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© 2018 by Vitor da Fonseca Gerente Editorial: Alan Kardec Pereira Editor: Waldir Pedro Revisão Gramatical: Lucíola Medeiros Brasil Projeto Gráfico: 2ébom Design Capa: Eduardo Cardoso Este livro foi revisado por duplo parecer, mas a editora tem a política de reservar a privacidade. 2018 Direitos desta edição reservados à Wak Editora Proibida a reprodução total e parcial. WAK EDITORA Av. N. Sra. de Copacabana, 945 – sala 107 – Copacabana Rio de Janeiro – CEP 22060-001 – RJ Tels.: (21) 3208-6095 e 3208-6113 / Fax (21) 3208-3918 wakeditora@uol.com.br www.wakeditora.com.br Aos meus leitores brasileiros, das mais diversas áreas profissionais, que continuam a ler a minha obra e a estimularem-me, cada vez mais, a aprofundar os mistérios da natureza humana e do seu desenvolvimento biopsicossocial. Prefácio 1 – As Cinco Dimensões Desenvolvimentais do Cérebro Humano 2 – Como o Cérebro, Órgáo do Corpo, gera uma Mente 3 – Como o Corpo produz uma Psicomotricidade 4 – As Conquistas Neurodesenvolvimentais da Psicomotricidade 5 – Um Modelo de Organização Neurológica da Psicomotricidade: a emergência da Neuropsicomotricidade Referências O pequeno livro que agora apresentamos segue a linha do nosso estudo teórico e conceitual que temos aprofundado desde 1976 sobre a Psicomotricidade, principalmente no que se refere à significação neuropsicológica dos fatores psicomotores da nossa Bateria Psicomotora publicada no Manual de Observação Psicomotora, e, igualmente, sobre os fundamentos filogenéticos, ontogenéticos e retrogenéticos de outras três obras nossas: Psicomotricidade: filogênese, ontogênese e retrogênese; Desenvolvimento Psicomotor e Aprendizagem; e, mais recentemente, Psicomotricidade e Neuropsicologia: uma abordagem evolucionista. Em analogia com o salto epistemológico que se deu da Psicologia à Neuropsicologia, que não vamos neste prefácio, como é óbvio, explorar, a Psicomotricidade tem hoje de integrar, necessariamente, novos paradigmas, principalmente os da Neurologia e os da Imagiologia Cerebral, que, de uma forma mais rigorosa e abrangente, melhor explicam, em nosso entender, a significação e a transcendência das relações entre o corpo e o cérebro e das relações entre a motricidade e a mente humana. Há algo extremamente distinto entre a motricidade humana e a motricidade animal, sendo esta, em muitos aspectos, bem superior em termos performáticos e adaptativos. Muitos animais possuem uma motricidade selvagem e natural mais eficaz em termos de força, velocidade e resistência, saltam mais alto, nadam e voam com mais proficiência. A motricidade animal adaptou-se em termos sensório-motores à Natureza e transformou alguma da sua ecologia, mas a motricidade humana (no sentido de atos, gestos e ações), em particular as praxias aprendidas culturalmente, transformou radicalmente a Natureza e criou um novo mundo envolvimental, ou seja, criou a Civilização, preservou e transmitiu a Cultura, o que é algo diferente e de uma superioridade e excelência experiencial verdadeiramente incomensurável. Dado o poder de sobrevivência criativa que a motricidade humana atingiu, desde a conquista da postura bípede até a especialização bímana, desde a fabricação de instrumentos para a caça e recoleção de alimentos até a domesticação de animais, desde a comunicação por gestos e mímicas até a comunicação pela fala e pela escrita, o corpo humano e a motricidade humana são, por essência, únicos e exclusivos entre todas as espécies. Devido a tais libertações e conquistas morfocorporais e neurofuncionais, a motricidade humana é a única que se pode considerar, efetivamente, psicomotora. Psicomotora porque é emanada de uma subjetividade de um Eu corpóreo único, total, evolutivo e involutivo, de uma personalidade e uma intencionalidade executiva e evolutiva que, em muitos parâmetros funcionais, superou os limites corporais, musculares e pélvicos do seu organismo, que é, de fato, uma verdadeira joia da Natureza. Não é imaginável conceber um ser humano sem corpo e sem Eu. A sua existência deve-se à sua autoconsciência corporal e ao seu sentimento de si. Ele existe porque possui um Eu privado e um Eu independente, que obviamente emerge da sua interação social e da sua cognição social, porque não podemos esquecer que somos o único primata nu e com alma. Ser um Eu no meio dos Outros pressupõe uma faculdade corpórea e ecocinética inata, intuitiva e coerente que permita a interação, a vinculação, a afiliação, a empatia, a atenção visual e a imitação com os corpos dos outros, os componentes estruturantes do desenvolvimento do psiquismo. O poder do corpo humano e da motricidade humana não se esgota na anatomia nem na fisiologia, pois as Neurociências demonstraram que a existência de metassistemas operacionais no cérebro, como o sistema da teoria da mente e o sistema de neurônios-espelho, está na base da construção de nosso Eu e da nossa subjetividade. As redes neuronais que se maturam no cérebro de bebês e crianças só ocorrem na presença dos Outros. A privação de contatos sociais corpóreos e com tato (sentido sensorial que é eminentemente social) põe em risco o seu desenvolvimento integral. Somos seres com mente corpórea porque somos seres sociais, por nascermos com imperícia e dependência corporal e sensório-motora. Precisamos da interação segura e facilitadora dos outros para conquistarmos a nossa autonomia corporal e motora. No cérebro humano, é impossível separar a percepção e a ação do corpo, como demonstram os casos neuropatológicos de agnosia e apraxia, consideradas como disfunções da captação de estímulos ou gnosias e da elaboração, execução e produção de respostas motoras adaptadas, ou sejam, praxias. A íntima conectividade entre a percepção e a ação e entre o psiquismo e a motricidade só pode ser compreendida à luz das Neurociências, razão pela qual exploramos neste pequeno livro a extrapolação do termo Psicomotricidade para Neuropsicomotricidade. De alguma forma, é modestamente um livro histórico, uma vez que é a primeira tentativa para reunir a Psicologia, a Motricidade e a Neurologia em um novo campo de conhecimentos. Embora o período de gestação não tenha tido um parto fácil, há várias décadas que podemos identificar os pais desta nova visão do corpo humano e da motricidade humana. Pioneiros e visionários como Wallon e Ajuriaguerra na Europa, Kephart, Frostig, Cratty, J. Ayres nos Estados Unidos e Vygotsky, Luria e Bernstein na Rússia, além de outros, contribuíram para pensarmos e concebermos fenomenologicamente o corpo humano e a motricidade humana em outros parâmetros neurocientíficos. É sobre esta joia do organismo humano composta por quatro diamantes que precisam ser lapidados e educados, a saber: o corpo, o cérebro, a motricidade e a mente, que trata este nosso livro, mas para isso, teremos de, em primeiro lugar, resumir neste prefácio o que entendemos pelo termo Psicomotricidade, ou seja, enquadrar conceitualmente o que entendemos por psiquismo e motricidade e o que percebemos sobre as suas relações recíprocas em termos neurofuncionais e neurodesenvolvimentais, antes de perspectivarmos o termo Neuropsicomotricidade que é o título desta obra. Na nossa perspectiva, a Psicomotricidade pode ser definida e conceitualizada como o campo multidisciplinar e transdisciplinar que estuda e investiga o desenvolvimento biocultural nas relações sistêmicas entre o psiquismo e a motricidade. O psiquismo nesta perspectiva é por nós entendido como sendo constituído pelo conjunto do funcionamento mental, ou seja, integra as sensações, as percepções, as imagens, as emoções, os afetos, os fantasmas, os medos, as projeções, as aspirações, as representações, as simbolizações, as conceitualizações, as ideias, as construções mentais etc., assim como a complexidade dos processos relacionais e sociais que estão na sua origem e os contextualizam. O psiquismo, nesta dimensão, integra a totalidade dos processos perceptivos, cognitivos e práxicos, compreendendo desde as funções tônico-atencionais, as funçõesde processamento, estruturação e integração do ego (ditas interoceptivas e proprioceptivas) e ecognósicas (ditas exteroceptivas) até as funções executivas de planificação, antecipação, priorização, regulação, monitorização e controle das respostas comportamentais adaptativas. A ativação de tais funções psíquicas corresponde à expansão e conexão de vários substratos neurológicos de origem filogenética que foram emergindo em um contexto sociogenético, subentendendo, em consequência, uma pletora de processos evolutivos que consubstanciam as conquistas não verbais e verbais da espécie humana. A sequencialização e a hierarquização integrada de tais competências guiadas pela matriz genética evolutiva vão desde a macromotricidade, decorrente da postura e da locomoção bípede e da micromotricidade, que está na origem da fabricação de instrumentos e ferramentas, até a evolução dos processos de comunicação mímica e gestual e oromotora e o surgimento da grafomotricidade, arte e escrita. Dentro desta diversidade de processos psíquicos, destacamos: uma vinculação afetiva fundante; uma trajetória desenvolvimental multifacetada em várias componentes; uma plasticidade neuronal exuberante; uma hierarquização funcional de habilidades e de hábitos; e uma autoatualização e uma socialização permanentes, que, no seu conjunto neurofuncional sistêmico, se integram ao longo da ontogênese, ou nos casos atípicos, se desintegram na disontogênese, culminando em uma visão ao longo da vida, na inexorável retrogênese. Em síntese, o desenvolvimento do psiquismo humano ou da mente humana parte do corpo, é corpóreo, na medida em que o cérebro é um órgão do corpo e não o contrário. As cinco dimensões do desenvolvimento do psiquismo humano que apresentamos têm assim raízes no corpo e na motricidade que se constitui na interface interativo-primacial com o mundo. Neste pressuposto, o corpo e a sua motricidade são um fator desenvolvimental principal, ao lado de outros, do desenvolvimento do psiquismo. O corpo humano e a motricidade humana, como características biológicas principais da Humanidade, põem em evidência o poder multiplicador da coordenação do corpo com o cérebro e da motricidade com a mente. É exatamente por essa característica biológica exclusiva da espécie humana que somos seres psicomotores. Em termos conclusivos, o corpo que está na origem do Eu e a motricidade que está na origem da experiência no e com o mundo são os fatores centrais da evolução cognitiva da espécie humana. Sem motricidade, não haveria psiquismo, não haveria linguagem nem cultura. A motricidade nesta dimensão conceitual é entendida como o conjunto de expressões mentais e corporais, envolvendo funções tônicas, posturais, somatognósicas e práxicas que as suportam e sustentam. Com base neste paradigma, a motricidade não pode ser compreendida apenas nos seus efeitos somáticos, aliás como a linguagem, uma vez que ela depende de motivações, significações e fins que a justificam, não sendo possível, portanto, separá-la dos processos psicológicos que a integram, representam, elaboram e executam, na medida em que ela se encontra sempre em coesão e coibição com a fenomenologia das necessidades, com a contextualização das situações e com a diversidade das circunstâncias sociais, culturais e envolvimentais, a partir das quais é desencadeada como ato significativo e intencional. A motricidade, sendo concebida como comportamento e como resposta adaptativa, é total e unificada, pois espelha uma relação inteligível entre a situação externa e a ação interna, intencionalmente elaborada e regulada. Em resumo, a motricidade humana, obviamente distinta da motricidade animal, é ação, conação e enação simultaneamente. É ação porque mobiliza todas as sensibilidades corporais corticalizadas, interiorizando dialeticamente o mundo interior e o mundo exterior, desde o corpo e a natureza até o social e o cultural, coordenando múltiplas representações em um raciocínio ideocinético e flexível, cujas elaboração e execução gestual surgem profundamente conectadas e harmonizadas. É conação porque a sua organização e expressão são fortemente motivadas por emoções e afetos, e são também energeticamente autoengendradas por uma personalidade e por um temperamento, sutilmente aglutinados por uma autoconsciência e por uma representação positiva de si mesmo. Finalmente, é enação porque a ação é o espelho da história experiencial do sujeito, sendo fadada pela sua ação e concebida da sua ação, evocando uma relação íntima e uma circularidade singular, entre o seu psiquismo e a sua motricidade, no fundo, buscando incessantemente uma criatividade incomparável, onde o que se faz é inseparável do que se imagina e do que se é como ser humano. Ao longo da evolução da espécie (filogênese e sociogênese) e do desenvolvimento da criança e do jovem (ontogênese), a motricidade permitiu, permite e permitirá a sobrevivência e a afiliação, a manutenção de estilos de vida e a fabricação de utensílios e tecnologias, a domesticação de animais e a produção de obras de arte, a invenção e expressão da fala e da escrita, ou seja, foi, é e será a plataforma a partir da qual a linguagem, o pensamento, a cultura e a civilização se perpetuarão, se conservarão e se construirão no futuro. Nesta visão, a Psicomotricidade tem como finalidade principal o estudo da unidade, identidade e complexidade humanas por meio das relações funcionais, ou disfuncionais, entre o psiquismo e a motricidade, nas suas múltiplas manifestações biopsicossociais e nas suas mais diversificadas expressões, envolvendo, concomitantemente, a investigação, a observação e a intervenção em nível das suas dissociações, desconexões, perturbações ou transtornos ao longo do processo do desenvolvimento e do desdesenvolvimento biocultural humano. Partindo de uma matriz teórica original, multidisciplinar e transdisciplinar, a Psicomotricidade estuda e pesquisa as complexas relações recíprocas e sistêmicas da motricidade com o todo da personalidade que caracteriza o indivíduo, especificamente nas suas expressões afetivo-emocionais e psicossociocognitivas. O objetivo principal da Psicomotricidade visa, consequentemente, aprofundar a influência das interações recíprocas entre a motricidade e o psiquismo humanos, assumindo a diversidade e a complexidade transcendente da condição humana como componentes estruturantes do seu conhecimento. A Psicomotricidade tal como é apresentada e descrita neste livro parte de uma evidência ontológica inquestionável: somos seres vivos, antes de sermos seres humanos, sociais e culturais. Por essa imanência transcendente, só se pode formular a Psicomotricidade em uma vocação epistemológica biopsicossocial, ou seja, a Psicomotricidade só se pode conceber hoje como Neuropsicomotricidade. Para intervir educacional e terapeuticamente na Neuropsicomotricidade, é preciso conhecer minimamente como o cérebro se desenvolve, se estrutura e trabalha. Só desse modo, podemos intervir nos atrasos de desenvolvimento psicomotor e nas disfunções neurodesenvolvimentais. A intervenção em Neuropsicomotricidade, além de ser uma arte, tem de ser também uma ciência, principalmente em contextos clínicos. Ciência essa baseada nas evidências que a investigação das Neurociências nos oferecem na atualidade, pois as novas tecnologias de imagiologia cerebral proporcionam uma visão nova do cérebro em ação e em trabalho em qualquer situação problema de adaptação ou de aprendizagem. Nos nossos dias, temos, cada vez mais, uma melhor compreensão dos fatores neuropsicomotores, como, por exemplo: - da tonicidade com o sistema neuroemocional e a comunicação não verbal; - do controle postural e da equilibração com a atenção, a integração sensorial proprioceptiva e exteroceptiva e a regulação comportamental; - da lateralização com a especialização hemisférica e o potencial de aprendizagem; - da estruturação espaçotemporal com a gnosia dos objetos e a gnosia localizacional e posicional e concomitante orientação, monitorização temporal e pilotagemespacial; - da praxia global e o investimento