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(20240315-PT) E-Expresso


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História 
Quando a Espanha 
quis invadir Portugal
Ciência 
Vida e obra de 
Stephen Jay Gould
Entrevista 
Louis Menand, 
arte e poder
Por Sebastião Bugalho
A vitória 
amarga de
 Montenegro
A Revista do Expresso
EDIÇÃO 2681
15/MARÇO/2024
E 3
E O ÓSCAR VAI PARA... ANDRÉ VENTURA
O PSD TEVE O AZAR DE GANHAR AS ELEIÇÕES. O PS TEVE A SORTE DE PERDER AS ELEIÇÕES
o discurso de 
agradecimento pela 
vitória, Ventura 
poderia dizer que 
agradece o triunfo 
ao povo português. 
O mesmo povo que, 
50 anos depois do 
25 de Abril, celebra 
a ideia de que a 
democracia falhou. 
E passou ao lado 
da sua vida. Um milhão de fascistas? O Chega nem é 
um partido fascista, embora tenha uns exemplares. 
O Chega é um partido populista, autoritário na 
génese e no conteúdo, com uma ideologia orgânica e 
embrionária, em processo formativo, por afirmação 
negativa e combate das ideologias dominantes, estando 
alinhado com o resto dos partidos populistas europeus. 
Pode dizer-se que, comparado com os ultramontanos 
do partido Republicano nos Estados Unidos, o Chega é 
um partido civilizado.
Pode. Mas não deve. Porque o Chega vai continuar 
a crescer, e como vai crescer e para onde é uma 
incógnita. Crescerá tanto quanto o deixarem e vão 
deixá-lo crescer muito. Estamos a ver um adolescente 
anormalmente alto e forte que não sabemos como 
será em adulto. É isto o Chega, um rapaz que começa 
a transformar-se num homem. Será um desordeiro e 
um bully, sempre à tareia, ou tornar-se-á um adulto 
responsável que defende um modelo de sociedade 
diferente e é capaz de o concretizar por eliminação 
impiedosa dos adversários? A idade adulta do Chega 
só será evidente quando acontecer o que acontece 
em França, quando aparecer um partido ainda mais 
radical à direita do que o Chega. Quando o Chega 
tiver dissidências com características assustadoras, 
totalitárias e exterminadoras como as do século XX.
Agora, são as dores do crescimento, mas o crescimento 
é uma força da natureza. Os outros partidos não o 
podem deixar sem alimento ou a morrer de fome. Quer 
isto dizer, não o podem ilegalizar. Também não lhe 
devem dar vitaminas, o que decerto acontecerá pelo 
mútuo desentendimento entre PS e PSD.
O povo, não todo, mas uma parte substantiva, votou e 
votará no Chega, e reparem neste tempo futuro porque 
ele é uma possibilidade a contar. PS e PSD juntos têm 
mais de metade do país, têm quase 60 por cento. Assim 
calculados, os 18 por cento do Chega não parecem 
muito, são claramente inferiores a 60 por cento. Com 
mais ou menos números dos pequenos partidos, o que 
percebemos é que o Chega precisa de um parceiro, não 
vai lá sozinho. Por enquanto.
Pode escolher entre dois modelos de existência 
democrática. Um seria o combate puro e simples, 
o insulto diário, a humilhação dos partidos 
liberais, a perpétua vituperação da “esquerda”, o 
aproveitamento da insatisfação com dois partidos 
que não conseguiriam governar um sem o outro em 
miúdos concertamentos de mútua vantagem. Mesmo 
assim, o Chega cresceria, mas demoraria. E Ventura é 
impaciente e, iluminado pelo seu génio político nestes 
meses, no qual acredita, perder tempo e esperar não é a 
sua missão. O segundo modelo é mais complexo e traria 
mais poder imediato e menor autonomia. Consiste em 
derrotas da chamada ingovernabilidade, a incapacidade 
de aprovar e executar um programa e um orçamento. 
O PSD continua a prometer o que não pode dar, uns 
amanhãs que cantam, e a não dizer a verdade. A tarefa 
é ciclópica. O PSD teve o azar de ganhar as eleições, não 
com margem suficiente.
O que conhecemos de Ventura é exasperação e 
impaciência. E eficácia, agora com um milhão de pessoas 
atrás dele. Entretanto, por essa Europa fora, a direita vai 
ganhando terreno. Ventura ainda nem sequer se meteu 
na política internacional e lá chegará o dia de alinhar 
com a família europeia.
Bruxelas tinha um único trabalho, deixar a Europa de 
fora de uma guerra fratricida e fazer valer a diplomacia. 
Em vez disso, atirou a Ucrânia para uma guerra que 
nunca ganharia, em nome de uma NATO disfuncional 
e de promessas de armas e dinheiro sem fim. E quer 
rearmar a Alemanha para entrar em guerra com a Rússia. 
Um plano que agrada aos militares neutralizados, ao 
lobby da indústria das armas e aos pupilos do Pentágono.
Quando os políticos começarem a dizer que o futuro 
que reservam aos jovens europeus é o serviço militar 
e a guerra perpétua, veremos o que estes respondem 
num planeta devastado. A Europa não é Israel, não 
está preparada para a militarização da juventude e da 
sociedade produtiva. A guerra perpétua contra a maior 
potência nuclear, não faz sentido. Jovens de extrema-
esquerda e extrema-direita, e retirem o extrema da 
equação, teriam um terreno comum, a oposição ao 
militarismo compulsivo e à destruição do continente. As 
ruas estariam cheias.
A propaganda liberal numa América onde Trump ganhe 
move-se no teatro do absurdo. E mesmo que Trump não 
ganhe, o problema não desaparece. Biden pode ter o azar 
de ganhar as eleições e assistiremos à agonia violenta 
da democracia americana. O problema não desaparece 
com a vitória de um homem no fim da vida ou a derrota 
de um Trump enjaulado ou arruinado. Pelo contrário, o 
problema torna-se medonha ameaça. Ganhar as eleições 
começou a ser má sorte.
O carro da democracia liberal precisa de revisão. Os 
liberais, lá como cá, acham que têm sempre razão. 
Nenhuma humildade preside às derrotas gerais.
E assim, circulando entre ruínas, incluindo as do 
jornalismo convencional, os descontentes crescem. Sem 
precisarem de governar, são invencíveis. Se governarem, 
serão irreconhecíveis. b
N
minar o PSD e o seu chefe até o tornar refém do seu 
poder, apeando-o e substituindo-o, ou convencendo-o 
a governar com o seu apoio, impondo as drásticas 
condições e isolando a esquerda de vez.
O PSD teve o azar de ganhar as eleições. O PS teve 
a sorte de perder as eleições. Um ganhou por pouco 
e outro perdeu por pouco. Estranhamente, e por 
hábito, os respetivos prosélitos passaram uma parte 
da noite a acusar o outro de ter perdido, enquanto 
o elefante na sala ia partindo a loiça toda. Fizeram 
dois bons discursos de vitória e de derrota, vazios de 
conteúdo prático. O PS insiste que vai ser oposição, 
mas se um governo da AD for ao chão, o Chega 
ganhará mais votos. Se olhar bem para os resultados, 
o partido perceberá que o PS perdeu mais do que 
votos e eleitores, perdeu o país depois de uma maioria 
absoluta. O discurso da superioridade moral da 
esquerda, em que o PS continuará a insistir, não 
lhe trará votos no futuro. Teria sido um ato político 
de qualidade reconhecer isto, dizer a verdade para 
variar, mas o PS tem dificuldade em perder. Não está 
habituado.
Procurará ainda um bode expiatório para a derrota, e 
se o achar no Presidente, cometerá mais erros. Pedro 
Nuno Santos, que é inteligente e tático embora os 
adversários o queiram fazer passar por leviano, e sendo 
jovem e estando a crescer e aprender dentro do próprio 
partido, tal como Ventura, não cometerá o erro de 
acusar o maior aliado histórico que o PS teve até hoje.
Imaginem que o famoso parágrafo não existia. António 
Costa não se demitia. Qual seria, depois de escândalos, 
indecisões e trapalhadas como aquelas a que assistimos 
durante o reinado terminal da maioria absoluta e de 
uma arrogância ainda mais terminal, a atitude do 
primeiro-ministro perante a descoberta dos 78.500 
euros no gabinete ao lado do seu? Dizia que não sabia e 
ficava tudo na mesma? Terminava o mandato em paz e 
sossego? Não. A progressiva deliquescência e paralisia 
do Governo arrastariam uma votação no Chega 
superior à que teve nestas eleições, e provavelmente 
arrastaria o regresso de Pedro Passos Coelho e o 
afastamento de Montenegro.
O Presidente comentou em demasia, mas a derrota do 
PS, que serve a sobrevivência do PS, não é culpa dele. 
Essa mania católica da culpa não serve. O chefe do 
PS fará bem em demarcar-se dos fracassos anteriores 
e trilhar outro caminho. O PS seráoposição, claro, 
mas terá de medir como e quando será oposição, 
porque o país não lhe pertence inteiro. Nada será como 
dantes, segundo o lugar-comum. Um partido pode 
ser oposição durante anos e nada ganhar, definhando. 
O PS não está habituado a travessias do deserto, está 
habituado a autoestradas.
Para o PS seria mais fácil ter Passos Coelho do outro 
lado, porque a atitude conciliadora de Montenegro, 
visível no discurso, lhe trará problemas. Guina mais 
à esquerda e perde votos. Tudo depende do modo 
como Montenegro e os seus copilotos conduzirem o 
carro. Se se mantiverem na estrada, passe a imagem, 
o PS será acusado de provocar o acidente, acolitado 
por uma extrema-esquerda sem expressão. Se 
saírem da estrada, mais facilmente acusarão 
o PS ou o Chega. E o Chega tudo fará para 
minar Montenegro. Tudo. Se o PS ajudar, 
Montenegro sairá de cena depois de 
/ CLARA 
FERREIRA 
ALVES
P L U M A C A P R I C H O S A
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A primavera está a florescer
E 6
fisga +E Culturas Vícios
CRÓNICAS
FICHA 
TÉCNICA
Diretor 
João Vieira Pereira 
Diretor-Adjunto 
Miguel Cadete
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Diretor de Arte 
Marco Grieco
Editor 
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Editor de Fotografia 
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Coordenadores 
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lguerra@blitz.impresa.pt
Coordenadores Gerais de Arte
Jaime Figueiredo (Infografia) 
Mário Henriques (Desenho)
9 | Florestas 
As áreas florestadas estão 
a encolher tanto em 
Portugal como no resto do 
mundo. Assim como a água
12 | O Que Eu Andei 
Para Aqui Chegar 
Um currículo visual 
de Da’Vine Joy Randolph
14 | Planetário 
Uma princesa no circo 
Por João Pacheco
18 | Ideias 
A ameaça da política 
messiânica 
Por Ian Buruma
20 | Luís Montenegro 
O custo de ganhar 
uma eleição
34 | Stephen Jay Gould 
O percurso inesperado de 
um historiador e estudioso 
da evolução humana
40 | Louis Menand 
Entrevista ao 
crítico e historiador 
norte-americano, vencedor 
de um Pulitzer e colaborador 
regular da “New Yorker”
49 | “Metade-Metade” 
A parceria entre 
a fadista Aldina Duarte 
e a rapper Capicua
52 | Yoko Ono A exposição 
na Tate Modern, em Londres, 
convida a compreendê-la
54 | Livros “A Fraude”: 
primeiro romance histórico 
de Zadie Smith
58 | Cinema Dois filmes 
mostram o Brasil em carne 
viva
60 | Televisão “A Donzela”, 
uma aventura medieval 
para Millie Bobby Brown
62 | Música Sérgio Godinho 
celebra os 50 anos da 
Revolução de Abril
66 | Teatro & Dança Edward 
Albee no palco do Trindade
68 | Exposições 
A pintura de Cruz-Filipe 
na Gulbenkian
71 | Livrarias 
Muitas delas são 
mais do que espaços 
para vender livros
74 | Receita 
Por João Rodrigues
75 | Restaurantes 
Por Fortunato da Câmara
76 | Vinhos 
Por João Paulo Martins
77 | Recomendações 
De “Boa Cama Boa Mesa”
78 | Design 
Por Guta Moura Guedes
79 | Tecnologia 
Por Hugo Séneca
81 | Passatempos 
Por Marcos Cruz
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 16 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
48 Os Cadernos e os Dias por Gonçalo M. Tavares | 70 Fraco Consolo por Pedro Mexia 
80 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 82 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
26
Invasão 
O ‘perigo castelhano’ 
foi sempre uma 
constante e Franco 
também fez planos 
para invadir Portugal. 
