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GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 2 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA 3 Objetivo 3 Objetivos específicos 3 Habilidades e competências a serem adquiridas 3 Ementa 3 Bibliografia básica 3 1 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA E ASPECTOS ACERCA DESSA ÁREA 6 2 GASTRONOMIA APLICADA A PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 20 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 25 GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 3 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA Objetivo Abordar a gastronomia no contexto da doença renal crônica. Objetivos específicos Discutir a história da gastronomia. Abordar aspectos básicos acerca da gastronomia. Debater a gastronomia para pacientes com doença renal crônica. Habilidades e competências a serem adquiridas Compreender melhor o estudo da gastronomia, bem como a forma como ele se aplica no contexto da doença renal crônica. Ementa Discutir a história da gastronomia, bem como aspectos básicos vinculados a essa área. Aplicar as informações apresentadas no contexto da doença renal crônica. Bibliografia básica GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 4 CUPPARI, L. Guias de medicina ambulatorial e hospitalar da EPM-UNIFESP: Nutrição clínica no adulto. 3ª ed. Manole: São Paulo, 2014. CUPPARI, L. Nutrição nas doenças crônicas não-transmissíveis. 1ª ed. Manole: São Paulo, 2009. COZZOLINO, SMF; COMINETTI, C. Livro: Bases bioquímicas e fisiológicas da nutrição, nas diferentes fases da vida, na saúde e na doença. Ed. Manole, 1ª edição, 2013. MAHAN, L. Kathleen; ESCOTT-STUMP, Sylvia; RAYMOND, Janice L. (Ed.). Krause alimentos, nutrição e dietoterapia. 13. ed. São Paulo: Saunders Elsevier, c2013. COZZOLINO, Silvia M. Franciscato (Org.). Biodisponibilidade de nutrientes. 6. ed., atual. e ampl. Barueri: Manole, 2020. CUKIER, Celso; CUKIER, Vanessa. Macro e micronutrientes em nutrição clínica. São Paulo: Manole, 2020. ALVARENGA, M., FIGUEIREDO, M., TIMERMAN, F.; ANTONACCIO, C. Nutrição comportamental. 2ª Ed. São Paulo: Manole. 2019. 5 GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 6 1 HISTÓRIA DA GASTRONOMIA E ASPECTOS ACERCA DESSA ÁREA Introdução A alimentação é muito mais antiga do que a nutrição. Isso porque o homem se alimenta desde a sua existência, ao passo que a nutrição é compreendida como uma ciência da modernidade. Entende-se por nutrição a ciência que estuda os nutrientes, bem como o modo como eles são assimilados (digeridos, absorvidos e utilizados) pelo organismo humano, desenvolvendo, inclusive, recomendações de ingestão de cada nutriente de acordo com as características do paciente em questão (idade, gênero e condições específicas, como gestação e lactação). Em relação à alimentação, a prática surge de forma intuitiva, quando o homem passa a caçar, a plantar e a selecionar o próprio alimento. Nesse cenário, fica claro que a união de alimentação e nutrição é complexa e gera certas incertezas. GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 7 Quando o homem começa a conhecer sobre a nutrição, sua alimentação deixa de ser somente intuitiva, pois se conhece a composição nutricional do alimento – um fator a mais envolvido na escolha alimentar. Nesse contexto, pode haver incertezas no momento de decisão do consumo alimentar. Isso porque o indivíduo pode se sentir confuso e indeciso acerca do que tem vontade de comer e do que acredita ser nutricionalmente adequado. Como resultado, pode existir prejuízo na relação do indivíduo com o alimento e com o próprio corpo. É importante que a nutrição seja um fator contribuinte na escolha alimentar, mas não o único. Além disso, estimular a relação relaxada, despreocupada e saudável do indivíduo com o alimento e com o seu próprio corpo é indispensável para garantir uma alimentação e uma nutrição adequadas. A presente seção tem dois objetivos: abordar a história e os aspectos gerais da gastronomia, bem como discutir a relação entre