lúdico, a inteligência cinestésica e o desenvolvimento da autoestima e da autoeficácia; e, finalmente, - da praxia fina e a sua implicação na planificação, execução e monitorização da criatividade na aprendizagem não simbólica e simbólica e na resolução de problemas. Com a agregação conceitual da Neurologia à Psicomotricidade, temos, assim, uma melhor compreensão da implicação dos problemas, das dificuldades ou perturbações psicomotores, ou melhor, da dispraxia nas funções neuropsicológicas e nas redes neuronais da atenção, do processamento e da integração da informação sensorial (intra e extrassomática), da planificação, da execução, da monitorização e verificação das ações, das respostas adaptativas e dos comportamentos inerentes ao desenvolvimento e à aprendizagem humanos. Independentemente de o cérebro continuar a ser um mistério que ainda guarda muitos segredos, o conhecimento que já se tem da sua estrutura e arquitetura e das suas funções e disfunções tem obviamente um enorme impacto na identificação de dificuldades e na intervenção educacional preventiva, bem como, e com maior ênfase, na intervenção terapêutica compensatória ou diferenciada. O conhecimento do cérebro já disponível pode informar melhor as intervenções educacional e clínico-terapêutica, tornando-as mais compatíveis e amigas do cérebro e do neurodesenvolvimento das crianças. A teoria e a prática da neuropsicomotora estão assim legitimada pelas evidências das pesquisas das Neurociências, que objetivamente pretendem inter-relacionar o estudo da Neurologia, da Psicologia e da Motricidade. O resultado é a Neuropsicomotricidade que procuramos apresentar neste livro. Com ela, pretendemos explicar melhor o que é a zona de desenvolvimento proximal da Neuropsicomotricidade e como é que poderemos adaptar melhor a intervenção educacional e terapêutica do futuro às necessidades das crianças em desenvolvimento. Deste modo, começamos por explorar no capítulo 1 as cinco dimensões desenvolvimentais das relações do corpo, da motricidade, do cérebro e da mente humanas, desde a filogênese e a sociogênese até a ontogênese, a disontogênese e a retrogênese. No capítulo 2, exploramos o paradigma de como o cérebro, órgão do corpo, gera uma mente, e, no capítulo 3, mergulhamos no como e no porquê de o nosso cérebro poder produzir uma Neuropsicomotricidade. Finalmente, no capítulo 4, procuramos descrever as conquistas neurodesenvolvimentais da Psicomotricidade, desde a macromotricidade até a micromotricidade e desde a oromotricidade até a grafomotricidade, para finalmente, no capítulo 5, nos debruçarmos sobre a emergência da Neuropsicomotricidade. Com a leitura destes capítulos, pensamos dar ao leitor um sentido mais abrangente e atual à Psicomotricidade, procurando situá-la, aqui e agora, no novo campo de conhecimento integrado que se abre com a Neuropsicomotricidade, uma nova área de estudo cuja investigação certamente beneficiará e enriquecerá o neurodesenvolvimento de todas as crianças sem exceção. Vitor da Fonseca Professor Catedrático Aposentado UNIVERSIDADE DE LISBOA Agregado em Perturbações do Desenvolvimento Doutorado em Educação Especial Mestrado em Dificuldades de Aprendizagem Honoris Causa Internacional em Psicomotricidade Nova Oeiras (Portugal) O cérebro humano é o produto da filogênese e da sociogênese de vários sistemas funcionais adquiridos ao longo de milhões de anos de evolução da nossa espécie no ecossistema planetário terrestre. O cérebro humano é, efetivamente, o órgão da evolução, o mais complexo e importante do cosmo, logo obviamente, do seu próprio organismo e, sem dúvida nenhuma, o mais complicado tecido vivo até hoje conhecido (FONSECA, 2009; 2010). Ao decorrer de duas heranças essenciais, a genética ou biológica por um lado e a socio-histórica ou cultural por outro, como órgão incomparável de excelência biocultural, o cérebro humano com os seus processos mentais aprendidos ao longo da ontogênese individual, pessoal, evolutiva, total e única, produz e cria com o corpo e a sua motricidade todas as formas de comportamento, aprendizagem e de experiência até hoje conhecidas. Para outros autores, o termo ontogênese é sinônimo de epigênese, querendo reforçar a natureza sistêmica, emergente, sucessiva, hierarquizada e integrada dos diferentes sistemas do organismo humano em interação dinâmica (como de uma interface se tratasse) com o envolvimento, em particular, do seu órgão mais organizado que é o cérebro, exatamente, o órgão que espelha, internaliza e incorporaliza o universo. Para completer esta tríade desenvolvimental humana, desde que somos concebidos, nascemos, crescemos, aprendemos, reproduzimo-nos e morremos, não podemos negligenciar neste contexto desenvolvimental a disontogênese, que estuda, essencialmente, as perturbações, os desvios, as atipicidades e as dificuldades e diferenças funcionais e adaptativas (vulgo as necessidades especiais sensoriais, motoras, afetivo-emocionais, intelectuais e comunicacionais). Por último, não podemos esquecer a inevitabilidade da retrogênese que estuda, paralelamente, o desdesenvolvimento, o envelhecimento normal, a senescência e a longevidade dita saudável, bem assim a involução e a neurodegenerescência humana, dita demencial ou de declínio precoce e acelerativo. Os seres humanos realizam a aventura do desenvolvimento a partir de uma dupla herança (filogênese e sociogênese) em uma dimensão ontogenética se as condições genéticas do organismo forem intactas e as condições envolvimentais e socioculturais forem facilitadoras. Caso contrário, emerge a disontogênese. A ontogênese tende à retrogênese... Com esta aproximação às cinco dimensões dinâmicas da natureza do desenvolvimento humano que podem caber nos cinco dedos da nossa mão (filo, socio, onto, disonto e retrogênese), queremos relevar os processos de transformação desde o princípio embriogenético até o fim inevitável e inexorável da vida, na expectativa de perceber a progressiva complexidade, intrincação, gradualidade e especificidade das relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente. O cérebro como órgão mais especializado dos organismos individuais e característico de todos os animais vertebrados permite executar não só proezas de sobrevivência mas também respostas motoras adaptativas com eficiência como sejam todos os atos relevantes da vida, que são: - da sensibilidade, da corporalidade e da motricidade para interagir com o mundo envolvente; - da regulação interna para a produção de comportamentos de sobrevivência; - da adaptação para se ajustar com sucesso às mudanças contínuas do mundo envolvente, aumentando e ampliando, assim, por aprendizagem, o repertório de comportamentos; e, obviamente, - da sua reprodução, sem a qual a continuidade das espécies não é biologicamente viável. Como o organismo, que consideramos uma autêntica joia da Natureza, sobrevive com sucesso no meio envolvente, depende, essencialmente, da complexidade, da perfectibilidade e da capacidade adaptativa das relações sistêmicas corpo-motricidade- cérebro-mente. O cérebro como órgão mais organizado do organismo humano e de todo o universo conhecido, dada a qualidade e quantidade funcional das suas células e tecidos, devido às suas incomensuráveis relações funcionais com o corpo, a motricidade e a mente, confere ao organismo humano uma dimensão cognoscente (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991) com o meio, sem paralelo em outras espécies. No caso do organismo humano, além do diamante principal do cérebro, temos de necessariamente equacionar também outros três diamantes, o corpo, a sua motricidade, por um lado, e a sua mente, por outro, pela propriedade emergente das suas funções transcendentes. Sem o papel de coordenação superior, piramidal e colossal do cérebro com o corpo, da circularidade estrutural da motricidade com a mente, o ser humano, ao longo da sua evolução, não teria sido capaz de resolver os problemas complexos colocados pela sua sobrevivência no meio ambiente tampoucoteria sido capaz de inventar novos instrumentos culturais (extracorporais), como os instrumentos e as ferramentas de trabalho manual, tampouco novos instrumentos mentais (intracorporais), como os símbolos para linguagem e para a cognição. Com tais capacidades adaptativas construídas, aprendidas e integradas pelas múltiplas interações entre cérebro, corpo, motricidade e mente, os seres humanos coconstruiram uma Civilização, que conseguiram perservar e acumular historicamente, inovar tecnicamente e transmitir culturalmente às futuras gerações (FONSECA, 2010; MORRIS, 1994). Os seres humanos são indubitavelmente mais adaptados que os outros animais, somos efetivamente o vertebrado dominante (FONSECA, 2010) pelas razões que estamos tentando decifrar neste texto. As relações neurofuncionais entre cérebro, corpo, motricidade e mente são mais organizadas e complexas do que os outros vertebrados em termos de comportamentos de observação, captação, processamento e integração de informação sensorial (funções ditas de input) e por circularidade estrutural e vinculação funcional de planificação, execução e resolução de problemas, que consubstanciam uma motricidade adaptativa (funções ditas de output), aprendida socialmente por prática deliberada, pensada, antecipada, inibida, refletida, controlada e corticalmente regulada (FONSECA, 2007, 2008, 2010). Apesar de inúmeros animais andarem, correrem, saltarem, treparem, voarem, transportarem, nadarem e mergulharem muito mais eficientemente que o ser humano, o bipedismo e o bimanismo deram-lhe mais flexibilidade esquelética e conferiram-lhe uma maior plasticidade tônico-postural, além de uma mais ampla disponibilidade locomotora cinética das suas extremidades (pés, mãos e boca), ou seja, as relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente multiplicaram-se e combinaram-se neurologicamente de forma transcendente e única no reino animal. A motricidade humana dita fenomenológica, emergindo de uma motricidade vertebrada e biológica, conferiu à experiência humana uma adaptabilidade psicossocial e psicocultural verdadeiramente ímpar no reino animal. Os animais com a sua motricidade adaptaram-se à Natureza, mas os seres humanos com a sua (psico ou meta) motricidade transformaram-na, o que é algo bem distinto. Como seres humanos, conseguimos proezas motoras razoavelmente eficazes, basta ver a busca contínua de recordes olímpicos, mas, em nenhuma das performances que foram anteriormente enunciadas, somos mais rápidos, adaptados e resistentes quando comparados com alguns vertebrados. Ao contrário dos animais, não somos escravos de uma motricidade especializada, esterotipada e geneticamente predeterminada, previsível e presciente, pelo contrário, libertamo-nos para inovar e recriar múltiplas motricidades modificáveis (macro, micro, oro e grafomotoras – FONSECA, 2009, 2010) e corticalmente autorreguladas com as quais, e por meio das quais, acrescentamos ao mundo natural um mundo civilizacional. É graças, portanto, às relações dinâmicas e recíprocas, corpo, motricidade, cérebro e mente, que podemos respirar, comer, beber, sorrir, chorar, gatinhar, andar, lavar, vestir, comunicar, brincar, falar, desenhar, caçar, dominar um cavalo, controlar um arco e uma flecha e uma bicicleta, construir peças lúdicas, pintar e escrever, resolver problemas e conflitos, inventar, inovar e produzir novos instrumentos, aprender e aperfeiçoar uma habilidade e um ofício, conduzir um carro, um avião ou uma nave espacial. Epistologicamente, vários autores referem-se ao cérebro como o orgão principal da evolução, como o orgão que criou o Homem, mas, em uma visão evolucionista mais abrangente, não podemos remeter para lugar secundário o corpo, a sua motricidade (enação ou experiência) e a sua mente, ou melhor dito, uma propriedade emergente que só se pode compreender como inseparável da experiência humana, logo por vinculação vivencial, também inseparável do corpo e da sua motricidade. Neste pressuposto, podemos acrescentar por inerência neuroevolutiva que foi o corpo e a sua motricidade também que criaram o Homem, no sentido do valor da experiência humana de Varela, Thompson e Rosch (1991). Nesta linha de pensamento integrador, não podemos separar a mente da criação do Homem. Com um cérebro, um corpo e uma motricidade muito semelhantes aos nossos primos primatas, os seres humanos são os únicos primatas nus (papel do sistema sensorial do tato como sistema emocional e social também – MORRIS, 1970) e os únicos primatas com alma (RAMACHANDRAN, 2011), algo impossível de compreender sem as relações vinculativas e emergentes entre cérebro, corpo, motricidade e mente. Embora o cérebro seja considerado o orgão mais organizado do organismo, não restam dúvidas de que é a interação coerente e integrada dele com o corpo, com a sua motricidade e com a sua mente, a que nos vimos referindo, que no seu todo fez, e faz, o Homem. Sendo o cérebro único e diferente em cada ser humano, tendo em consideração o seu contexto social, histórico e cultural próprio e a sua experiência pessoal íntima e interior, logo a sua motricidade e as suas habilidades e proezas incorporadas e internalizadas também são diversas. São diversas porque o cérebro muda em função das suas aprendizagens e das suas experiências ou cognições corporalizadas devido à sua enorme e extraordinária plasticidade. É inegável que não podemos conceber o cérebro como separável do corpo, da motricidade e da mente, porque fazem parte de um todo que é a joia do seu organismo. No meio do cosmo composto de milhões de galáxias, onde se encontra a nossa via láctea (que significa leite em Latim), onde pairam milhões de estrelas das quais emana uma com luz própria que é o Sol, rodeado de sete planetas, dos quais, o terceiro é a nossa Terra, o nosso berço existencial e a nossa mãe ecológica, a sobrevivência dos seres humanos no seu meio ambiente não poderia ser devida unicamente ao cérebro, pois não podemos esquecer que ele é um órgão do corpo e não o contrário. Embora seja óbvio que o cérebro é um orgão do corpo, por vezes esquecemos que os cérebros fazem parte dos corpos, e não são os corpos que fazem parte dos cérebros (SOUSA, 2010). Os nossos cérebros estão impactados no corpo e precisam da sua motricidade para se desenvolverem, porque a mente na sua dimensão emergente é corpórea, experiencial e motora. Ao longo da evolução, os seres humanos aprenderam com o corpo e com a sua motricidade adaptativa, aprenderam por meio da ação (o célebre paradigma educacional “learning by doing” de DEWEY, 1933) e da interação no e com o meio envolvente. A aprendizagem humana é consequentemente corpórea e motora, aprendemos porque agimos e agimos porque temos de nos adaptar ao mundo envolvente, não aprendemos meramente por pensarmos ou por ouvirmos. Como evoca o pensamento de Confúcio (filósofo chinês, 479 a.C), “quem ouve esquece, quem vê lembra, mas quem faz aprende”. O cérebro humano, de onde emana a mente, desenvolveu-se e desenvolve-se a partir do corpo e de dentro dele e da sua ação no mundo. Neste ponto, a educação só tem a ganhar quando for mais compatível com a evolução e com as dimensões desenvolvimentais atrás apontadas. A aprendizagem é consequentemente corpórea, é um processo corporificado (“embodied process”), depende da saúde, da nutrição, do sono, do bem-estar e da qualidade dos programas de expressão corporal, cinestésica e performática e da atividade lúdica, motora, recreativa e desportiva do ser aprendente. As técnicas de imagiologia cerebral atuais reforçam claramente este paradigma simultâneo da evolução e da educação. Focar a importância da ação, experiência ou motricidade na aprendizagem vem realçar a ideia de que a educação tem de ser mais compatível, ou melhor dito, mais amiga das relações sistêmicas entre cérebro, corpo, motricidade e mente. Temos de trabalhar de forma harmoniosa os cérebros, os corpos, a motricidade e a mente dos seres aprendentes. Os professores devem ter em conta que os seus alunos têm cérebros, mas tambémtêm corpos, são muito ativos e possuem emoções e sentimentos mentalmente interiorizados e incorporalizados. Ser facilitadores do desenvolvimento humano, que é o fim superior de qualquer sistema educativo, requer uma visão mais holística e total do ser aprendente, seja criança, seja jovem ou adulto, isto é, exige maior respeito e compatibilidade com as relações intricadas entre cérebro, corpo, motricidade e mente que temos equacionado. Embora o cérebro seja o órgão mais sedutor para explicar a evolução do ser humano e para nos permitir asceder ao seu Eu (no sentido do “self” dos autores que estudam a personalidade nas suas diversas vertentes), não podemos esquecer que ele faz parte de um organismo total, ou seja, outros componentes contam para a sua construção e coconstrução, nomeadamente, o corpo que o contém e a motricidade que lhe dá a instrumentalidade necessária para a sua mente ter produtividade criativa e crítica. A complexidade e a versatilidade das relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente criaram ao longo da evolução, no seu conjunto transcendente e sistêmico, o que é hoje o ser humano. As relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente têm uma história e uma pré-história, ou seja, têm uma evolução biológica e extrabiológica por trás. A existência da nossa espécie neste nosso planeta por enquanto azul tem, portanto, uma explicação corpórea e motora, não apenas cerebral e mental. 