Mas a derrota da 
Alemanha nazi trouxe-o 
de volta à realidade
E D I Ç ÃO 26 81 | 1 5 / M A R Ç O / 2024
FOTOGRAFIA DA CAPA: JOSÉ FERNANDES
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E 9
Há milénios que os humanos andam a 
cortar árvores. Se inicialmente o faziam 
para se aquecerem e construírem 
alojamentos, nos últimos 200 anos o principal 
condutor da desflorestação tem sido a expansão 
urbana e agrícola. E com a população humana a 
caminho dos 10 mil milhões, o verde que cobre 
a Terra vai encolhendo. No início do século XX, 
essa mancha estendia-se por 48% das regiões 
num planeta então habitado por 1,65 mil milhões 
de pessoas. Chegados a 2018, quando já por cá 
viviam 7,6 mil milhões, a mancha encolheu para 
38% — menos cerca de mil milhões de hectares 
arborizados, de acordo com dados da plataforma 
Our World in Data. E a razão de tal desflorestação 
está sobretudo ligada ao que produzimos e 
comemos, sem olhar aos outros serviços que as 
árvores nos dão.
AS ÁREAS FLORESTADAS MUNDIAIS CONTINUAM A 
ENCOLHER E EM PORTUGAL TAMBÉM. NUMA ALTURA EM QUE 
O PAÍS ESTÁ PINTADO DE LARANJA, ROSA E PRETO, O VERDE 
QUE NOS DÁ SOMBRA, AR E ÁGUA CONTINUA A ESVAIR-SE
TEXTO CARLA TOMÁS INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES 
ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO
A árvore 
dá vida
fisga
“Q U E M S A B E T U D O É P O R Q U E A N DA M U I TO M A L I N F O R M A D O”
E 10
No início do século XXI, as árvores já só 
cobriam um terço da área terrestre habitável, 
tendo desaparecido globalmente 150 milhões 
de hectares de floresta só na década de 1980 
(o equivalente a metade da Índia), segundo o 
observatório Global Forest Watch. O planeta 
continua a perder grandes fatias de floresta, 
sobretudo nos trópicos, para dar lugar a 
culturas de soja, óleo de palma, cacau, pasto 
para gado ou operações mineiras, que servem 
para satisfazer a procura dos países mais ricos. 
Assim desapareceram seis milhões de hectares 
por ano de floresta nas duas primeiras décadas 
deste século na América Latina e no Sudeste 
Asiático. Só em 2022 esvaiu-se uma área de 
floresta tropical do tamanho da Suíça (4,1 
milhões ha), o que levou à libertação de 2,7 mil 
milhões de toneladas de carbono. Nesse ano, 
o Brasil liderou a desflorestação mundial (ver 
gráfico). “O que acontece na floresta não fica na 
floresta”, lembrou então a perita do GFW Frances 
Seymour, alertando para as consequências em 
cascata com o aumento das temperaturas, ondas 
de calor e secas, ameaçando a atividade agrícola 
e a saúde humana.
Para tentar travar o problema e reverter a 
desflorestação até 2030, 145 países assinaram 
um compromisso na conferência do Clima de 
Glasgow, em 2021. Porém, com pouco sucesso 
até agora. Em 2022, a desflorestação aumentou 
globalmente 10% face ao ano anterior. Com Lula 
da Silva no poder, o Brasil aderiu ao compromisso 
e conseguiu diminuir a desmatação na Amazónia 
em 62% em 2023 face a 2022, mas no Cerrado 
aumentou 43%. Só o Canadá viu as chamas 
devastarem 9,5 milhões de hectares — uma área 
equivalente a Portugal inteiro — em 2023, o que é 
também preocupante porque as florestas boreais 
da América do Norte ou da Europa armazenam 
30 a 40% do carbono terrestre. Cerca de 35% 
da área territorial europeia (227 milhões de 
hectares) é ocupada por floresta e esta aumentou 
9% em 30 anos, segundo o Relatório sobre o 
Estado da Floresta na Europa 2020. Porém, em 
Portugal, na Bósnia, na Albânia e na Suécia a 
tendência foi de decréscimo.
PORTUGAL PERDE
Dados do Global Forest Watch, publicados em 
2019, indicavam que Portugal perdeu 24,6% 
da floresta entre 2001 e 2014, colocando-o no 
topo dos países com maior perda de coberto 
arbóreo, o que era justificado por conversões 
urbanas, turísticas e industriais, pela construção 
de infraestruturas rodoviárias e pelos incêndios 
(sobretudo os de 2003 e 2005). No mesmo ano, 
Portugal publicou o 6º Inventário Florestal 
Nacional com base em dados de 2015 e apontava 
para que “a tendência de diminuição de área de 
floresta verificada desde 1995 se inverteu em 2015, 
com um ligeiro aumento de 60 mil ha (+1,9%)”.
Por estes dias só se pensa no país em tons de 
laranja, rosa e negro, mas o verde dos espaços 
florestais (incluindo árvores, matos e terrenos 
improdutivos) pintava em 2015 dois terços do 
território continental (6,1 milhões de hectares), 
sendo que 36% eram terrenos arborizados. De 
O novo inventário florestal vai avançar este ano 
e o concurso público para o efeito foi aberto 
a 26 de fevereiro último. Agora, o Instituto de 
Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) 
vai juntaresforços com a Direção-Geral do 
Território “para não haver discrepâncias na 
informação recolhida entre as duas entidades 
e permitir ter informação detalhada sobre 
vegetação, biomassa, altura das árvores e 
capacidade de sequestro de carbono”, esclarece 
ao Expresso o coordenador do inventário, José 
Sousa Uva. O especialista do ICNF sublinha que “a 
floresta portuguesa tem uma grande capacidade 
de resiliência”, apesar de ser com frequência 
fustigada por incêndios e ter problemas de 
fitossanidade, associada sobretudo ao nemátodo 
do pinheiro. Mas nos anos mais recentes têm 
surgido outros problemas associados a ordens 
de abate de sobreiros e azinheiras por alegado 
“imprescindível interesse público” associado à 
construção de megaparques solares, barragens e 
outras infraestruturas rodoviárias, ferroviárias ou 
parques industriais. Só entre 2011 e 2023, tiveram 
ordem de abate perto de 35 mil sobreiros por 
despachos publicados em “Diário da República”. 
Entre os mais polémicos, esteve a aprovação do 
corte de 1821 sobreiros para viabilizar o Parque 
Eólico de Morgavel, perto de Sines. Lembraram 
então os ambientalistas que a produção de energia 
renovável não pode ser pretexto para degradar o 
território, afetar a biodiversidade e a redução do 
sequestro de carbono.
Ainda sem dados do inventário, vão sendo feitos 
alguns estudos, como os da equipa do MED 
— Instituto Mediterrâneo para a Agricultura, 
Ambiente e Desenvolvimento, coordenados pelo 
investigador Nuno Guiomar, que apontam para 
“uma perda em área de todas as espécies arbóreas 
entre 2020 e 2023”. Neste período, esclarece 
ao Expresso, “perderam-se 55 mil hectares de 
pinheiro, sobretudo devido a incêndios e doenças, 
e 22 mil hectares de eucaliptal, por não ser 
rentável em todo o lado”. Os cálculos apontam 
também para “perdas de 1000 a 2000 hectares 
por ano de sobreiro e azinheira, sobretudo 
devido à seca e a um declínio lento potenciado 
pela atividade humana”, explica o engenheiro 
biofísico. A segunda causa está relacionada com 
os incêndios e a terceira “os cortes, autorizados ou 
não para dar lugar a parques solares ou a áreas de 
regadio”, acrescenta.
Nuno Guiomar esclarece também, que mesmo 
quando os sobreiros ou as azinheiras não são 
cortados, “a mobilização do solo para dar 
lugar a um olival intensivo acaba por afetar o 
sistema radicular (raízes) e as árvores acabam 
por morrer ao fim de alguns anos”. Por isso, 
receia que se venha a acentuar o declínio desta 
espécie emblemática nacional e defende que as 
medidas compensatórias “devem ser três vezes 
superiores às que estão a ser postas em prática” 
e que é preciso verificar se as plantações ou o 
restauro ecológico estão a vingar. Remunerar 
adequadamente os serviços de ecossistemas que 
as florestas nos prestam ao nível da produção 
de água, oxigénio e sequestro de carbono é 
necessário. b
ENTRE 2020 E 2023 PERDERAM-SE 55 
MIL HECTARES DE PINHEIRO, DEVIDO 
A INCÊNDIOS E DOENÇAS, 22 MIL HA 
DE EUCALIPTAL, E 1000 A 2000 HA 
POR ANO DE SOBREIRO E AZINHEIRA
acordo com o inventário de 2015 os montados 
de sobro e azinho representavam um terço 
da floresta nacional (cerca de um milhão de 
hectares), seguido de pinhal (bravo e manso com 
cerca de 900 mil ha), e em terceiro surgiam os 
eucaliptais (845 mil ha). Esta avaliação também 
permitiu verificar que entre 1995 e 2015 se 
perderam 27 mil hectares de sobreiros e 264 mil 
ha de pinheiro bravo (maioritariamente devido 
aos incêndios) e que o eucalipto cresceu 128 mil 
ha. Só em 2015 é que surgiu regulamentação para 
travar a expansão de eucalipto.
fisga
Floresta
Matos e pastagens
Agricultura
Territórios artificializados
Águas interiores
Improdutivos
36
31
24
5
2
2
OCUPAÇÃO DO SOLO NACIONAL EM 2015
Em %
Sobreiro e azinheira
Eucalipto
Pinheiro bravo
Pinheiro manso
Outras folhosas
Outras resinosas
2020 
2023
860.284
856.323
808.459
786.203
421.754
367.135
136.301
121.674
437.405
424.962
19.188
16.818
VAR. 2020/23
-3960 
-22.256 
-54.619 
-14.627 
-12.443 
-2371
FONTE: DGT
ÁREA DE FLORESTA EM PORTUGAL
Em hectares
Brasil
R. D. Congo
Bolívia
Indonésia
Peru
Colômbia
Laos
Camarões
1773 (43%*)
513
386 (32%**)
230
161
128
93
76
PAÍSES COM MAIOR PERDA 
DE FLORESTA HÚMIDA PRIMÁRIA EM 2022
Em milhares de hectares
*da perda mundial deste tipo de floresta 
**aumento de 32% face a 2021
FONTE: STATISTA
FONTES: RELATÓRIO DO 6º INVENTÁRIO 
FLORESTAL NACIONAL (2019) ICNF
REVELA POTÊNCIA
Gama Range Rover Sport 24MY: consumo combinado WLTP 0,6-12,5 l/100 km, emissões combinadas de CO₂ WLTP 15-282 g/km. 
