografia como Outro [Soares, 
35 
2012, p. 220] e cabe ressaltar que isso era algo relativamente comum na 
cartografia medieval. 
 
Com o dos estudos humanistas, os mappae mundi abriram espaço aos 
mapas ptolomaicos, os quais começaram a ganhar espaço a partir do século 
XV. A primeira tradução do grego para o latim da "Geografia" de Ptolomeu 
foi entre os anos de 1405-09, como um guia prático para construção de 
mapas – baseado em longitude e latitude – e composto de uma lista dessas 
coordenadas e uma relação de oito mil nomes relacionados a regiões 
imperiais no mundo tardo antigo. [Hoogvliet, 2002, p. 8] 
 
Biddick destaca em sua obra que, a partir do século XV, os estudos 
humanísticos procuraram excluir a participação dos judeus no processo de 
produção das interpretações a respeito desses espaços, enquanto as 
posições importantes dentro estudos hebraicos passaram a ser ocupadas 
por classicistas [1998, p. 287], o que se seguiu a recorrente adoção do 
alfabeto latino em sua escrita buscou excluir intelectuais judeus da 
especialidade dos estudos hebraico-cristãos. 
 
Não apenas o tempo e sua representação foram colonizados, mas o espaço 
e a cartografia também. Analisar os mapas produzidos no período medieval 
não inclui apenas descentralizar a Europa e incluir também Ásia, África e o 
Oriente Médio, - geralmente representados como meras periferias do 
mundo medieval - e compreendê-los como participantes e intercambiantes 
de um mundo largo e ao mesmo tempo fragmentado em suas localidades e 
especificidades geográficas. Tal estudo desloca a perspectiva de regiões 
caracterizadas como periferias, são identificadas a partir de lógica interna, 
como seus próprios centros. 
 
É necessária a compreensão também de como esses mapas reproduzem 
discursos e interpretações que remetem a colonização do espaço, das 
representações cartográficas e de quem está autorizado a produzi-las. A 
cartografia na época também não estava associada a objetividade ou 
neutralidade e sua produção estava marcada também por relações de 
poder, como no exemplo da exclusão dos judeus no século XV. 
 
Considerações finais 
Atividades de pesquisa e ensino não vêm dissociadas. As investigações 
sobre a medievística refletem nossa forma de pensar a história e as teorias 
e ferramentas de que dispomos em nosso fazer historiográfico. O caminho 
para o medievalista desconstruir os pré-conceitos e estereótipos dentro da 
sua disciplina é árduo, pois, se a Idade Média não foi uma Era de Ouro, 
tampouco foi um período de trevas. É preciso estudá-lo a partir dos objetos 
recortados e dos objetivos acadêmicos os que se almeja alcançar.As 
reflexões advindas dos estudos pós-colonialistas reforçam o olhar cuidadoso 
acerca dos objetos de investigação do medievo, da importância de uma 
análise a partir de dinâmicas próprias e desnaturalizando conceitos 
cristalizados na medievalística. 
36 
Contudo, é inegável que aquilo que o período de que denominamos de 
Medievo não correspondia a espaços fechados, ausentes de conexões e 
trocas das mais diversas naturezas. Tampouco o mundo medieval estava 
restritoapenas ao continente europeu, sobretudo à sua porção ocidental. 
Tomar consciência dessa dimensão espacial mais ampla permite vislumbrar 
uma Idade Média a partir das conexões entre Europa, Oriente e África, bem 
como considerar que esses elos não devem ser analisados de uma 
perspectiva eurocêntrica. Nesse aspecto, os pressupostos teórico- 
metodológicos da História Global endossam quanto à observação das trocas 
culturais, rompendo o paradigma ocidental e eurocêntrico e relativizando os 
conceitos de Oriente e Ocidente. 
 
Deste entroncamento dos estudos pós-colonialistas e dos pressupostos 
metodológicas da História Global, podemos vislumbrar novas perspectivas, 
objetos, recortes e horizontes dentro dos estudos medievais. 
 
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Universidade de Pernambuco – Campus Garanhuns e Doutora em História 
Comparada pela Universdade Federal do Rio de Janeiro. E-mail para 
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