alimentação e nutrição. Relação entre alimentação e nutrição O tópico relação entre alimentação e nutrição é complexo e começou a ser abordado na introdução, sendo que um aprofundamento sobre o assunto será apresentado a seguir. Para tal, é necessário que se compreenda conceitos básicos que circundam o assunto, como as definições de alimentação, nutrição, fome, apetite, escolha alimentar, hábito alimentar, comportamento alimentar etc. Esses conceitos serão apresentados no Quadro 1. Quadro 1. Conceitos vinculados à alimentação e à nutrição. CONCEITO DEFINIÇÃO Alimentação Criação histórico-cultural, associada às relações humanas mediadas pela comida. Nutrição Ciência da modernidade com foco no estudo dos nutrientes. GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 8 Alimento Tem funções destinadas à formação, ao desenvolvimento e à manutenção do organismo. Comida Tem funções nutricionais, mas também culturais e simbólicas. Fome Necessidade fisiológica de comer sem relação com um alimento específico. Nunca é emocional. Fome hedônica ou apetite Desejo de comer um alimento em particular para obter satisfação e prazer. Saciedade Sensação de plenitude gástrica, sem sensação de fome e com sensação de bem-estar. Práticas alimentares Forma como os indivíduos se alimentam em diferentes esferas. Motivação alimentar Causa que impulsiona nossa ação de escolher comer ou não determinado alimento. Escolha alimentar Ato dinâmico que determina o consumo alimentar. Consumo alimentar Ingestão de alimentos. Consumo nutricional Ingestão de energia e de nutrientes. Padrão alimentar Análises estatísticas ou matemáticas dos alimentos como eles são verdadeiramente consumidos. Estrutura alimentar Tipos, horários e regularidade das refeições. Atitude alimentar Crenças, pensamentos, sentimentos, comportamentos e relacionamento com os alimentos. Comportamento alimentar Ações em relação ao ato de se alimentar – “como”, “quando” e “de que forma” comemos. Hábito alimentar Comportamentos aprendidos e repetidos de forma automática. História da gastronomia Os relatos sobre a história da alimentação são de longa data. Sabe-se que na pré-história a alimentação era composta principalmente pelo que era caçado (até mesmo por presas de outros predadores) e por folhas, frutos e grãos. A partir da descoberta do fogo, há transformação dos alimentos e expansão do que era consumido. Nesse cenário, começa-se a descobrir a questão da palatabilidade dos alimentos e do prazer em comer. Ademais, o prazer em compartilhar o alimento e a socializar enquanto se alimenta também é descoberto. GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 9 Pode-se dizer que a gastronomia passa a ganhar força a partir daí. Considerando a visão antropológica, três estágios representam a evolução da cultura alimentar ao longo dos anos: (i) as sociedades primitivas sobreviviam da caça, pesca e colheita natural – isto é, não havia esforços na produção de alimentos, sendo que a sobrevivência dependia exclusivamente da natureza – método que permite a existência de sociedades pequenas, mas não de sociedades grandes; (ii) surge a domesticação de plantas e de animais e o homem se torna um produtor de alimentos, e não mais um caçador deles, fazendo com que a agricultura e a agropecuária tornem-se expressivas nas sociedades, as quais passam a buscar por terra fértil. Outro aspecto deste estágio é a troca e venda local, garantindo o necessário à sobrevivência; (iii) a revolução industrial e urbana resultamna grande concentração de pessoas nos meios urbanos, tornando inviáveis os métodos de produção de alimentos em baixa escala e iniciando a produção industrial de alimentos. Neste cenário, a comida passa a representar aspectos culturais e sociais, e não apenas fonte de nutrientes para garantia da sobrevivência. O surgimento do uso de condimentos, a exemplo do sal e do açúcar, e da aplicação de técnicas culinárias reflete o desejo por melhorar o sabor da comida, reforçando que o ato de comer está atrelado à busca por prazer. Corroborando essa