Valores obtidos nos testes oficiais do fabricante com uma bateria carregada de acordo com a legislação da UE. As emissões de CO₂, o consumo de combustível, o consumo de energia e a autonomia 
podem variar em condições reais e em função de fatores como o estilo de condução, as condições ambientais, o equipamento, a carga, o estado da bateria e o percurso. Valores de autonomia baseados 
num veículo standard num percurso normalizado.
E 12
Da’Vine Joy Randolph
O Óscar de Melhor Atriz Secundária, pelo papel em “Os Excluídos”, em exibição 
em Portugal, coroa o percurso de Da’Vine Joy Randolph, que tem passado pelo 
teatro musical, pelas séries e também pelos filmes de animação. Após receber o Óscar, 
disse que o mesmo é “uma carta de amor às mulheres negras”. / LIA PEREIRA
O Q U E E U A N D E I PA R A A Q U I C H E GA R 
U M C U R R Í C U LO V I S UA L
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R
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1986
Alegria divina
Nasce em Filadélfia, nos Estados 
Unidos, no dia 21 de maio. Felizes 
com a chegada da bebé, os seus 
pais, que tentavam conceber há 
sete anos, chamaram-lhe Da’Vine 
Joy, ou seja, “alegria divina”.
2011
Teatro musical
Depois de estudar canto e 
ópera, acaba por mudar de 
curso e concentrar os seus 
esforços na aprendizagem 
de teatro musical. Em 2011, 
recebe o ‘canudo’ da Escola 
de Representação de Yale.
2012
Da Broadway 
para Londres
Candidata-se a um lugar 
no elenco do musical da 
Broadway “Ghost”, que 
iria subir ao palco no West 
End de Londres. Quando 
a protagonista da peça 
sofre uma lesão, voa para 
Inglaterra para substituí-la. 
Acaba por ser nomeada 
para um prémio Tony, por 
Melhor Atriz num Musical.
2013
Robin Williams
Participa no seu primeiro 
filme, “Mother of George”, 
como atriz secundária. No 
ano seguinte, desempenha o 
papel de uma enfermeira na 
comédia dramática “Aproveita 
a Vida, Henry Altmann”, 
com Robin Williams.
2016
Mundo das séries
Depois de integrar o elenco 
de séries como “The 
Good Wife”, garante uma 
participação recorrente em 
“This Is Us”, como Tanya. 
Participará, também, 
em “Empire” e “Veep”.
2019
Eddie Murphy
Chama as atenções com o seu 
papel como Lady Reed em 
“Dolemite Is My Name”, com 
Eddie Murphy. É nomeada para 
numerosos prémios, como atriz 
secundária, e assegura lugar em 
filmes como “Alta Fidelidade”, 
em 2020, ou “The United States 
vs. Billie Holiday”, em 2021.
2022
Gato das Botas
Da’Vine Joy Randolph 
tem também emprestado 
a sua voz a personagens 
de filmes de animação. 
Em 2022, dá vida a Mama 
Luna, uma senhora que 
abriga dezenas de gatos 
vadios, em “Gato das 
Botas: o Último Desejo”.
2024
O primeiro Óscar
O papel como Mary Lamb, 
cozinheira de uma escola 
que perdeu o filho na Guerra 
do Vietname, rende-lhe 
o Óscar de Melhor Atriz 
Secundária. “Sempre quis ser 
diferente; afinal, só preciso 
de ser eu própria”, agradeceu, 
emocionada.
fisga
E 14
Esta imagem é do vídeo de 2022 “Caminho para as Estrelas”, de 
Mónica de Miranda. E a partir de 20 de setembro fará parte em Lisboa 
da exposição “Linha de Maré”. Com obras da Coleção do CAM, o 
Centro de Arte Moderna Gulbenkian. De autores como Ana Jotta, 
Artur Cruzeiro Seixas ou Paulo Nozolino.
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EDIMBURGO
A voz de Youssou N’Dour tem poderes 
curativos contra a xenofobia, por exemplo 
na música ‘7 Seconds’, cantada com Neneh 
Cherry. E o músico senegalês estará em 
Edimburgoa 13 de agosto, às 20h, no 
Usher Hall. Antes e depois, de 2 a 25 de 
agosto, serão muitas as estrelas a passar 
pelo Edinburgh International Festival. Há 
espaço também para teatro, dança, ópera 
e música clássica. E para músicos como 
The Magnetic Fields, Chilly Gonzales ou 
Cat Power. Tudo boa medicina.
BRUXELAS
Em 1937, a guerra alastrava em Espanha. E 
Max Ernst pintou assim a monstruosidade 
do franquismo. Agora e até 21 de julho, 
esta pintura festeja em Bruxelas os 100 
anos do surrealismo, contados a partir da 
publicação em 1924 do “Manifeste du 
Surréalisme”. É na exposição “Imagine!” 
do Musées Royaux des Beaux-Arts de Bel-
gique, com obras de artistas como Giorgio 
de Chirico, Joan Miró, Leonor Fini, Man Ray 
e Salvador Dalí.
FLASHES
VENEZA
Estrangeiros em toda a parte
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só, um bom momento para contrariar este 
vírus será a próxima exposição internacional 
de arte da Bienal de Veneza, de 20 de abril 
a 24 de novembro. A curadoria é de Adriano 
Pedrosa, diretor do Museu de Arte de São 
Paulo Assis Chateaubriand. E incluirá obras 
de artistas como Candido Portinari, Claudia 
Andujar, Diego Rivera, Frida Kahlo, Kiluanji 
Kia Henda, Lina Bo Bardi, Malangatana e 
Tina Modotti. E do duo parisiense 
baseado em Palermo Claire 
Fontaine, que tem trabalhado em 
dezenas de línguas a frase “Stranieri 
Ovunque”. Significa “Estrangeiros 
em Toda a Parte” e é também o 
mote global desta edição da Bienal 
de Veneza. Sim, bem sei que o vírus 
está forte. Mas nunca é tarde.
A xenofobia é um vírus. Pode espalhar-se 
em qualquer corpo, mas ganha mais força 
quando encontra sociedades em crise. O 
vírus do ódio aos estrangeiros e ao estranho 
navega por séculos e atravessa continentes 
e gerações. Talvez seja eterno, mas pode 
ir sendo parado, curado e prevenido. Viajar 
ajuda muito, viver fora também. Mesmo 
em casa e em qualquer fase da doença, 
recomenda-se a exposição a 
tudo o que seja estrangeiro. 
Afinal, somos todos estrangeiros. 
Como percebemos ao fim 
de pouco tempo, porque o 
tratamento funciona mesmo.
Perante o crescimento da 
xenofobia cavalgada pela 
extrema-direita na Europa e não 
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LONDRES — CHICAGO
Uma princesa 
no circo
Era uma princesa vinda de África. E perdera a 
liberdade, sendo vendida como escrava. Aliás, a 
estrela de circo Miss La La nasceu na Prússia, numa 
cidade que agora é polaca. E tinha 21 anos quando 
foi assim retratada em janeiro de 1879, com beleza 
e força, pelo pintor Edgar Degas. Chamava-se Anna 
Albertine Olga Brown e era filha de pai negro e de 
mãe branca. A propósito, a mãe de Degas era de Nova 
Orleães. E quando conheceu Miss La La, o pintor 
já viajara sete anos antes até Nova Orleães, onde 
conheceu uma parte da família. Já a suposta origem 
desta artista de circo foi apenas um dos rumores 
postos a circular, com o objetivo de vender mais 
bilhetes. Durante quatro noites seguidas, Degas 
foi um dos interessados no espetáculo do Cirque 
Fernando, perto da Place Pigalle. E dessas noites 
nasceu esta pintura a óleo, depois de vários estudos 
feitos com carvão, lápis e pastel. E com a ajuda de um 
desenhador de arquitetura, para que o teto do circo 
ficasse mais próximo da realidade.
Além de ser apresentada como Miss La La, a 
protagonista era também conhecida como La Femme 
Canon ou La Mulatresse-Canon. Chamavam-lhe a 
Mulher Canhão ou a Mulata Canhão porque uma das 
proezas mais impressionantes passava por aguentar 
o peso de um canhão suspenso, só com os dentes e os 
maxilares. A partir de 6 de junho e até 1 de setembro, 
esta história será contada em Londres através de 
pinturas, desenhos e fotografias, na exposição 
“Discover Degas & Miss La La”, na National Gallery.
Esta pintura de Miss La La criada por Degas serviu de 
inspiração ao escultor Juan Muñoz (1953-2001), que 
criou uma série de esculturas de homens pendurados 
por cordas, pela boca. Já no mesmo circo onde Degas 
conheceu em Paris a leveza e a força de Miss La La, os 
pintores Henri de Toulouse-Lautrec e Pierre-Auguste 
Renoir terão ficado interessados em outras cenas 
circenses. De Toulouse-Lautrec, pode ser vista no Art 
Institute of Chicago a pintura “Equestrienne”, que 
mistura humor com cavalaria. E no mesmo museu 
em Chicago lá estão as irmãs acrobatas Francisca e 
Angelina Wartenberg, retratadas por Pierre-Auguste 
Renoir. O circo era outro mundo. Com um lado 
carnavalesco, que bem podia significar liberdade. b
P L A N E TÁ R I O
N O C A M I N H O DA S E S T R E L A S
P O R J OÃO PAC H E C O
fisga
E 16
A IA PODE MATAR A 
DEMOCRACIA JÁ EM 2024
NÃO ACREDITO EM NADA QUE VEJO E OUÇO. TUDO O QUE 
UM POLÍTICO DIZ É FALSO. OU NÃO. A VERDADE MORREU
á umas semanas, começaram 
a surgir nas redes sociais 
americanas umas imagens de 
Trump, sorridente, sentado 
num alpendre com uma família 
negra a posar feliz. A legenda 
alegava que o candidato a 
Presidente tinha parado a sua 
comitiva para conviver com 
aquelas pessoas. Acontece que 
essa e outras imagens similares 
eram falsas — criadas por 
inteligência artificial. Nem sequer foram produzidas pela sua campanha, 
mas por um radialista pró-Trump. E foram denunciadas. Mas Trump 
não teve problema em as publicar sem nenhuma referência a serem 
falsas. Nem essas nem as de ele a rezar ajoelhado com a luz da catedral a 
bater-lhe na cara a dar-lhe um toque de santidade (embora tivesse seis 
dedos). Ou a posar ao lado de Martin Luther King numa foto a preto e 
branco, supostamente em 1968, embora Trump só tenha aí menos uns 
15 anos do que tem agora. Para quê desperdiçar imagens tão boas, se 
bem que falsas? Há dias, um movimento republicano anti-Trump fez 
uma recolha de imagens em que se vê o ex-presidente a “quase cair, a 
perder-se no discurso, a enganar-se vezes sem conta e a dizer patetices” 
— exatamente do que acusa o seu adversário Joe Biden. Trump reagiu 
a dizer que se tratava de imagens falsas feitas por inteligência artificial 
só para o fazer tão patético como Biden. Não eram. Eram verdadeiras. 
