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A JR e sua relação com mediação e conciliação

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<p>A Justiça Restaurativa e sua relação com a Mediação e Conciliação: Trilhas fraternas e identidades próprias MARCELO NALESSO SALMASO Juiz de Direito Membro do Grupo Gestor da Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Membro do Comitê Gestor da Justiça Restaurativa do Conselho Nacional de Justiça Coordenador do Núcleo da Justiça Restaurativa de Tatuí-SP 1. Introdução No dia 29 de novembro de 2010, o Conselho Nacional de Justiça promulgava a Resolução CNJ n° 125/2010, que "dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências", um dos primeiros e principais marcos normativos, de âmbito nacional, voltado à Mediação e à Conciliação. A Resolução CNJ n° 125/2010 inseriu a Mediação e a Conciliação no contexto institucional de todo o Poder Judiciário nacional, apresentando-as como uma nova metodologia dialógica, consensual e autocompositiva de resolução de conflitos. Ao mesmo tempo, tal norma delineou toda uma estruturação institucional judiciária para a Mediação e a Conciliação, tanto no que diz respeito à estrutura de macro gestão, nos Tribunais, para essa nova política, como à instalação de espaços, como unidades judiciárias, apropriados para a realização de tais metodologias consensuais e autocompositivas. E o reconhecimento normativo por parte do CNJ nada mais foi do que o coroamento do grande movimento da Mediação e da Conciliação, que parte da ideia de que os sistemas tradicionais de resolução de conflitos, inclusive o clássico processo operacionalizado pelo Poder Judiciário, focado no litígio e na transgressão da lei, que afasta da responsabilidade e da participação as pessoas diretamente envolvidas no conflito, impondo a solução ditada por um terceiro que representa o Estado, nem sempre fim ao litígio na vida real e muitas vezes o fomenta, sem satisfazer por completo o "sentimento de justiça" da população. A partir dessa premissa, pessoas visionárias e corajosas que aqui deixo de nominar pelo cuidado de não cometer injustiças -, inspiradas por estudos e experimentos internacionais, muito se empenharam para que se tornassem realidade formas de tratamento adequado do conflito, com a implantação de espaços seguros de conversação, para que as pessoas em divergência possam expressar os seus sentimentos e, por meio do diálogo facilitado por um conciliador ou mediador, cheguem juntas a soluções que façam sentido para elas e sejam</p><p>razoáveis de acordo com as suas visões de mundo e contextos, de forma a restaurar a relação interpessoal rompida e trazer a paz. Atualmente, todos os Tribunais do país contam com um Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMEC) como estrutura central de macro gestão e coordenação dessa nova política de tratamento de conflitos e há centenas de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) espalhados pelas Comarcas de todo o os quais apresentam bons resultados e aproximam a Justiça dos cidadãos. Em 31 de janeiro de 2013, o artigo da Resolução CNJ n° 125/2010, foi aditado, pela Emenda n° 1, para atribuir ao NUPEMEC, nos termos de seu § 3°, o papel de "centralizar e estimular programas de mediação penal ou qualquer outro processo restaurativo, desde que respeitados os princípios básicos e processos restaurativos previstos na Resolução n° 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas e a participação do titular da ação penal em todos os Muito provavelmente, por conta de, por um lado, a Conciliação e a Mediação e, por outro, a Justiça Restaurativa, serem orientadas pelos valores da Cultura de Paz, e, ainda, por não existir marcos referenciais normativos para esta última no Brasil, a Justiça Restaurativa restou absorvida pela racionalidade e normatividade da Resolução CNJ n° 125/2010. Todavia, o que se verificou é que esses dois grandes movimentos, da Mediação e da Conciliação, e da Justiça Restaurativa, apesar de comungarem valores fundantes comuns, cada qual apresenta a sua história e a sua identidade próprias, contando com princípios, estruturas, fluxos diversos, que não permitem a absorção de um pelo outro, como se verá a seguir. Tanto assim que, alguns anos depois, em 31 de maio de 2016, o próprio CNJ promulgou a Resolução CNJ n° 225/2016, marco normativo nacional da Justiça Restaurativa, que estabeleceu os parâmetros e as diretrizes de uma política nacional voltada à Justiça Restaurativa. Por outro lado, a Emenda n° 2, de 08 de março de 2016, excluiu as referências à Justiça Restaurativa de referido § 3°, do artigo da Resolução CNJ n° 125/2010. Respeitar a história e a identidade da Mediação e Conciliação, e da Justiça Restaurativa não significa, de forma alguma, atribuir a uma ou outra maior grau de importância. 1 No Estado de São Paulo, por exemplo, são quase três centenas de CEJUSC.</p><p>Ao contrário, o que se procura, assim, é justamente criar possibilidades de diálogo. Mas, o diálogo somente é possível quando se enxerga e reconhece o outro em toda a sua complexidade. Nos próximos tópicos buscarei trazer um pouco sobre a ideia da Justiça Restaurativa, com todo o desafio que isso implica por conta do reduzido espaço para desenvolver tema tão profundo. Ademais, também farei um resumo sobre o processo de elaboração e as características da Resolução CNJ n° 225/2016 e, por fim, traçarei as principais características que diferenciam a Justiça Restaurativa do movimento da Mediação e da Conciliação. 