informação, o médico milanês Maino de Mainere escreveu em um tratado do século XIV a seguinte frase: “o que é mais agradável para o gosto é melhor para a digestão”. Apesar do conteúdo dessa frase ter se provado incorreto, esse evento demonstra as preocupações da época com sabor e saúde. Não obstante, a aplicação de técnicas culinárias (a exemplo da cocção) também reflete a preocupação com a saúde e o objetivo de melhor conservar os alimentos. Em razão disso, é possível encontrar sinais de normativas médicas em livros antigos de culinária, demonstrando que o vínculo entre medicina e gastronomia se iniciou há muito tempo atrás. GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 10 Além das questões acima mencionadas, a cultura alimentar também reflete a criatividade de seu povo, haja vista que a maior parte das comidas consumidas são preparações, que envolvem uma combinação complexa de ingredientes e de técnicas culinárias. De um modo geral, pode-se entender que a cultura alimentar de um povo demonstra sua criatividade, suas preocupações e objetivos, seu conhecimento prévio e até seu status socioeconômico, haja vista que alguns ingredientes onerosos podem não estar presentes em regiões mais financeiramente vulneráveis. Independente dos fatores que motivaram e ainda motivam a cultura alimentar de determinado povo, há de se admitir que ela está intrinsecamente relacionada ao seu comportamento e hábito alimentar. Alguns exemplos evidenciam o papel cultural dos alimentos. Na Espanha, é comum mastigar sementes de girassol como uma atividade social (pessoas mastigam esse alimento enquanto conversam e compartilham momentos). No Paraguai, o Tererê é consumido em rodas de conversas, sendo que o próprio nome do alimento reflete seu papel cultural, haja vista que Te significa chá e Rerê significa roda/círculo. De modo similar, no sul do Brasil o chimarrão é ingerido junto a familiares e amigos, sendo considerado como outro símbolo cultural. Apesar destes exemplos serem deveras característicos destas regiões, há de se admitir que no mundo globalizado muitos alimentos perdem sua origem e passam a fazer parte da cultura alimentar mundial, a exemplo do chocolate, da pizza e do croissant, os quais são consumidos no mundo todo, sofrendo adaptações locais. Estas adaptações podem ocorrer por diversos motivos, inclusive pela necessidade de tornar os alimentos mais saudáveis. A cultura alimentar e a preocupação com a composição nutricional dos alimentos fazem com que algumas preparações sejam adaptadas para tornarem- se menos prejudiciais à saúde, mas que, ainda assim, mantenham sua essência. Por exemplo, acrescentar em uma feijoada partes menos gordurosas GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 11 do porco, de modo a se evitar o consumo excessivo de gordura saturada (haja vista seu vínculo com o desenvolvimento de doenças cardiovasculares). Alguns autores sugerem que a alimentação apenas por prazer, sem consideração alguma a aspectos nutricionais, pode levar a um consumo exagerado de energia, de gorduras saturadas, trans e hidrogenadas, e de açúcares acima do recomendado, o que parece ocorrer em algumas regiões brasileiras. Neste cenário, e considerando a crescente prevalência de sobrepeso e de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), há de se considerar a quebra de alguns hábitos (dentre eles, inclusive, o consumo exacerbado de alimentos industrializados). Neste sentido, surge o que se chama de “tradição da modernidade”, em que se busca elementos das raízes tradicionais, mas adapta-se ao contexto contemporâneo. A busca pelo tradicional é um dos fatores que contraria o consumo de alimentos industrializados e ultra processados. Evidências indicam que as pessoas têm preferência pelo sabor natural, ao invés do artificial, reforçando a ideia da busca pela tradicionalidade (informações obtidas por meio de estudo com funcionários da Prefeitura de São Paulo). No entanto, há de se admitir que o consumo de alimentos industrializados só cresce. Fica o questionamento do que