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+ História Quando a Espanha quis invadir Portugal Ciência Vida e obra de Stephen Jay Gould Entrevista Louis Menand, arte e poder Por Sebastião Bugalho A vitória amarga de Montenegro A Revista do Expresso EDIÇÃO 2681 15/MARÇO/2024 E 3 E O ÓSCAR VAI PARA... ANDRÉ VENTURA O PSD TEVE O AZAR DE GANHAR AS ELEIÇÕES. O PS TEVE A SORTE DE PERDER AS ELEIÇÕES o discurso de agradecimento pela vitória, Ventura poderia dizer que agradece o triunfo ao povo português. O mesmo povo que, 50 anos depois do 25 de Abril, celebra a ideia de que a democracia falhou. E passou ao lado da sua vida. Um milhão de fascistas? O Chega nem é um partido fascista, embora tenha uns exemplares. O Chega é um partido populista, autoritário na génese e no conteúdo, com uma ideologia orgânica e embrionária, em processo formativo, por afirmação negativa e combate das ideologias dominantes, estando alinhado com o resto dos partidos populistas europeus. Pode dizer-se que, comparado com os ultramontanos do partido Republicano nos Estados Unidos, o Chega é um partido civilizado. Pode. Mas não deve. Porque o Chega vai continuar a crescer, e como vai crescer e para onde é uma incógnita. Crescerá tanto quanto o deixarem e vão deixá-lo crescer muito. Estamos a ver um adolescente anormalmente alto e forte que não sabemos como será em adulto. É isto o Chega, um rapaz que começa a transformar-se num homem. Será um desordeiro e um bully, sempre à tareia, ou tornar-se-á um adulto responsável que defende um modelo de sociedade diferente e é capaz de o concretizar por eliminação impiedosa dos adversários? A idade adulta do Chega só será evidente quando acontecer o que acontece em França, quando aparecer um partido ainda mais radical à direita do que o Chega. Quando o Chega tiver dissidências com características assustadoras, totalitárias e exterminadoras como as do século XX. Agora, são as dores do crescimento, mas o crescimento é uma força da natureza. Os outros partidos não o podem deixar sem alimento ou a morrer de fome. Quer isto dizer, não o podem ilegalizar. Também não lhe devem dar vitaminas, o que decerto acontecerá pelo mútuo desentendimento entre PS e PSD. O povo, não todo, mas uma parte substantiva, votou e votará no Chega, e reparem neste tempo futuro porque ele é uma possibilidade a contar. PS e PSD juntos têm mais de metade do país, têm quase 60 por cento. Assim calculados, os 18 por cento do Chega não parecem muito, são claramente inferiores a 60 por cento. Com mais ou menos números dos pequenos partidos, o que percebemos é que o Chega precisa de um parceiro, não vai lá sozinho. Por enquanto. Pode escolher entre dois modelos de existência democrática. Um seria o combate puro e simples, o insulto diário, a humilhação dos partidos liberais, a perpétua vituperação da “esquerda”, o aproveitamento da insatisfação com dois partidos que não conseguiriam governar um sem o outro em miúdos concertamentos de mútua vantagem. Mesmo assim, o Chega cresceria, mas demoraria. E Ventura é impaciente e, iluminado pelo seu génio político nestes meses, no qual acredita, perder tempo e esperar não é a sua missão. O segundo modelo é mais complexo e traria mais poder imediato e menor autonomia. Consiste em derrotas da chamada ingovernabilidade, a incapacidade de aprovar e executar um programa e um orçamento. O PSD continua a prometer o que não pode dar, uns amanhãs que cantam, e a não dizer a verdade. A tarefa é ciclópica. O PSD teve o azar de ganhar as eleições, não com margem suficiente. O que conhecemos de Ventura é exasperação e impaciência. E eficácia, agora com um milhão de pessoas atrás dele. Entretanto, por essa Europa fora, a direita vai ganhando terreno. Ventura ainda nem sequer se meteu na política internacional e lá chegará o dia de alinhar com a família europeia. Bruxelas tinha um único trabalho, deixar a Europa de fora de uma guerra fratricida e fazer valer a diplomacia. Em vez disso, atirou a Ucrânia para uma guerra que nunca ganharia, em nome de uma NATO disfuncional e de promessas de armas e dinheiro sem fim. E quer rearmar a Alemanha para entrar em guerra com a Rússia. Um plano que agrada aos militares neutralizados, ao lobby da indústria das armas e aos pupilos do Pentágono. Quando os políticos começarem a dizer que o futuro que reservam aos jovens europeus é o serviço militar e a guerra perpétua, veremos o que estes respondem num planeta devastado. A Europa não é Israel, não está preparada para a militarização da juventude e da sociedade produtiva. A guerra perpétua contra a maior potência nuclear, não faz sentido. Jovens de extrema- esquerda e extrema-direita, e retirem o extrema da equação, teriam um terreno comum, a oposição ao militarismo compulsivo e à destruição do continente. As ruas estariam cheias. A propaganda liberal numa América onde Trump ganhe move-se no teatro do absurdo. E mesmo que Trump não ganhe, o problema não desaparece. Biden pode ter o azar de ganhar as eleições e assistiremos à agonia violenta da democracia americana. O problema não desaparece com a vitória de um homem no fim da vida ou a derrota de um Trump enjaulado ou arruinado. Pelo contrário, o problema torna-se medonha ameaça. Ganhar as eleições começou a ser má sorte. O carro da democracia liberal precisa de revisão. Os liberais, lá como cá, acham que têm sempre razão. Nenhuma humildade preside às derrotas gerais. E assim, circulando entre ruínas, incluindo as do jornalismo convencional, os descontentes crescem. Sem precisarem de governar, são invencíveis. Se governarem, serão irreconhecíveis. b N minar o PSD e o seu chefe até o tornar refém do seu poder, apeando-o e substituindo-o, ou convencendo-o a governar com o seu apoio, impondo as drásticas condições e isolando a esquerda de vez. O PSD teve o azar de ganhar as eleições. O PS teve a sorte de perder as eleições. Um ganhou por pouco e outro perdeu por pouco. Estranhamente, e por hábito, os respetivos prosélitos passaram uma parte da noite a acusar o outro de ter perdido, enquanto o elefante na sala ia partindo a loiça toda. Fizeram dois bons discursos de vitória e de derrota, vazios de conteúdo prático. O PS insiste que vai ser oposição, mas se um governo da AD for ao chão, o Chega ganhará mais votos. Se olhar bem para os resultados, o partido perceberá que o PS perdeu mais do que votos e eleitores, perdeu o país depois de uma maioria absoluta. O discurso da superioridade moral da esquerda, em que o PS continuará a insistir, não lhe trará votos no futuro. Teria sido um ato político de qualidade reconhecer isto, dizer a verdade para variar, mas o PS tem dificuldade em perder. Não está habituado. Procurará ainda um bode expiatório para a derrota, e se o achar no Presidente, cometerá mais erros. Pedro Nuno Santos, que é inteligente e tático embora os adversários o queiram fazer passar por leviano, e sendo jovem e estando a crescer e aprender dentro do próprio partido, tal como Ventura, não cometerá o erro de acusar o maior aliado histórico que o PS teve até hoje. Imaginem que o famoso parágrafo não existia. António Costa não se demitia. Qual seria, depois de escândalos, indecisões e trapalhadas como aquelas a que assistimos durante o reinado terminal da maioria absoluta e de uma arrogância ainda mais terminal, a atitude do primeiro-ministro perante a descoberta dos 78.500 euros no gabinete ao lado do seu? Dizia que não sabia e ficava tudo na mesma? Terminava o mandato em paz e sossego? Não. A progressiva deliquescência e paralisia do Governo arrastariam uma votação no Chega superior à que teve nestas eleições, e provavelmente arrastaria o regresso de Pedro Passos Coelho e o afastamento de Montenegro. O Presidente comentou em demasia, mas a derrota do PS, que serve a sobrevivência do PS, não é culpa dele. Essa mania católica da culpa não serve. O chefe do PS fará bem em demarcar-se dos fracassos anteriores e trilhar outro caminho. O PS seráoposição, claro, mas terá de medir como e quando será oposição, porque o país não lhe pertence inteiro. Nada será como dantes, segundo o lugar-comum. Um partido pode ser oposição durante anos e nada ganhar, definhando. O PS não está habituado a travessias do deserto, está habituado a autoestradas. Para o PS seria mais fácil ter Passos Coelho do outro lado, porque a atitude conciliadora de Montenegro, visível no discurso, lhe trará problemas. Guina mais à esquerda e perde votos. Tudo depende do modo como Montenegro e os seus copilotos conduzirem o carro. Se se mantiverem na estrada, passe a imagem, o PS será acusado de provocar o acidente, acolitado por uma extrema-esquerda sem expressão. Se saírem da estrada, mais facilmente acusarão o PS ou o Chega. E o Chega tudo fará para minar Montenegro. Tudo. Se o PS ajudar, Montenegro sairá de cena depois de / CLARA FERREIRA ALVES P L U M A C A P R I C H O S A NotíciasFlix LISBOA - Av. da Liberdade 204 www.vancleefarpels.com - +351 210732290 A primavera está a florescer E 6 fisga +E Culturas Vícios CRÓNICAS FICHA TÉCNICA Diretor João Vieira Pereira Diretor-Adjunto Miguel Cadete mcadete@impresa.pt Diretor de Arte Marco Grieco Editor Ricardo Marques rmarques@expresso.impresa.pt Editor de Fotografia João Carlos Santos Coordenadores Lia Pereira lipereira@blitz.impresa.pt Luís Guerra lguerra@blitz.impresa.pt Coordenadores Gerais de Arte Jaime Figueiredo (Infografia) Mário Henriques (Desenho) 9 | Florestas As áreas florestadas estão a encolher tanto em Portugal como no resto do mundo. Assim como a água 12 | O Que Eu Andei Para Aqui Chegar Um currículo visual de Da’Vine Joy Randolph 14 | Planetário Uma princesa no circo Por João Pacheco 18 | Ideias A ameaça da política messiânica Por Ian Buruma 20 | Luís Montenegro O custo de ganhar uma eleição 34 | Stephen Jay Gould O percurso inesperado de um historiador e estudioso da evolução humana 40 | Louis