2. – Como o Cérebro, Órgão do Corpo, Gera uma Mente? O cérebro como órgão primordial e principal, mapeia o corpo e a sua interação com o mundo (DAMÁSIO, 1995, 1999), ou seja, (re)representa e metarrepresenta a interface contínua entre o organismo e o meio, uma interação contínua e contígua com o meio envolvente, criando, a partir dela, imagens e conteúdos mentais. Efetivamente o cérebro, ou mais exatamente o encéfalo, por via da dupla herança da filogênese e da sociogênese, tornou o corpo e a sua motricidade em um tema da mente, ou seja, quer um, quer a outra, não são meras partes do organismo, são no seu dinamismo singular com o envolvimento a essência da mente do sujeito que encarna no corpo e que, com a motricidade, vive e se comporta, adaptando-se e transformando o seu envolvimento em compatibilidade com as suas necessidades de sobrevivência biológica e convívio social. Sendo assim, o cérebro é um orgão do corpo, e não o seu contrário, como temos tendência a esquecê-lo na nossa cultura ocidental. Não é o corpo que é um orgão do cérebro. É preciso ter atenção em termos de prioridade biológica, que o organismo como joia biocultural que é está embebido em um corpo anatômico total, mas também em um corpo fenomenológico vivido, como demonstram no século XXI as novas técnologias de imagiologia cerebral e como já tinha sido perspectivado e estudado no século XX por insignes filósofos como Merleau Ponty (1945), Heidegger (1958) e Husserl (1931). Desde há 2.000 anos que os filósofos buscam tentar explicar o mistério de como o corpo pode gerar no cérebro uma multiplicidade de sensações, significações e sentimentos de onde emana a autovigilância, a autoconsciência ou a autocompreensão do sujeito. A base orgânica e cerebral desta entidade da individualidade da pessoa humana é um mistério pungente, encerra em si ainda um segredo indesvendável. Não nos cabe a nós clarificá-lo, apenas pretendemos abordá-lo à luz das relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente. As Neurociências com o apoio das novas tecnologias de imagiologia cerebral vão certamente clarificar no futuro este aspecto relevante da natureza da rede neuronal (“network”) da mente humana onde a essência da nossa personalidade está enraizada. Os nossos corpos têm de ser considerados, simultaneamente, como estruturas físicas e anatômicas e como estruturas experienciais e vividas, como componentes internos e biológicos e como componentes externos e psicossociais (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991). Os dois aspectos da corporalidade não são antagônicos, pelo contrário, entre ambas as dimensões, coexiste uma circularidade estrutural e estruturante ao longo da evolução da espécie humana e, obviamente, ao longo do desenvolvimento ontogenético individual e pessoal. Para a Neuropsicomotricidade (FONSECA, 2006, 2010) e para as Neurociências (WARD, 2006), incluindo as ciências da mente e da cognição, a corporalidade tem um duplo sentido, acompanha o corpo como uma entidade experiencial e vivida (componente corpo- motricidade) e também como uma entidade emergente e cognoscente em interação com o seu meio ambiente (componente cérebro-mente). Sendo assim, em termos evolucionistas, o cérebro e a mente desenvolveram-se a partir das complexas interações do corpo e da sua motricidade com o meio ambiente. Só assim, a espécie sobreviveu até hoje e, só dentro deste paradigma, podemos compreender o desenvolvimento ontogenético unipessoal. Não podemos continuar a ver o cérebro como o órgão supremo e exclusivo do nosso organismo, o “órgão da alma” que transporta a consciência, a pessoalidade, o Eu íntimo e intrínseco (o “self ” para os autores anglo-saxônicos) do indivíduo, daí não ser possível conceber um indivíduo unicamente no seu cérebro, muito menos conceber uma pessoa sem corpo. Somos um Eu único, uma pessoa única no nosso corpo. O corpo não é uma coisa ou um objeto, somos nós próprios como sujeito, porque o corpo é o psiquismo e espelha a mente, antes de sermos concebidos apenas e unicamente pelo nosso cérebro ou pela nossa mente (FONSECA, 2009, 2010, 2012, 2014). Este modelo popularizado do cérebro como o único órgão clarificador do mistério da mente humana vê o cérebro como o lugar ou a poltrona do Eu, mas o Eu é um corpo. A mente que transporta é eminentemente corpórea, daí a impossibilidade de separar o corpo do cérebro e a motricidade da mente, que são a matriz teórica da Neuropsicomotricidade que vimos abordando neste artigo. Em termos de imagiologia, os padrões de atividade do cérebro ilustram, não a sua atividade exclusiva e isolada, mas uma conectividade envolvente que emana de um sistema total que é o organismo humano. O corpo e a motricidade que fazem parte do organismo do sujeito são a sua mente em ação, pois, na sua essência mais profunda, o cérebro sendo parte do corpo necessita obviamente dele para se desenvolver. E como se explica o desenvolvimento do cérebro humano? Em uma perspectiva desenvolvimental, o organismo e o meio ambiente (nos seus mais diversos ecossistemas: campo, cidade, família, casa, rua, parques, jardins, escolas, clubes, museus etc.) estão intimamente ligados. Em transação mútua, nenhum existe independentemente do outro, pois é dessa contínua e diária interação que o cérebro se constrói como o órgão mais complexo do universo. Como órgão do corpo que é na sua essência, o cérebro não deixa de ser um produto único dos genes e da experiência corpórea pessoal, cuja maturação segue uma hierarquia filogenética típica e reproduz uma organização e uma arquitetura neuroevolutiva e sistêmica única da espécie. Por nascermos imperitos e inexperientes e totalmente dependentes de seres experientes, o desenvolvimento ontogenético decorre, por um lado, em um contexto social, afetivo e emocional, e por outro, desenrola-se segundo um processo neurobiopsicossocial único, pois a criança não deixa de ser uma história pessoal e singular, dentro de outra história evolutiva da sua espécie, onde se interagem múltiplas componentes em simultâneo e que são determinantes para o seu sucesso adaptativo futuro. Os componentes do sistema corpo-motricidade-cérebro-mente são, por essa razão, inseparáveis, é essa a dimensão holística do organismo humano e do seu neurodesenvolvimento, porque é da sua interação dinâmica e coerente e da sua circularidade estruturante que brota a ontogênese e se constrói a personalidade de uma pessoa. O corpo e a sua motricidade (para nós, pode-se utilizar também o termo de cinésia) produzem no interior do cérebro um “self” ou um Eu único, ou seja, um mundo mental interior, a mente no seu sentido plenoe repleto de sensações, significações, sentimentos, introjeções, projeções, introspecções, memórias e abstrações. No fundo, uma alma em sentido figurado, algo sublime que nos destingue de outros primatas. O Eu íntimo, intrínseco, único e total do sujeito que resulta das interações entre corpo, motricidade, cérebro e mente tem, portanto, muitas componentes (interoceptivas, proprioceptivas, exteroceptivas, inconscientes, conscientes, não simbólicas, simbólicas etc.), não é uma função neurológica localizada em um ponto específico do cérebro. O Eu do sujeito, perspectivado deste modo, é um Eu corpóreo que é a sua própria consciência, ou seja, uma multiplicidade de representações e de metarrepresentações, com as quais o seu cérebro gera um sentimento primordial de si próprio que está na origem de todos os seus comportamentos (DAMÁSIO, 1995, 1999). Somos a única espécie que ascendemos à noção do Eu a partir da nossa imagem do corpo em um espelho (chamada imagem especular) como comprovam inúmeros estudos neurocientíficos de observação em bebês humanos. Desde a embriogênese até a ontogênese e a retrogênese do ser humano, o cérebro nunca perde o contato com o corpo e com a sua motricidade, integra-os por meio de múltiplas conexões neuronais decorrentes da interação misteriosa e enigmática entre a periferia e a centralidade do organismo. É desses múltiplos circuitos neuronais emergidos da motricidade e da experiência que o sujeito tem com o envolvimento, que emerge a noção do corpo, a somatognosia ou a egognosia estudadas por nós já em várias obras de Psicomotricidade (FONSECA, 2006, 2009, 2010, 2012, 2014). A importância da componente ou do módulo da noção do corpo, que faz parte do sistema operativo psicomotor humano (que integra outros componentes como a tonicidade, a equilibração, a lateralização, a ecognosia espacial, objectal e temporal e a organização práxica global e fina), é decisiva para a autorregulação das funções cognitivas da atenção, da integração sensorial e do processamento de informação cinestésica que preside a planificação e execução de respostas motoras adaptadas que participam nas formas mais diversas de aprendizagem (FONSECA, 2012, 2016). Em muitos casos clínicos que seguimos, com dificuldades desenvolvimentais e de aprendizagem não simbólica ou simbólica, quase sempre identificamos uma noção do corpo, incoerente, episódica, vaga e hesitante, quando observada por meio de várias tarefas, nomeadamente: uma mapeação tátil-verbal de pontos pélvicos do corpo; uma identificação e reconhecimento não verbal e verbal do hemicorpo e dos seus membros laterais e orgãos faciais fundamentais (somos um corpo simétrico em termos anatômicos, mas somos um corpo assimétrico em termos de especialização psicomotora e hemisférica, isto é, ou somos destros, esquerdinos ou ambidestros); por imitação de gestos manuais e faciais; por ecocinésias e gestos evocativos; por construção de um quebra- cabeças de peças de um corpo; e também pelo desenho do corpo e da família. A dissomatognosia na maioria das crianças com dificuldades desenvolvimentais ilustra que muitas dificuldades de aprendizagem nascem de um Eu imaturo, de uma consciência de si destruturada, de uma desorientação espacial do ego (uma espécie de avaria do GPS da sua mente que já foi estudada pelas novas técnicas de imagiologia cerebral – MOSER e MOSER, 2016) e da sua autorregulação básica que implica inúmeros problemas de comportamento. Ao falarmos em um Eu corpóreo do sujeito nestes termos, estamos abordando igualmente a consciência de si, a autoimagem ou o sentimento de si (DAMÁSIO, 1999), cuja construção e coconstrução mental é a mais prolongada e complexa do reino animal. Nenhum outro vertebrado, mamífero ou primata dispõe de um Eu corpóreo ou de uma autoconsciência tão complexa em termos mentais como o ser humano, porque se observou, em vez de uma evolução gradual e linear do seu cérebro, uma transição abrupta e uma discontinuidade súbita dos seus instintos e das suas faculdades sensoriais, mentais e motoras. Genética, anatômica e fisiologicamente primatas (partilhamos com o chimpanzés 98,4 % da nossa constituição genética – MORRIS, 1994), os seres humanos transformaram-se por efeitos da seleção natural em um animal atento e não irrequieto, comunicativo e não mutista, pelado e não cabeludo e em um ser glorioso e único no universo. Pelos novos atributos do seu corpo bípede e bimano, da sua macro e motricidades práxicas, do seu cérebro empático e simbólico e da sua mente singular e sem precedentes. Em consequência, passamos a ser a única espécie que tem o seu destino em suas mãos e não na química dos seus genes ou na rigidez dos seus instintos. Com um cérebro único e maravilhoso, pesando cerca de 1,350kg, com uma consistência gelatinosa que podemos segurar na palma das nossas mãos, enrugado como se fosse uma noz, podemos contemplar o sentido da vida, pensar antes de agir, fantasiar e imaginar, formular conceitos, tomar decisões, resolver problemas, pensar sobre a nossa habilidade de pensar, tudo isto só é possível pela emergência de uma mente intencional e corpórea capaz de organizar e executar comportamentos sofisticados. O corpo humano não se resume ao estudo dos seus genes, do seu esqueleto, dos seus músculos, das suas vísceras, do seu coração, dos seus pulmões, dos seus orgãos sensoriais, do seu cérebro ou da sua pele que é a fronteira de dois mundos, um interior e outro exterior. O corpo humano têm, consequentemente, dois processos de adaptação que são desenvolvidos mentalmente ao longo da vida, a partir dos quais, obviamente, se forma uma rede neuronal primordial (“network”) destribuída por várias áreas cerebrais consideradas novas e exclusivas da espécie. O organismo humano não se circunscreve à genética, à anatomia, à fisiologia ou à neurologia, ele é transportado por um corpo que partilha um cérebro de onde emerge uma mente, o que é algo que nos projeta para o estudo transdisciplinar das Neurociências. Não somos meros corpos vertebrados ou meros primatas aperfeiçoados com “upgrade” (RAMACHANDRAN, 2011). O corpo humano possui faculdades metassensoriais, metamentais e metamotoras inexistentes em outras espécies. É nesse sentido que, no seu âmago, emerge um repertório intuitivo corporal mais sofisticado que permite ascender a uma vida interior de introspeção que está na origem da autoconsciência. Estar consciente, portanto, inclui a habilidade para mover o corpo e interagir com o meio envolvente. Para tal, as fibras motoras descendentes do cérebro para o corpo e para os músculos têm de estar intactas. Qualquer lesão ou acidente grave, ou mesmo o surgimento de um aneurisma, que ocorram no tronco cerebral, por exemplo, não só leva o paciente a ficar paralítico e acamado (exemplo da síndrome de bloqueio, o famoso “locked-in syndrome”, onde o Eu fica claramente trancado no corpo) como podem provocar um coma, um estado vegetativo, uma dissociação entre o cérebro e o corpo, ou seja, uma fragmentação entre a cognição e a ação (FINS e SCHIFF, 2016 ). Pacientes com lesões graves nos centros de onde partem as fibras motoras descendentes, seja o tronco cerebral, sejam os gânglios basais subtalâmicos, ou o córtex frontal e pré-frontal, podem gerar a perda da consciência ou do Eu corporal íntimo e provocar a ocorrência de estado consciente mínimo ou confusional, confirmando-se, portanto, aqui, a relevância da rede de conectividade neuronal do sistema corpo-motricidade-cérebro-mente que temos abordado. Por que é que uma lesão no tronco cerebral e nos centros motores subcorticais e corticais tende a colapsar a autoconsciência, a autovigilância? Por que razão uma imaturidade tônico-postural pode afetar a noção do corpo, o esquema e a imagem corporal ou a somatognosia? Como se explica que os seres humanos amputados sintam os seus membros fantasmas? Por que razão possuímos como espécie capacidades impressionantes de imitação, de empatia e compaixão? Por que é que os seres humanos possuem uma classe especial de células nervosas,os neurônios-espelho, que disparam quando não só executamos mas também observamos o mesmo movimento? Haverá