impulsiona esse fator, já que a preferência é pelo gosto natural e não artificial. A hipótese mais viável é a questão da praticidade e da durabilidade destes alimentos, o que facilita seu consumo. Não obstante, agregam-se fatores para aumentar sua palatabilidade, então, apesar de não ter o mesmo gosto do natural, há de se admitir que o sabor dos alimentos industrializados pode ser bastante agradável. Essa contradição justifica a tendência ao artesanal – modo como alguns estabelecimentos/preparações se intitulam, de modo a demonstrar seu vínculo com o natural e com o tradicional. Vale salientar, entretanto, que esse título “artesanal” pode ser mais utilizado como uma jogada de marketing do que com o objetivo GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 12 genuíno de defender a cultura alimentar. Mesmo com essa tendência, o consumo de industrializados está em constante ascensão, haja vista a busca pela praticidade e pela maior conservação dos alimentos. Isso porque precisamos produzir alimentos em larga escala de modo a atender a demanda de uma sociedade tão numerosa e, em razão do nosso estilo de vida, tende-se a destinar o mínimo de tempo possível para adquirir, preparar e até mesmo consumir os alimentos. Neste cenário, os restaurantes do tipo fast food ganham força na atualidade e o ato de comer que é tão complexo passa a ser subestimado. História da cultura alimentar e da gastronomia brasileira A cultura alimentar brasileira trata-se de uma combinação entre diferentes culturas, dentre elas: indígena, africana, portuguesa e europeia. A herança alimentar dos índios é mais centrada em raízes, como mandioca, além de batata doce, inhame, milho verde, os quais poderiam ser assados no fogo aceso no chão. Já a herança alimentar dos africanos traz comidas misturadas na mesma panela, a exemplo dos cozidos (como canja, galinhada, feijoada), com uso de azeite de dendê, leite de coco e afins. A herança alimentar dos portugueses traz o uso do azeite de oliva e de alimentos preparados com ele, a exemplo do caldo verde e do frango com quiabo, além do preparo de doces em compotas, como o doce de leite. Eventualmente, estas três culturas se fundiram e a comida brasileira passou a representar uma combinação delas. Como resultado da miscigenação da cultura alimentar de diversos povos, a cultura alimentar brasileira tornou-se rica, abundante e abrangente, de modo que cada região, estado e cidade do Brasil apresenta suas peculiaridades. Como exemplo, podemos citar o desjejum do brasileiro, o qual não é um padrão/consenso em todo o país – o paulista costuma ingerir pão francês com manteiga e café com leite, ao passo que o mineiro costuma ingerir queijos, pão de queijo e bolos (ex.: milho e fubá), enquanto o baiano costuma GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 13 consumir tapioca e cuscuz, dentre outros exemplos.É possível compreender o quanto o nosso país é miscigenado, o que faz com que a nossa cultura alimentar seja vasta e com que não haja um padrão seguido por toda a população. Nestes termos, em relação à cultura alimentar, cada região do país é singular. Além da influência de outros povos, a cultura alimentar é moldada também pela disponibilidade e pelo acesso de determinados alimentos em cada região. Por exemplo, a região centro-oeste do Brasil tende a apresentar maior disponibilidade e acesso à carne bovina, haja vista a prevalência da pecuária nessa região, o que facilita o consumo alimentar. Não obstante, questões socioeconômicas também influenciam o consumo alimentar – seja em qualidade ou em quantidade – motivo pelo qual há correlação entre prevalência de desnutrição e renda per capita no Brasil (o Estudo Nacional da Despesa Familiar – ENDEF – foi um dos pioneiros em demonstrar essa correlação, sendo que quanto mais economicamente vulnerável for a região, maior costuma ser a prevalência de desnutrição, a exemplo das regiões norte e nordeste do Brasil). Porém, curiosamente, percebe-se que a renda nem sempre contribui com a ingestão nutricional adequada, sendo