Menand Entrevista ao crítico e historiador norte-americano, vencedor de um Pulitzer e colaborador regular da “New Yorker” 49 | “Metade-Metade” A parceria entre a fadista Aldina Duarte e a rapper Capicua 52 | Yoko Ono A exposição na Tate Modern, em Londres, convida a compreendê-la 54 | Livros “A Fraude”: primeiro romance histórico de Zadie Smith 58 | Cinema Dois filmes mostram o Brasil em carne viva 60 | Televisão “A Donzela”, uma aventura medieval para Millie Bobby Brown 62 | Música Sérgio Godinho celebra os 50 anos da Revolução de Abril 66 | Teatro & Dança Edward Albee no palco do Trindade 68 | Exposições A pintura de Cruz-Filipe na Gulbenkian 71 | Livrarias Muitas delas são mais do que espaços para vender livros 74 | Receita Por João Rodrigues 75 | Restaurantes Por Fortunato da Câmara 76 | Vinhos Por João Paulo Martins 77 | Recomendações De “Boa Cama Boa Mesa” 78 | Design Por Guta Moura Guedes 79 | Tecnologia Por Hugo Séneca 81 | Passatempos Por Marcos Cruz 3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 16 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes 48 Os Cadernos e os Dias por Gonçalo M. Tavares | 70 Fraco Consolo por Pedro Mexia 80 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 82 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira 26 Invasão O ‘perigo castelhano’ foi sempre uma constante e Franco também fez planos para invadir Portugal. Mas a derrota da Alemanha nazi trouxe-o de volta à realidade E D I Ç ÃO 26 81 | 1 5 / M A R Ç O / 2024 FOTOGRAFIA DA CAPA: JOSÉ FERNANDES S T F /A F P V IA G E T T Y IM A G E S S U M Á R I O E 9 Há milénios que os humanos andam a cortar árvores. Se inicialmente o faziam para se aquecerem e construírem alojamentos, nos últimos 200 anos o principal condutor da desflorestação tem sido a expansão urbana e agrícola. E com a população humana a caminho dos 10 mil milhões, o verde que cobre a Terra vai encolhendo. No início do século XX, essa mancha estendia-se por 48% das regiões num planeta então habitado por 1,65 mil milhões de pessoas. Chegados a 2018, quando já por cá viviam 7,6 mil milhões, a mancha encolheu para 38% — menos cerca de mil milhões de hectares arborizados, de acordo com dados da plataforma Our World in Data. E a razão de tal desflorestação está sobretudo ligada ao que produzimos e comemos, sem olhar aos outros serviços que as árvores nos dão. AS ÁREAS FLORESTADAS MUNDIAIS CONTINUAM A ENCOLHER E EM PORTUGAL TAMBÉM. NUMA ALTURA EM QUE O PAÍS ESTÁ PINTADO DE LARANJA, ROSA E PRETO, O VERDE QUE NOS DÁ SOMBRA, AR E ÁGUA CONTINUA A ESVAIR-SE TEXTO CARLA TOMÁS INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO A árvore dá vida fisga “Q U E M S A B E T U D O É P O R Q U E A N DA M U I TO M A L I N F O R M A D O” E 10 No início do século XXI, as árvores já só cobriam um terço da área terrestre habitável, tendo desaparecido globalmente 150 milhões de hectares de floresta só na década de 1980 (o equivalente a metade da Índia), segundo o observatório Global Forest Watch. O planeta continua a perder grandes fatias de floresta, sobretudo nos trópicos, para dar lugar a culturas de soja, óleo de palma, cacau, pasto para gado ou operações mineiras, que servem para satisfazer a procura dos países mais ricos. Assim desapareceram seis milhões de hectares por ano de floresta nas duas primeiras décadas deste século na América Latina e no Sudeste Asiático. Só em 2022 esvaiu-se uma área de floresta tropical do tamanho da Suíça (4,1 milhões ha), o que levou à libertação de 2,7 mil milhões de toneladas de carbono. Nesse ano, o Brasil liderou a desflorestação mundial (ver gráfico). “O que acontece na floresta não fica na floresta”, lembrou então a perita do GFW Frances Seymour, alertando para as consequências em cascata com o aumento das temperaturas, ondas de calor e secas, ameaçando a atividade agrícola e a saúde humana. Para tentar travar o problema e reverter a desflorestação até 2030, 145 países assinaram um compromisso na conferência do Clima de Glasgow, em 2021. Porém, com pouco sucesso até agora. Em 2022, a desflorestação aumentou globalmente 10% face ao ano anterior. Com Lula da Silva no poder, o Brasil aderiu ao compromisso e conseguiu diminuir a desmatação na Amazónia em 62% em 2023 face a 2022, mas no Cerrado aumentou 43%. Só o Canadá viu as chamas devastarem 9,5 milhões de hectares — uma área equivalente a Portugal inteiro — em 2023, o que é também preocupante porque as florestas boreais da América do Norte ou da Europa armazenam 30 a 40% do carbono terrestre. Cerca de 35% da área territorial europeia (227 milhões de hectares) é ocupada por floresta e esta aumentou 9% em 30 anos, segundo o Relatório sobre o Estado da Floresta na Europa 2020. Porém, em Portugal, na Bósnia, na Albânia e na Suécia a tendência foi de decréscimo. PORTUGAL PERDE Dados do Global Forest Watch, publicados em 2019, indicavam que Portugal perdeu 24,6% da floresta entre 2001 e 2014, colocando-o no topo dos países com maior perda de coberto arbóreo, o que era justificado por conversões urbanas, turísticas e industriais, pela construção de infraestruturas rodoviárias e pelos incêndios (sobretudo os de 2003 e 2005). No mesmo ano, Portugal publicou o 6º Inventário Florestal Nacional com base em dados de 2015 e apontava para que “a tendência de diminuição de área de floresta verificada desde 1995 se inverteu em 2015, com um ligeiro aumento de 60 mil ha (+1,9%)”. Por estes dias só se pensa no país em tons de laranja, rosa e negro, mas o verde dos espaços florestais (incluindo árvores, matos e terrenos improdutivos) pintava em 2015 dois terços do território continental (6,1 milhões de hectares), sendo que 36% eram terrenos arborizados. De O novo inventário florestal vai avançar este ano e o concurso público para o efeito foi aberto a 26 de fevereiro último. Agora, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) vai juntaresforços com a Direção-Geral do Território “para não haver discrepâncias na informação recolhida entre as duas entidades e permitir ter informação detalhada sobre vegetação, biomassa, altura das árvores e capacidade de sequestro de carbono”, esclarece ao Expresso o coordenador do inventário, José Sousa Uva. O especialista do ICNF sublinha que “a floresta portuguesa tem uma grande capacidade de resiliência”, apesar de ser com frequência fustigada por incêndios e ter problemas de fitossanidade, associada sobretudo ao nemátodo do pinheiro. Mas nos anos mais recentes têm surgido outros problemas associados a ordens de abate de sobreiros e azinheiras por alegado “imprescindível interesse público” associado à construção de megaparques solares, barragens e outras infraestruturas rodoviárias, ferroviárias ou parques industriais. Só entre 2011 e 2023, tiveram ordem de abate perto de 35 mil sobreiros por despachos publicados em “Diário da República”. Entre os mais polémicos, esteve a aprovação do corte de 1821 sobreiros para viabilizar o Parque Eólico de Morgavel, perto de Sines. Lembraram então os ambientalistas que a produção de energia renovável não pode ser pretexto para degradar o território, afetar a biodiversidade e a redução do sequestro de carbono. Ainda sem dados do inventário, vão sendo feitos alguns estudos, como os da equipa do MED — Instituto Mediterrâneo para a Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento, coordenados pelo investigador Nuno Guiomar, que apontam para “uma perda em área de todas as espécies arbóreas entre 2020 e 2023”. Neste período, esclarece ao Expresso, “perderam-se 55 mil hectares de pinheiro, sobretudo devido a incêndios e doenças, e 22 mil hectares de eucaliptal, por não ser rentável em todo o lado”. Os cálculos apontam também para “perdas de 1000 a 2000 hectares por ano de sobreiro e azinheira, sobretudo devido à seca e a um declínio lento potenciado pela atividade humana”, explica o engenheiro biofísico. A segunda causa está relacionada com os incêndios e a terceira “os cortes, autorizados ou não para dar lugar a parques solares ou a áreas de regadio”, acrescenta. Nuno Guiomar esclarece também, que mesmo quando os sobreiros ou as azinheiras não são cortados, “a mobilização do solo para dar lugar a um olival intensivo acaba por afetar o sistema radicular (raízes) e as árvores acabam por morrer ao fim de alguns anos”. Por isso, receia que se venha a acentuar o declínio desta espécie emblemática nacional e defende que as medidas compensatórias “devem ser três vezes superiores às que estão a ser postas em prática” e que é preciso verificar se as plantações ou o restauro ecológico estão a vingar. Remunerar adequadamente os serviços de ecossistemas que as florestas nos prestam ao nível da produção de água, oxigénio e sequestro de carbono é necessário. b ENTRE 2020 E 2023 PERDERAM-SE 55 MIL HECTARES DE PINHEIRO, DEVIDO A INCÊNDIOS E DOENÇAS, 22 MIL HA DE EUCALIPTAL, E 1000 A 2000 HA POR ANO DE SOBREIRO E AZINHEIRA acordo com o inventário de 2015 os montados de sobro e azinho representavam um terço da floresta nacional (cerca de um milhão de hectares), seguido de pinhal (bravo e manso com cerca de 900 mil ha), e em terceiro surgiam os eucaliptais (845 mil ha). Esta avaliação também permitiu verificar que entre 1995 e 2015 se perderam 27 mil hectares de sobreiros e 264 mil ha de pinheiro bravo (maioritariamente devido aos incêndios) e que o eucalipto cresceu 128 mil ha. Só em 2015 é que surgiu regulamentação para travar a expansão de eucalipto. fisga Floresta Matos e pastagens Agricultura Territórios artificializados Águas interiores Improdutivos 36 31 24 5 2 2 OCUPAÇÃO DO SOLO NACIONAL EM 2015 Em % Sobreiro e azinheira Eucalipto Pinheiro bravo Pinheiro manso Outras folhosas Outras resinosas 2020 2023 860.284 856.323 808.459 786.203 421.754 367.135 136.301 121.674 437.405 424.962 19.188 16.818 VAR. 2020/23 -3960 -22.256 -54.619 -14.627 -12.443 -2371 FONTE: DGT ÁREA DE FLORESTA EM PORTUGAL Em hectares Brasil R. D. Congo Bolívia Indonésia Peru Colômbia Laos Camarões 1773 (43%*) 513 386 (32%**) 230 161 128 93 76 PAÍSES COM MAIOR PERDA DE FLORESTA HÚMIDA PRIMÁRIA EM 2022 Em milhares de hectares *da perda mundial deste tipo de floresta **aumento de 32% face a 2021 FONTE: STATISTA FONTES: RELATÓRIO DO 6º INVENTÁRIO FLORESTAL NACIONAL (2019) ICNF REVELA POTÊNCIA Gama Range Rover Sport 24MY: consumo combinado WLTP 0,6-12,5 l/100 km, emissões combinadas de CO₂ WLTP 15-282 g/km. Valores obtidos nos testes oficiais do fabricante com uma bateria carregada de acordo com a legislação da UE. As emissões de CO₂, o consumo de combustível, o consumo de energia e a autonomia podem variar em condições reais e em função de fatores como o estilo de condução, as condições ambientais, o equipamento, a carga, o estado da bateria e o percurso. Valores de autonomia baseados num veículo standard num percurso normalizado. E 12 Da’Vine Joy Randolph O Óscar de Melhor Atriz Secundária, pelo papel em “Os Excluídos”, em exibição em Portugal, coroa o percurso de Da’Vine Joy Randolph, que tem passado pelo teatro musical, pelas séries e também pelos filmes de animação. Após receber o Óscar, disse que o mesmo é “uma carta de amor às mulheres negras”. / LIA PEREIRA O Q U E E U A N D E I PA R A A Q U I C H E GA R U M C U R R Í C U LO V I S UA L D A N N Y M O LO S H O K /R E U T E R S 1986 Alegria divina Nasce em Filadélfia, nos Estados Unidos, no dia 21 de maio. Felizes com a chegada da bebé, os seus pais, que tentavam conceber há sete anos, chamaram-lhe Da’Vine Joy, ou seja, “alegria divina”. 2011 Teatro musical Depois de estudar canto e ópera, acaba por mudar de curso e concentrar os seus esforços na aprendizagem de teatro musical. Em 2011, recebe o ‘canudo’ da Escola de Representação de Yale. 2012 Da Broadway para Londres Candidata-se a um lugar no elenco do musical da Broadway “Ghost”, que iria subir ao palco no West End de Londres. Quando a protagonista da peça sofre uma lesão, voa para Inglaterra para substituí-la. Acaba por ser nomeada para um prémio Tony, por Melhor Atriz num Musical. 2013 Robin Williams Participa no seu primeiro filme, “Mother of George”, como atriz secundária. No ano seguinte, desempenha o papel de uma enfermeira na comédia dramática “Aproveita a Vida, Henry Altmann”, com Robin Williams. 2016 Mundo das séries Depois de integrar o elenco de séries como “The Good Wife”, garante uma participação recorrente em “This Is Us”, como Tanya. Participará, também, em “Empire” e “Veep”. 2019 Eddie Murphy Chama as atenções com o seu papel como Lady Reed em “Dolemite Is My Name”, com Eddie Murphy. É nomeada para numerosos prémios, como atriz secundária, e assegura lugar em filmes como “Alta Fidelidade”, em 2020, ou “The United States vs. Billie Holiday”, em 2021. 2022 Gato das Botas Da’Vine Joy Randolph tem também emprestado a sua voz a personagens de filmes de animação. Em 2022, dá vida a Mama Luna, uma senhora que abriga dezenas de gatos vadios, em “Gato das Botas: o Último Desejo”. 2024 O primeiro Óscar O papel como Mary Lamb, cozinheira de uma escola que perdeu o filho na Guerra do Vietname, rende-lhe o Óscar de Melhor Atriz Secundária. “Sempre quis ser diferente; afinal, só preciso de ser eu própria”, agradeceu, emocionada. fisga E 14 Esta imagem é do vídeo de 2022 “Caminho para as Estrelas”, de Mónica de Miranda. E a partir de 20 de setembro fará parte em Lisboa da exposição “Linha de Maré”. Com obras da Coleção do CAM, o Centro de Arte Moderna Gulbenkian. De autores como Ana Jotta, Artur Cruzeiro Seixas ou Paulo Nozolino. M Ó N IC A D E M IR A N D A P H OTO M ATO N EDIMBURGO A voz de Youssou N’Dour tem poderes curativos contra a xenofobia, por exemplo na música ‘7 Seconds’, cantada com Neneh Cherry. E o músico senegalês estará em Edimburgoa 13 de agosto, às 20h, no Usher Hall. Antes e depois, de 2 a 25 de agosto, serão muitas as estrelas a passar pelo Edinburgh International Festival. Há espaço também para teatro, dança, ópera e música clássica. E para músicos como The Magnetic Fields, Chilly Gonzales ou Cat Power. Tudo boa medicina. BRUXELAS Em 1937, a guerra alastrava em Espanha. E Max Ernst pintou assim a monstruosidade do franquismo. Agora e até 21 de julho, esta pintura festeja em Bruxelas os 100 anos do surrealismo, contados a partir da publicação em 1924 do “Manifeste du Surréalisme”. É na exposição “Imagine!” do Musées Royaux des Beaux-Arts de Bel- gique, com obras de artistas como Giorgio de Chirico, Joan Miró, Leonor Fini, Man Ray e Salvador Dalí. FLASHES VENEZA Estrangeiros em toda a parte C LA IR E F O N TA IN E só, um bom momento para contrariar este vírus será a próxima exposição internacional de arte da Bienal de Veneza, de 20 de abril a 24 de novembro. A curadoria é de Adriano Pedrosa, diretor do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. E incluirá obras de artistas como Candido Portinari, Claudia Andujar, Diego Rivera, Frida Kahlo, Kiluanji Kia Henda, Lina Bo Bardi, Malangatana e Tina Modotti. E do duo parisiense baseado em Palermo Claire Fontaine, que tem trabalhado em dezenas de línguas a frase “Stranieri Ovunque”. Significa “Estrangeiros em Toda a Parte” e é também o mote global desta edição da Bienal de Veneza. Sim, bem sei que o vírus está forte. Mas nunca é tarde. A xenofobia é um vírus. Pode espalhar-se em qualquer corpo, mas ganha mais força quando encontra sociedades em crise. O vírus do ódio aos estrangeiros e ao estranho navega por séculos e atravessa continentes e gerações. Talvez seja eterno, mas pode ir sendo parado, curado e prevenido. Viajar ajuda muito, viver fora também. Mesmo em casa e em qualquer fase da doença, recomenda-se a exposição a tudo o que seja estrangeiro. Afinal, somos todos estrangeiros. Como percebemos ao fim de pouco tempo, porque o tratamento funciona mesmo. Perante o crescimento da xenofobia cavalgada pela extrema-direita na Europa e não T H E N A T IO N A L G A L L E R Y , L O N D O N LONDRES — CHICAGO Uma princesa no circo Era uma princesa vinda de África. E perdera a liberdade, sendo vendida como escrava. Aliás, a estrela de circo Miss La La nasceu na Prússia, numa cidade que agora é polaca. E tinha 21 anos quando foi assim retratada em janeiro de 1879, com beleza e força, pelo pintor Edgar Degas. Chamava-se Anna Albertine Olga Brown e era filha de pai negro e de mãe branca. A propósito, a mãe de Degas era de Nova Orleães. E quando conheceu Miss La La, o pintor já viajara sete anos antes até Nova Orleães, onde conheceu uma parte da família. Já a suposta origem desta artista de circo foi apenas um dos rumores postos a circular, com o objetivo de vender mais bilhetes. Durante quatro noites seguidas, Degas foi um dos interessados no espetáculo do Cirque Fernando, perto da Place Pigalle. E dessas noites nasceu esta pintura a óleo, depois de vários estudos feitos com carvão, lápis e pastel. E com a ajuda de um desenhador de arquitetura, para que o teto do circo ficasse mais próximo da realidade. Além de ser apresentada como Miss La La, a protagonista era também conhecida como La Femme Canon ou La Mulatresse-Canon. Chamavam-lhe a Mulher Canhão ou a Mulata Canhão porque uma das proezas mais impressionantes passava por aguentar o peso de um canhão suspenso, só com os dentes e os maxilares. A partir de 6 de junho e até 1 de setembro, esta história será contada em Londres através de pinturas, desenhos e fotografias, na exposição “Discover Degas & Miss La La”, na National Gallery. Esta pintura de Miss La La criada por Degas serviu de inspiração ao escultor Juan Muñoz (1953-2001), que criou uma série de esculturas de homens pendurados por cordas, pela boca. Já no mesmo circo onde Degas conheceu em Paris a leveza e a força de Miss La La, os pintores Henri de Toulouse-Lautrec e Pierre-Auguste Renoir terão ficado interessados em outras cenas circenses. De Toulouse-Lautrec, pode ser vista no Art Institute of Chicago a pintura “Equestrienne”, que mistura humor com cavalaria. E no mesmo museu em Chicago lá estão as irmãs acrobatas Francisca e Angelina Wartenberg, retratadas por Pierre-Auguste Renoir. O circo era outro mundo. Com um lado carnavalesco, que bem podia significar liberdade. b P L A N E TÁ R I O N O C A M I N H O DA S E S T R E L A S P O R J OÃO PAC H E C O fisga E 16 A IA PODE MATAR A DEMOCRACIA JÁ EM 2024 NÃO ACREDITO EM NADA QUE VEJO E OUÇO. TUDO O QUE UM POLÍTICO DIZ É FALSO. OU NÃO. A VERDADE MORREU á umas semanas, começaram a surgir nas redes sociais americanas umas imagens de Trump, sorridente, sentado num alpendre com uma família negra a posar feliz. A legenda alegava que o candidato a Presidente tinha parado a sua comitiva para conviver com aquelas pessoas. Acontece que essa e outras imagens similares eram falsas — criadas por inteligência artificial. Nem sequer foram produzidas pela sua campanha, mas por um radialista pró-Trump. E foram denunciadas. Mas Trump não teve problema em as publicar sem nenhuma referência a serem falsas. Nem essas nem as de ele a rezar ajoelhado com a luz da catedral a bater-lhe na cara a dar-lhe um toque de santidade (embora tivesse seis dedos). Ou a posar ao lado de Martin Luther King numa foto a preto e branco, supostamente em 1968, embora Trump só tenha aí menos uns 15 anos do que tem agora. Para quê desperdiçar imagens tão boas, se bem que falsas? Há dias, um movimento republicano anti-Trump fez uma recolha de imagens em que se vê o ex-presidente a “quase cair, a perder-se no discurso, a enganar-se vezes sem conta e a dizer patetices” — exatamente do que acusa o seu adversário Joe Biden. Trump reagiu a dizer que se tratava de imagens falsas feitas por inteligência artificial só para o fazer tão patético como Biden. Não eram. Eram verdadeiras. Como ninguém, Trump sabe usar o que se chama de “dividendo do mentiroso”. O mentiroso