um eu corpóreo incoerente que pode ajudar-nos a explicar o enigma do autismo? Segundo Fins e Schiff (2016), os estudos de imagiologia cerebral de pacientes gravemente lesionados podem dar-nos pistas para responder a algumas destas perguntas, pois, por meio delas, podemos dislumbrar e especular sobre a rede neuronal da consciência humana ou sobre a rede neuronal da somatognosia que nos interessa como fator psicomotor. Os mesmos autores adiantam que a “network” da mente é similar à da somatognosia. Em particular, ela é estruturalmente composta pelos seguintes substratos neurológicos: - do tronco cerebral (centro de integração e regulação da tonicidade); - dos gânglios cinzentos da base do cérebro (de onde se centra o sistema extrapiramidal dos movimentos automáticos de locomoção e de preensão); - do complexo parietal médio (onde se integra a noção, a representação e a metarrepresentação do corpo); e, por último, - do córtex frontal e pré-frontal (onde ocorre a planificação e a regulação das praxias globais ou finas). É interessante aqui deixar uma nota nos casos de coma ou de mutismo acinético (RAMACHANDRAN, 2011), principalmente os que resultam de lesões no girus angular anterior, substrato que devemos acrescentar, quanto a nós, à rede acima apresentada. Nestes estados de semivigilância, muito complexos, mantidos pelos substratos do tronco cerebral, mas não por substratos subcorticais e corticais, os pacientes parecem revelar uma espécie de Eu acinético e afásico, sem atenção visual sustentada, sem interação, sem empatia, sem afiliação, sem gestualização ou imitação, em uma palavra, sem presença corpórea, sem Eu, sem consciência, sem egognosia (FONSECA, 2010, 2012, 2014), isto é, sem ser um sujeito que experiencia sensações e ações ou outra expressão semântica similar. É claro que nos casos de coma e de mutismo acinético, o sistema corpo-motricidade-cérebro-mente se encontra em estado de entropia orgânica, ou seja, sem vida mental interior, pois não consegue transformar a experiência e a vivência corporal mais simples e básica em uma representação mental interior pessoal, em um Eu íntimo, profundo e coerente, que sente e comunica, isto é, em um estado de autoconsciência ou de sentimento de si (o “self awereness” de DAMASIO, 1995, 1999). Nós, seres humanos, somos primatas não anjos. Não caímos do céu, mas pusemo-nos de pé e exploramos todo o nosso planeta, por termos um organismo que é uma joia onde se destacam quatro diamantes que precisam ser lapidados pela cultura e pela educação. Com um corpo frágil e sem pelos, sem armas letais (dentes e garras) naturais, tornamo-nos sábios porque: - libertamos os pés e começamos a andar bipedalmente dominando a gravidade, correndo e descobrindo o mundo; - libertamos as mãos e começamos a manipular, a fabricar e a usar instrumentos feitos de pedras e paus e tornamo-nos caçadores implacáveis e recoletores eficientes; e, em seguida, - libertamos a face e a boca e tornamo-nos comunicadores compulsivos. A lista dos atos humanos, zoologicamente denominada por etograma (MORRIS, 1994), envolvendo posturas e praxias, é incomensurável. O ser humano dispõe da linguagem corporal, gestual e facial mais complexa entre cerca de um milhão de espécies de animais que habitam o nosso pequeno planeta. Com diversas formas de motricidade (macro-micro-oro-grafo e socio), a que já nos dedicamos em outro texto (FONSECA, 2010), aumentamos a complexidade da integração sensorial e da perfectibilidade motora do nosso cérebro, por meio de incomensuráveis conexões de captação e de transformação da informação. Com as libertações corporais das nossas extremidades, ficamos dotados de sistemas operativos de processamento de informação e de ação muito potentes. Com eles, produzimos cultura, aumentamos o nosso cérebro, no intímo e no interior do qual emergiu uma mente, única, pessoal e singular. Uma mente emanada da combinação perfeita de adaptações neuronais que estão na base de um processo de autoconhecimento, enraizado no corpo e na sua experiência ou motricidade, quer no mundo natural, quer no mundo social, com a qual dominamos todas as outras formas de vida e alteramos a face do nosso planeta, acrescentando à Natureza a Civilização. Parte fundamental do segredo, do triunfo evolutivo e do êxito adaptativo humano é assim devido à consciência que temos de nós mesmos, mais nenhum outro primata atinge um grau tão elevado de instrospeção (RAMACHANDRAN, 2011). Somos a única espécie que tem consciência que tem um corpo e que tem consciência que tem consciência. A noção plena de humanidade brota assim do sistema corpo- motricidade-cérebro-mente, pois, com ele, assumimos o estatuto privilegiado de transcender os nossos instintos e de produzir e criar cultura. Fabricamos e aperfeiçoamos ferramentas e abrigos; protegemos e ensinamos as crias; criamos estratégias sofisticadas de caça; controlamos o fogo; manipulamos e cosemos peles para nos vestirmos e protegermo-nos; exploramos todos os cantos do nosso planeta; conseguimos armazenar alimentos; desenvolvemos estratégias de negociação; aprendemos a comunicar por gestos e pela fala; inventamos a agricultura, domesticamos animais; descobrimos a roda; criamos sistemas de escrita; adquirimos um sentido moral; consciencializamos sobre a nossa mortalidade; construímos cidades gigantescas; aderimos apaixonadamente a diversas tecnologias etc. Tudo isto por obviedade de funções mentais corpóreas sustentadas por circuitos neuronais e por vicariedade de funções motoras planificadas, antecipadas e executadas, apenas encontrados nos seres humanos e em mais nenhum outro ser vivo terreste. Com o desenvolvimento explosivo e aperfeiçoado de certas estruturas-chave do cérebro, mantendo as mais antigas, básicas, simples, naturais e primaciais que compartilhamos com reptéis, mamíferos e primatas em pleno funcionamento com as mais recentemente adquiridas, como ilustra o cérebro triúnico proposto por MacLean, 1973 (dos reflexos às reflexões, passando pelas emoções), com particular realce, as que estão na origem da autocompreensão e da somatognosia, a evolução genética desacelerou para dar lugar a uma aceleração brutal e inesperada da evolução cultural. Em síntese, o cérebro ilumina-se, ativa-se e desenvolve-se por meio de padrões de motricidade que emanam de um sistema total que é o corpo. Os nossos cérebros e as nossas mentes estão completamente incorporados, impactados, unidos e embutidos no nosso organismo indivisível, por isso a nossa espécie deve o seu triunfo evolutivo e adaptativo a uma mente e a uma aprendizagem corpórea. O cérebro e a mente são, portanto, corpóreos e motores, pois as suas interações sistêmicas e totais com o envolvimento estão na base da compreensão por que razão somos como somos. Somos um primata nu (das 193 espécies de primatas só o ser humano é pelado. MORRIS, 1970) e um primata com alma (RAMACHANDRAN, 2011), com uma pele que contém um sentido tátil-sensorial, mas também um sentido extrabiológico, afetivo e social, exatamente, o sentido corpóreo que permite o contato humano. Com tamanha integração metassensorial e com um corpo fenomenológico e sensível, podemos então autodenominarmo-nos como seres sensíveis e sábios. A importância da ação na evolução e na educação é, portanto, fulcral, e a importância de um sistema cognitvo corpóreo e emocional, dito psicomotor, é crucial a todos os processos de aprendizagem. Só entendendo que o ser humano é um ser aprendente ativo e não um ser recipiente passivo, podemos, de fato, educá-lo holística e integralmente, não apenas no sentido intelectual do termo mas também no sentido corpóreo, emocional e social. 3. – Como o Corpo produz uma Psicomotricidade? A motricidade humana, obviamente distinta da motricidade animal e da motricidade robótica, dada a sua característica extrabiológica e a sua essência e singularidade mental, é metamotora (nova expressão que pretendeanalisar a Psicomotricidade em analogia com a metacognição), porque é, simultaneamente, ação, conação e enação, além de lhe estar agregada uma função de sobrevivência ímpar e uma função de comunicação e de criatividade sem paralelo no reino animal. A motricidade é comportamento, ou seja, é um ato e um gesto, muito mais que um mero exercício físico. Como expressão de uma relação inteligível entre a situação externa e a ação planificada e executada internamente, ela ilustra o que qualquer espécie animal faz no seu habitat natural para sobreviver e se reproduzir. Mais de um milhão de espécies animais sobrevivem à custa de movimentos e posturas, a espécie humana também, porque deve o seu êxito evolutivo e adaptativo à sua motricidade pensada, autorregulada, dominante, criativa e transformadora (FONSECA, 2008, 2010). Somos portadores de um organismo impressionante na sua versatilidade e adaptabilidade e ascendemos a uma linguagem corporal, gestual e facial, verdadeiramente espetacular e apaixonante em termos biológicos, zoológicos e antropológicos. Cabe agora neste texto discutir e aprofundar a primeira linguagem humana que, por essência, é corporal e gestual (macro e micromotricidade) e neurologicamente antecedente das outras três que emergiram socio-historicamente na espécie e surgem neurodesenvolvimentavelmente na criança, isto é: - a linguagem falada (oromotricidade); e - a linguagem escrita e a linguagem quantitativa (grafomotricidade). Passaremos por elas superficialmente, sublinhando alguns aspectos mentais das posturas do corpo e das praxias das suas extremidades motoras: pés, mãos, face e boca. No tocante à linguagem corporal, gestual e facial humana, não podemos esquecer que somos todos produtos de hábitos e de conjuntos de atos individuais longamente aprendidos, automatizados e aperfeiçoados, seguindo uma hierarquia neurofuncional geneticamente determinada e explicada pela maturação cerebral. A motricidade sendo concebida nesta tridimensão como comportamento e como resposta adaptativa é total e unificada, pois consubstancia uma relação inteligível entre a situação externa, vista como um problema, e a ação desencadeada internamente e intencionalmente, autoelaborada e autorregulada mentalmente, vista como solução. É ação porque mobiliza todas as sensibilidades corporais corticalizadas, interiorizando, dialecticamente, o mundo interior e o mundo exterior, desde o corpo até a natureza, desde o social até o cultural, coordenando múltiplas representações e metarrepresentações em um raciocínio ideocinético e flexível, cujas elaboração e execução gestual surgem profundamente conectadas e harmonisadas. É conação porque a sua organização e expressão é fortemente motivada por emoções e afetos, e é também energética e tonicamente autoengendrada por uma personalidade motivacional e por um temperamento, sutilmente aglutinados por uma representação positiva de si mesmo (autocompreensão, autoestima, autoconfiança e autoeficácia). É, finalmente, enação porque a ação é o espelho da história experiencial do sujeito, sendo fadada pela sua ação e concebida da sua ação, evocando uma relação íntima e uma circularidade estrutural e singular, entre o seu psiquismo e a sua motricidade, no fundo, buscando incessantemente uma criatividade incomparável, onde o que se faz é inseparável do que se imagina e do que se é como ser humano. O corpo e a sua motricidade, quer na filogênese, quer na ontogênese, desde o nascimento até o falecimento, nunca perdem o contato com o cérebro e a mente, são a matriz neuropsicomotora da formação da consciência do sujeito. As interações entre os quatro componentes que temos abordado, onde o todo é superior à soma das partes, são o berço da consciência e o enigma da mente, porque o cérebro integra e gera o corpo e a sua motricidade por meio de sistemas neurofuncionais de intencionalidade que emanam de um sentimento de si emergido dos seus substratos viscerais, interoceptivos, proprioceptivos e límbicos mais profundos. Os seus sistemas neurofuncionais podem ser concebidos como a coordenação de várias áreas cerebrais em interação dinâmica, tendo em vista a execução ou produção corpórea de um dado comportamento, de uma dada conduta, ou seja, de uma resposta motora adaptada e recompensadora. É devido ao cérebro humano que percebemos, agimos, aprendemos e lembramos. É por meio da sua arquitetura neuronal e da sua organização funcional que pensamos antes de agir e que antecipamos as suas consequências. O sistema total corpo-motricidade-cérebro-mente que está na base da nossa sobrevivência cósmica e planetária resultou de um processo de seleção natural darwiniano muito complexo e ainda pouco aprofundado. Ele reflete na sua essência a verdadeira condição humana e subentende o verdadeiro significado da vida. O organismo humano produz comportamentos flexíveis e adaptados, e não fixos ou invariantes como os animais, porque a precisão da nossa autocompreensão, devida à nossa noção e consciêncialização do corpo, que temos e somos, nos leva a planificar e executar ações inteligíveis e criativas que transformam as nossas relações, quer conosco próprios, quer com o nosso meio ou ecossistema planetário que é o único que temos, por enquanto, para habitar. Com a consciência, realizamos e executamos qualquer comportamento, ação ou processo de adaptação ou de aprendizagem, cujo produto final revela uma neuroconstrução de sistemas cognitivos complexos como são exemplos os acima referidos. A aprendizagem das competências que o ser humano imagina, pensa, planifica e executa, no seu dia a dia, de acordo com os modelos neuropsicológicos contemporâneos resulta, portanto, da criação de redes e conexões de cerca 100 bilhões de neurônios. Os neurônios são células nervosas que possuem um corpo celular e dois prolongamentos ou processos, em um extremo, vários dendrites em ramo que recebem informação (input), e no outro, um longo cabo, o axônio, que transmite mensagens (output) para outros neurônios, pois são células que não trabalham isoladas, mas “falam” entre si. Ambos os extremos de cada neurônio estabelecem pontes de comunicação eletroquímica com os outros neurônios, não esquecendo aqui também o papel do funcionamento dos astrocitos e das glias, sem as quais os neurônios não trabalhariam com tanta velocidade e eficácia. São estas pontes de comunicação ou sinapses – que podem ir a 10 mil por cada neurônio – que estabelecem as redes ou cadeias neuronais (“networks”) com que o cérebro trabalha e produz os diversos tipos de comportamento ou de motricidade. Os sistemas cognitivos a que já nos referimos equivalem a processos mentais que se encontram localizados em regiões específicas do cérebro, cujo funcionamento interno superconectado e desconcertantemente complexo espelha o comportamento observável do indivíduo ao longo do seu neurodesenvolvimento. Neste contexto, é óbvio que os genes (determinante inato) ao se expressarem nos neurônios por meio dos processos adquiridos pela aprendizagem cultural (determinante envolvimental) acabam por alterar a estrutura do nosso cérebro. O cérebro que é composto de cerca de 100 estruturas com nomes misteriosos foi moldado pela motricidade, ao longo do processo da evolução,e é moldado pela sua aprendizagem corpórea, ao longo do neurodesenvolvimento. O cérebro ao produzir o comportamento também se transforma na sua anatomia e fisiologia. As suas ações mentais decorrentes dos seus circuitos neuronais, quer sejam simples respostas motoras, como andar, manipular ou comer, quer sejam complexas respostas motoras, como falar, ler, escrever, resolver problemas, criar uma obra de arte ou pensar, estão intrinsecamente relacionadas com a sua estrutura celular, com o crescimento axodendrítico, com migrações de neurônios, com os seus sinais eletroquímicos e com as suas funções, processos e operações mentais. O que normalmente denominamos por operações mentais, ou mente, são conjuntos de ações executadas pelo cérebro que conduzem e dirigem milhões de célulasindividuais para produzir comportamentos e respostas motoras adaptadas, Como respostas comportamentais que são, elas são influenciadas retroativamente (“feedback”) pelo envolvimento, incluindo naturalmente