que o aumento de renda parece estar vinculado à redução do consumo de arroz e feijão, e aumento do consumo de alimentos industrializados. Outro aspecto que tende a influenciar negativamente a cultura alimentar é o fenômeno de massificação da cultura alimentar, o qual é fruto da extensa urbanização e industrialização de produtos alimentares – condições que vêm acompanhada de um forte marketing de oferta e da massiva divulgação midiática, induzindo a população a adquirir tais produtos e a abandonar tradições culturais. Como resultado desse fenômeno, a transmissão da cultura alimentar torna-se prejudicada – motivo pelo qual gerações mais recentes tendem a ter alimentação bastante diferente quando em comparação a gerações mais antigas, GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 14 apresentando maior tendência a consumir alimentos industrializados. Vale salientar que crianças e adolescentes tendem a ser mais vulneráveis às pressões midiáticas quando em comparação a adultos e idosos. Para que se tenha ideia do impacto desse fenômeno, durante a década de 80, no Brasil, embutidos, como salsicha e linguiça, tiveram sua produção duplicada e, em meados da década de 90, a produção só aumentava. A produção de congelados também cresceu cerca de 126% entre 1990 e 1996. Em relação a salgadinhos, a produção em 1996 era mais de seis vezes maior do que a observada em 1980. Essa tendência também se aplica a biscoitos, refrigerantes e bebidas alcoólicas, como cervejas. Na última Pesquisa de Orçamentos Familiares do Brasil (POF de 2017-2018), observou-se consumo excessivo de alimentos industrializados, como biscoitos, salgadinhos, refrigerantes, bebidas alcoólicas e afins, e ingestão insuficiente de frutas, verduras e legumes. A globalização influencia até mesmo no local onde os alimentos são adquiridos, com o aumento de compras em hipermercados, e redução de aquisições no comércio local. Esse fenômeno impacta negativamente em dois pontos – na cultura alimentar, pois há aumento do consumo de alimentos industrializados e menor consumo de alimentos/preparações culturais e tradicionais, bem como influência negativa na economia local, prejudicando o comércio e o desenvolvimento científico daquela população. As Políticas Públicas e os Programas de Alimentação e Nutrição Brasileiros preocupam- se em garantir a transmissão da cultura alimentar em cada região brasileira, de modo a estimular a compra de alimentos locais e de empreendedores da região, ao invés de produtos fabricados por multinacionais. Esse é um dos motivos pelos quais alguns programas investem no repasse de verba, ao invés da oferta direta de alimentos, de modo a não impactar negativamente na cultura alimentar. GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 15 Hábito alimentar, comportamento alimentar e como molda-los Entende-se por hábito alimentar os tipos de escolhas alimentares e o consumo alimentar de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos, os quais são influenciados por questões fisiológicas, psicológicas, culturais e/ou sociais. Considerando que alguns hábitos alimentares são nocivos à saúde da população, dentre eles o consumo exacerbado de alimentos industrializados, discute-se o fenômeno de quebra/interrupção de hábitos. Para tal, é necessário que haja evolução nas informações transmitidas, de modo suficiente para influenciar na tomada de decisão do indivíduo. O descobrimento de uma nova direção, a fixação de um objetivo relevante ao indivíduo e a construção de um programa coerente para atingi-los são ferramentas imprescindíveis à mudança de hábitos. Deve-se ter em mente, entretanto, que o ato de comer é muito mais significativo do que apenas a ingestão de alimentos/nutrientes, e reflete as relações sociais, econômicas e culturais do indivíduo. Pode-se dizer que a cultura alimentar se vincula, inclusive, à manifestação do indivíduo na sua sociedade. Não obstante, o modo como determinado povo busca e processa seus alimentos está intrinsicamente arraigado a sua expressão cultural e