Como ninguém, Trump sabe usar o que se chama de “dividendo do 
mentiroso”. O mentiroso ganha sempre. Já foi assim com as fake news. 
Quando o acusaram de as disseminar, ele acusou os adversários de serem 
os criadores das fake news, até ninguém perceber do que se falava.
Uma coisa a ter em conta. As ferramentas que esta “IA bebé” está a 
disponibilizar são incríveis e este é o ano em que metade da população 
do planeta vai a votos. Uns 80 países. Dos EUA ao México, passando 
pela Índia até à UE. Já tínhamos atingido um grau de desinformação tão 
grande que se afirmava que talvez se tenha criado o “cidadão apático” 
perante a existência da verdade ou da mentira. Não estamos preparados 
para o potencial de estragos que a IA pode ter nos processos eleitorais. 
Exagero? O único local onde Biden perdeu as primárias foi na Samoa. 
Um investidor de capital de risco em tecnologia garante que gastou 
apenas uns milhares de dólares num programa banal de IA e colocou 
lá uma equipa de cinco pessoas, o que bastou para vencer as eleições. 
Nunca pôs os pés na ilha do Sul do Pacífico, mas usou bots diferenciados 
com a voz do candidato a telefonar aos votantes. Deveria ser um aviso.
As eleições de junho na União Europeia vão ser um teste. As empresas de 
tecnologia deram a sua palavra de que iam agir e a comissão aprovou uma 
lei toda XPTO. Mas os críticos dizem que não há orçamento para contratar 
‘Oppenheimers’ para criar defesas efetivas. As eleições na Europa são 
uma complicação, dado o seu mosaico de 27 países, de línguas, de 
problemas múltiplos, contraditórios, e que resulta numa complexidade 
de nomes e candidaturas que torna tudo mais difícil do ponto de vista 
da autodefesa. Junte-se a deriva populista interna mais propensa a usar 
este tipo de ferramentas, a que se junta a Rússia e a China ativamente a 
quererem influenciar eleições, e pode dizer-se que as eleições de junho 
são uma incógnita quanto ao impacto da IA no processoeleitoral.
Com a IA, há finalmente uma “democratização da desinformação”. O 
que antes só era possível com grandes orçamentos é agora acessível com 
poucos euros e um nerd a gerir a criação automatizada de títulos falsos, 
a imitar o layout dos jornais, por vezes já dirigidos a públicos definidos, 
por exemplo. Uma das preocupações são os deepfakes (as imagens falsas 
com a pessoa a falar), mas é possível que este ainda não seja o ano deles. 
O mais provável é aparecerem áudios falsos, dado que são mais fáceis 
de produzir. As aplicações são baratas — supostamente criadas para 
miúdos fazerem partidas —, e com apenas um discurso de um político 
apreendem a tonalidade, timbre, trejeitos, e podem colocá-lo a dizer 
qualquer coisa. A campanha eleitoral americana ainda conta com o 
telefone: milhões de bots podem ligar com vozes falsas a dizer o que 
se quiser. O que coloca o problema contrário: a partir de determinada 
altura, qualquer coisa criminosa que um político diga irá sempre 
argumentar que se trata de IA. É a total erosão da verdade. Um mundo 
da “pós-verdade” em que ser verdade ou não é indiferente. As imagens 
deixam de ter valor. Antes, dizia-se “ver para crer”. Vejo, mas decido se 
creio dependendo no que acredito. Isso leva a uma desconfiança total nas 
instituições. É o cidadão paranoico. E é aqui que a democracia começa a 
estar verdadeiramente em perigo. 
E é o que está a acontecer. As democracias em geral estão sob tensão. Se 
juntarmos a IA, “temos uma tempestade perfeita de desinformação”. Até 
agora, a IA generativa nas redes sociais tem ajudado a disseminar teorias da 
conspiração que se expandem a “fábricas de armas biológicas na Ucrânia” 
para alertar a perceção dos EUA às eleições no Paquistão ou na Eslováquia.
No final de 2024, saberemos se o mundo e essa invenção americana e 
europeia que é a democracia resistiram à IA, aos populismos em esteroides 
e à ingerência de autocracias. Há um ditado de um país qualquer que vi 
aplicado à regulamentação da IA que dizia que enquanto a mentira dá a volta 
ao mundo a verdade calça os sapatos. Há quem acredite que as empresas 
de tecnologia vão fazer alguma coisa, ou que as leis da UE vão parar a 
desinformação. É uma improbabilidade. Ou que o bom senso das pessoas irá 
detetar o verdadeiro e o falso. Tudo aponta para o contrário. Vão acreditar no 
que agrade aos seus enviesamentos. Mesmo que seja uma mentira gritante. 
E a IA já estará no controlo. b
lpnunesxxx@gmail.com
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O M I T O L Ó G I C O
/ LUÍS
PEDRO 
NUNES
E 18
I D E I A S
TEXTO IAN BURUMA AUTOR DO NOVO LIVRO “THE COLLABORATORS: 
THREE STORIES OF DECEPTION AND SURVIVAL IN WORLD WAR II”
A AMEAÇA DA POLÍTICA 
MESSIÂNICA
O DESEJO DE SE SUBMETER A UMA ENTIDADE SUPERIOR, DE ACREDITAR NA VIDA ALÉM DA MORTE, 
DE DIVIDIR O MUNDO EM CRENTES E NÃO CRENTES, E DE CELEBRAR AS FASES DA VIDA COM RITUAIS 
SAGRADOS É UMA CARACTERÍSTICA HUMANA UNIVERSAL. MAS O LUGAR DESSES DESEJOS NÃO É 
NOS DISCURSOS POLÍTICOS. AS AUTORIDADES RELIGIOSAS E POLÍTICAS NÃO SE PODEM SOBREPOR
o dia 22 de janeiro, o primeiro-ministro indiano 
Narendra Modi inaugurou o Ram Mandir, um vasto 
novo templo hindu em Ayodhya. “O sumo sacer-
dote do hinduísmo”, nas palavras do seu biógrafo, 
Modi levou oferendas e bênçãos a um ídolo do Lord 
Ram, uma das divindades hindus mais reverencia-
das, que supostamente nasceu neste local sagrado. 
O templo é também um poderoso símbolo político 
para Modi e para o seu partido no poder, Bharatiya 
Janata (BJP): foi construído sobre as ruínas de uma 
mesquita do século XVI que uma multidão de naci-
onalistas hindus, incitada pelos líderes do BJP, de-
moliu em 1992, provocando motins sectários que 
resultaram em 2000 mortos.
Modi promete criar uma “nova Índia”, o que 
para ele significa uma Índia hindu, onde os mais de 
200 milhões de muçulmanos do país serão vistos 
como intrusos. Na verdade, esta mistura deliberada 
de religião e política é inconstitucional na Índia. O 
primeiro primeiro-ministro indiano independen-
te, Jawaharlal Nehru, bem como o líder político e 
espiritual Mahatma Gandhi, reconheceram o quão 
explosiva uma luta religiosa poderia ser numa soci-
edade multirreligiosa e multiétnica, razão pela qual 
insistiram que a Índia fosse um estado secular.
O desejo de minar o estado secular apareceu 
muito antes de Modi. O homem que assassinou Ma-
hatma Gandhi era membro da Rashtriya Swayam-
sevak Sangh, uma organização nacionalista parami-
litar hindu com ligações ao BJP que desempenhou 
um papel importante na destruição da mesquita em 
Ayodhya. Em 1986, agitadores hindus aproveitaram 
N
a decisão falaciosa do então primeiro-ministro Ra-
jiv Gandhi de ceder às exigências dos muçulmanos 
permitindo que a lei islâmica anulasse uma decisão 
do Supremo Tribunal que defendia o direito de os 
divorciados muçulmanos receberem pensão de ali-
mentos para lá de 90 dias. Usando esta exceção para 
fazer renascer ressentimentos hindus, esses agita-
dores trouxeram o nacionalismo hindu das franjas 
da sociedade para o centro da política indiana.
Infelizmente, Modi não está sozinho nesta de-
cisão de abraçar uma política religiosa. Por incrível 
que pareça o ex-Presidente norte-americano, Do-
nald Trump, um predador sexual obsceno, está a ser 
rotulado pelos seus seguidores como um salvador 
da cristandade, que irá limpar os Estados Unidos de 
esquerdistas, feministas, gays, imigrantes, elitistas 
liberais e outros pecadores. Um vídeo promocional 
recentemente publicado no site de Trump, Truth So-
cial, cola-se a esta narrativa, afirmando: “Deus pre-
cisava de alguém disposto a entrar no ninho de ví-
boras. Denunciem as notícias falsas vindas das suas 
línguas afiadas como as de uma serpente. O veneno 
das víboras está nos seus lábios. Por isso Deus cri-
ou Trump.”
Os pentecostistas evangélicos, como os católicos 
reacionários, acreditam agora que Trump é mais do 
que uma figura política. O ex-Presidente foi ungido 
por Deus para tornar a América grande outra vez. 
Sim, está a ser processado por agredir uma mulher, 
por anular uma eleição através da violência e por 
cometer fraude, mas isso mostra como é um mártir 
perseguido por inimigos maus, tal como Jesus Cristo.
E 19
A política religiosa é a maior ameaça para a de-
mocracia, mais do que a desigualdade social ou eco-
nómica, os políticos mentirosos ou a corrupção, que 
são suficientemente maus. Existem instituições de-
mocráticas liberais para resolver conflitos de inte-
resses. Disputas sobre impostos, uso da terra, subsí-
dios agrícolas, etc., podem ser resolvidas através de 
discussões e compromissos entre partidos políticos. 
Mas os assuntos sagrados não podem. A verdade de 
Deus não é negociável.
É por isso que um grupo religioso militante como 
o Hamas não pode ser um partido político democrá-
tico. Num Estado islâmico radical, não há espaço 
para debate ou compromisso. O mesmo é válido para 
extremistas religiosos israelitas que acreditam que os 
seus direitos são justificados pela Bíblia. Os direitos 
da água são discutíveis; a terra sagrada não é.