as ações e interações sociais das outras pessoas, como nos eventos de vinculação, de interação social ou de transmissão cultural intergeracional. Muitas funções mentais são operadas em regiões específicas e separadas do cérebro, cuja organização em unidades em interconexão comunicacional já pode ser devidamente mapeada em circuitos funcionais pelas novas tecnologias de imagiologia cerebral. No caso da linguagem falada, uma oromotricidade, certamente é um dos comportamentos faciais, bucais e línguais mais elaborados e complexos do cérebro humano, o seu processo mental inclui funções desempenhadas por componentes ou módulos receptivos posteriores e temporais (input sensorial auditivo – área de Wernicke), por componentes ou módulos expressivos anteriores e frontais (output verbal e oromotor – área de Broca) e por fascículos arqueados que os conectam bidirecionalmente. Efetivamente, a motricidade humana perspectivada como linguagem corporal e gestual integra processos culturais e práxicos, que deram origem aos processos civilizacionais, envolvem componentes cerebrais desde a medula até o tronco cerebral, o cerebelo, os gânglios da base, o sistema límbico e subcortical, e integram igualmente, componentes corticais temporais, no caso particular da ação, essencialmente, occipitais e parietais, e, por último, componentes frontais e pré-frontais que supervisionam os processos de planificação e execução de respostas motoras adaptadas que levaram ao triunfo evolutivo da nossa espécie, ao bipedismo, ao bimanismo, à linguagem produzida com a boca e a língua e à linguagem produzida com a mão. Em todos os comportamentos, sejam simples reflexos inatos, sejam praxias complexas aprendidas por meio de uma prática deliberada (macro, micro, oro, grafo e sociomotores – FONSECA, 2010), podemos constatar a transformação mental de sinais sensoriais em atos motores. As interações entre genes e envolvimento desde o útero, ao tornarem-se cruciais depois do nascimento, vão permitir a emergência de comportamentos motores cada vez mais complexos, não só das nossas percepções do mundo exterior e das nossas capacidades de focar a atenção, mas também das nossas competências de controle e execução de múltiplas das nossas ações. Os eventos eletroquímicos e moleculares que vão estar na base da transmissão sináptica, que permite a comunicação interneuronal entre várias regiões do cérebro, como podemos constatar no comportamento cognitivo elaborado da linguagem, induzem finalmente, como exemplo, o comportamento da fala ou do canto. O comportamento pode, portanto, ser compreendido como resultante de propriedades específicas dos neurônios e dos seus sistemas funcionais espalhados pelo cérebro. A especificidade das conexões sinápticas estabelecidas ao longo do neurodesenvolvimento e ativadas pela aprendizagem corpórea e pela experiência motora duradoura e intensa demonstra, em resumo, que todo o comportamento resulta de funções do cérebro. Por essência funcional, o cérebro é o orgão da aprendizagem porque é capaz de captar por meio dos sentidos (informação aferente e centrípeta) e transformar por meio da motricidade (informação eferente e centríguga) uma quantidade transcendente de dados de informação, primeiro não simbólica e, depois, simbólica, algo que é exclusivo do cérebro humano. É interessante também refletir, no sentido de uma perspectiva evolucionista, por que é que, ao longo de milhões de anos, o cérebro que produz uma mente corpórea, como já descrevemos, se encontra atrás dos olhos, entre os ouvidos e por cima do corpo, por isso é, certamente, um enigma biosemiótico (FONSECA, 2008, 2010). Alguma explicação existe, e ela pode ilucidar por que é que o ser humano, quer em termos de evolução de espécie, quer em termos de desenvolvimento ontogenético, deve o seu triunfo evolutivo e o seu neurodesenvolvimento a um conjunto de conquistas motoras ou competências adaptativas integradas sequencial e temporalmente porque são causadas por uma dinâmica maturacional e organizacional com configurações diferentes em cada etapa da vida. Configurações ontogenéticas em termos evolutivos na criança, no adolescente e no adulto, mas, em termos involutivos, configurações retrogenéticas no sênior (FONSECA, 2009). Vejamos agora, de forma resumida, quais são essas principais conquistas neurodesenvolvimentais da motricidade humana. 4. – As Conquistas Neurodesenvolvimentais da Psicomotricidade Tais conquistas adaptativas ou competências evolucionistas neurofuncionais integradas e interiorizadas sistemicamente no cérebro e decorrentes da experiência corpórea e motora na interação com o envolvimento ocorreram na evolução da espécie humana ao longo de milhões de anos, e ocorrem ao longo de, sensivelmente, duas dezenas de anos no desenvolvimento biopsicossocial (ontogênese da infância e da adolescência) de um ser humano único, total, evolutivo e involutivo. Tais conquistas que consubstanciam a evolução da espécie humana e, paralelamente, o desenvolvimento de uma dada criança devem merecer uma reflexão mais aprofundada quando procuramos compreender as relações entre cérebro, comportamento ou cérebro e motricidade, uma vez que, no contexto espistemológico mais elevado, a Criança é o verdadeiro Pai do Homem. A natureza das relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente enfoca-se necessariamente na natureza do desenvolvimento da espécie humana (filogênese, sociogênese e retrogênese), logo, na natureza do desenvolvimento da criança (ontogênese ou disontogênese), uma vez que o seu estudo complexo coloca em jogo a dupla herança biológica e cultural da Humanidade, assim como a importância crucial e determinante das interações entre organismo e envolvimento. Estudar as relações entre cérebro e comportamento pressupõe equacionar a relação recíproca, permanente e perpétua entre a evolução e a educação ao longo dos tempos, quer no passado e no presente, quer óbvia e prospectivamente no futuro. A apropriação de competências adaptativas, expressa na evolução e no desenvolvimento humano, sugere um processo de aprendizagem e de neuroplasticidade, que não só transforma as relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente mas também implica a integração e a emergência gradual ou súbita de novas habilidades, bem como subentende a hierarquização de novas redes neurofuncionais cada vez mais organizadas e especializadas. Os seres humanos não nascem ensinados por alguma razão, nascem, pelo contrário, imaturos e com imperícias múltiplas, por isso precisam de vinculação emocional e afetiva e proteção social ao longo da sua infância prolongada (WALLON, 1969, 1970; VYGOSTSKY, 1979a, 1979b, 1986). A evolução da espécie humana e o desenvolvimento da criança individual espelham um processo de mudança nas relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente que ocorre da imaturidade à maturidade, da imperícia à perícia, ou seja, do gatinhar ao andar, da lalação à articulação, do ato ao pensamento e do gesto à palavra, da leitura à escrita (FONSECA, 2009, 2016). Em suma, o desenvolvimento infantil reflete a trajetória evolucionista da espécie humana prescrita nos genes. As aprendizagens universais da espécie humana constituem, assim, a matriz neurofuncional de onde emergem as aprendizagens individuais. É dentro deste contexto que tentamos aqui abordar as relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente. Do inato ao adquirido, tais relações, por consequência, obedecem a este paradigma básico do desenvolvimento humano. A totalidade do organismo e a sua integridade dependem da organização sináptica do cérebro e da influência e ativação corpórea e motora do envolvimento, por meio da cadeia dinâmica: genes- corpo-motricidade-envolvimento-cultura-educação-cérebro- mente. Em termos de síntese biocultural, portanto, o neurodesenvolvimento humano decorreda emergência e da hierarquização organizacional de cinco grandes conquistas neurofuncionais, a saber: (1ª) a postura e a marcha bípedes (macromotricidade); (2ª) a praxia fina e a invenção e fabricação de instrumentos (micromotricidade); (3ª) a comunicação gestual e verbal (oromotricidade); (4ª) a expressão artística e a expressão escrita (grafomotricidade); e, finalmente, (5ª) a criação, retenção, transmissão e utilização do conhecimento, que se constituem como neurocompetências pedestal da estátua da cultura e da civilização humanas. Paralelamente em termos de desenvolvimento da criança, todas estas competências adaptativas são incorporalizadas e internalizadas sequencialmente e, em cointeração mútua, elas integram-se neurofuncionalmente em contiguidade simultânea e em uma coestabilidade coerente e sucessiva. Sem a observância destas propriedades neurofuncionais do sistema corpo-motricidade-cérebro-mente, o desenvolvimento humano desvia-se da sua trajetória optimal, as crianças com necessidades desenvolvimentais e educacionais especiais são a prova evidente dessa condição da natureza humana. É dentro dessa dinâmica evolutiva que a neuropsicomotricidade se coloca como ciência, estudando as relações entre as diversas unidades funcionais do cérebro e as múltiplas ações observáveis que o sujeito produz ao longo da sua experiência de vida. Aqui, o termo comportamento é utilizado para descrever a ampla variedade de respostas motoras adaptativas, umas simples e sutis, outras coordenadas e complexas, que ocorrem no organismo humano como acabamos de descrever. Podemos assim e agora, depois de apresentarmos um esquiço do cérebro, perguntar o que é então o comportamento. O comportamento em uma perspectiva neurobiopsicológica é uma manifestação da conduta ou da atividade de um organismo (complexo corpo-motricidade-cérebro-mente) em interação com o meio ambiente ou o envolvimento, o que pressupõe uma relação cognitiva e inteligível, entre: - a situação (implicando a presença, o processamento e a integração de estímulos sensoriais - input); e - a ação (implicando a planificação e a execução de respostas motoras adaptativas – output, coadjuvadas com as funções de retroação – feedback); O comportamento humano, isto é, qualquer ação, motricidade ou resposta observável, engloba naturalmente inúmeras manifestações ou atividades, como já vimos anteriormente. Tais condutas são efetivamente realizadas harmoniosa e eficazmente, de forma adaptada e ajustada, sem fazer um esforço atencional consciente, mas só depois de devida e arduamente aprendidas. A aprendizagem humana como modificabilidade corpórea e comportamental, portanto, pode ser explicada em três fases: inicial, intermédia e final. Na fase inicial, as relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente no sujeito estão ainda fragmentadas por inexperiência e imaturidade. Na fase intermédia, as relações do sistema complexo corpo- motricidade-cérebro-mente vão sendo gradualmente integradas no sujeito devido à experiência corpórea intensa e deliberada. Alguns neurocientistas sugerem 10.000 horas pelo menos, asseguram os seus estudos de imagiologia cerebral entre seres humanos iniciados comparados com seres humanos peritos em várias atividades motoras ou simbólicas. Nesta fase crucial da aprendizagem, tais conexões por via do treino prolongado vão adquirindo mais autoconsciêncialização, mais solidez e segurança emocional e, obviamente, mais progressos na automaticidade. Nesta altura do processo de aprendizagem, o corpo e a sua motricidade demonstram já parâmetros de fluência, precisão e de velocidade muito apreciáveis, os circuitos neuronais estão já reciclados, mas continuam a fortalecer-se. A fase final evidencia a mudança de comportamento provocada pela prática. A fluência sonhada e desejada é então incorporada e continuamente aperfeiçoada, a perícia e a excelência performática não param de ser apuradas. Eis o segredo da aprendizagem humana, seja subir e descer de uma árvore para fugir de predadores, seja lançar um arco e uma flecha, desenhar e pintar, fabricar e construir instrumentos e abrigos, nadar, andar de bicicleta, ler e escrever, resolver um problema matemático ou científico. O nosso cérebro assume, assim, após experiência continuada e prática deliberada de aprendizagem, tais processos de modificabilidade comportamental com automaticidade, fluência, perícia e excelência, ou seja, sem controle atencional consciente (HALE e FIORELLO, 2004). Somos a espécie mais adaptada ao envolvimento, porque não nascemos ensinados, mas precisamos ser ensinados para aprender e para nos adaptarmos às suas mudanças. Sem esse esforço corpóreo, sem enfoque atencional e sem organização neurológica, o nosso triunfo evolutivo não seria possível. Vejamos então, ao terminar este ensaio de Neuropsicomotricidade sobre as relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente, com base no modelo de Luria (1969, 1973, 1977, 1979, 1980), como é que o cérebro se organiza em termos neurofuncionais para produzir qualquer tipo de aprendizagem, comportamento ou motricidade. Luria, neuropsicólogo russo com reconhecimento mundial, criou um modelo do funcionamento cognitivo humano baseado nas suas pesquisas com soldados lesionados no cérebro, que nós adaptamos à Psicomotricidade ao longo da nossa carreira acadêmica e clínica (FONSECA, 2008, 2009, 2012, 2014). Segundo tal modelo neuropsicológico, a Psicomotricidade, que é uma motricidade exclusiva da espécie humana e uma cognição corporalizada, como temos desenvolvido ao longo deste texto, só se pode explicar: - estudando o cérebro nas suas estruturas, funções e disfunções; - estudando o comportamento nas suas funções cognitivas receptivas e integrativas intrínsecas à motricidade; e, obviamente, - estudando a motricidade nas suas funções cognitivas executivas de planificação, controle, priorização, monitorização e verificação da mesma. Deste modo, não é suficiente estudar a Psicomotricidade sem os substratos neurológicos que lhe dão suporte, logo a nossa nova perspectiva epistemológica não é falar de Psicomotoricidade, mas, inequivocamente, da emergência da Neuropsicomotricidade. A motricidade humana, como forma distinta de comportamento, tem de se explicar pelos processos cognitivos básicos: de recepção (input sensorial); de integração (processamento, armazenamento, conhecimento, aprendizagens e emoções adquiridas) e de expressão (output motor). Em termos de comportamento, efetivamente, os seres humanos recebem informação (estímulos) do meio ambiente exterior ou do envolvimento, mas, igualmente, dos seus orgãos internos corporais. Quando essa informação é enviada para o cérebro pelas vias aferentes (de fora do corpo ou da sua periferia ou do seu interior, passando pela medula e pelas estruturas subcorticais), o processamento central torna-se ativo, lidando com dados apresentados ora de forma seriada, sequencializada ou sucessiva (exemplo: dar um laço nos atacadores do sapato etc.), ora de forma simultânea ou concorrente (exemplo: lançar um objeto para um alvo determinado etc.). A componente final ou terminal que é enviada do cérebro (motoneurônios superiores) para o corpo, passando pelos gânglios basais, pela medula (motoneurônios inferiores) e para os músculos pelas vias eferentes produz a ação, o gesto ou a motricidade como resposta adaptativa, aí pondo em funcionamento funções cognitivas e executivas de planificação, priorização, monitorização, de decisão e de verificação dos seus resultados e consequências. O espectro da motricidade humana, eminentemente neuropsicomotora, que abrange desde os reflexos e instintos, como as expressões mais básicas de sobrivência, até as praxias, como expressões superiores e máximas de criatividade cultural, qualquer delas responsáveis pelo triunfo adaptativo e evolutivo da espécie enfoca-se, segundo Luria, no funcionamento sistêmico e integrado do cérebro com base na interação de três unidades ou sistemas neurofuncionais: 1ª - unidade de atenção; 2ª - unidade de processamento;e 3ª - unidade de planificação e de execução. Cada uma destas unidades está envolvida em todos os tipos de motricidade, sem exceção, todavia a relatividade da contribuição de cada uma delas varia conforme o comportamento