social. Considerando o exposto, é possível compreender que a mudança de hábitos alimentares pode ser necessária de modo a favorecer a saúde e reduzir o risco de doenças (uma das premissas do profissional nutricionista), porém, deve-se evitar ao máximo propor alterações bruscas ao paciente que comprometam a adesão a sua cultura alimentar. Modulação do comportamento alimentar para pacientes com doença renal crônica Como abordado anteriormente, a mudança do comportamento alimentar não é um fenômeno simples e fácil. GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 16 Quando a mudança é brusca e urgente, o processo pode se tornar ainda mais delicado e complexo. Conforme discutido ao longo de materiais anteriores, a doença renal crônica é uma condição multifatorial e com fisiopatologia complexa, culminando em inúmeras alterações bioquímicas, dentre elas distúrbios nutricionais. Nesse cenário, é imprescindível que o paciente siga determinadas recomendações nutricionais, as quais variam a depender do caso (exemplo: restrição proteica e hídrica, restrição de sódio, de fósforo e de potássio, controle na ingestão de carboidratos simples e de ácidos graxos saturados, entre outras). A não adesão dessas recomendações pode agravar o quadro, tornando precoce a necessidade de terapia dialítica ou de transplante renal, por exemplo. Ademais, a não adesão das estratégias nutricionais pode aumentar o risco de comorbidades, reduzindo a qualidade de vida do paciente, bem como pode aumentar o risco de mortalidade. Apesar da importância do tema, algumas evidências indicam que pacientes com doença renal crônica não compreendem a importância da adesão das estratégias nutricionais, bem como não têm discernimento dos riscos e dos malefícios da não adesão das recomendações. Isso faz com que grande parcela dos pacientes não siga as instruções nutricionais e com que muitos pacientes nem ao menos sejam acompanhados pelo profissional nutricionista. Essa situação enfatiza a importância da educação e do acompanhamento nutricional para pacientes com doença renal crônica. Além do desconhecimento acerca da doença, um dos fatores que pode fazer com que o paciente não consiga aderir às restrições alimentares é a dificuldade de incluí-lasna prática, tornando difícil o processo de se alimentar. Nesse sentido, há necessidade de trazer praticidade ao paciente, facilitando a adesão à dieta. Além disso, a falta palatabilidade é um dos principais fatores que fazem com que a dieta seja pouco prazerosa e de difícil de adesão e de manutenção. Imagine GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 17 uma dieta com restrição de sódio (pouco sal), potássio (alimentos sempre na mesma textura), proteína (redução de alimentos de origem animal), de água (preferência a alimentos secos) etc. É de se esperar que esse tipo de dieta seja menos palatável e de menor adesão. Nesse contexto, surge a importância da gastronomia voltada para esse público, com fim de tornar a alimentação mais prazerosa e fácil de seguir, favorecendo o controle da doença, a saúde e a qualidade de vida do paciente – tópicos que serão abordados a seguir. Um pouco sobre gastronomia Entende-se por gastronomia a prática e os conhecimentos relacionados à arte culinária. A gastronomia tradicional preocupa-se mais com a questão do sabor, da palatabilidade e do prazer em comer. Existem várias vertentes: mais clássicas ou mais inovadoras, mas, ainda assim, a preocupação principal é com a palatabilidade e com o prazer em comer. Mais recentemente, surgem subáreas da gastronomia, como a gastronomia funcional e a gastronomia hospitalar. Essas abordam um aspecto bastante delicado – promover alimentação prazerosa, mas também trazer saúde e qualidade de vida. A gastronomia hospitalar tem o foco em elaborar alimentos palatáveis para pacientes com restrições alimentares a nível hospitalar, dentre eles pacientes com doença renal crônica. Essa área é de extrema importância para ajudar o paciente a ter adesão à dieta, mesmo com as inúmeras restrições dietéticas impostas ao paciente com doença renal crônica, como restrição proteica, de sódio, de potássio e hídrica. Com tamanhas restrições, há de se admitir que o preparo de receitas para pacientes com doença renal crônica é um desafio, mesmo para os experts em gastronomia hospitalar. De um modo geral, pode-se dizer que hoje a gastronomia e a nutrição são aliadas com o GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 18 objetivo de garantir a saúde dos indivíduos. 