ganha sempre. Já foi assim com as fake news. Quando o acusaram de as disseminar, ele acusou os adversários de serem os criadores das fake news, até ninguém perceber do que se falava. Uma coisa a ter em conta. As ferramentas que esta “IA bebé” está a disponibilizar são incríveis e este é o ano em que metade da população do planeta vai a votos. Uns 80 países. Dos EUA ao México, passando pela Índia até à UE. Já tínhamos atingido um grau de desinformação tão grande que se afirmava que talvez se tenha criado o “cidadão apático” perante a existência da verdade ou da mentira. Não estamos preparados para o potencial de estragos que a IA pode ter nos processos eleitorais. Exagero? O único local onde Biden perdeu as primárias foi na Samoa. Um investidor de capital de risco em tecnologia garante que gastou apenas uns milhares de dólares num programa banal de IA e colocou lá uma equipa de cinco pessoas, o que bastou para vencer as eleições. Nunca pôs os pés na ilha do Sul do Pacífico, mas usou bots diferenciados com a voz do candidato a telefonar aos votantes. Deveria ser um aviso. As eleições de junho na União Europeia vão ser um teste. As empresas de tecnologia deram a sua palavra de que iam agir e a comissão aprovou uma lei toda XPTO. Mas os críticos dizem que não há orçamento para contratar ‘Oppenheimers’ para criar defesas efetivas. As eleições na Europa são uma complicação, dado o seu mosaico de 27 países, de línguas, de problemas múltiplos, contraditórios, e que resulta numa complexidade de nomes e candidaturas que torna tudo mais difícil do ponto de vista da autodefesa. Junte-se a deriva populista interna mais propensa a usar este tipo de ferramentas, a que se junta a Rússia e a China ativamente a quererem influenciar eleições, e pode dizer-se que as eleições de junho são uma incógnita quanto ao impacto da IA no processoeleitoral. Com a IA, há finalmente uma “democratização da desinformação”. O que antes só era possível com grandes orçamentos é agora acessível com poucos euros e um nerd a gerir a criação automatizada de títulos falsos, a imitar o layout dos jornais, por vezes já dirigidos a públicos definidos, por exemplo. Uma das preocupações são os deepfakes (as imagens falsas com a pessoa a falar), mas é possível que este ainda não seja o ano deles. O mais provável é aparecerem áudios falsos, dado que são mais fáceis de produzir. As aplicações são baratas — supostamente criadas para miúdos fazerem partidas —, e com apenas um discurso de um político apreendem a tonalidade, timbre, trejeitos, e podem colocá-lo a dizer qualquer coisa. A campanha eleitoral americana ainda conta com o telefone: milhões de bots podem ligar com vozes falsas a dizer o que se quiser. O que coloca o problema contrário: a partir de determinada altura, qualquer coisa criminosa que um político diga irá sempre argumentar que se trata de IA. É a total erosão da verdade. Um mundo da “pós-verdade” em que ser verdade ou não é indiferente. As imagens deixam de ter valor. Antes, dizia-se “ver para crer”. Vejo, mas decido se creio dependendo no que acredito. Isso leva a uma desconfiança total nas instituições. É o cidadão paranoico. E é aqui que a democracia começa a estar verdadeiramente em perigo. E é o que está a acontecer. As democracias em geral estão sob tensão. Se juntarmos a IA, “temos uma tempestade perfeita de desinformação”. Até agora, a IA generativa nas redes sociais tem ajudado a disseminar teorias da conspiração que se expandem a “fábricas de armas biológicas na Ucrânia” para alertar a perceção dos EUA às eleições no Paquistão ou na Eslováquia. No final de 2024, saberemos se o mundo e essa invenção americana e europeia que é a democracia resistiram à IA, aos populismos em esteroides e à ingerência de autocracias. Há um ditado de um país qualquer que vi aplicado à regulamentação da IA que dizia que enquanto a mentira dá a volta ao mundo a verdade calça os sapatos. Há quem acredite que as empresas de tecnologia vão fazer alguma coisa, ou que as leis da UE vão parar a desinformação. É uma improbabilidade. Ou que o bom senso das pessoas irá detetar o verdadeiro e o falso. Tudo aponta para o contrário. Vão acreditar no que agrade aos seus enviesamentos. Mesmo que seja uma mentira gritante. E a IA já estará no controlo. b lpnunesxxx@gmail.com H O M I T O L Ó G I C O / LUÍS PEDRO NUNES E 18 I D E I A S TEXTO IAN BURUMA AUTOR DO NOVO LIVRO “THE COLLABORATORS: THREE STORIES OF DECEPTION AND SURVIVAL IN WORLD WAR II” A AMEAÇA DA POLÍTICA MESSIÂNICA O DESEJO DE SE SUBMETER A UMA ENTIDADE SUPERIOR, DE ACREDITAR NA VIDA ALÉM DA MORTE, DE DIVIDIR O MUNDO EM CRENTES E NÃO CRENTES, E DE CELEBRAR AS FASES DA VIDA COM RITUAIS SAGRADOS É UMA CARACTERÍSTICA HUMANA UNIVERSAL. MAS O LUGAR DESSES DESEJOS NÃO É NOS DISCURSOS POLÍTICOS. AS AUTORIDADES RELIGIOSAS E POLÍTICAS NÃO SE PODEM SOBREPOR o dia 22 de janeiro, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi inaugurou o Ram Mandir, um vasto novo templo hindu em Ayodhya. “O sumo sacer- dote do hinduísmo”, nas palavras do seu biógrafo, Modi levou oferendas e bênçãos a um ídolo do Lord Ram, uma das divindades hindus mais reverencia- das, que supostamente nasceu neste local sagrado. O templo é também um poderoso símbolo político para Modi e para o seu partido no poder, Bharatiya Janata (BJP): foi construído sobre as ruínas de uma mesquita do século XVI que uma multidão de naci- onalistas hindus, incitada pelos líderes do BJP, de- moliu em 1992, provocando motins sectários que resultaram em 2000 mortos. Modi promete criar uma “nova Índia”, o que para ele significa uma Índia hindu, onde os mais de 200 milhões de muçulmanos do país serão vistos como intrusos. Na verdade, esta mistura deliberada de religião e política é inconstitucional na Índia. O primeiro primeiro-ministro indiano independen- te, Jawaharlal Nehru, bem como o líder político e espiritual Mahatma Gandhi, reconheceram o quão explosiva uma luta religiosa poderia ser numa soci- edade multirreligiosa e multiétnica, razão pela qual insistiram que a Índia fosse um estado secular. O desejo de minar o estado secular apareceu muito antes de Modi. O homem que assassinou Ma- hatma Gandhi era membro da Rashtriya Swayam- sevak Sangh, uma organização nacionalista parami- litar hindu com ligações ao BJP que desempenhou um papel importante na destruição da mesquita em Ayodhya. Em 1986, agitadores hindus aproveitaram N a decisão falaciosa do então primeiro-ministro Ra- jiv Gandhi de ceder às exigências dos muçulmanos permitindo que a lei islâmica anulasse uma decisão do Supremo Tribunal que defendia o direito de os divorciados muçulmanos receberem pensão de ali- mentos para lá de 90 dias. Usando esta exceção para fazer renascer ressentimentos hindus, esses agita- dores trouxeram o nacionalismo hindu das franjas da sociedade para o centro da política indiana. Infelizmente, Modi não está sozinho nesta de- cisão de abraçar uma política religiosa. Por incrível que pareça o ex-Presidente norte-americano, Do- nald Trump, um predador sexual obsceno, está a ser rotulado pelos seus seguidores como um salvador da cristandade, que irá limpar os Estados Unidos de esquerdistas, feministas, gays, imigrantes, elitistas liberais e outros pecadores. Um vídeo promocional recentemente publicado no site de Trump, Truth So- cial, cola-se a esta narrativa, afirmando: “Deus pre- cisava de alguém disposto a entrar no ninho de ví- boras. Denunciem as notícias falsas vindas das suas línguas afiadas como as de uma serpente. O veneno das víboras está nos seus lábios. Por isso Deus cri- ou Trump.” Os pentecostistas evangélicos, como os católicos reacionários, acreditam agora que Trump é mais do que uma figura política. O ex-Presidente foi ungido por Deus para tornar a América grande outra vez. Sim, está a ser processado por agredir uma mulher, por anular uma eleição através da violência e por cometer fraude, mas isso mostra como é um mártir perseguido por inimigos maus, tal como Jesus Cristo. E 19 A política religiosa é a maior ameaça para a de- mocracia, mais do que a desigualdade social ou eco- nómica, os políticos mentirosos ou a corrupção, que são suficientemente maus. Existem instituições de- mocráticas liberais para resolver conflitos de inte- resses. Disputas sobre impostos, uso da terra, subsí- dios agrícolas, etc., podem ser resolvidas através de discussões e compromissos entre partidos políticos. Mas os assuntos sagrados não podem. A verdade de Deus não é negociável. É por isso que um grupo religioso militante como o Hamas não pode ser um partido político democrá- tico. Num Estado islâmico radical, não há espaço para debate ou compromisso. O mesmo é válido para extremistas religiosos israelitas que acreditam que os seus direitos são justificados pela Bíblia. Os direitos da água são discutíveis; a terra sagrada não é. A questão não é tentar curar a humanidade das crenças religiosas. O desejo de se submeter a uma entidade superior, de acreditar na vida além da morte, de dividir o mundo em crentes e não cren- tes, de insultar os pecadores e adorar os santos e de celebrar as fases da vida com rituais sagrados é uma característica humana universal. Mas o lugar desses desejos é nas igrejas, templos, sinagogas e santuári- os, não nos discursos políticos. As autoridades reli- giosas e políticas não se podem sobrepor. Nehru compreendeu este conceito. Thomas Jef- ferson compreendeu este conceito. E muitos líderes cristãos, especialmente os protestantes que não que- riam que o estado secular se envolvesse em assuntos religiosos, também compreenderam este conceito. Os católicos têm tido mais problemas com a separa- ção entre a igreja e o estado, mas a maioria aprendeu a viver com ela. A razão pela qual tantas democracias estão agora ameaçadas pela política messiânicanão é porque a religião organizada ganhou força. Na verdade, acho