considerado, isto é, macro ou micromotor; sociomotor, oromotor e grafomotor; não verbal ou verbal; não simbólico ou simbólico etc. A primeira unidade (situada no plano inferior do cérebro), a segunda unidade (situada no plano posterior) e a terceira unidade (situada no plano anterior) são igualmente subdivididas em mais áreas distintas. A primeira unidade inferior, dita de ativação, fornece ao cérebro o nível adequado e seletivo de alerta, de atenção e de tonicidade corporal e cortical. A segunda unidade, dita de integração, codificação e processamento sensorial, e a terceira unidade, dita de elaboração e produção motora, obedecem todas a uma organização funcional hierárquica de baixo para cima, de trás para a frente e da direita para a esquerdo, segundo o modelo dos três eixos de funcionamento cerebral (DAS, 1998; HALE e FIORELLO, 2004). A segunda unidade posterior contendo os lobos sensoriais: occipital para a visão; temporal para a audição; e parietal para o tato, para a pele e para a motricidade ou cinestesia, opera segundo uma hierarquização do específico (áreas primárias) para o inespecífico, seja de associação ou de sobreposição (áreas secundárias e terciárias). A terceira unidade anterior contendo o lobo frontal supervisor e motor opera no sentido contrário, vai das áreas terciárias ideacionais para as secundárias programáticas e, só finalmente, para as áreas primárias onde é gerada e desencadeada a motricidade propriamente dita. Vejamos agora de forma reduzida, pois já desenvolvemos esta matéria do modelo de Luria em outras obras anteriores (FONSECA, 2008, 2012) às funções principais de cada uma das três unidades ou sistemas neurofuncionais: 5.1. - Primeira Unidade de Atenção: está localizada nas estruturas do tronco cerebral, nas estruturas subcorticais e axiais do cérebro que suportam os dois hemisférios, integra o sistema de ativação reticular ascendente e descendente (SARA e SARD) e um conjunto difuso e interligado de estruturas, que são responsáveis pela modelação do alerta corporal e cortical, pelas funções de sobrevivência, pela vigilância tônico-postural e pela filtragem, focagem, refinação e integração dos inputs sensoriais. Em síntese, compreendem a atenção, o enfoque, o “estar pronto” ou a postura do organismo para agir e responder adequadamente às influências do meio externo ou ambiental. Esta unidade compreende a medula, o tronco cerebral, o cerebelo, o diencéfalo, o sistema límbico, o hipotálamo e o tálamo. Sem ela, o cérebro é incapaz de responder eficazmente aos estímulos do mundo envolvente e é ineficiente em manter um nível ótimo de metabolismo fisiológico, pondo em risco, não só a interação entre corpo e cérebro (dita intrassomática e mental) mas também a interação sensório-motora subjetiva e conativa do organismo total do indivíduo com os seus ecossistemas (dita extrassomática). O sistema corpo-motricidade-cérebro-mente no seu todo neurofuncional reclama a ativação desta unidade, pois o organismo e o meio ou ambiente estão por ela intimamente ligados, uma vez que esta unidade rechama as funções mentais atencionais e interiores que unem a percepção à ação. Na nossa perspectiva, a ação humana é carregada de intencionalidade, é efetivamente uma cognição corporalizada ou uma inteligência cinestésica (GARDNER, 1985), onde o sujeito não é apenas ator, ele é também um perceptor cognoscente por meio da regulação da sua atenção e da sua tonicidade, envolvendo o bem- estar, a orientação, a motivação, a seletividade e a sustentação modulada e harmonizada das outras duas unidades neurofuncionais. Sem a participação mobilizadora e enfocada desta função, qualquer aprendizagem simples ou complexa, não simbólica ou simbólica, é consequentemente problemática. O acesso a funções psíquicas superiores das outras duas unidades neurofuncionais, sejam de processamento, de armazenamento e de recuperação para a planificação e execução de ações intencionais e adaptadas ao meio envolvente, fica comportamentalmente comprometida. As respostas motoras adaptativas são dificilmente controladas, como se observa em pacientes com lesões nos substratos acima referidos, ou quando clinicamente observamos ou trabalhamos, terapêutica e educacionalmente, com crianças com necessidades especiais ou défices de atenção, com ou sem hiperatividade e hipoatividade. As dificuldades, disfunções ou desordens desta unidade podem explicar vários casos em muitas crianças com dificuldades desenvolvimentais ou de aprendizagem. Por estar implicada na filtragem, na seleção e na integração sensório-tônica e tônico-motora dos estímulos e das respostas, esta unidade também impede e inibe que o cérebro seja inundado desnecessariamente com informação sensorial irrelevante que possa interferir negativamente com o processamento cognitivo mais elaborado, jogando por esse fato, um papel fundamental na focagem, na direcionalização e na fixação da atenção, na concentração, na integração experiencial e emocional e em outras funções mentais superiores. Ter e alocar atenção, otimizar as condições de alerta a determinados estímulos e inibir consistentemente outros, que são pouco importantes, e porventura mais salientes, mas não relevantes para desencadear uma resposta motora inteligível e autorregulada, é portanto uma função-chave desta unidade neurofuncional. Sem ela, não se podem atingir patamares de reconhecimento, complexidade e de organização seletiva com as outras duas unidades que são envolvidas em comportamentos e aprendizagens mais complexas. 5.2. - Segunda Unidade de Processamento: está localizada na zona posterior do cérebro e envolve os três lobos sensoriais, trata-se da unidade neurofuncional que é responsável pela recepção, integração, associação e codificação das informações sensoriais exteroceptivas, interoceptivas e proprioceptivas. O termo codificação aqui significa a análise, a síntese, o armazenamento e a recuperação ou rechamada da informação agregando a significação e a relação com a base de dados resultantes da experiência e do conhecimento já integrados no cérebro. Compreende, portanto, a maioria das aprendizagens precoces de vinculação, quer visuais, tônico-emocionais, quer auditivas e postural-motoras, quando envolvem as áreas primárias, e mais tarde, ao longo da trajetória desenvolvimental prolongada da infância, a integração das experiências e aprendizagens sociais, emocionais, afetivas, lúdicas, comunicacionais e psicomotoras pré-escolares e escolares, quando envolvem as áreas secundárias de associação e as terciárias de sobreposição e de equivalência sensorial codificativa. Ela é essencialmente constituída pelas zonas hemisféricas posteriores dos lobos occipitais (visão), temporais (audição) e parietais (tátil-quinestésico), e composta por áreas primárias, secundárias e terciárias que, de seguida, vamos apresentar de forma muito abreviada: - áreas primárias: são áreas de recepção sensorial que estão em estreita conexão com a periferia corporal e com os orgãos sensoriais (próprio e interoceptivos), predeterminadas geneticamente e sem diferenciação hemisférica, cuja lesão em adultos provoca a cegueira ou a surdez cortical, dado que representa o início da integração cortical, ou cuja disfunção ou imaturidade na criança pode implicar problemas desenvolvimentais precoces de processamento sensorial básico, de interação, de imitação, como nas ecocinésias, ecognosias, ecolalias etc.; - áreas secundárias: são áreas de análise, síntese, retenção e integração da informação intrassensorial específica, recebida das áreas primárias com base ora em processos perceptivos simultâneos, globais e coconcorrentes, ora em processos perceptivos sequenciais, seriados ou sucessivos já especializados de forma diferenciada em cada um dos dois hemisférios (DAS et al., 1979). O processamentosimultâneo ocorre quando a informação é sintetizada em unidades espaciais ou relacionais, isto é, quando todas as suas componentes ou partes dela surgem ao mesmo tempo (exemplo: em uma figura ou em uma imagem). Em contrapartida, o processamento sucessivo ocorre quando a informação é fornecida por componentes ou elementos apresentados em uma sequência, ou seja, uma unidade ou parte de cada vez (exemplo: em um número de telefone ou em um ditado). Nesta modalidade de processamento, o cérebro segura ativamente cada elemento (função fundamental da memória de trabalho) até que todos os outros sejam apresentados, no fim do qual emerge o seu significado. Ambos os processos envolvem complexas desconstruções e reconstruções e ambos estão envolvidos nas atividades cognitivas mais complexas. O processamento da mesma informação pode ser diferenciado: quer no seu conteúdo (verbal ou não verbal); quer nas suas modalidades sensoriais (visual, auditiva ou tátil-quinestésica); quer, ainda, nos seus níveis cognitivos progressivos (percepção, imagem, simbolização e conceitualização). Processar informação em termos cognitivos consistentes mobiliza a combinação sistêmica dos dois tipos de processamento: primeiro, o simultâneo que é mais compatível com os lobos occipital e parietal e, posteriormente, o sucessivo que é mais compatível com os lobos temporal e frontal, onde se verifica, então, a ocorrência de múltiplos processos de discriminação, de escrutínio e identificação, de associação e categorização de dados intra e intersensoriais, além de: - inúmeros subprocessamentos acústicos do som (exemplo: timbre, ritmo, melodia etc.), de fonemas e de monemas, para o caso do sentido da audição; - múltiplos e diversificados subprocessamentos do espaço (exemplo: locação, detecção, posição, orientação, lateralização etc.) que incluem os subsistemas magnocelular e parvocelular envolvidos no rápido escrutínio e na coordenação visório-motora, da figura-fundo, da côr, da constância da forma, da espessura, do tamanho de imagens, figuras, signos, letras, números etc., no caso do sentido da visão; - complexos subprocessamentos somatognósicos das posturas e das praxias globais e finas, da análise, síntese e localização tátil- quinestésica, vestibular e proprioceptiva da linguagem do corpo, das mãos e da face e da sua integração emocional e experiencial de gestos e de ações espaçotemporalmente organizadas, no caso do sentido tátil-quinestésico (FONSECA, 2008, 2012, 2014). Tais funções tornam-se essenciais para fazer emergir funções únicas da espécie como a linguagem falada (oromotora) e mais tarde a linguagem escrita (grafomotora), onde os fonemas devem ser devidamente fragmentados (consciencializados), sequencial e rapidamente articulados para que se formem palavras e frases nas áreas terciárias, ou fazer emergir a rápida categorização optema- fonema, fonema-monema e monema-articulema no caso da leitura, No sistema simbólico mais avançado da linguagem escrita, deve ocorrer a rápida rechamada dos grafemas, onde os traços, os ângulos, as formas, as posições e as relações espaciais, depois de passarem por uma linguagem gráfico-lúdica e por um desenho e uma arte infantil de raiz grafomotora, devem ser devidamente manipulados para produzir mais tarde a escrita em termos caligráficos de legibilidade e em termos ortográficos de compreensibilidade. Nesta segunda unidade posterior do cérebro, os optemas (visão) e os fonemas (audição) deverão produzir rápidas e automáticas equivalências sensoriais ou codificações (gnosias – input), para serem posteriormente mobilizadas pela terceira unidade anterior, a fim de exprimirem respostas adaptativas (praxias – output), ou seja, os articulemas (fala-oromotricidade) e os grafemas (escrita- grafomotricidade). As lesões ou disfunções que se verificarem nestas regiões vão obviamente interferir com a natureza sequencial da análise e com a natureza simultânea da síntese, daí resultando desordens de processamento ou de reconhecimento de informação, ora omitindo e substituindo dados, ora adicionando e distorcendo outros, dificuldades essas que apresentam um elevado grau de diferenciação intra e inter-hemisférica que decorre de uma faculdade singular da evolução da espécie humana que é a especialização hemisférica. O hemisfério esquerdo, na maioria dos indivíduos, é mais vocacionado para o processamento e reconhecimento de informação verbal e simbólica, ou seja, mais analítica e localizacionalmente mais organizada, enquanto o hemisfério direito é mais predominantemente orientado para o processamento e reconhecimento da informação não verbal e não simbólica, espacial, figurativa e musical, postural e facial, ou seja, é mais difusamente organizado, dado subsistirem redes funcionais que apresentam distintos mediadores químicos em ambos os hemisférios, sendo o direito mais precoce, mais curioso e mais holístico que o esquerdo na filogênese e na ontogênese da aprendizagem, pondo em realce o papel dos dois hemisférios no seu desenvolvimento hierarquizado (LURIA, 1980; DAS 1998; FONSECA 2014, 2016;). Independentemente desta especialização hemisférica fundamental, que ocorre na criança sensivelmente por volta dos sete ou oito anos de idade, os dois hemisférios atuam em perfeita harmonia e empatia funcional, havendo mesmo competências linguísticas que são mediadas pelo hemisfério direito, como no reconhecimento de palavras longas e complexas e como na percepção e retenção de sons consonânticos, ao mesmo tempo que o hemisfério esquerdo, também, se encontra envolvido em processos de análise espacial, como, por exemplo, no reconhecimento de figuras familiares e complexas. Em termos de resumo, para se atingir a eficácia na aprendizagem, o que se passa é mais uma intrincada, coordenada e hierarquizada interação inter-hemisférica, mediada pelo corpo caloso, do que uma mera divisão dicotômica e funcional entre os dois hemisférios. E finalmente. - áreas terciárias: são áreas essencialmente localizadas na intercepção e sobreposição dos três lobos; o parietal, o occipital e o temporal de ambos os hemisférios, são áreas responsáveis pela integração sensorial crossomodal ou interneurossensorial, isto é, zonas de equivalência e codificação multimodal. Esta integração simultânea auditivo-visual ou visório-auditiva, auditivo-tátil-quinestésica, visório-tátil-quinestésica ou visório- espacial completa a análise sequencial daquelas mesmas áreas, envolvendo processos cognitivos de descodificação-codificação necessários para as praxias globais ou finas (aprendizagens motoras que requerem prática deliberada) e, é claro, necessários obviamente para a leitura (integração visório-auditiva ou óptico- fonética), para a escrita (integração auditivo-tátil-quinestésica para o ditado), e para a matemática (integração da visório-tátil e visório- quinestésica do corpo e da sua localização espacial básica), lembrando aqui que todas as aprendizagens são corpóreas e exigem que o sistema corpo-motricidade-cérebro-mente opere em acoplamento estrutural. A gramática, a abstração, a análise lógica, a compreensão das preposições, a rotação espacial, a determinação e projeção angular, as exterognósias etc. são funções específicas das áreas terciárias, funções essas, com algumas exceções, que constituem a maioria dos testes de inteligência. Trata-se, portanto, de funções cognitivas com maior poder de especialização hemisférica, cuja disfunção sugere a taxonomia das dificuldades de aprendizagem, as “dis”: dispraxias no caso da linguagem corporal, gestual e facial; disnomias, disfasias, disartrias no caso da linguagem falada; ou dislexias, disortografias, disgrafias e seus subtipos, no caso da linguagem escrita. 