19 GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 20 2 GASTRONOMIA APLICADA A PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA Introdução A doença renal crônica é uma condição crítica e com possibilidade de evolução, o que torna ainda mais urgente a necessidade de adesão às recomendações nutricionais. Contudo, grande parte dos pacientes tem dificuldade em seguir as restrições dietéticas, visto que tendem a ser numerosas (ex.: restrição proteica, hídrica, de sódio, de fósforo, de potássio etc.), pouco práticas (ex.: alimentos sempre cozidos em caso de restrição de potássio e naturais, evitando industrializados) e pouco palatáveis (ex.: restrição de sódio, proteica e hídrica). Como resultado, observa- se que muitos pacientes com doença renal crônica não seguem as recomendações e, em razão disso, têm um pior prognóstico da doença, com uma evolução mais acelerada do que o esperado, bem como com aumento do risco de comorbidades e de mortalidade. Nesse cenário, a gastronomia focada nesse público é de extrema relevância para favorecer a adesão do paciente à dieta, resultando em um melhor controle da doença e em um melhor prognóstico. GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 21 Não obstante, esse recurso permite maior variação da dieta, tornando a alimentação menos monótona e mais nutritiva, de modo a alcançar as necessidades nutricionais do paciente, mas sem comprometer a aplicação das restrições dietéticas necessárias. Essa estratégia pode, ainda, permitir com que o paciente consuma alimentos que gosta, mas com substituições que sejam coerentes e não agravem o quadro clínico do paciente. Abordar a gastronomia voltada a pacientes com doença renal crônica é justamente o objetivo da presente seção. Restrições dietéticas e alternativas Restrição de potássio A necessidade de restrição de potássio não é unânime entre os pacientes, mas é necessária para os que apresentam hipercalemia. Nesse cenário, sugere-se o consumo de alimentos que não tenham quantidades excessivas de potássio, bem como o cozimento em água de vegetais – processo que reduz cerca de 60% do potássio presente nos alimentos. Apesar do que se pensava no passado, não há necessidade de desprezar a água da cocção e cozinhar o alimento novamente, sendo que apenas uma vez fazendo esse processo (cocção em água) já é suficiente. Vale salientar que a cocção a vapor ou outro método que não seja cocção em água devem ser evitados por não serem tão efetivos na redução do potássio dos alimentos. Esse processo aplica-se a frutas, apesar do baixo grau de aceitação a frutas cozidas. Para melhor adesão, pode-se acrescentar ingredientes à preparação, como especiarias (ex.: canela) e/ou caldas (ex.: groselha ou caramelo). Vale lembrar que a última opção (acréscimo de caldas) não é pertinente para pacientes com alteração glicídica (ex.: diabetes mellitus). Atenção especial nesse quesito deve ser destinada a pacientes submetidos à diálise GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 22 peritoneal, em que o dialisato tende a ser rico em glicose. Restrição de sódio O uso de especiarias, condimentos e temperos é um recurso bastante interesse para pacientes com doença renal crônica, já que a dieta deve ser restrita em alimentos industrializados (temperos e molhos prontos, exemplo: shoyu e ketchup) e em sódio. Além de ofertar sabor aos alimentos, esses recursos ainda favorecem o aspecto e o aroma das preparações, despertando o paladar. Ademais, essas opções podem oferecer características funcionais e favorecer a saúde e qualidade de vida do paciente. Por exemplo: a