A questão não é tentar curar a humanidade das 
crenças religiosas. O desejo de se submeter a uma 
entidade superior, de acreditar na vida além da 
morte, de dividir o mundo em crentes e não cren-
tes, de insultar os pecadores e adorar os santos e de 
celebrar as fases da vida com rituais sagrados é uma 
característica humana universal. Mas o lugar desses 
desejos é nas igrejas, templos, sinagogas e santuári-
os, não nos discursos políticos. As autoridades reli-
giosas e políticas não se podem sobrepor.
Nehru compreendeu este conceito. Thomas Jef-
ferson compreendeu este conceito. E muitos líderes 
cristãos, especialmente os protestantes que não que-
riam que o estado secular se envolvesse em assuntos 
religiosos, também compreenderam este conceito. 
Os católicos têm tido mais problemas com a separa-
ção entre a igreja e o estado, mas a maioria aprendeu 
a viver com ela.
A razão pela qual tantas democracias estão agora 
ameaçadas pela política messiânicanão é porque a 
religião organizada ganhou força. Na verdade, acho 
que é exatamente pelo oposto. Na maior parte das 
democracias ocidentais, pelo menos, a autoridade 
da igreja entrou em colapso quase totalmente. Isto 
é verdade mesmo nos EUA: embora a maioria das 
pessoas ainda considere ser crente de uma ou ou-
tra fé, muitos cristãos americanos, especialmente 
aqueles que são atraídos para Trump como salvador, 
seguem pregadores independentes ou empreende-
dores espirituais.
Em muitas partes da Europa, onde o populismo 
de direita está a aumentar, a erosão da autoridade 
da igreja a partir dos anos 60 deixou à deriva todos 
os que iam à igreja regularmente e esperavam que os 
seus sacerdotes e pastores lhes dissessem como vo-
tar. Hoje, estão ansiosos e perplexos pelas mudan-
ças demográficas, políticas, sociais, sexuais e eco-
nómicas, e procuram um salvador que os leve para 
um mundo mais simples, mais certo e mais seguro. 
Há muitos demagogos famintos de poder desejosos 
de satisfazer esse desejo. b
e@expresso.impresa.pt
Tradução Joana Henriques
Copyright: Project Syndicate, 2024
A razão pela 
qual tantas 
democracias 
estão agora 
ameaçadas 
pela política 
messiânica 
não é porque 
a religião 
organizada 
ganhou força. 
Na verdade, 
acho que é 
exatamente 
pelo oposto
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PROMESSA “The Messianic Era: Israel And The Law”, John Singer Sargent (1903)
E 20
TEXTO 
SEBASTIÃO BUGALHO 
COLUNISTA DO EXPRESSO
E 21
O homem 
que (quase) 
conseguiu
Luís Montenegro, 
um primeiro-ministro 
em forma de ponto 
de interrogação
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 S
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E 22
governação socialista, isto é, chumbando Montene-
gro como candidato a primeiro-ministro. Olhando os 
estudos de opinião, os portugueses não o desmenti-
am na altura. Examinando os resultados da eleição 
de domingo passado, mais de 1 milhão continuam de 
acordo com o exame do Presidente. 
À data, nos bastidores do PSD, as previsões para as 
eleições europeias do verão seguinte — hoje, daqui a 
três meses — eram lúgubres, sem um candidato evi-
dente e chances de ficar atrás do PS apesar do estado 
infeliz da maioria absoluta. Entre as hostes sociais-
-democratas, discutia-se a saída de Montenegro como 
que uma inevitabilidade e os sussurros pelo regresso 
de Pedro Passos Coelho acumulavam-se nos ouvidos 
laranja. Naquele tempo, que não foi assim há tanto, 
Luís Montenegro assemelhava-se a um recluso num 
corredor da morte, pronto a juntar-se à coleção de 
opositores vergados por António Costa. As notícias em 
torno da casa do presidente do PSD e o envolvimento 
de Joaquim Pinto Moreira, seu próximo, na Operação 
Vórtex jaziam como que uma nuvem em cima da ca-
beça do líder da oposição. O seu tom, persistentemen-
te parlamentar e não de candidato a primeiro-minis-
tro (“O Orçamento pipi, betinho e arranjadinho”), 
roçava o inadequado e a ambiguidade sobre o Chega 
(ainda não havia “não é não” definitivo) perseguia-o, 
tanto quanto o fantasma de Passos Coelho. 
Sem exagero, Montenegro esteve em vias de ser 
afastado antes de sequer disputar uma eleição em 
seu nome. 
Apesar de tudo isso, foi com um sorriso que se sen-
tou à mesa num dos seus pousios prediletos, à beira do 
Tejo, em Lisboa. Menos esguio do que nos tempos de 
líder parlamentar, talvez já engordado pela volta pe-
los concelhos do país, já andava sem relógio de pulso 
e em mangas arregaçadas. Para entrada, o seu favori-
to, uma sardinha no pão torrado. “Eu estou convenci-
do de que vou ser primeiro-ministro”, afirmaria, sem 
pestanejar, ao seu comensal. “Tenho é de emagrecer 
um pouco até lá”, sorriria, com o longínquo 2026 ain-
da como horizonte. 
Naquele momento, sardinhas e simpatias à parte, 
provavelmente só ele acreditava que sim. Menos de 
um mês depois, rumaria à Madeira, onde o seu par-
tido falharia a maioria absoluta apesar de coligado 
com o CDS, dando com Miguel Albuquerque, caçador 
nos tempos livres, a socorrer-se inusitadamente do 
apoio do PAN para formar governo na região autóno-
ma. “Luís Montenegro 1, António Costa 0”, atiraria o 
continental, transpirado, mais uma vez fora de tom 
diante da sua primeira vitória amarga, das três que 
seriam agridoces. Albuquerque, que prometera de-
mitir-se caso falhasse a maioria, permaneceria indi-
ferentemente no cargo — hábito que, aliás, mantém. 
Num timing no mínimo desajeitado, Luís Monte-
negro poria aí termo ao tabu da relação do seu partido 
com o de André Ventura, anunciando que não gover-
naria com o apoio do Chega “nem no país nem na Ma-
deira”, sem se dar ao trabalho de explicar porquê, ex-
cetuando o facto de o PSD não necessitar de votos do 
Chega para governar o arquipélago. Pouco mais de um 
ano depois de suceder a Rui Rio na liderança da opo-
sição, Montenegro dizia finalmente ao seu eleitorado 
qual a sua política de alianças — matéria que nunca 
colheu unanimidade na sua direção; pelo contrário. 
No Expresso, dando-o já como fora do jogo, Da-
niel Oliveira assinaria uma coluna cinco dias depois 
intitulada “Pedro contra Pedro”, antevendo um futu-
ro político sem Montenegro e sem Costa, onde Pedro 
(Nuno Santos) enfrentaria Pedro (Passos Coelho). De 
N
o dia 30 de agosto de 2023, há menos de um ano, Luís 
Montenegro não ia ser o próximo primeiro-ministro 
de Portugal. O Partido Socialista havia sobrevivido 
à Comissão de Inquérito à TAP, Pedro Nuno Santos 
ia ser comentador político na SIC Notícias, João Ga-
lamba permanecia no Governo e o Presidente da Re-
pública estava publicamente desautorizado por um 
primeiro-ministro em posse de supremacia parla-
mentar, orçamental e não propriamente derrotado 
nas sondagens. As perspetivas não eram animadoras 
para o homem de Espinho, um ano depois de che-
gar à São Caetano à Lapa. No pico da crise espoleta-
da pela indemnização ilegal de Alexandra Reis, me-
ses antes, Marcelo Rebelo de Sousa considerara não 
haver “uma alternativa óbvia em termos políticos” à 
E 23
(complementando a componente pública com a pri-
vada e social) e um discurso final concluído em apo-
teose, num tributo às vidas perdidas para o feminicí-
dio em Portugal. 
Estava ali — ou tentava estar ali — um substituto 
indolor de António Costa para os 2 milhões e 300 mil 
portugueses que haviam confiado no PS há menos de 
dois anos. No fim de semana passado, não foram tan-
tos a acreditar em Luís Montenegro. 
O PACIENTE JOGADOR CONTRA 
UM TEMPO E CONTRA UM LEGADO 
O paradoxo mais interessante — e mais elucidativo — 
na personalidade política de Luís Montenegro é que o 
seu modo de ação é o de um jogador que aposta tudo 
mas que ao mesmo tempo demora a revelar o jogo que 
tem na manga. Alongando a metáfora, é quase como 
se estivesse constantemente num torneio de póquer 
em que faz o all-in sem que os seus adversários saibam 
exatamente quantas fichas estão em cima da mesa — 
muitas vezes, nem o próprio sabe. Montenegro fê-lo 
na sua dramatização de apelo ao voto útil, prometendo 
só governar sendo o mais votado e nunca com o apoio 
do Chega. Mas fê-lo também no posicionamento que 
delineou para o seu partido — ao centro —, não cli-
vando com o poder incumbente, não divergindo em 
nada que não consensual, nem prometendo nenhuma 
mudança que não a que lhe interessava para conseguir 
mudar o resto: a de Governo. 
O seu tudo ou nada não esteve só na meta que im-
pôs a si mesmo (só governar se ganhar e nunca com 
o concorrente crescente à sua direita), mas no modo 
como estacionou o PSD no lugar de substituto — e 
não de inimigo — do PS. No seu raciocínio, tal era a 
única forma de ultrapassar os anticorpos oriundos do 
tempo da troika e partir para a campanha de rua com 
a menor taxa de rejeição possível. Para tal, sacrificou 
frequentemente convicções e posições, não revelando 
as suas sobre matérias tão concretas como a regionali-
zação (foi contra o referendo, sem dizer como votaria), 
a eutanásia (foi a favor do referendo, sem dizer como 
votaria) ou a localização do novo aeroporto (consen-
sualizou o método de escolha com o Governo, semre-
velar qual seria a sua decisão). 
O recentramento montenegrista seria tal que os 
apoiantes da sua coligação com o CDS entrariam ir-
remediavelmente em choque com ele, tendo a visão 
pró-vida de um candidato a deputado embatido de 
frente com Montenegro, para quem a interrupção vo-
luntária da gravidez, não sendo um tópico consensu-
al, só poderia ser proibido. Num painel da SIC Notíci-
as, Daniel Oliveira chamar-lhe-ia mesmo candidato 
“marca branca” por nunca fugir ao mainstream. Gosto 
musical? “Coldplay.” Gastronómico? As “couves” no 
cozido à portuguesa. Clube de futebol? A “seleção na-
cional”, claro, e não o Futebol Clube do Porto, de que 
chegou a ser dirigente. Se lhe perguntassem a cor pre-
ferida, não seria impossível que respondesse instinti-
vamente “bege”. Aborto? Nem uma palavra. 
Em simultâneo, o líder do PSD — então converti-
do em Aliança Democrática — tinha de permanecer 
suficientemente apelativo à direita apesar da tentati-
va de parecer inofensivo à sua esquerda. E contra uma 
ameaça berrante, como os resultados de domingo pro-
varam, era mais difícil ser “bege”. A única coisa de 
“direita” que Luís Montenegro ousou representar foi 
a oportunidade de alternância ao PS, ao fim de nove 
anos. De resto, excetuando o pouco falado programa 
económico (divulgado no dia em que o governo, desta 
vez o madeirense, foi alvo de buscas), em que é que o 
PSD se distinguiu do PS além de não ser o PS? Para a 
maioria dos eleitores, mirando os números, em pou-
co. Nesta eleição, nem a sustentabilidade da Seguran-
ça Social se pôs em causa. 