que é exatamente pelo oposto. Na maior parte das democracias ocidentais, pelo menos, a autoridade da igreja entrou em colapso quase totalmente. Isto é verdade mesmo nos EUA: embora a maioria das pessoas ainda considere ser crente de uma ou ou- tra fé, muitos cristãos americanos, especialmente aqueles que são atraídos para Trump como salvador, seguem pregadores independentes ou empreende- dores espirituais. Em muitas partes da Europa, onde o populismo de direita está a aumentar, a erosão da autoridade da igreja a partir dos anos 60 deixou à deriva todos os que iam à igreja regularmente e esperavam que os seus sacerdotes e pastores lhes dissessem como vo- tar. Hoje, estão ansiosos e perplexos pelas mudan- ças demográficas, políticas, sociais, sexuais e eco- nómicas, e procuram um salvador que os leve para um mundo mais simples, mais certo e mais seguro. Há muitos demagogos famintos de poder desejosos de satisfazer esse desejo. b e@expresso.impresa.pt Tradução Joana Henriques Copyright: Project Syndicate, 2024 A razão pela qual tantas democracias estão agora ameaçadas pela política messiânica não é porque a religião organizada ganhou força. Na verdade, acho que é exatamente pelo oposto R O Y A L A C A D E M Y PROMESSA “The Messianic Era: Israel And The Law”, John Singer Sargent (1903) E 20 TEXTO SEBASTIÃO BUGALHO COLUNISTA DO EXPRESSO E 21 O homem que (quase) conseguiu Luís Montenegro, um primeiro-ministro em forma de ponto de interrogação R U I D U A R T E S IL V A E 22 governação socialista, isto é, chumbando Montene- gro como candidato a primeiro-ministro. Olhando os estudos de opinião, os portugueses não o desmenti- am na altura. Examinando os resultados da eleição de domingo passado, mais de 1 milhão continuam de acordo com o exame do Presidente. À data, nos bastidores do PSD, as previsões para as eleições europeias do verão seguinte — hoje, daqui a três meses — eram lúgubres, sem um candidato evi- dente e chances de ficar atrás do PS apesar do estado infeliz da maioria absoluta. Entre as hostes sociais- -democratas, discutia-se a saída de Montenegro como que uma inevitabilidade e os sussurros pelo regresso de Pedro Passos Coelho acumulavam-se nos ouvidos laranja. Naquele tempo, que não foi assim há tanto, Luís Montenegro assemelhava-se a um recluso num corredor da morte, pronto a juntar-se à coleção de opositores vergados por António Costa. As notícias em torno da casa do presidente do PSD e o envolvimento de Joaquim Pinto Moreira, seu próximo, na Operação Vórtex jaziam como que uma nuvem em cima da ca- beça do líder da oposição. O seu tom, persistentemen- te parlamentar e não de candidato a primeiro-minis- tro (“O Orçamento pipi, betinho e arranjadinho”), roçava o inadequado e a ambiguidade sobre o Chega (ainda não havia “não é não” definitivo) perseguia-o, tanto quanto o fantasma de Passos Coelho. Sem exagero, Montenegro esteve em vias de ser afastado antes de sequer disputar uma eleição em seu nome. Apesar de tudo isso, foi com um sorriso que se sen- tou à mesa num dos seus pousios prediletos, à beira do Tejo, em Lisboa. Menos esguio do que nos tempos de líder parlamentar, talvez já engordado pela volta pe- los concelhos do país, já andava sem relógio de pulso e em mangas arregaçadas. Para entrada, o seu favori- to, uma sardinha no pão torrado. “Eu estou convenci- do de que vou ser primeiro-ministro”, afirmaria, sem pestanejar, ao seu comensal. “Tenho é de emagrecer um pouco até lá”, sorriria, com o longínquo 2026 ain- da como horizonte. Naquele momento, sardinhas e simpatias à parte, provavelmente só ele acreditava que sim. Menos de um mês depois, rumaria à Madeira, onde o seu par- tido falharia a maioria absoluta apesar de coligado com o CDS, dando com Miguel Albuquerque, caçador nos tempos livres, a socorrer-se inusitadamente do apoio do PAN para formar governo na região autóno- ma. “Luís Montenegro 1, António Costa 0”, atiraria o continental, transpirado, mais uma vez fora de tom diante da sua primeira vitória amarga, das três que seriam agridoces. Albuquerque, que prometera de- mitir-se caso falhasse a maioria, permaneceria indi- ferentemente no cargo — hábito que, aliás, mantém. Num timing no mínimo desajeitado, Luís Monte- negro poria aí termo ao tabu da relação do seu partido com o de André Ventura, anunciando que não gover- naria com o apoio do Chega “nem no país nem na Ma- deira”, sem se dar ao trabalho de explicar porquê, ex- cetuando o facto de o PSD não necessitar de votos do Chega para governar o arquipélago. Pouco mais de um ano depois de suceder a Rui Rio na liderança da opo- sição, Montenegro dizia finalmente ao seu eleitorado qual a sua política de alianças — matéria que nunca colheu unanimidade na sua direção; pelo contrário. No Expresso, dando-o já como fora do jogo, Da- niel Oliveira assinaria uma coluna cinco dias depois intitulada “Pedro contra Pedro”, antevendo um futu- ro político sem Montenegro e sem Costa, onde Pedro (Nuno Santos) enfrentaria Pedro (Passos Coelho). De N o dia 30 de agosto de 2023, há menos de um ano, Luís Montenegro não ia ser o próximo primeiro-ministro de Portugal. O Partido Socialista havia sobrevivido à Comissão de Inquérito à TAP, Pedro Nuno Santos ia ser comentador político na SIC Notícias, João Ga- lamba permanecia no Governo e o Presidente da Re- pública estava publicamente desautorizado por um primeiro-ministro em posse de supremacia parla- mentar, orçamental e não propriamente derrotado nas sondagens. As perspetivas não eram animadoras para o homem de Espinho, um ano depois de che- gar à São Caetano à Lapa. No pico da crise espoleta- da pela indemnização ilegal de Alexandra Reis, me- ses antes, Marcelo Rebelo de Sousa considerara não haver “uma alternativa óbvia em termos políticos” à E 23 (complementando a componente pública com a pri- vada e social) e um discurso final concluído em apo- teose, num tributo às vidas perdidas para o feminicí- dio em Portugal. Estava ali — ou tentava estar ali — um substituto indolor de António Costa para os 2 milhões e 300 mil portugueses que haviam confiado no PS há menos de dois anos. No fim de semana passado, não foram tan- tos a acreditar em Luís Montenegro. O PACIENTE JOGADOR CONTRA UM TEMPO E CONTRA UM LEGADO O paradoxo mais interessante — e mais elucidativo — na personalidade política de Luís Montenegro é que o seu modo de ação é o de um jogador que aposta tudo mas que ao mesmo tempo demora a revelar o jogo que tem na manga. Alongando a metáfora, é quase como se estivesse constantemente num torneio de póquer em que faz o all-in sem que os seus adversários saibam exatamente quantas fichas estão em cima da mesa — muitas vezes, nem o próprio sabe. Montenegro fê-lo na sua dramatização de apelo ao voto útil, prometendo só governar sendo o mais votado e nunca com o apoio do Chega. Mas fê-lo também no posicionamento que delineou para o seu partido — ao centro —, não cli- vando com o poder incumbente, não divergindo em nada que não consensual, nem prometendo nenhuma mudança que não a que lhe interessava para conseguir mudar o resto: a de Governo. O seu tudo ou nada não esteve só na meta que im- pôs a si mesmo (só governar se ganhar e nunca com o concorrente crescente à sua direita), mas no modo como estacionou o PSD no lugar de substituto — e não de inimigo — do PS. No seu raciocínio, tal era a única forma de ultrapassar os anticorpos oriundos do tempo da troika e partir para a campanha de rua com a menor taxa de rejeição possível. Para tal, sacrificou frequentemente convicções e posições, não revelando as suas sobre matérias tão concretas como a regionali- zação (foi contra o referendo, sem dizer como votaria), a eutanásia (foi a favor do referendo, sem dizer como votaria) ou a localização do novo aeroporto (consen- sualizou o método de escolha com o Governo, semre- velar qual seria a sua decisão). O recentramento montenegrista seria tal que os apoiantes da sua coligação com o CDS entrariam ir- remediavelmente em choque com ele, tendo a visão pró-vida de um candidato a deputado embatido de frente com Montenegro, para quem a interrupção vo- luntária da gravidez, não sendo um tópico consensu- al, só poderia ser proibido. Num painel da SIC Notíci- as, Daniel Oliveira chamar-lhe-ia mesmo candidato “marca branca” por nunca fugir ao mainstream. Gosto musical? “Coldplay.” Gastronómico? As “couves” no cozido à portuguesa. Clube de futebol? A “seleção na- cional”, claro, e não o Futebol Clube do Porto, de que chegou a ser dirigente. Se lhe perguntassem a cor pre- ferida, não seria impossível que respondesse instinti- vamente “bege”. Aborto? Nem uma palavra. Em simultâneo, o líder do PSD — então converti- do em Aliança Democrática — tinha de permanecer suficientemente apelativo à direita apesar da tentati- va de parecer inofensivo à sua esquerda. E contra uma ameaça berrante, como os resultados de domingo pro- varam, era mais difícil ser “bege”. A única coisa de “direita” que Luís Montenegro ousou representar foi a oportunidade de alternância ao PS, ao fim de nove anos. De resto, excetuando o pouco falado programa económico (divulgado no dia em que o governo, desta vez o madeirense, foi alvo de buscas), em que é que o PSD se distinguiu do PS além de não ser o PS? Para a maioria dos eleitores, mirando os números, em pou- co. Nesta eleição, nem a sustentabilidade da Seguran- ça Social se pôs em causa. O seu cuidado para não afugentar o eleitorado do Chega, todavia, esteve sempre lá. Expressões que focus group davam como tóxicas para os votantes de Ventu- ra, como “cordão sanitário”, nunca saíram da boca do líder da AD. Confissões de “centrismo”, como as repe- tidas ad nauseam por Rui Rio, nunca se deram. Mon- tenegro colocou-se no centro, nunca se proclamou dele. E tinha a ver com não abdicar da direita ape- sar de namorar os demais. Se repararmos, o conceito de “reformas estruturais”, que tanta alergia causava ao costismo, também não integrava a mensagem de CAMINHADA À saída do elevador, no domingo à noite, a caminho do discurso de vitória e após duas semanas de campanha eleitoral, Luís Montenegro atingiu um patamar que, há menos de um ano, parecia absolutamente improvável — estar na primeira linha para ser o primeiro-ministro de Portugal; O líder do PSD procurou não afugentar o eleitorado de André Ventura e do Chega, e teve um discurso cuidado, evitando expressões como “cordão sanitário”; Pedro Nuno Santos assumiu a derrota e declarou-se líder da oposição R U I D U A R T E S IL V A R U I D U A R T E S IL V A um modo, para muitos, era como se ele já não con- tasse e os corredores do PSD não eram alheios à sen- sação. A dúvida já não era se Montenegro seria ou não seria primeiro-ministro; era se chegaria sequer às le- gislativas. Uma semana mais tarde, o Hamas entraria em território israelita para tirar mais de um milhar de vidas e mergulhar o Médio Oriente em guerra. A política doméstica mereceria um par de semanas de descanso, até uma entretanto esquecida profecia do diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde, avi- sando que novembro seria “o pior mês em 44 anos de SNS” se nada se alterasse na tensão com o sector. O pessimismo de Araújo era previdente, mas falhava na área. Novembro não seria o pior mês de sempre na Saúde do regime, mas nas suas instituições, com um Governo a ser derrubado com polícia em São Bento, dois ministros buscados, um chefe de gabinete en- contrado com €75.800 no local de trabalho e um amigo íntimo do primeiro-ministro detido. António Costa pediria a demissão na tarde desse 7 de novem- bro, e Luís Montenegro, qual Lázaro, ressuscitaria como candidato à sua sucessão. Em menos de 20 dias, o PSD transformaria um congresso agendado para rever estatutos internos numa autêntica convenção, com velhas glórias como Morais Sarmento, José Luís Arnaut, Leonor Beleza, Ferreira Leite e, trinta anos depois, Aníbal Cavaco Sil- va a surgirem numa reunião magna do partido. Em Almada, do alto da sua improbabilidade, Montenegro presidiu ao maior recentramento ideológico do PSD, não só desde a troika, como desde a era de Mota Pin- to. Um elogio surpreendente aos aumentos do salário mínimo decretados pelo PS, uma proposta dedicada aos pensionistas (através do Complemento Solidá- rio para Idosos), uma ideia de Estado social funcional Luís Montenegro tem o modo de ação de um jogador que aposta tudo mas que ao mesmo tempo demora a revelar o jogo que tem na manga T IA G O M IR A N D A J O S É F E R N A N D E S E 24 Montenegro. O objetivo foi sempre não assustar para depois cativar — fosse quem fosse. O HOMEM QUE SE CANSOU DE PERDER De onde veio tamanha capacidade de pragmatismo? É a pergunta que qualquer leitor faria, dada a descrição dos factos. No livro “Na Cabeça de Luís Montenegro”, do jornalista Miguel Santos Carrapatoso, há pistas que nos ajudam a percebê-lo melhor. Na biografia políti- ca, que é uma leitura obrigatória deste 2024, fica claro que o percurso do homem em vias de ser indigitado foi largamente marcado por “derrotas traumáticas” e até “humilhações”. Da Câmara de Espinho à distrital de Aveiro, de último na lista de deputados a duas vezes destrunfado por Rui Rio (uma em Conselho Nacional, outra a duas voltas em diretas), Montenegro anda há mais de 30 anos de derrota em derrota, à espera da vi- tória final. E este domingo, apesar de não a ter materi- alizado por completo, foi mais um passo no caminho de alguém que aprendeu a ganhar, perdendo. Além da sua relação com o risco (com as paradas altas) e com o tempo (com uma campanha monta- da para crescer devagar, mas até ao último minuto), há um traço que caracteriza Luís Montenegro e que o distingue da maioria dos políticos da sua geração. É um indivíduo profundamente obstinado, apesar de flexível. Quando a equipa de consultores de campa- nha chegou do Brasil à São Caetano à Lapa, seguiu o seu guião à risca. A taxa de rejeição era para manter o mais reduzida possível. Nos debates, em que qua- se passou despercebido, não se desviou um milíme- tro dessa estratégia. Enquanto Pedro Nuno brilhava para a sua plateia, Montenegro nem contra um cer- co policial se pronunciou. Era o posicionamento não posicional a não arredar pé. E até ao último minuto da campanha eleitoral, nunca saiu dele. Outro exemplo flagrante — e muito relevante — do pragmatismo tático de Luís Montenegro está na sua ida preventiva aos Açores, sem fazer a menor ideia do resultado que sairia das regionais de 4 de fevereiro deste ano, pouco mais de um mês antes do ato elei- toral nacional que decidiria o seu destino. Ao marcar presença na vitória de José Manuel Bolieiro, reunindo com as lideranças regionais do PSD, do CDS e do PPM, Montenegro condicionou todo o processo, evitando que a solução açoriana voltasse a passar pelo Chega como em 2021, e o PSD a ser vítima dela, como foi Rio em 2022. A partir daí, o tabuleiro virou e a ques- tão do Chega passou a ser colocada igualmente ao PS e ao PSD, de tal modo que Pedro Nuno mudaria de posição e estabeleceria o compromisso de viabilizar um Governo da AD num cenário de maioria à direi- ta — justamente o que acabará por acontecer, graças, mais uma vez, ao gosto pelo risco de Luís Montenegro. No congresso do Porto, em 2022, o pragmatis- mo também transpareceu e por instinto. Com o PS a contar com o referendo à regionalização no progra- ma da maioria absoluta, Montenegro subiu ao palco pela primeira vez como líder do PSD e anunciou que o maior partido da oposição não via condições para aceitar a realização desse referendo. Não ouviu uma pessoa antes. Saiu-lhe. Era a maneira mais prática que tinha de enterrar um assunto que dividiria o seu partido e que, possivelmente, mobilizaria um PS ra- ramente associado a mudançasde fundo. Olhando para trás, funcionou na perfeição — e nunca mais se ouviu falar na ideia. Num diagnóstico da derrota do PSD nesse ano, ainda com Rui Rio ao leme dos sociais-democratas, encontra-se uma soma de variáveis de- finidoras do resultado e, se observar- mos ao pormenor, fez-se de tudo para que não se repetissem em 2024. O mo- nopólio que o PS detinha da relação com o Estado social após a pandemia? Quebrado. A unidade institucional entre Presidência, Parlamento e Governo que resultou da crise sanitária? Inexisten- te após a dissolução da Assembleia. A am- biguidade de Rui Rio em relação ao Chega? Desfeita, a tempo e horas. A responsabiliza- ção pela legislatura interrompida com que António Costa esvaziou o Bloco de Esquerda e o PCP em 2022? Resultou contra parceiros parlamentares; Pedro Nuno Santos não arris- cou fazê-la contra o Ministério Público. Como que um diligente marido numa ida ao su- permercado, de lista de compras em riste, Luís Mon- tenegro riscou uma a uma as lacunas do seu partido, que esteve quase uma década sem vencer uma elei- ção nacional. Falta de país? Esteve nos 308 concelhos. Falta de oposição? Passou a fazê-la, reinstituindo os debates quinzenais abolidos com a ajuda do seu an- tecessor. Falta de consensos? Ajudou a fazê-los, acor- dando com António Costa a criação de uma Comis- são Técnica Independente para o estudo de um novo aeroporto. Falta de propostas? Pelas minhas con- tas, apresentou um pacote temático numa média de quatro em quatro meses desde que se tornou líder da oposição. Falta de independentes? É ver as listas que levou ao Parlamento, recheadas deles. Luís Montenegro, pura e simplesmente, fartou-se de ver o seu partido perder eleições. Só não conseguiu ganhá-las, até agora, por mais de 1%. UM SUCESSO POR METADE MAS COM ESPERANÇA Se pensarmos que a Operação Influencer e o partido Chega foram os ausentes mais presentes nos deba- tes destas legislativas, quase parece que a campanha decorreu num mundo (praticamente sem Ventura e sem preocupações judiciais) e a eleição ocorreu nou- tro mundo (recheado de Ventura e de preocupações judiciais). O PSD não pretendia ignorar esse públi- co-alvo, com um plano anticorrupção a não ter mais destaque na sua campanha devido aos infórtu- nios do PSD-Madeira no início do ano. A eleição de 10 de março teria, nesse sentido, mais do que um condicionamento oriundo das ilhas: os ideológicos, vindos dos Açores, e os ju- diciais, do Funchal. Montenegro cumpriu o seu primeiro objetivo (ganhar) e o seu segundo objetivo (não enfrentar uma maioria à esquer- da na Assembleia), mas falhou o terceiro: depender exclusiva- mente dos votos da Iniciativa Liberal. Pelo contrário, os seus dotes de pragmático serão novamente postos à prova, numa tenaz de socialistas ávidos de regres- sar ao poder o mais depressa que consigam e popu- listas sedentos de crescer o mais que puderem até às autárquicas de 2025. Caso não escape à encruzilhada, resta-lhe tentar que esta se prolongue até ao verão do próximo ano, quando Marcelo já não pode dissolver por estar em final de mandato, ou render-se às con- versações com o Chega, provavelmente com outra liderança que não a sua no PSD. Os resultados de domingo à noite, para o bem e para o mal, são fruto direto da sua estratégia. Ao cen- tro, disputou a herança de António Costa com Pedro Nuno Santos, que precisou de ser socorrido nos úl- timos dias de campanha pela presença mais sena- torial do primeiro-ministro. À direita, com pouco programa a tocar nesse eleitorado, deixou o flanco aberto para a corrida do Chega. Entre a velha guar- da do PSD, a dificuldade do dilema é reconhecida e poucos avançam com melhores soluções. Para uns, ter ficado à frente de todos com a força concorren- te do seu espaço político a triplicar o resultado faz tangente ao milagre. Mas, tal como a Madeira em setembro e os Açores em fevereiro, trata-se de uma vitória com um amargo de boca acompanhado por um elevado potencial de instabilidade. No final da madrugada