canela, cujo nome científico é Cinnamomum verum, tem papel hipoglicemiante e hipolipidemiante, interessante para pacientes com alterações glicídicas e lipídicas. Deve-se ter apenas cautela com o uso de plantas, temperos e condimentos que possam ter caráter diurético, como Hibiscus sabdariffa (hibisco) e Petroselinum crispum (“salsinha”). O sal light não é uma opção interessante para pacientes com doença renal crônica em restrição de sódio. Isso porque, apesar desse produto ter menos sódio, ele tem mais potássio do que o convencional. Como discutido em outros materiais, pacientes com doença renal crônica apresentam importante tendência à hipercalemia, em virtude do prejuízo na excreção renal de potássio. Nesses termos, deve-se evitar o uso de tal produto (sal light), pois ele pode favorecer o quadro de hipercalemia – o qual tem repercussões drásticas ao paciente com doença renal crônica. Para esse público, a alternativa é reduzir a inclusão de sal, tentando substitui-lo por temperos naturais que não comprometam o quadro. Restrição de açúcares Pacientes com alterações glicídicas devem evitar o consumo de açúcares e carboidratos GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 23 refinados, não incluindo açúcares nos alimentos sempre que possível ou colocando pequenas quantidades. O uso de adoçantes pode ser necessário, mas deve-se evitar os do tipo sacarina e ciclamato sódico para não ingerir excesso de sódio. Restrição de gorduras saturadas Para pacientes com dislipidemias, é interessanteevitar o consumo de gorduras saturadas, as quais vinculam-se ao desenvolvimento de eventos cardiovasculares. Nesse cenário, deve-se priorizar fontes de ácidos graxos insaturados, como o azeite de oliva, ao invés de fontes de ácidos graxos saturados, trans, hidrogenados ou interesterificados, como manteiga, margarina, banha de porco e gordura do coco. Restrição de proteínas e de fósforo Para pacientes que precisem de restrição proteica e de fósforo, sugere-se a redução do consumo de alimentos de origem animal (a exemplo de carnes, ovos e laticínios), os quais tendem a fornecer mais proteínas do que os alimentos de origem vegetal. Nesse cenário, uma dieta vegetariana ou vegana poderia ser interessante para esses pacientes, favorecendo o controle da doença e retardando sua evolução. Restrição hídrica Pacientes em restrição hídrica devem considerar não somente a ingestão de líquidos (exemplo: água, sucos, vitaminas e chás), mas também o teor de água presente nos alimentos, bem como preparações com muitos líquidos (exemplo: caldos e sopas). Se o caso, deve-se preferir frutas, verduras e legumes com menor teor de água. Evitar alimentos muito salgados e muito temperados é uma forma de evitar o processo de sede intensa e o aumento da ingestão de líquidos. Alimentos que estimulem a salivação, como limão, também podem ser utilizados, inclusive em preparações, de modo a fornecer sensação refrescante ao paciente e mitigar a dificuldade em manter a restrição hídrica. 24 GASTRONOMIA PARA PACIENTES COM DOENÇA RENAL CRÔNICA 25 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVARENGA, M., FIGUEIREDO, M., TIMERMAN, F.; ANTONACCIO, C. Nutrição comportamental. 2ª Ed. São Paulo: Manole. 2019. COZZOLINO, Silvia M. Franciscato (Org.). Biodisponibilidade de nutrientes. 6. ed., atual. e ampl. Barueri: Manole, 2020. COZZOLINO, SMF; COMINETTI, C. Livro: Bases bioquímicas e fisiológicas da nutrição, nas diferentes fases da vida, na saúde e na doença. Ed. Manole, 1ª edição, 2013. CUKIER, Celso; CUKIER, Vanessa. Macro e micronutrientes em nutrição clínica. São Paulo: Manole, 2020. CUPPARI, L. Guias de medicina ambulatorial e hospitalar da EPM-UNIFESP: Nutrição clínica no adulto. 3ª ed. Manole: São Paulo, 2014. CUPPARI, L. Nutrição nas doenças crônicas não-transmissíveis. 1ª ed. Manole: São Paulo, 2009. MAHAN, L. Kathleen; ESCOTT-STUMP, Sylvia; RAYMOND, Janice L. (Ed.). Krause alimentos, nutrição e dietoterapia. 13. ed. São Paulo: Saunders Elsevier, c2013. 26
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