O seu cuidado para não afugentar o eleitorado do 
Chega, todavia, esteve sempre lá. Expressões que focus 
group davam como tóxicas para os votantes de Ventu-
ra, como “cordão sanitário”, nunca saíram da boca do 
líder da AD. Confissões de “centrismo”, como as repe-
tidas ad nauseam por Rui Rio, nunca se deram. Mon-
tenegro colocou-se no centro, nunca se proclamou 
dele. E tinha a ver com não abdicar da direita ape-
sar de namorar os demais. Se repararmos, o conceito 
de “reformas estruturais”, que tanta alergia causava 
ao costismo, também não integrava a mensagem de 
CAMINHADA À saída 
do elevador, no 
domingo à noite, a 
caminho do discurso 
de vitória e após duas 
semanas de campanha 
eleitoral, Luís 
Montenegro atingiu 
um patamar que, 
há menos de um ano, 
parecia 
absolutamente 
improvável — estar na 
primeira linha para ser 
o primeiro-ministro 
de Portugal; O líder 
do PSD procurou não 
afugentar o eleitorado 
de André Ventura 
e do Chega, e teve 
um discurso cuidado, 
evitando expressões 
como “cordão 
sanitário”; Pedro Nuno 
Santos assumiu a 
derrota e declarou-se 
líder da oposição
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um modo, para muitos, era como se ele já não con-
tasse e os corredores do PSD não eram alheios à sen-
sação. A dúvida já não era se Montenegro seria ou não 
seria primeiro-ministro; era se chegaria sequer às le-
gislativas. Uma semana mais tarde, o Hamas entraria 
em território israelita para tirar mais de um milhar 
de vidas e mergulhar o Médio Oriente em guerra. A 
política doméstica mereceria um par de semanas de 
descanso, até uma entretanto esquecida profecia do 
diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde, avi-
sando que novembro seria “o pior mês em 44 anos 
de SNS” se nada se alterasse na tensão com o sector. 
O pessimismo de Araújo era previdente, mas falhava 
na área. Novembro não seria o pior mês de sempre na 
Saúde do regime, mas nas suas instituições, com um 
Governo a ser derrubado com polícia em São Bento, 
dois ministros buscados, um chefe de gabinete en-
contrado com €75.800 no local de trabalho e um 
amigo íntimo do primeiro-ministro detido. António 
Costa pediria a demissão na tarde desse 7 de novem-
bro, e Luís Montenegro, qual Lázaro, ressuscitaria 
como candidato à sua sucessão. 
Em menos de 20 dias, o PSD transformaria um 
congresso agendado para rever estatutos internos 
numa autêntica convenção, com velhas glórias como 
Morais Sarmento, José Luís Arnaut, Leonor Beleza, 
Ferreira Leite e, trinta anos depois, Aníbal Cavaco Sil-
va a surgirem numa reunião magna do partido. Em 
Almada, do alto da sua improbabilidade, Montenegro 
presidiu ao maior recentramento ideológico do PSD, 
não só desde a troika, como desde a era de Mota Pin-
to. Um elogio surpreendente aos aumentos do salário 
mínimo decretados pelo PS, uma proposta dedicada 
aos pensionistas (através do Complemento Solidá-
rio para Idosos), uma ideia de Estado social funcional 
Luís Montenegro 
tem o modo 
de ação de um 
jogador que 
aposta tudo mas 
que ao mesmo 
tempo demora a 
revelar o jogo que 
tem na manga
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Montenegro. O objetivo foi sempre não assustar para 
depois cativar — fosse quem fosse.
O HOMEM QUE SE 
CANSOU DE PERDER
De onde veio tamanha capacidade de pragmatismo? É 
a pergunta que qualquer leitor faria, dada a descrição 
dos factos. No livro “Na Cabeça de Luís Montenegro”, 
do jornalista Miguel Santos Carrapatoso, há pistas que 
nos ajudam a percebê-lo melhor. Na biografia políti-
ca, que é uma leitura obrigatória deste 2024, fica claro 
que o percurso do homem em vias de ser indigitado 
foi largamente marcado por “derrotas traumáticas” e 
até “humilhações”. Da Câmara de Espinho à distrital 
de Aveiro, de último na lista de deputados a duas vezes 
destrunfado por Rui Rio (uma em Conselho Nacional, 
outra a duas voltas em diretas), Montenegro anda há 
mais de 30 anos de derrota em derrota, à espera da vi-
tória final. E este domingo, apesar de não a ter materi-
alizado por completo, foi mais um passo no caminho 
de alguém que aprendeu a ganhar, perdendo. 
Além da sua relação com o risco (com as paradas 
altas) e com o tempo (com uma campanha monta-
da para crescer devagar, mas até ao último minuto), 
há um traço que caracteriza Luís Montenegro e que o 
distingue da maioria dos políticos da sua geração. É 
um indivíduo profundamente obstinado, apesar de 
flexível. Quando a equipa de consultores de campa-
nha chegou do Brasil à São Caetano à Lapa, seguiu o 
seu guião à risca. A taxa de rejeição era para manter 
o mais reduzida possível. Nos debates, em que qua-
se passou despercebido, não se desviou um milíme-
tro dessa estratégia. Enquanto Pedro Nuno brilhava 
para a sua plateia, Montenegro nem contra um cer-
co policial se pronunciou. Era o posicionamento não 
posicional a não arredar pé. E até ao último minuto 
da campanha eleitoral, nunca saiu dele.
Outro exemplo flagrante — e muito relevante — do 
pragmatismo tático de Luís Montenegro está na sua 
ida preventiva aos Açores, sem fazer a menor ideia 
do resultado que sairia das regionais de 4 de fevereiro 
deste ano, pouco mais de um mês antes do ato elei-
toral nacional que decidiria o seu destino. Ao marcar 
presença na vitória de José Manuel Bolieiro, reunindo 
com as lideranças regionais do PSD, do CDS e do PPM, 
Montenegro condicionou todo o processo, evitando 
que a solução açoriana voltasse a passar pelo Chega 
como em 2021, e o PSD a ser vítima dela, como foi 
Rio em 2022. A partir daí, o tabuleiro virou e a ques-
tão do Chega passou a ser colocada igualmente ao PS 
e ao PSD, de tal modo que Pedro Nuno mudaria de 
posição e estabeleceria o compromisso de viabilizar 
um Governo da AD num cenário de maioria à direi-
ta — justamente o que acabará por acontecer, graças, 
mais uma vez, ao gosto pelo risco de Luís Montenegro.
No congresso do Porto, em 2022, o pragmatis-
mo também transpareceu e por instinto. Com o PS a 
contar com o referendo à regionalização no progra-
ma da maioria absoluta, Montenegro subiu ao palco 
pela primeira vez como líder do PSD e anunciou que 
o maior partido da oposição não via condições para 
aceitar a realização desse referendo. Não ouviu uma 
pessoa antes. Saiu-lhe. Era a maneira mais prática 
que tinha de enterrar um assunto que dividiria o seu 
partido e que, possivelmente, mobilizaria um PS ra-
ramente associado a mudançasde fundo. Olhando 
para trás, funcionou na perfeição — e nunca mais se 
ouviu falar na ideia.
Num diagnóstico da derrota do PSD nesse ano, 
ainda com Rui Rio ao leme dos sociais-democratas, 
encontra-se uma soma de variáveis de-
finidoras do resultado e, se observar-
mos ao pormenor, fez-se de tudo para 
que não se repetissem em 2024. O mo-
nopólio que o PS detinha da relação com 
o Estado social após a pandemia?
Quebrado. A unidade institucional 
entre Presidência, Parlamento e Governo 
que resultou da crise sanitária? Inexisten-
te após a dissolução da Assembleia. A am-
biguidade de Rui Rio em relação ao Chega? 
Desfeita, a tempo e horas. A responsabiliza-
ção pela legislatura interrompida com que 
António Costa esvaziou o Bloco de Esquerda 
e o PCP em 2022? Resultou contra parceiros 
parlamentares; Pedro Nuno Santos não arris-
cou fazê-la contra o Ministério Público.
Como que um diligente marido numa ida ao su-
permercado, de lista de compras em riste, Luís Mon-
tenegro riscou uma a uma as lacunas do seu partido, 
que esteve quase uma década sem vencer uma elei-
ção nacional. Falta de país? Esteve nos 308 concelhos. 
Falta de oposição? Passou a fazê-la, reinstituindo os 
debates quinzenais abolidos com a ajuda do seu an-
tecessor. Falta de consensos? Ajudou a fazê-los, acor-
dando com António Costa a criação de uma Comis-
são Técnica Independente para o estudo de um novo 
aeroporto. Falta de propostas? Pelas minhas con-
tas, apresentou um pacote temático numa média de 
quatro em quatro meses desde que se tornou líder da 
oposição. Falta de independentes? É ver as listas que 
levou ao Parlamento, recheadas deles.
Luís Montenegro, pura e simplesmente, fartou-se 
de ver o seu partido perder eleições. Só não conseguiu 
ganhá-las, até agora, por mais de 1%.
UM SUCESSO POR METADE MAS 
COM ESPERANÇA
Se pensarmos que a Operação Influencer e o partido 
Chega foram os ausentes mais presentes nos deba-
tes destas legislativas, quase parece que a campanha 
decorreu num mundo (praticamente sem Ventura e 
sem preocupações judiciais) e a eleição ocorreu nou-
tro mundo (recheado de Ventura e de preocupações 
judiciais). O PSD não pretendia ignorar esse públi-
co-alvo, com um plano anticorrupção a não ter 
mais destaque na sua campanha devido aos infórtu-
nios do PSD-Madeira no início do ano. A eleição de 
10 de março teria, nesse sentido, mais do que um 
condicionamento oriundo das ilhas: os ideológicos, 
vindos dos Açores, e os ju-
diciais, do Funchal. 
Montenegro cumpriu 
o seu primeiro objetivo 
(ganhar) e o seu segundo 
objetivo (não enfrentar 
uma maioria à esquer-
da na Assembleia), mas 
falhou o terceiro: depender exclusiva-
mente dos votos da Iniciativa Liberal. Pelo contrário, 
os seus dotes de pragmático serão novamente postos 
à prova, numa tenaz de socialistas ávidos de regres-
sar ao poder o mais depressa que consigam e popu-
listas sedentos de crescer o mais que puderem até às 
autárquicas de 2025. Caso não escape à encruzilhada, 
resta-lhe tentar que esta se prolongue até ao verão do 
próximo ano, quando Marcelo já não pode dissolver 
por estar em final de mandato, ou render-se às con-
versações com o Chega, provavelmente com outra 
liderança que não a sua no PSD.