eleitoral da SIC, foi questi- onado quem está em piores condições no primeiro dia como primeiro-ministro: António Costa em 2015, de- pois de perder mas com maioria à esquerda, ou Luís Montenegro em 2024, depois de ganhar sem maio- ria de ninguém? A opinião foi unânime: o segundo. Montenegro tem a vantagem de começar um novo capítulo com uma plataforma relativa de po- der, na esperança de vir a fazer campanha como pri- meiro-ministro em funções. As eleições europeias, daqui a três meses, devem influenciar a margem de manobra com que cada liderança chegará às nego- ciações do Orçamento do Estado, este outubro, com Marcelo a ter a faculdade de convocar novas eleições se assim o entender. Montenegro terá de enfrentar um Pedro Nuno com o alívio de não governar e um André Ventura com ganas de vir a fazê-lo. O mistério de quem realmente é, politicamente, o líder do PSD será desvendado, ao seu jeito, grão a grão, até lá — na sua relação com o tempo, o risco e o pragmatismo. No debate com o líder do Chega, Ventura per- guntou-lhe se estava “a rir-se dos portugueses” e Montenegro, sem hesitar, respondeu-lhe: “Estou- -me a rir de si.” Nos próximos meses, descobriremos quem ri por último. Até lá, haverá poucas razões para isso. b e@expresso.impresa.pt Ventura perguntou-lhe se estava “a rir-se dos portugueses” e Montenegro, sem hesitar, respondeu-lhe: “Estou-me a rir de si” LIDERANÇA Capa da Revista do Expresso em novembro de 2022, meses depois de Montenegro conquistar em congresso a liderança do PSD E 26 B IB L IO T E C A V IR T U A L D E D E F E N S A /P A T R IM O N IO C U LT U R A L D E D E F E N S A TEXTO RICARDO SILVA INVESTIGADOR DO INSTITUTO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA E 27 Os planos de Franco para invadir Portugal Durante séculos, o “perigo castelhano” foi uma constante, com as intermináveis guerras de fronteira a frustrarem os planos de Castela sobre Portugal; quimeras de uma União Ibérica idealizada em Espanha como solução de grandeza. Franco também a sonhou, chegando a planear a invasão de Portugal, mas a derrota do III Reich obrigou-o a despertar para a realidade AMEAÇA O avanço da Alemanha a leste foi acolhido com entusiasmo em Espanha e nasceu uma divisão de voluntários, a Divisão Azul, cujos soldados, nas estepes da Rússia, cantavam versos como: “Só esperamos a ordem/ que nos dê o nosso general/ para apagar a fronteira/ de Espanha com Portugal” E 28 durante a Idade Média, com lutas dinásticas e guer- ras fronteiriças a marcarem a tensão entre os dois reinos, mas apesar de todos os esforços, Castela re- velou-se incapaz de dominar Portugal. A solução acabaria por chegar através dum ca- samento que uniria as coroas de Castela e Aragão, em 1469, com o reinado dos reis católicos a marcar o início da era de ouro da história espanhola. Em 1492, não só a armada de Cristóvão Colombo alcan- çou as Américas como chegava ao fim a resistência do Reino Nacérida, concluindo-se de forma vitorio- sa a Reconquista com a queda do último reduto mu- çulmano em Granada. Em 1512, a monarquia católi- ca passou a ser a monarquia de Espanha e Portugal era agora o último entrave à concretização da União Ibérica. Onde falhou a guerra, venceu a diplomacia, com a morte de D. Sebastião a abrir uma crise de sucessão prontamente aproveitada por D. Filipe II para assumir o Reino de Portugal, em 1580, e criar a União Ibérica num modelo que concedia a Portugal uma larga autonomia. Seria sol de 60 anos de dura. Em 1640, uma revolta rebenta em Lisboa e dá lugar à Guerra da Restauração, seguindo-se 28 anos de uma luta intensa pontuada por cinco derrotas do exército espanhol que culminaram no tratado de paz de 1668. Portugal voltava a ser independente, mas Espa- nha continuou a sonhar com a União Ibérica, um so- nho que se tornou pesadelo no início do século XIX. Deslumbrado pelo poder militar do império francês, D. Carlos IVdecide aliar-se a Napoleão Bonaparte para invadir Portugal, acedendo a deixar entrar os exércitos franceses no seu território na crença que o ajudariam a alcançar Lisboa, mas acabando por ver os gauleses marcharem sobre Madrid para o depor e ao seu filho. Foi o princípio da derrocada espanhola que levaria ao fim do império e à perda do estatuto de grande potência, numa longa série de humilha- ções que culminou com a estrondosa derrota face aos Estados Unidos, em 1898. IRREDENTISMO IBÉRICO Ao iniciar-se o século XX, os sectores mais radicais da sociedade espanhola acreditavam que o retorno à grandeza de Espanha só seria possível mediante a União Ibérica, e é nesse ambiente de irredentismo com tons de xenofobia, que um jovem cadete galego ingressa na Academia de Toledo, onde muitos defen- diam que a absorção de Portugal e Marrocos seriam a solução para os problemas de Espanha. Em 1907, Francisco Franco iniciou a sua longa carreira militar no seio duma instituição marcada pelo revanchismo e chefiada por um rei que não escondia o seu dese- jo de reinar sobre o país vizinho, uma ambição que se tornou mais clara três anos mais tarde, quando a revolução de 5 de outubro instaurou a República em Portugal e a crónica instabilidade política e social abalavam a integridade do novo regime. Em Espanha a situação deu lugar a um discurso iberista público, tanto nas arengas de quartel como nas primeiras páginas dos jornais, e José María Sa- laverría, correspondente do “ABC” que andava em Portugal a acompanhar a revolução, não se coibiu SEGREDO Franco e Salazar em 1940. Salazar fechara os olhos às campanhas que angariavam portugueses para servir nas bandeiras da Legião, mas a gratidão pelo apoio não alterava os planos de Franco, que incluíam Portugal como parte de um futuro império destinado a recuperar a grandeza da Espanha O sonho de unir a Península Ibérica sob uma única coroa é tão antigo como a sua história. Tentado por romanos, visigodos e mouros, revelou-se tão sedu- tor como impraticável, mas conseguiu perdurar ao longo do tempo. Fiéis à sua fama, os povos ibéricos resistiram ferozmente a todas as formas de domí- nio exterior, numa tradição que popularizou heróis como Viriato, o chefe lusitano que se revelou o ter- ror das legiões romanas, e Pelágio, o nobre visigodo que travou a expansão do Al-Andalus. No século XII a ideia parecia cada vez mais longínqua, com a Re- conquista a desmantelar o Califado Almóada e a pe- nínsula transformada num retalho de reinos e prin- cipados. Foi nessa época conturbada que um jovem nobre venceu a sua mãe na Batalha de São Mamede e assumiu o poder do Condado Portucalense, com o título de D. Afonso Henriques. No século seguinte, o condado foi reconhecido como Reino de Portugal e o seu território foi-se defi- nindo ao ritmo da Reconquista para sul, empurran- do as forças muçulmanas até ao Algarve ao mesmo tempo que se desenhava a fronteira com o Reino de Castela. A península parecia destinada a voltar ao mosaico que a tinha caracterizado na era pré-roma- na, com vários reinos cristãos a repartirem os terri- tórios recém-conquistados, mas Castela acabou por se tornar hegemónica após absorver os reinos de Galiza e Leão; ganhando um poder acrescido que despertou o ideal da União Ibérica e a ambição de se tornar a única coroa em toda a península. Nascia assim o “perigo castelhano” que foi uma constante E 29 de desabafar numa das suas crónicas como “parece inverosímil que Espanha, passando por épocas de tanto poder, se distraíra em empresas estéreis e ab- surdas, enquanto abandonava a espanholização do Norte de África e do reino português. A história de Espanha, e mesmo a história total do mundo, ter-se- -iam transformado, se Portugal e o Norte de África chegassem a espanholizar.” Era uma opinião parti- lhada por outros colegas, como Luis del Olmet, para quem “a oportunidade aparece propícia, fácil. Por- tugal, dominado por uma revolução acéfala, imoral, atrabiliária, que descompôs e aniquilou o país, es- tende-nos os braços.” Mas estas crónicas tendiam a omitir um fator de importância histórica, a profunda e arreigada hispanofobia que grassava em Portugal. Marcos Blanco-Belmonte veio a Portugal auscultar a opinião dos portugueses e teve uma profunda de- silusão: “Se no povo português existe hoje um sen- timento forte e bem definido, é o da repulsa em es- panholizar-se. A tutela britânica, a anarquia com os seus excessos, os espancamentos de maçons e car- bonários, a ditadura de qualquer género… tudo acei- taria Portugal antes de aceitar a espanholização!” A campanha mediática na imprensa continuou durante anos, mas realizar a União Ibérica estava fora do alcance das depauperadas forças espanho- las, como ficou patente em 1921, quando todo um exército espanhol foi aniquilado em Annual em mais uma humilhação que abalou o país. A guerra no Rif mostrava a debilidade do exército, mas também foi a oportunidade para Franco se destacar ao ponto de se tornar o general mais jovem da Europa e comandar a temível Legião Espanhola. Em 1936, quando par- te do exército tenta um golpe militar que falha e dá lugar a uma mortífera guerra civil, Franco torna-se líder dos rebeldes e encontra em Portugal um alia- do da primeira hora. O Governo de Salazar autoriza o envio de munições quando estas estavam quase a esgotar-se, permite que os portos nacionais recebam armamento alemão que é transportado até à fron- teira e fecha os olhos às campanhas que angariam portugueses para servir nas bandeiras da Legião. Franco e os nacionalistas tinham uma dívida com o Portugal do Estado Novo, mas a gratidão pelo apoio não alterava os planos que incluíam Portugal como parte de um futuro império destinado a recuperar a grandeza da Espanha. A Falange, principal força política do bando na- cional, era abertamente fascista e defendia a União Ibérica nas suas publicações, e mesmo entre os mi- litares espanhóis era tema recorrente quando se cruzavam com os portugueses da Missão Militar Portuguesa de Observação em Espanha, que deixou registo de vários incidentes nos relatórios enviados para Lisboa. O capitão Luís Sousa conversou com di- versos oficiais em 1937, e no seu relatório deixou um alerta para “as palavras dos mais entusiastas, muitos deles com representação nos meios nacionalistas, acerca dos seus ideais imperialistas e da necessidade de abolir fronteiras entre Portugal e Espanha”, uma ideia que o capitão rebatia recordando a história “em que nós portugueses para honra e glória nossa firma- mos a nossa indiscutível independência”. Apesar de todas as desconfianças, as duas dita- duras acordaram em assinar o Tratado de Amizade e Não-Agressão Luso-Espanhol, a 17 de março de 1939, num passo destinado a serenar as relações entre am- bos. Duas semanas mais tarde a guerra civil chegou ao fim com a vitória dos rebeldes e Espanha passou a viver a paz dos vencedores (e a repressão dos ven- cidos). Era um momento difícil, com o país arrasado pelo conflito e o exército a sofrer uma rápida desmo- bilização, mas o imperialismo continuava a marcar o tom dos discursos e o comportamento do caudilho le- vantava suspeitas sobre o futuro. A 25 de agosto, Teo- tónio Pereira – embaixador de Portugal em Madrid, enviou uma mensagem a Salazar para dar-lhe con- ta dos seus receios sobre Franco: “Confesso a V. Ex.