5.3. - Terceira Unidade de Planificação e Execução: está localizada na zona anterior do cérebro envolvendo o lobo frontal, o lobo supervisor (“brain manager”) e motor, que representa o nível mais elaborado do desenvolvimento do cérebro humano. Compreende a unidade neurofuncional de output, de elaboração, autorregulação, monitorização,priorização e verificação das respostas motoras terminalmente controladas. É a superestrutura das funções executivas (FONSECA, 2014b). Trata-se da central de comando de onde partem as vias motoras piramidais, fugais, eferentes e descendentes que se dirigem aos grupos musculares específicos, via gânglios basais (de onde partem as vias extrapiramidais), cerebelo e medula, que concretizam, realizam e executam qualquer tipo de praxia: macro, micro, oro, grafo e sociomotora. Convém esclarecer que o termo planificação envolve, necessariamente, o desenvolvimento de uma sequência espaçotemporal intencional de ações ou uma série de manobras e procedimentos para atingir um determinado fim, objetivo ou meta. A planificação põe, consequentemente, em marcha um sistema de organização, que inclui estratégias, subestratégias, metaplanos e programas de elaboração, regulação, priorização, execução, controle, monitorização e verificação de respostas motoras adaptativas ou ações com validade ecológica, isto é, a resolução de problemas com soluções planificadas, organizadas, verificadas e adaptadas. Deste modo, a função desta unidade neurofuncional implica cinco dimensões: 1º identificar a ação desejada; 2º sequencializar procedimentos; 3º recuperar dados relevantes de informação externa e interna; 4º alocar recursos cognitivos; 5º decidir e executar. Esta função recorre assim a uma internalização verbal ou linguagem interior autocontrolada, uma atenção voluntária construída, estimada e refinada. Trata-se, portanto, da unidade onde se produz uma cognição da cognição, ou seja, uma metacognição, pondo em jogo obviamente uma tomada de consciência do sujeito-ator cognoscente (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 1991; WARD, 2006; FONSECA, 2014) Esta unidade, como já evocamos, é também estruturada em áreas primárias, com as unidades motoras de output onde a execução motora é desencadeada a partir do homúnculo corporal representado no córtex motor; em áreas secundárias com centros de organização sequencial e temporal de condutas dependentes de retroinformações quinestésicas e proprioceptivas, de onde surgem os centros de planificação das áreas motoras suplementares; e, finalmente, em áreas terciárias, também designadas pré-frontais, com centros de antecipação, de autorregulação, de autocontrole, de desprogramação-reprogramação, de reaferência e retrocontrole emocional, de superfocagem da atenção, de flexibilidade e plasticidade etc., que refletem a atividade cognitiva que antecede a produção de respotas motoras adaptativas ou de competências de aprendizagem. Para que a aprendizagem humana ocorra de forma adequada, ou qualquer outra função psíquica superior como saber nadar, jogar, desenhar, pintar, tocar piano, ler, escrever ou resolver problemas, as três áreas contribuem de forma sincronizada e melódica para a sua expressão performática final. Nas áreas pré-frontais, por nós designadas psicomotoras, emergem as funções executivas de planificação, de autorregulação, de suporte à decisão (“decision making”), de avaliação, de continuidade temporal, de controle emocional, de controle inibitório, de atraso e distância interiorizada, de gratificação adiada, de atenção voluntária, de criatividade etc.(FONSECA, 2014b). A função de planificação antecipada da performance, práxica ou linguística, é obviamente responsável pela evolução humana e pela evolução dos processos de aprendizagem mais diferenciados e complexos. Os lobos frontais recebem informações das áreas secundárias e terciárias sensoriais da segunda unidade funcional posterior do cérebro, assim como recebem informações do sistema límbico, do tronco cerebral e fundamentalmente do cerebelo da primeira unidade funcional axial do cérebro. Os seus sistemas funcionais ao analisarem esta informação multifacetada dispõem das condições necessárias para planificar a resposta terminal, perfeita e racionalmente adequada às mudanças envolvimentais, às exigências da informação sensorial presente e às experiências passadas e acumuladas (DAMÁSIO 1979; DAS, 1998). Sendo a unidade funcional que mais tarde é desenvolvida em termos neurológicos, ela integra por inerência a segunda e a primeira unidades, mais precocemente desenvolvidas. Consequentemente, ela guia e orienta hierarquicamente as áreas subcorticais, permitindo a sua modelação consciente e atencional. Dotada desta arquitetura cibernética complexa, a terceira unidade frontal avalia se a família de procedimentos de planificação- execução é consentânea com objetivos de longo termo e se a monitorização dos fins está ou não a ser assegurada (WARD, 2006). Pôr em prática planos representa uma função crucial dos lobos frontais, tornando a ação (praxia e linguagem) vicária do pensamento (LURIA, 1980), é disso que se trata quando falamos do triunfo evolutivo da espécie humana e quando a criança domina os processos e procedimentos práxicos, léxicos e simbólicos de aprendizagem. O cérebro como órgão da civilização (VYGOTSKY 1986, 1979) e como órgão da aprendizagem (LURIA 1990, 1980; HALE e FIORELLO, 2004; FONSECA, 2008, 2010, 2016) transforma precocemente a ação em pensamento e, posteriormente, o pensamento em ação, ambos mediados pela linguagem interiorizada e acoplados neurofuncionalmente. Tal circularidade estruturante e anel funcional garantiram à espécie humana um processo evolutivo e maturativo sem paralelo na natureza, consubstanciando a função principal dos lobos frontais na produção de comportamentos ou condutas superiores. Como seres humanos, temos uma testa para contestar as nossas ações e os nossos comportamentos. Em síntese, para diferenciarmos a maturidade da imaturidade dos lobos frontais, teremos de equacionar não só a natureza dos défices mas também a natureza da aprendizagem e da mediatização, pois, só aguardando pela adolescência, podemos inferir, ou clarificar o verdadeiro potencial de modificabilidade e de aprendizibilidade que se observa na infância. Em síntese, este modelo de organização funcional do cérebro, a que nos dedicamos já em outras obras (FONSECA, 2010, 2012, 20114), todo o comportamento complexo humano, como caçar, comunicar, nadar, desenhar ou escrever etc., subentende a cooperação melódica destas três unidades. Com elas, percepcionamos, processamos, integramos, elaboramos, regulamos e executamos todas as formas de aprendizagem, de comportamento ou de motricidade. O modelo luriano procura demonstrar que a produção de qualquer comportamento humano exige o processamento de uma dada informação que tem origem fora ou dentro do organismo (sistema corpo-motricidade-cérebro-mente). De acordo com esta perspectiva neurofuncional, queremos ressaltar de novo que o corpo envia informação aferente para o cérebro, primeiro para as estruturas medulares e subcorticais do tronco cerebral, do cerebelo e do sistema límbico-talâmico, e depois, para as áreas primárias posteriores corticais, tátil-quinestésicas (lobo parietal), visuais (lobo occipital) e auditivas (lobo temporal). Posteriormente, a informação sensorial é transmitida para as áreas secundárias posteriores, onde é processada, tratada, elaborada e associada com outras, para finalmente ser superiormente combinada, justaposta e integrada nas áreas terciárias posteriores, onde ocorrem operações de hierarquização, equivalência, imbricação, compreensão e significação. Em termos opostos, quando se trata de produzir ou executar um comportamento ou uma resposta motora adaptativa, a motricidade, portanto, o cérebro envia informação eferente para o corpo via sistema corticopiramidal, extrapiramidal, cerebeloso, reticular e medular. Neste momento do ato mental, as áreas motoras anteriores e frontais funcionam em uma dimensão oposta e em espelho com as sensoriais posteriores. A ideia ou plano de comportamento é primeiro desencadeada e antecipada nas áreas terciárias do córtex pré-frontal, depois as áreas motoras secundárias ministram e fornecem os programas motores, e por último, o córtex motor, a partir do seu anão corporal, minuciosamente comanda, remeteou despacha o ato corpóreo e motor final que é observável em termos de comportamento. Para Luria e para nós também, é desta forma que o cérebro processa informação, produz comportamentos, revela aprendizagens consolidadas e executa vários tipos de motricidade. No seu modelo neuropsicológico, o processamento de informação sensorial e centrípeta perde especificidade à medida que a mesma vai sendo transferida das áreas primárias para as terciárias, ao mesmo tempo que a produção centrífuga de comportamentos motores ganha especificidade, quando o comando motor vai sendo convertido das áreas terciárias para as primárias, onde, efetivamente, se passa da planificação à execução da ação, isto é, do pensamento ao ato. Além da organização hierárquica e da especificidade da informação sensorial ou motora, aferente ou eferente, Luria acrescenta mais uma outra dimensão da organização do cérebro quando este órgão produz comportamentos. Trata-se da progressiva lateralização funcional ou especialização hemisférica, a que já nos referimos. Independentemente de ser uma simplificação, convém esclarecer de novo que os dois hemisférios não processam informação de forma idêntica, mas sim de forma complementar, ou seja, possuem uma organização e uma representação distintas, na medida em que a evolução da espécie humana não é dada a desperdícios ou a duplicações repetitivas. Temos um cérebro com dois hemisférios, porque o nosso cérebro opera por meio do nosso corpo vertebrado e hemiestruturado, ele é um órgão do corpo e não o contrário como já vimos. A investigação com seres humanos hemisferotomizados (SPERRY, 1971), onde se tem de extrair um hemisfério por razões de doença, como na epilepsia ou por acidente, tem demonstrado que o hemisfério direito no seu todo neurofuncional é mais emocional, intuitivo, global, holístico, imediato e criativo e, por isso, processa informação em primeiro lugar, sendo ela mais de cariz simultâneo, visório-espacial, não simbólico e preferencialmente caracterizada pela novidade e a criatividade, sugerindo que é o hemisfério psicomotor humano, reforçando que é por ele que toda a aprendizagem se deve iniciar se quisermos que haja uma compatibilidade entre a aprendizagem e o cérebro do ser aprendente. Pelo contrário, o hemisfério esquerdo é mais racional, lógico, analítico, mediato e crítico, por isso processa informação de cariz sucessivo e sequencial, auditivo-temporal, simbólico e preferencialmente caracterizada pela rotina e a automaticidade, sugerindo que é o hemisfério psicolinguístico humano, reforçando que é por meio dele que a aprendizagem atinge fluência e excelência. A Neuropsicologia como ciência estuda, consequentemente, as relações recíprocas e complexas entre o cérebro e o comportamento, e a Neuropsicomotricidade, paralelamente, estuda as relações acopladas entre o corpo-motricidade-cérebro-mente. A mente humana é, portanto, corpórea, expressa-se em movimentos, sentimentos e pensamentos emanados da experiência subjetiva e interior do indivíduo que é naturalmente resultante das suas interações com o mundo objetivo e exterior. Assim sendo, o comportamento humano emerge de processos biológicos dentro dos vários substratos neurológicos que compõem o cérebro (cérebros dentro de cérebros e sistemas dentro de sitemas), desde as suas estruturas subjacentes e sua organização íntima até as reações bioquímicas dos neurônios nas suas transmissões sinápticas e integrações de informação, quer aferente, quer eferente. Em outras palavras, o cérebro neuroconstrói a mente, o corpo e a sua motricidade, faz a mente a partir da experiência corpórea, motora e fenomenológica, do sujeito cognoscente no seu mundo envolvente natural e cultural. A Neuropsicologia estuda, por isso, as relações sistêmicas entre duas formas de conhecimento: o conhecimento do funcionamento do cérebro e o conhecimento da Psicologia, ela estuda não só o comportamento mas também os estados mentais que o corporizam, o advento da imagiologia permite hoje observar o cérebro em ação. A Neuropsicomotricidade pelo seu lado, que agora propomos como já apontamos, estuda as estruturas, as unidades, os sistemas, as funções e disfunções neurodesenvolvimentais do cérebro, ao mesmo tempo que estuda as funções cognitivas, conativas e executivas comportamentais que subjazem à performance de qualquer tipo de motricidade humana Consequentemente, qualquer aprendizagem, seja andar, manipular, falar, desenhar, nadar, ler, escrever ou contar, à luz do modelo neurofuncional proposto por Luria, implica que, no cérebro da criança, se opere um processo ativo conjuntural e reorganizador de sistemas funcionais múltiplos e de integração sensorial progressiva, envolvendo na sua superfície os sistemas interoceptivos, proprioceptivos e exteroceptivos (tátil-quinestésicos, visuais e auditivos) e, na sua profundidade, os sistemas cognitivos, conativos e executivos complexos que antecipam e controlam as respostas motoras adaptativas (FONSECA, 2014). É dentro dessa trajetória desenvolvimental que a criança normal, segundo Wallon (1969), Piaget (1954, 1965) e Vygotsky (1979a, 1979b), evolui do ato ao pensamento, isto é, de uma inteligência não simbólica e prática a uma inteligência simbólica e abstrata. Neste aspecto, o modelo neuropsicológico de Luria equilibra dialeticamente os modelos cognitivos construtivistas e os coconstrutivistas. Para Luria (HALE e FIORELLO, 2004; DAS, 1998), a maturação cerebral efetua-se por meio da emergência de sistemas funcionais, pondo em jogo e em interação sistêmica várias unidades funcionais e redes neuronais específicas. É, portanto, a instalação de conexões neuronais provocadas pela aprendizagem que sucessivamente vão permitir a integração complexa da informação multissensorial no cérebro que ilustra o continuum da linguagem corporal, gestual e facial à linguagem falada (primeiro sistema simbólico), e desta, à linguagem escrita e quantitativa (segundo sistema simbólico). Segundo o pensamento luriano, qualquer aprendizagem resulta da sequência bem definida de estádios e da integração complexa de circuitos neuronais disponíveis, ilustrando uma reorganização ou reciclagem cognitiva progressiva, onde cada área pode operar em conjugação com outras, a fim de produzir comportamentos simples e complexos como os que apontamos anteriormente. Nenhuma área do cérebro pode assumir responsabilidade exclusiva por qualquer comportamento humano voluntário ou superior, exatamente porque o desempenho ou a realização de funções psíquicas superiores se fundamenta em uma interação dinâmica e sistêmica de muitas áreas do cérebro, isto é, uma espécie de totalidade funcional, por um lado, como sugerem os “equipotencialistas”, mas também uma especificidade regional como os “localizacionistas” focam, por outro lado. Luria também confere funções específicas a cada área do cérebro. Desta forma, coloca-se em uma posição em claro desacordo com ambas as teorias, nem é um equipotencialista, nem um localizacionista. Teve uma posição intermédia no seu tempo, que é hoje confirmada pelas novas técnologias de imagiologia cerebral. Para saltar e trepar, para desenhar e brincar, para ler, escrever ou contar, por exemplo, o cérebro põe em funcionamento para cada um dos processos um complexo sistema funcional, composto de vários subsistemas (visuais, auditivos, tátil-cinestésicos e motores primários, secundários ou terciários; subléxicos, léxicos, ou sobreléxicos; e cognitivos e metacognitivos) que interagem sequência, melódica e sistemicamente. Qualquer destas competências ou habilidades (“skills”) ao serem gradualmente aprendidas em três fases, como já vimos, envolvem em primeiro lugar as zonas anteriores do cérebro, isto é, as regiões frontais. Com a prática, a rotina, o treino e o aperfeiçoamento, porém, ocorridos ao longo do desenvolvimento da função de aprendizagem, são as zonas posteriores parietais, occipitais e temporais (segunda unidade) e, também, o cerebelo (primeira unidade) que acabam por assumir maior importância no seu controlee na sua performance. Entra aqui em jogo o papel da automaticidade e da fluência, ou seja, o papel da riqueza da experiência que acaba por pôr em funcionamento concertado os quatro lobos cerebrais focados e as três unidades apontadas (FONSECA, 2014b). Em síntese, qualquer aprendizagem humana, seja lúdica, desportiva ou musical, seja