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Sander Cruz Castelo | 213 Dr. Aquiles contara ao doente, em seguida, que “sua senhora” visitara seu consultório no dia anterior, para saber do estado de saúde do ex-companheiro33, ficando “muito aflita” e sinalizando desejo de “uma aproximação”. O paciente o corrigira, dizendo que Eunice e ele eram “casados de opereta”, em razão de “impedimento”, isto é, o matrimônio dela com André. Prevenia, ainda, que, Raul o procurando no dia seguinte, soubesse que “também não é meu filho”. Em “momento de cólera”, antes da separação, Eunice lhe confessara que o garoto era, na verdade, filho de André34.Tendo ela ido embora dois anos depois, com metade de seus bens, ele ficara com a criança. Apesar de Rui provavelmente não saber a verdade, eram, atualmente, “dois estranhos”35 (p. 225-7). Dr. Aquiles concluiu que “Deus é um claro-escuro”. A “vontade” Dele “seria claríssima e obscuríssima”: ao mesmo tempo em que ele “quer que sejamos justos e irrepreensíveis diante de Sua face, que o amemos de todo o coração” e “entendimento”, não sabemos como fazê-lo. Quando o vislumbramos, recuamos, em razão do zelo pela “nossa própria vontade”, nossa “vaidade”, nossa aversão à “mistura”. José Maria assentiu com o diagnóstico, mas apontou que não há lugar em que o “amor-próprio” seja “mais visível” do que nos “grupos de homens virtuosos, bem- intencionados, bem-comportados, que se unem para salvaguardar a sã doutrina e os bons costumes [...] na sua Ação Católica, nas congregações religiosas, nas salas de capítulo”. Eles o teriam “em estado puro”, diversamente dos outros, que as apresentariam nas formas adornadas do “Dinheiro” e do “Sexo”, as quais os primeiros procuravam corrigir. O médico perguntou, em seguida, espantado, como o doente descobrira o “segredo” deles (p. 228-31). Antes de 33 Alertada, possivelmente, pelo Pedreira. 34 Do qual era o “retrato” (exames constataram a infertilidade do narrador [p. 226]). 35 “Ele casou-se com uma moça gorda e mansa, de Belo Horizonte, que lhe dá um filho por ano. São os meus pseudonetos”. Antes, dissera que teve “pseudoesposa”, “pseudofilho”, “pseudocasa”, “pseudovida” etc. (p. 226-7). 214 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura deixar a casa, Dr. Aquiles tirara um crucifixo36 do embrulho que trouxera e o afixara na parede do quarto do narrador. José Maria registra, no dia 10 de fevereiro, completar “o terceiro mês de agonia”, suas “Bodas de Sangre”. Imagina uma comemoração, na qual o “presente do doutor” seria o sangue do doador. No dia 15 de fevereiro, destaca haver ensaiado mergulho na “substância de sua alma”. Abandonara os “títulos exteriores”37, atravessara os recônditos da “memória” e da “imaginação”, mas não se encontrara, agarrando-se, desesperado, à identidade exterior, quando se deparara com “um tudo e um nada”. Isto é, “ ‘Silêncio, escuridão e nada mais’”38 (p. 234; 236-8). No dia 16 de fevereiro, resolveu “fazer alguma coisa” útil dos “quinze ou vinte dias” que lhe restavam, “em vez de ficar aqui neste quarto anotando as vertigens de minha alma”. Como aventara no dia anterior, levaria aos outros a “notícia da ‘existência mais forte’”, exibindo ao “mundo” o “homem-que-sabe-que-vai-morrer” (p. 239- 40). Entretanto, não encontrou o Dr. Aquiles, em seu consultório, nem Gertrud, no café, doentes. A caminho do mercado de flores, sofrera de vertigem, sendo socorrido pelos passantes, um dos quais, comunista, o acompanhara de volta para casa. Compartilha, no dia 20 de fevereiro, que, deitado, à noite, fora tomado de “torpor que tinha mais de anestesia que de sono”. Aponta “que era uma noite pesada, que trazia tudo para cima de mim, para dentro de mim”. Receando que estivesse morrendo, perguntara-se se “deveria resistir”. Ouvira vozes e vira coisas. Descera para dentro de um vulcão, ora sendo chamado de Axel39, ora pelo próprio nome40. Em certo momento, caíra “suavemente” (p. 247-8; 251). 36 O do consultório. 37 Isto é, “professor da Faculdade de Filosofia”, “autor de um trabalho sobre as integrais de Bessel”, “membro do Clube de Engenharia”, “meio poeta”, “canceroso” etc. (p. 236-7). 38 Verso de Antero de Quental (1842-1891), poeta português. 39 Pelo tio e por Lindenbrock, que o estimulam. 40 Por mulheres, que procuram detê-lo.