Os resultados de domingo à noite, para o bem e 
para o mal, são fruto direto da sua estratégia. Ao cen-
tro, disputou a herança de António Costa com Pedro 
Nuno Santos, que precisou de ser socorrido nos úl-
timos dias de campanha pela presença mais sena-
torial do primeiro-ministro. À direita, com pouco 
programa a tocar nesse eleitorado, deixou o flanco 
aberto para a corrida do Chega. Entre a velha guar-
da do PSD, a dificuldade do dilema é reconhecida e 
poucos avançam com melhores soluções. Para uns, 
ter ficado à frente de todos com a força concorren-
te do seu espaço político a triplicar o resultado faz 
tangente ao milagre. Mas, tal como a Madeira em 
setembro e os Açores em fevereiro, trata-se de uma 
vitória com um amargo de boca acompanhado por 
um elevado potencial de instabilidade.
No final da madrugada eleitoral da SIC, foi questi-
onado quem está em piores condições no primeiro dia 
como primeiro-ministro: António Costa em 2015, de-
pois de perder mas com maioria à esquerda, ou Luís 
Montenegro em 2024, depois de ganhar sem maio-
ria de ninguém? A opinião foi unânime: o segundo.
Montenegro tem a vantagem de começar um 
novo capítulo com uma plataforma relativa de po-
der, na esperança de vir a fazer campanha como pri-
meiro-ministro em funções. As eleições europeias, 
daqui a três meses, devem influenciar a margem de 
manobra com que cada liderança chegará às nego-
ciações do Orçamento do Estado, este outubro, com 
Marcelo a ter a faculdade de convocar novas eleições 
se assim o entender. Montenegro terá de enfrentar 
um Pedro Nuno com o alívio de não governar e um 
André Ventura com ganas de vir a fazê-lo. O mistério 
de quem realmente é, politicamente, o líder do PSD 
será desvendado, ao seu jeito, grão a grão, até lá — na 
sua relação com o tempo, o risco e o pragmatismo. 
No debate com o líder do Chega, Ventura per-
guntou-lhe se estava “a rir-se dos portugueses” e 
Montenegro, sem hesitar, respondeu-lhe: “Estou-
-me a rir de si.” Nos próximos meses, descobriremos 
quem ri por último.
Até lá, haverá poucas razões para isso. b
e@expresso.impresa.pt
Ventura 
perguntou-lhe se 
estava “a rir-se 
dos portugueses” 
e Montenegro, 
sem hesitar, 
respondeu-lhe: 
“Estou-me 
a rir de si”
LIDERANÇA Capa da Revista 
do Expresso em novembro 
de 2022, meses depois de 
Montenegro conquistar em 
congresso a liderança do PSD
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TEXTO 
RICARDO SILVA 
INVESTIGADOR DO INSTITUTO 
DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
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Os planos de Franco 
para invadir Portugal
Durante séculos, o “perigo castelhano” foi uma constante, com 
as intermináveis guerras de fronteira a frustrarem os planos de 
Castela sobre Portugal; quimeras de uma União Ibérica 
idealizada em Espanha como solução de grandeza. Franco 
também a sonhou, chegando a planear a invasão de Portugal, 
mas a derrota do III Reich obrigou-o a despertar para a realidade
AMEAÇA O avanço da Alemanha a leste foi 
acolhido com entusiasmo em Espanha e 
nasceu uma divisão de voluntários, a Divisão 
Azul, cujos soldados, nas estepes da Rússia, 
cantavam versos como: “Só esperamos a 
ordem/ que nos dê o nosso general/ para 
apagar a fronteira/ de Espanha com Portugal”
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durante a Idade Média, com lutas dinásticas e guer-
ras fronteiriças a marcarem a tensão entre os dois 
reinos, mas apesar de todos os esforços, Castela re-
velou-se incapaz de dominar Portugal.
A solução acabaria por chegar através dum ca-
samento que uniria as coroas de Castela e Aragão, 
em 1469, com o reinado dos reis católicos a marcar 
o início da era de ouro da história espanhola. Em 
1492, não só a armada de Cristóvão Colombo alcan-
çou as Américas como chegava ao fim a resistência 
do Reino Nacérida, concluindo-se de forma vitorio-
sa a Reconquista com a queda do último reduto mu-
çulmano em Granada. Em 1512, a monarquia católi-
ca passou a ser a monarquia de Espanha e Portugal 
era agora o último entrave à concretização da União 
Ibérica. Onde falhou a guerra, venceu a diplomacia, 
com a morte de D. Sebastião a abrir uma crise de 
sucessão prontamente aproveitada por D. Filipe II 
para assumir o Reino de Portugal, em 1580, e criar a 
União Ibérica num modelo que concedia a Portugal 
uma larga autonomia. Seria sol de 60 anos de dura. 
Em 1640, uma revolta rebenta em Lisboa e dá lugar à 
Guerra da Restauração, seguindo-se 28 anos de uma 
luta intensa pontuada por cinco derrotas do exército 
espanhol que culminaram no tratado de paz de 1668.
Portugal voltava a ser independente, mas Espa-
nha continuou a sonhar com a União Ibérica, um so-
nho que se tornou pesadelo no início do século XIX. 
Deslumbrado pelo poder militar do império francês, 
D. Carlos IVdecide aliar-se a Napoleão Bonaparte 
para invadir Portugal, acedendo a deixar entrar os 
exércitos franceses no seu território na crença que o 
ajudariam a alcançar Lisboa, mas acabando por ver 
os gauleses marcharem sobre Madrid para o depor e 
ao seu filho. Foi o princípio da derrocada espanhola 
que levaria ao fim do império e à perda do estatuto 
de grande potência, numa longa série de humilha-
ções que culminou com a estrondosa derrota face 
aos Estados Unidos, em 1898.
IRREDENTISMO IBÉRICO
Ao iniciar-se o século XX, os sectores mais radicais 
da sociedade espanhola acreditavam que o retorno 
à grandeza de Espanha só seria possível mediante a 
União Ibérica, e é nesse ambiente de irredentismo 
com tons de xenofobia, que um jovem cadete galego 
ingressa na Academia de Toledo, onde muitos defen-
diam que a absorção de Portugal e Marrocos seriam 
a solução para os problemas de Espanha. Em 1907, 
Francisco Franco iniciou a sua longa carreira militar 
no seio duma instituição marcada pelo revanchismo 
e chefiada por um rei que não escondia o seu dese-
jo de reinar sobre o país vizinho, uma ambição que 
se tornou mais clara três anos mais tarde, quando a 
revolução de 5 de outubro instaurou a República em 
Portugal e a crónica instabilidade política e social 
abalavam a integridade do novo regime.
Em Espanha a situação deu lugar a um discurso 
iberista público, tanto nas arengas de quartel como 
nas primeiras páginas dos jornais, e José María Sa-
laverría, correspondente do “ABC” que andava em 
Portugal a acompanhar a revolução, não se coibiu 
SEGREDO Franco e Salazar 
em 1940. Salazar fechara os 
olhos às campanhas que 
angariavam portugueses para 
servir nas bandeiras da Legião, 
mas a gratidão pelo apoio não 
alterava os planos de Franco, 
que incluíam Portugal como 
parte de um futuro império 
destinado a recuperar a 
grandeza da Espanha
O 
sonho de unir a Península Ibérica sob uma única 
coroa é tão antigo como a sua história. Tentado por 
romanos, visigodos e mouros, revelou-se tão sedu-
tor como impraticável, mas conseguiu perdurar ao 
longo do tempo. Fiéis à sua fama, os povos ibéricos 
resistiram ferozmente a todas as formas de domí-
nio exterior, numa tradição que popularizou heróis 
como Viriato, o chefe lusitano que se revelou o ter-
ror das legiões romanas, e Pelágio, o nobre visigodo 
que travou a expansão do Al-Andalus. No século XII 
a ideia parecia cada vez mais longínqua, com a Re-
conquista a desmantelar o Califado Almóada e a pe-
nínsula transformada num retalho de reinos e prin-
cipados. Foi nessa época conturbada que um jovem 
nobre venceu a sua mãe na Batalha de São Mamede 
e assumiu o poder do Condado Portucalense, com o 
título de D. Afonso Henriques.
No século seguinte, o condado foi reconhecido 
como Reino de Portugal e o seu território foi-se defi-
nindo ao ritmo da Reconquista para sul, empurran-
do as forças muçulmanas até ao Algarve ao mesmo 
tempo que se desenhava a fronteira com o Reino de 
Castela. A península parecia destinada a voltar ao 
mosaico que a tinha caracterizado na era pré-roma-
na, com vários reinos cristãos a repartirem os terri-
tórios recém-conquistados, mas Castela acabou por 
se tornar hegemónica após absorver os reinos de 
Galiza e Leão; ganhando um poder acrescido que 
despertou o ideal da União Ibérica e a ambição de 
se tornar a única coroa em toda a península. Nascia 
assim o “perigo castelhano” que foi uma constante 
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de desabafar numa das suas crónicas como “parece 
inverosímil que Espanha, passando por épocas de 
tanto poder, se distraíra em empresas estéreis e ab-
surdas, enquanto abandonava a espanholização do 
Norte de África e do reino português. A história de 
Espanha, e mesmo a história total do mundo, ter-se-
-iam transformado, se Portugal e o Norte de África 
chegassem a espanholizar.” Era uma opinião parti-
lhada por outros colegas, como Luis del Olmet, para 
quem “a oportunidade aparece propícia, fácil. Por-
tugal, dominado por uma revolução acéfala, imoral, 
atrabiliária, que descompôs e aniquilou o país, es-
tende-nos os braços.” Mas estas crónicas tendiam a 
omitir um fator de importância histórica, a profunda 
e arreigada hispanofobia que grassava em Portugal. 
Marcos Blanco-Belmonte veio a Portugal auscultar 
a opinião dos portugueses e teve uma profunda de-
silusão: “Se no povo português existe hoje um sen-
timento forte e bem definido, é o da repulsa em es-
panholizar-se. A tutela britânica, a anarquia com os 
seus excessos, os espancamentos de maçons e car-
bonários, a ditadura de qualquer género… tudo acei-
taria Portugal antes de aceitar a espanholização!”
A campanha mediática na imprensa continuou 
durante anos, mas realizar a União Ibérica estava 
fora do alcance das depauperadas forças espanho-
las, como ficou patente em 1921, quando todo um 
exército espanhol foi aniquilado em Annual em mais 
uma humilhação que abalou o país. A guerra no Rif 
mostrava a debilidade do exército, mas também foi a 
oportunidade para Franco se destacar ao ponto de se 
tornar o general mais jovem da Europa e comandar 
a temível Legião Espanhola. Em 1936, quando par-
te do exército tenta um golpe militar que falha e dá 
lugar a uma mortífera guerra civil, Franco torna-se 
líder dos rebeldes e encontra em Portugal um alia-
do da primeira hora. O Governo de Salazar autoriza 
o envio de munições quando estas estavam quase a 
esgotar-se, permite que os portos nacionais recebam 
armamento alemão que é transportado até à fron-
teira e fecha os olhos às campanhas que angariam 
portugueses para servir nas bandeiras da Legião. 
Franco e os nacionalistas tinham uma dívida com o 
Portugal do Estado Novo, mas a gratidão pelo apoio 
não alterava os planos que incluíam Portugal como 
parte de um futuro império destinado a recuperar a 
grandeza da Espanha.