escolar ou profissional, resulta do funcionamento de sistemas funcionais que integram várias áreas ou unidades de cérebro, mais do que o resultado de áreas específicas bem determinadas. De acordo com este axioma, uma dada aprendizagem pode ser afetada quando qualquer parte do sistema funcional ou elo da cadeia por ele responsável estiver igualmente perturbada, que é o que pode acontecer, com diferentes graus de disfuncionalidade ou de diferença em termos de neurodiversidade em uma criança com dificuldades desenvolvimentais, intelectuais ou de aprendizagem não simbólica, como a dispraxia, ou simbólica, como a dislexia. Com base nessa perspectiva, um indivíduo pode apresentar, por exemplo, sinais de dislexia, sem apresentar lesões no girus angular (considerado o “centro de leitura” para os localizacionistas), pois é possível verificarem-se disfunções em um ou mais componentes do sistema funcional da leitura. O mesmo exemplo serve para explicar a dispraxia em que se observa uma imaturidade ou vulnerabilidade no sistema funcional práxico que preside a coordenação de movimentos que ilustram uma competência ou habilidade motora determinada. As dificuldades de aprendizagem específicas da leitura, por exemplo, podem resultar, neste contexto, de microimpedimentos, obstruções ou entraves neurofuncionais nos seguintes sistemas: - no sistema de descodificação por fraca consciêncialização fonológica ou por fraca captação e reconhecimento da forma visual das letras e palavras e seus subsistemas de conversão magno e parvocelulares; - no sistema de fluência por fraca automaticidade, velocidade; - precisão de processamento de informação; e, por último, - no sistema de compreensão, por falta de vocabulário, de rotas morfológicas, de prefixos e sufixos, de estruturas sintáxicas (sistema de regras de ordenação e combinação de palavras e consequente organização fraseológica), de memória de trabalho, de processamento e interpretação ideacional e narrativa de textos ou de disfunções executivas necessárias à captação de significações e à monitorização de conclusões, ou mesmo até, de disfunções não verbais que requeiram inferências explícitas e implícitas, metáforas, humor, sarcasmo, dupla significação, pragmática etc. O mesmo se podia passar com a dispraxia que pode resultar igualmente de microimpedimentos ou entraves neurofuncionais nos seguintes sistemas ou fatores psicomotores: - no sistema reticular por instabilidade tônica, hipo ou hipertonia, hiperextensibilidade ou hipoextensibilidade, distonias várias, paratonias, disdiadocinésias, ou sincinésicas bucais e contalaterias; - no sistema cerebeloso postural por desequilíbrios estáticos e dinâmicos, unipedais e bipedais, por disfunções vestibulares e/ou distaxias; - no sistema de especialização hemisférica por confusão na dominância das extremidades práxicas (pé, mão e face) ou no sistema de consciêncialização lateral em si e no outro (GPS endopsíquico – MORSE e MORSE, 2016), em termos de compreensão e expressão de gestos evocativos (fazer de conta) ou em termos de descodificação de direções posicionais e espaciais; - no sistema somatognósico por desorientação do mapa corporal e da nomeação de pontos pélvicos fudamentais da noção e representação do eu corporal, por exagero ou distorção dos neurônios-espelho nas ecocinésias, na reconstrução de quebra- cabeças de fotografias de pessoas de corpo inteiro e da performance grafomotora do desenho do corpo; e, ainda, - do sistema práxico, global ou fino, envolvendo competências globais e finas de coordenação, de macromotricidade na coordenação oculopedal ou na micromotricidade com a mão e os dedos, na manipulação de pequenos objetos, como clipes, moedas ou blocos de construção (FONSECA, 2010, 2014). O que acabamos de descrever em termos de relações entre cérebro e comportamento ou entre cérebro e aprendizagem para a dislexia e para a dispraxia pode perfeitamente aplicar-se a outras “dis” (disgnosia, disnomia, disgrafia, disortografia, dismatemática etc.). O conceito de sistemas funcionais apresentado por Luria é, consequentemente, diferente dos conceitos inerentes às teorias da localização ou às teorias da equipotencialidade cerebral, a sua relevância para compreensão da aprendizagem humana ou das suas dificuldades ou diferenças e preferências é de uma enorme importância clínica e educacional. A teoria da localização, preconizada por frenologistas, sugere que todos os comportamentos resultam de áreas ou centros específicos do cérebro (por exemplo, “centro de leitura”, “centro da escrita”, “centro do cálculo”, “centro motor” etc.) e, consequentemente, indicia que todas as desordens ou lesões possam ser adstritas a áreas cerebrais circunscritas. A teoria da equipotencialidade defendida por outros autores clássicos, em contrapartida, sugere que todos os comportamentos envolvem a participação equitativa de todas as áreas, ou seja, defende que nenhuma área pode conclusivamente especificar uma aprendizagem particular. Halstead (1947) e, especialmente, Galaburda e Kemper (1979), nas suas pesquisas com inúmeros casos clínicos portadores de lesões cerebrais não conseguiram encontrar evidências que sustentassem os pressupostos desta doutrina de “ação em bloco” do cérebro. A visão de Lúria é, inequivocamente, diferente de ambas, daí a sua importância para a compreensão do que se passa no desenvolvimento e na aprendizagem ou nas dificuldades desenvolvimentais ou nas dificuldades de aprendizagem. Abreviando, nenhuma área do cérebro por si só pode ser responsável por qualquer aprendizagem ou por algum comportamento particular. Por analogia também, nem todas as áreas são consideradas de igual relevância para uma dada competência ou habilidade, o que pressupõe uma organização hierarquizada e desenvolvimental muito mais complexa, plástica e sistêmica. A teoria luriana dos sistemas funcionais concebe que o cérebro opera apenas com um número específico de áreas quando está envolvido na produção de um comportamento determinado, cada uma delas jogando um papel peculiar e modular dentro de um sistema funcional, que o mesmo autor denominou por constelação de trabalho. A noção de sistema funcional tende a equacionar uma concatenação, cadeia ou uma rede de transmissão onde cada ligação, elo ou zona de sobreposição representa uma área particular. Cada elo é necessário para que a cadeia ou rede seja uma totalidade funcional, cada um participando com uma função específica no conjunto global da cadeia neurofuncional. A cadeia funcional que opera na leitura e escrita, como acabamos de ver, integra pelos menos os sistemas visual, auditivo, cognitivo e motor. Em termos de respostas motoras adaptativas, é oromotor para a leitura e grafomotor para a escrita, em ambas é demonstrável que a aprendizagem é e deve ser corpórea. Daqui resulta a noção de que, se alguma parte do sistema funcional está disfuncional ou desagregada em termos operacionais, a aprendizagem representada pela cadeia funcional pode ficar obviamente afetada, como evidenciam inúmeros casos clínicos de incapacidade de aprendizagem devido a lesões ou acidentes, como, por exemplo: de agnosia (disfunção grave de reconhecimento sensorial ou de input), de afasia (disfunção grave de integração, compreensão, elaboração e produção da linguagem falada), de apraxia (disfunção grave de execução motora ou de output), de alexia e agrafia (disfunção grave de leitura e escrita, respectivamente). No caso das dificuldades de aprendizagem específicas, como, por exemplo, da disfasia, disnomia, disartria, dislexia, disortografia ou discalculia (igualmente designada por dismatemática por alguns autores) também se podem identificar formas mais sutis e ligeirasde disfunção, debilidade, insuficiência ou de perturbação (ditas “soft” na bibliografia anglo-saxônica) da cadeia ou rede funcional que ilustra qualquer aprendizagem não simbólica, como, por exemplo, de um gesto de dança ou desportivo, ou qualquer aprendizagem simbólica como, por exemplo, de leitura, escrita ou matemática, como atestam as novas tecnologias de imagiologia cerebral, nomeadamente a ressonância magnética, a emissão de pósitrons, a neurometria, a citoarquitetura neuronal, o mapa de atividade elétrica do cérebro e outras em constante inovação. Para esclarecer essa questão, Luria propõe a noção de pluripotencialidade, reforçando a ideia de que qualquer área específica do cérebro pode participar em inúmeros sistemas funcionais ao mesmo tempo, reforçando aqui a extraordinária neuroplasticidade do órgão da aprendizagem. Em consequência dessa propriedade neurofuncional, além de muitas outras, se uma área do cérebro se encontra lesada, disfuncional ou imatura, então várias aprendizagens podem estar comprometidas e não apenas um determinado tipo, dependendo do número de sistemas funcionais nos quais tal área participa, e tal é fundamental para compreender a dispraxia e a dislexia e suas concomitantes comorbilidades. Em síntese, as várias áreas do cérebro não trabalham isoladas, uma vez que uma dada aprendizagem só pode emergir quando resulta da cooperação sistêmica, melódica e sinergética das mesmas, assim é também no surgimento das subcompetências e competências simbólicas das várias aprendizagens já apontadas. Dentro do mesmo contexto das relações entre cérebro e comportamento, Luria refere-se ao conceito de sistemas funcionais alternativos, sugerindo que uma dada aprendizagem pode ser produzida por mais de um sistema funcional, evocando que o cérebro, como o órgão de incomensurável flexibilidade, não se estrutura ou reorganiza com base em sistemas funcionais fixos, rígidos ou imutáveis. Por este conceito, explica-se por que muitos indivíduos com lesões ou traumatismos cerebrais não apresentam os défices esperados, exatamente porque muitos deles recuperam e reciclam algumas funções espontaneamente, independentemente da ocorrência de uma lesão ou acidente. Por analogia, quando identificamos vários sinais das “dis”, também não podemos tomá-los como indicadores fixos ou perpétuos do potencial de aprendizagem, razão pela qual em muitos desses casos clínicos uma prescrição neuropsicopedagógica bem desenhada e implementada em tempo útil e respeitando a neurodiversidade das necessidades intraindividuais pode fazer a diferença. A partir de uma avaliação psicomotora ou cognitiva dinâmica, podemos superar e compensar a vulnerabilidade dos componentes e subcomponentes que participam na cadeia ou rede neurofuncional de uma dada aprendizagem. A intervenção reeducativa ou reabilitativa pode interferir, portanto, na criação de novos sistemas funcionais no cérebro. Neste domínio, Luria adianta que a recuperação de funções após lesões talvez se verifique por que: - 1) as competências decorrentes de níveis superiores de integração cerebral, em alguns casos, poderão compensar competências adstritas a níveis inferiores; - 2) a recuperação de funções psíquicas superiores pode ser alcançada por reforço, automatização ou enriquecimento de funções psíquicas básicas; - 3) o papel de uma determinada área lesada pode ser assumido por outra área no cérebro. O cérebro sob condições normais é um órgão plástico e flexível, e é nessas condições que o processo normal de aprendizagem deve ocorrer, a aprendizagem só tem de ser mais compatível com o funcionamento do cérebro dos seres aprendentes, as escolas do futuro não o podem negligenciar. Se efetivamente surge um problema ou uma dificuldade, por lesão, imaturidade, privação ou por outra razão, não se pode dizer que o sistema funcional esteja prospectivamente bloqueado ou desagregado. Pelo contrário, o que esta concepção sugere é algo muito diferente. Se existe alguma dificuldade, podemos mudar a natureza da tarefa (condições externas), ou então, mudar a composição do sistema ou cadeia funcional, mudando a localização neurofuncional onde a informação é processada (condições internas), alterando a modalidade de input ou de output, adequando novas formas de processamento simultâneo ou sequencial da informação (metodologia de “scaffolding”), modificando o conteúdo verbal para não verbal, ajustando a estrutura mental de um componente para subcomponentes mais elementares ou básicos, ou então, promover e automatizar as funções cognitivas de processamento de dados (input, elaboração e output) etc., adaptando a tarefa ao perfil cognitivo e ao estilo de aprendizagem do indivíduo, ou seja, tornando a aprendizagem mais compatível com a neuroplasticidade cerebral. Apesar do restrito conhecimento que temos de como o ser humano aprende efetivamente e o seu cérebro funciona, e de a análise e a compatibilidade cérebro-aprendizagem serem ainda rudimentar nas nossas escolas e clínicas, a teoria neuropsicológica de Luria apresenta uma arquitetura perceptível e coerente para compreender como as aprendizagens se estruturam, pois suporta-se em uma grande quantidade de investigações neuropsicológicas realizadas sobre o problema. A organização funcional do cérebro proposta por Luria permite entender como os sistemas funcionais operam, quer seja nas gnosias (competências de captação sensorial) e praxias (competências de execução motora) ou na linguagem falada, escrita ou quantitativa. As aprendizagens escolares, compostas de componentes receptivos (input), integrativos, elaborativos e expressivos (output), emergem, como já vimos, da cooperação de várias áreas ou zonas corticais e subcorticais, e não como se pensava na teoria neurológica clássica, de uma só área específica. Tal cooperação complexa joga com a participação particular de cada uma das áreas cerebrais relacionadas com um determinado sistema funcional, de tal modo que a sua destruição, disfunção ou mesmo imaturidade, porque não está em causa a perda total da performance (a função ou incapacidade), pode induzir necessariamente a desintegração ou desconexão de algumas subfunções, enquanto outras podem manter-se intactas. Eis assim a visão de Luria sobre as relações entre cérebro e comportamento e a nossa visão neuropsicomotora sobre as relações entre corpo, motricidade, cérebro e mente, algo de enorme importância para compreender a aprendizagem humana e as suas dificuldades, algo bastante promissor sobre a modificabilidade psicomotora e cognitiva de muitas crianças e jovens que lutam e sofrem para aprender, paradigma fundamental para compreender não só a evolução da espécie humana mas também a educação das atuais e vindouras gerações. REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS Damásio, A. (1979). The frontal lobes, In K. Heilman e E. Valenstein (ed,), Clinical Neuropsychology. Oxford: University Press. Damásio, A. (1995). O Erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano . Lisboa: Europa- América, Damásio, A. (1999). The Feeling of What Happens: body and emotion in the making of Consciousness. N. York: Harcourte Brace & Co.. Das, J. P. (1998). The Working Brain: na introduction to psychology . London: Sage. 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Ribeiro do Valle ISBN: 978-85-7854-294-8 GUIA PRÁTICO DE NEUROEDUCAÇÃO - Neuropsicopedagogia, neuropsicologia e neurociência Waldir Pedro ISBN: ISBN: 978-85-7854-382-2 A NEUROCIÊNCIA NA SALA DE AULA - Uma abordagem neurobiológica Marilza Delduque ISBN: 978-85-7854-361-7 NEUROCIÊNCIA E SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA EDUCAÇÃO INFANTIL Geraldo Peçanha de Almeida ISBN: 978-85-7854-219-1 NEUROESCOLA - Os novos rumos da educação André Nascimento ISBN: 978-85-7854-357-0 DISLEXIA VOLUME 3 - NOVOS TEMAS, NOVAS PERSPECTIVAS Luciana Mendonça Alves, Renata Mousinho e Simone Aparecida Capellini ISBN: 978-85-7854-336-5 NEUROPSICOLOGIA EM AÇÃO - ENTENDENDO A PRÁTICA Clarice Peres e Rachel Schlindwein-Zanini ISBN: 978-85-7854-365-5 NEUROPSICOPEDAGOGIA E APRENDIZAGEM Roberte Metring e Simaia Sampaio ISBN: 978-85-7854-371-6 Prefácio 1 - As cinco dimensões desenvolvimentais do cérebro humano 2 - Como o cérebro, órgão do corpo, gera uma mente 3 - Como o corpo produz uma psicomotricidade 4 - As conquistas neurodesenvolvimentais da psicomotricidade 5 - Um modelo de organização neurológica da psicomotricidade Referências