ª que cada vez tenho mais apreensões sobre as ideias do “Generalíssimo”. Acho-o enamorado do poder e do poder pessoal. De todos os que governam a Espa- nha é ele que me diz coisas mais estranhas e que fala a linguagem mais próxima do eixo.” AS GRANDES TENTAÇÕES Essa estranheza só se acentuaria a partir de 1 de se- tembro de 1939, quando os exércitos do III Reich in- vadiram a Polónia acreditando que a impunidade do passado continuaria, mas acabando por iniciar a Segunda Guerra Mundial quando a França e o Rei- no Unido declararam guerra aos nazis. Enquanto se preparava para o pior, o mundo assistia aopoder destruidor da Blitzkrieg e a situação interna espa- nhola foi seguida de forma atenta pelo embaixador português, que temia a influência da Falange no go- verno, mas não deixava de comentar com Salazar que “o Generalíssimo tem muito mais de Sancho Pança do que de D. Quixote.” Os primeiros meses da guerra foram indecisos e pareciam confirmar a sua tese, mas tudo mudou em maio de 1940, quan- do a grande ofensiva do III Reich sobre a França Hitler irritou-se com as exigências do ditador espanhol e comentou que preferia “que lhe arrancassem quatro dentes a voltar a encontrar-se com Franco” A F P V IA G E T T Y IM A G E S E 30 Quase 4 mil espanhóis (e alguns portugueses) foram mortos, feridos ou capturados, forçando os alemães a intervir para conter a avalancha soviética surpreendeu o mundo pela rapidez e aparente faci- lidade com que a Wehrmacht derrotou o poderoso exército gaulês, trazendo o exército hitleriano até à fronteira espanhola. A retumbante vitória dos nazis despertou uma reação eufórica entre os fascistas es- panhóis que acreditavam ter chegado a altura de se juntarem a alemães e italianos para repartir a Europa e as suas colónias em África. Era uma euforia pre- matura, e deu lugar ao desencanto, quando a todo- -poderosa Luftwaffe foi batida pela Royal Air Force nos céus de Inglaterra. Humilhado pela derrota es- tratégica que quebrara o mito de invencibilidade das armas alemãs, Hitler não iria ficar parado e os meses seguintes foram de azáfama na Europa ocupada. Não só o exército do III Reich se mantinha intacto, como tinha sido alvo de uma importante expansão com todo o material capturado nos campos de batalha franceses. Centenas de milhares de soldados foram sendo transferidos para a Europa Central, onde no- vas batalhas estavam prestes a ser travadas. A notícia da derrota alemã na Batalha de Ingla- terra acabou por ter um profundo impacto em Espa- nha, com a exaltação belicista a arrefecer apesar do calor tórrido daquele verão, mas os mais irredentis- tas continuavam a sonhar, a aguardar pela oportu- nidade de recriar o império espanhol sob a sombra do espectro nazi. Foi então acordado um encontro entre Franco e Hitler para determinar as condições da entrada da Espanha na guerra. A 23 de outubro de 1940, os dois ditadores encontraram-se em Hen- daia, na França ocupada, vindo acompanhados pe- los ministros Serrano Suñer e Von Ribbentrop, duas personagens habituadas aos jogos de bastidores que não tiveram problemas em dialogar entre si, com o espanhol a comentar que “ninguém poder deixar de dar conta, ao olhar para o mapa da Europa, que, geograficamente falando, Portugal na realidade não tinha o direito de existir. Tinha apenas uma justi- ficação moral e política para a sua independência pelo facto dos seus quase 800 anos de existência.” Já o diálogo entre Franco e Hitler ficou marcado pelo azedume, com Hitler profundamente irritado pela longa lista de exigências que lhe é apresentada pelo congénere galego, comentando no retorno à Alema- nha que preferia “que lhe arrancassem quatro den- tes a voltar a encontrar-se com Franco.” Apesar da resistência em entrar na guerra numa fase em que o seu desfecho ainda não era certo, Franco não deixou de preparar a entrada no conflito e um dos planos elaborados pelo seu Estado-Maior ia ao ponto de detalhar a invasão de Portugal. Entregue a 18 de dezembro de 1940, o plano pressupunha um ultimato ao governo português, seguido da invasão ao fim de apenas 24 a 48 horas, ao estilo hitleria- no, que deveria envolver cerca de 250 mil homens apoiados pela aviação e por vários grupos de blin- dados que avançariam sobre Lisboa, usando a força bruta para eliminar a resistência o mais rapidamen- te possível. Delineado poucos meses após o “Gene- ralíssimo” ter firmado um protocolo adicional para reforçar o tratado de não-agressão com Portugal, o plano revelou o lado traiçoeiro do regime franquista que há muito se receava em Lisboa. EUFORIA A LESTE Seguiram-se meses num compasso de espera que parecia eternizar-se, até que chegou o dia que mu- daria a história do conflito. A 22 de junho de 1941, mais de três milhões e meio de soldados do Eixo in- vadiram a União Soviética sob o mote da guerra ao comunismo. O seu impacto em Espanha foi imedia- to, com a Falange a apelar à intervenção e as ruas a encherem-se de milhares de manifestantes que de- claravam a sua vontade de marchar sobre Moscovo. Franco percebeu a oportunidade que tinha diante de si e acedeu ao envio de uma divisão de voluntários para combater na frente leste e marcar a presença espanhola no que se acreditava ser uma vitória certa. O embaixador português seguiu atentamente a formação da Divisão Azul e o seu envio para a linha da frente, escrevendo a Salazar sobre o papel da Falange e a personalidade do comandante eleito para a lide- rar em combate: “O general Muñoz Grandes é aquele mesmo general que há dois meses me fez as declara- ções que V. Ex.ª conhece. Muita coragem, mas muito pouco conhecedor de política. No fundo, um homem ingénuo.” Talvez Teotónio Pereira não estivesse enga- nado quando à ingenuidade ou à falta de habilidade política de Muñoz Grandes, mas não deixava de ser um dos mais dos mais fervorosos apoiantes da União Ibérica e possuía uma vasta influência não só entre o meio castrense, mas também entre a Falange. K E Y S T O N E /G E T T Y IM A G E S CONFLITO Um golpe militar falhado em 1936 dá lugar a uma mortífera guerra civil em Espanha, e Franco torna-se líder dos rebeldes, encontrando em Portugal um aliado de primeira hora E 32 A Divisão Azul acabou por se converter no ba- luarte ideológico dos que propunham a intervenção no conflito e muitos dos seus membros eram des- tacados militantes da Falange, um núcleo duro que tinha planos bem concretos e inspirava as letras das canções que os soldados entoavam nas longas mar- chas pelas estepes russas, uma das quais versava sobre o grandioso destino imperial que aguardava a Espanha fascista: “Nas estepes da Rússia/ Espanha luta com ardor,/ unida com a Alemanha/ por uma Espanha melhor./ E quando a Espanha voltarmos/ de novo queremos lutar/ e expulsaremos o inglês/ do Penedo de Gibraltar./ O nosso grito de vitória/ no mundo inteiro o ouvirão/ quando recuperarmos/ todo o Marrocos e Orão/ Só esperamos a ordem/ que nos dê o nosso general/ para apagar a fronteira/ de Espanha com Portugal/ E quando isso conseguir- mos,/ alegres podemos ficar,/ por termos consegui- do/ fazer uma Espanha imperial”. As canções começaram a esmorecer durante o duro inverno de 1941/42, quando os exércitos nazis foram travados às portas de Moscovo e os sonhos imperiais dos falangistas começaram a esfumar- -se, uma situação seguida à distância por Teotónio Pereira, que estava plenamente consciente do valor da Divisão Azul para os planos belicistas da Falan- ge. O embaixador não foi brando com o seu coman- dante: “Bravo e simples, como um bom subalterno, mas inteiramente desprovido de miolos e de ideias” — porém, o general não era tão desprovido de ideias como a descrição indica. A 8 de abril de 1942, Muñoz Grandes escreve a partir da Rússia uma carta ao ge- neral Varela, ministro do exército, onde discorre a sua visão sobre o futuro do seu país: “Gibraltar, Por- tugal e Marrocos são necessários, vitais para Espa- nha, mas não se conseguirão sem guerra.” O objetivo estava plenamente traçado e Muñoz Grandes acen- tua que “a instrução militar deve ser muito intensa, a fabricação de guerra ao máximo e a preparação da nossa juventude para tal empresa não admite demo- ra”. Longe dos corredores de poder em Madrid, e sob forte influência nazi, Muñoz Grandes começava a mostrar sinais duma ambição que despertou a aten- ção de Franco, sempre alerta para qualquer adver- sário interno. O general era uma figura famosa em Espanha, apoiado pela ala mais radical da Falange, sendo forte a suspeita de que Hitler e o