A Falange, principal força política do bando na-
cional, era abertamente fascista e defendia a União 
Ibérica nas suas publicações, e mesmo entre os mi-
litares espanhóis era tema recorrente quando se 
cruzavam com os portugueses da Missão Militar 
Portuguesa de Observação em Espanha, que deixou 
registo de vários incidentes nos relatórios enviados 
para Lisboa. O capitão Luís Sousa conversou com di-
versos oficiais em 1937, e no seu relatório deixou um 
alerta para “as palavras dos mais entusiastas, muitos 
deles com representação nos meios nacionalistas, 
acerca dos seus ideais imperialistas e da necessidade 
de abolir fronteiras entre Portugal e Espanha”, uma 
ideia que o capitão rebatia recordando a história “em 
que nós portugueses para honra e glória nossa firma-
mos a nossa indiscutível independência”.
Apesar de todas as desconfianças, as duas dita-
duras acordaram em assinar o Tratado de Amizade e 
Não-Agressão Luso-Espanhol, a 17 de março de 1939, 
num passo destinado a serenar as relações entre am-
bos. Duas semanas mais tarde a guerra civil chegou 
ao fim com a vitória dos rebeldes e Espanha passou 
a viver a paz dos vencedores (e a repressão dos ven-
cidos). Era um momento difícil, com o país arrasado 
pelo conflito e o exército a sofrer uma rápida desmo-
bilização, mas o imperialismo continuava a marcar o 
tom dos discursos e o comportamento do caudilho le-
vantava suspeitas sobre o futuro. A 25 de agosto, Teo-
tónio Pereira – embaixador de Portugal em Madrid, 
enviou uma mensagem a Salazar para dar-lhe con-
ta dos seus receios sobre Franco: “Confesso a V. Ex.ª 
que cada vez tenho mais apreensões sobre as ideias 
do “Generalíssimo”. Acho-o enamorado do poder e 
do poder pessoal. De todos os que governam a Espa-
nha é ele que me diz coisas mais estranhas e que fala 
a linguagem mais próxima do eixo.”
AS GRANDES TENTAÇÕES
Essa estranheza só se acentuaria a partir de 1 de se-
tembro de 1939, quando os exércitos do III Reich in-
vadiram a Polónia acreditando que a impunidade 
do passado continuaria, mas acabando por iniciar a 
Segunda Guerra Mundial quando a França e o Rei-
no Unido declararam guerra aos nazis. Enquanto 
se preparava para o pior, o mundo assistia aopoder 
destruidor da Blitzkrieg e a situação interna espa-
nhola foi seguida de forma atenta pelo embaixador 
português, que temia a influência da Falange no go-
verno, mas não deixava de comentar com Salazar 
que “o Generalíssimo tem muito mais de Sancho 
Pança do que de D. Quixote.” Os primeiros meses 
da guerra foram indecisos e pareciam confirmar a 
sua tese, mas tudo mudou em maio de 1940, quan-
do a grande ofensiva do III Reich sobre a França 
Hitler irritou-se 
com as 
exigências do 
ditador espanhol 
e comentou que 
preferia “que 
lhe arrancassem 
quatro dentes 
a voltar a 
encontrar-se 
com Franco”
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Quase 4 mil 
espanhóis 
(e alguns 
portugueses) 
foram mortos, 
feridos ou 
capturados, 
forçando 
os alemães 
a intervir 
para conter 
a avalancha 
soviética
surpreendeu o mundo pela rapidez e aparente faci-
lidade com que a Wehrmacht derrotou o poderoso 
exército gaulês, trazendo o exército hitleriano até à 
fronteira espanhola. A retumbante vitória dos nazis 
despertou uma reação eufórica entre os fascistas es-
panhóis que acreditavam ter chegado a altura de se 
juntarem a alemães e italianos para repartir a Europa 
e as suas colónias em África. Era uma euforia pre-
matura, e deu lugar ao desencanto, quando a todo-
-poderosa Luftwaffe foi batida pela Royal Air Force 
nos céus de Inglaterra. Humilhado pela derrota es-
tratégica que quebrara o mito de invencibilidade das 
armas alemãs, Hitler não iria ficar parado e os meses 
seguintes foram de azáfama na Europa ocupada. Não 
só o exército do III Reich se mantinha intacto, como 
tinha sido alvo de uma importante expansão com 
todo o material capturado nos campos de batalha 
franceses. Centenas de milhares de soldados foram 
sendo transferidos para a Europa Central, onde no-
vas batalhas estavam prestes a ser travadas.
A notícia da derrota alemã na Batalha de Ingla-
terra acabou por ter um profundo impacto em Espa-
nha, com a exaltação belicista a arrefecer apesar do 
calor tórrido daquele verão, mas os mais irredentis-
tas continuavam a sonhar, a aguardar pela oportu-
nidade de recriar o império espanhol sob a sombra 
do espectro nazi. Foi então acordado um encontro 
entre Franco e Hitler para determinar as condições 
da entrada da Espanha na guerra. A 23 de outubro 
de 1940, os dois ditadores encontraram-se em Hen-
daia, na França ocupada, vindo acompanhados pe-
los ministros Serrano Suñer e Von Ribbentrop, duas 
personagens habituadas aos jogos de bastidores que 
não tiveram problemas em dialogar entre si, com o 
espanhol a comentar que “ninguém poder deixar 
de dar conta, ao olhar para o mapa da Europa, que, 
geograficamente falando, Portugal na realidade não 
tinha o direito de existir. Tinha apenas uma justi-
ficação moral e política para a sua independência 
pelo facto dos seus quase 800 anos de existência.” Já 
o diálogo entre Franco e Hitler ficou marcado pelo 
azedume, com Hitler profundamente irritado pela 
longa lista de exigências que lhe é apresentada pelo 
congénere galego, comentando no retorno à Alema-
nha que preferia “que lhe arrancassem quatro den-
tes a voltar a encontrar-se com Franco.”
Apesar da resistência em entrar na guerra numa 
fase em que o seu desfecho ainda não era certo, 
Franco não deixou de preparar a entrada no conflito 
e um dos planos elaborados pelo seu Estado-Maior ia 
ao ponto de detalhar a invasão de Portugal. Entregue 
a 18 de dezembro de 1940, o plano pressupunha um 
ultimato ao governo português, seguido da invasão 
ao fim de apenas 24 a 48 horas, ao estilo hitleria-
no, que deveria envolver cerca de 250 mil homens 
apoiados pela aviação e por vários grupos de blin-
dados que avançariam sobre Lisboa, usando a força 
bruta para eliminar a resistência o mais rapidamen-
te possível. Delineado poucos meses após o “Gene-
ralíssimo” ter firmado um protocolo adicional para 
reforçar o tratado de não-agressão com Portugal, o 
plano revelou o lado traiçoeiro do regime franquista 
que há muito se receava em Lisboa.
EUFORIA A LESTE
Seguiram-se meses num compasso de espera que 
parecia eternizar-se, até que chegou o dia que mu-
daria a história do conflito. A 22 de junho de 1941, 
mais de três milhões e meio de soldados do Eixo in-
vadiram a União Soviética sob o mote da guerra ao 
comunismo. O seu impacto em Espanha foi imedia-
to, com a Falange a apelar à intervenção e as ruas a 
encherem-se de milhares de manifestantes que de-
claravam a sua vontade de marchar sobre Moscovo. 
Franco percebeu a oportunidade que tinha diante de 
si e acedeu ao envio de uma divisão de voluntários 
para combater na frente leste e marcar a presença 
espanhola no que se acreditava ser uma vitória certa.
O embaixador português seguiu atentamente a 
formação da Divisão Azul e o seu envio para a linha da 
frente, escrevendo a Salazar sobre o papel da Falange 
e a personalidade do comandante eleito para a lide-
rar em combate: “O general Muñoz Grandes é aquele 
mesmo general que há dois meses me fez as declara-
ções que V. Ex.ª conhece. Muita coragem, mas muito 
pouco conhecedor de política. No fundo, um homem 
ingénuo.” Talvez Teotónio Pereira não estivesse enga-
nado quando à ingenuidade ou à falta de habilidade 
política de Muñoz Grandes, mas não deixava de ser 
um dos mais dos mais fervorosos apoiantes da União 
Ibérica e possuía uma vasta influência não só entre o 
meio castrense, mas também entre a Falange. 
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CONFLITO Um golpe 
militar falhado em 
1936 dá lugar a uma 
mortífera guerra civil 
em Espanha, e Franco 
torna-se líder dos 
rebeldes, encontrando 
em Portugal um aliado 
de primeira hora
E 32
A Divisão Azul acabou por se converter no ba-
luarte ideológico dos que propunham a intervenção 
no conflito e muitos dos seus membros eram des-
tacados militantes da Falange, um núcleo duro que 
tinha planos bem concretos e inspirava as letras das 
canções que os soldados entoavam nas longas mar-
chas pelas estepes russas, uma das quais versava 
sobre o grandioso destino imperial que aguardava a 
Espanha fascista: “Nas estepes da Rússia/ Espanha 
luta com ardor,/ unida com a Alemanha/ por uma 
Espanha melhor./ E quando a Espanha voltarmos/ 
de novo queremos lutar/ e expulsaremos o inglês/ 
do Penedo de Gibraltar./ O nosso grito de vitória/ 
no mundo inteiro o ouvirão/ quando recuperarmos/ 
todo o Marrocos e Orão/ Só esperamos a ordem/ que 
nos dê o nosso general/ para apagar a fronteira/ de 
Espanha com Portugal/ E quando isso conseguir-
mos,/ alegres podemos ficar,/ por termos consegui-
do/ fazer uma Espanha imperial”.
As canções começaram a esmorecer durante o 
duro inverno de 1941/42, quando os exércitos nazis 
foram travados às portas de Moscovo e os sonhos 
imperiais dos falangistas começaram a esfumar-
-se, uma situação seguida à distância por Teotónio 
Pereira, que estava plenamente consciente do valor 
da Divisão Azul para os planos belicistas da Falan-
ge. O embaixador não foi brando com o seu coman-
dante: “Bravo e simples, como um bom subalterno, 
mas inteiramente desprovido de miolos e de ideias” 
— porém, o general não era tão desprovido de ideias 
como a descrição indica. A 8 de abril de 1942, Muñoz 
Grandes escreve a partir da Rússia uma carta ao ge-
neral Varela, ministro do exército, onde discorre a 
sua visão sobre o futuro do seu país: “Gibraltar, Por-
tugal e Marrocos são necessários, vitais para Espa-
nha, mas não se conseguirão sem guerra.” O objetivo 
estava plenamente traçado e Muñoz Grandes acen-
tua que “a instrução militar deve ser muito intensa, 
a fabricação de guerra ao máximo e a preparação da 
nossa juventude para tal empresa não admite demo-
ra”. Longe dos corredores de poder em Madrid, e sob 
forte influência nazi, Muñoz Grandes começava a 
mostrar sinais duma ambição que despertou a aten-
ção de Franco, sempre alerta para qualquer adver-
sário interno. O general era uma figura famosa em 
Espanha, apoiado pela ala mais radical da Falange, 
sendo forte a suspeita de que Hitler e o

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