2. Justiça Restaurativa Para a adequada compreensão da Justiça Restaurativa e de seus objetivos, mostra-se necessário enxergar o ser humano como um ser multidimensional e relacional, bem como, que a violência é um fenômeno complexo e multifacetado, para, assim, se desvelar as suas causas profundas. Todos nós, enquanto seres humanos, acreditamos necessitar de reconhecimento, tanto por parte de nossa comunidade e de nossa família como no próprio íntimo, por parte de nós mesmos, e, assim, precisamos ocupar um espaço e um lugar na sociedade que nos façam reconhecer a nós próprios com alguma finalidade no mundo e para o mundo, como "alguém". Ocorre que boa parte das pessoas no mundo o que se observa também na sociedade brasileira -, integra sistemas de convivência humana construídos e desenvolvidos sobre a base mecanicista e pautados pelas diretrizes do individualismo, do utilitarismo, do consumismo e da exclusão, as quais fomentam a competição, a dominação, o aniquilamento do outro, os discursos de ódio, a guerra. Em tais sistemas sociais, a identidade da pessoa, o ser "alguém" em meio ao grupo social e para si mesmo, resume-se à riqueza acumulada que permite consumir bens e ao poder sobre o outro, ideias que, muitas vezes, estão diretamente ligadas uma à outra. Inseridos em tal lógica, grande parte dos seres humanos estão submetidos à violência, não somente de ordem física e psíquica, mas também à violência estrutural e obstados de acessar recursos e serviços que, em tese, deveriam estar disponíveis a todos, o que coloca boa parcela da população à margem da esfera de garantia do bem-estar e 2 Cf. CAPRA, Fritjof & LUISI, Pier Luigi. A Visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. 3 Cf. JAREZ R., Xesús. Educar para a paz em tempos dificeis. São Paulo: Editora Palas-Athena, 2004, pp. 31 a 39.</p><p>gera para tantas pessoas o sentimento de não pertencimento social, contexto este que se mostra como um fomentador de comportamentos de violência e transgressão. Em assim sendo, para o entendimento da Justiça Restaurativa em sua profundida e potência, cabe delinear que, diante da complexidade dos fenômenos conflito e violência, devem ser considerados tanto os seus aspectos individuais e relacionais, sem deixar de lado a responsabilidade de cada um pela própria conduta, mas também aqueles comunitários, institucionais e sociais que contribuem para seu surgimento, com fluxos e procedimentos que cuidem de todas essas dimensões e promovam mudanças de paradigmas, bem como provendo- se espaços apropriados e adequados para que aconteçam. A partir dessa premissa, por primeiro, é importante destacar que a Justiça Restaurativa não se resume a um método especial voltado à resolução de conflitos apesar de contar com um rol deles, como, por exemplo, o processo circular pois tem como foco principal a mudança dos paradigmas de convívio social, por meio de uma série de ações, nas esferas relacional, institucional e social, coordenadas e interligadas pelos princípios comuns dos valores humanos, da compreensão, da reflexão, da responsabilidade individual e da corresponsabilidade coletiva, do tratamento dos danos, do atendimento das necessidades, do fortalecimento da comunidade e da paz4. Portanto, o objetivo final da Justiça Restaurativa é promover a construção de sociedades em que as relações sejam pautadas pela lógica relacional do cuidado, nas quais cada qual se sinta e seja responsável por si próprio, pelo outro e pelo meio ambiente, ou seja, instituindo a ideia de corresponsabilidade, de cooperação e de um poder com o outro, de forma a deixar de lado esse poder sobre o outro, que é causa de tanta insatisfação e, por conseguinte, de Nestes termos, a Justiça Restaurativa busca o resgate do justo e do ético nas relações sociais e, portanto, mostra-se fundamental que a política e os projetos de Justiça Restaurativa sejam desenvolvidos pela comunidade, na comunidade, com a comunidade e para a comunidade entendido o conceito de comunidade em sentido amplo6 -, a fim de que a 4 Sobre princípios da Justiça Restaurativa, cf. SALM, João; KAYINGO, Gerald & HASS, Virginia MacCoy. Creating a Culture of Restorative Justice. In KAYINGO, Gerald & HASS, Virginia MacCoy (editors). The Health Professions Educator: a practical guide for new and established faculty. Springer Publishing Company, LLC: Nova 2017, 359 a 368. 5 Cf. ELLIOT, Elizabeth. Segurança e cuidado: Justiça Restaurativa e sociedades saudáveis. São Paulo: Palas-Athena; Brasília: ABRAMINJ, 2018. 6 Em todo o texto, utiliza-se o conceito de "comunidade" em sua ampla acepção, considerada como o conjunto das pessoas que compõem as instituições, públicas e privadas, e aquelas da sociedade civil, que atuam e se relacionam nos mais variados âmbitos do convívio social e se proponham a construir caminhos de convivência que sejam razoáveis a todos e busquem não excluir. Poder Judiciário e seus juízes integram a comunidade e, portanto, fazem parte da construção da Justiça Restaurativa. No Brasil, muitas vezes, o Judiciário é aquele que leva a proposta de implantação da Justiça Restaurativa para as localidades, o que é louvável. Todavia, deve o juiz, nesse caso, articular-se com as demais instituições e com a sociedade civil organizada, para</p><p>implementação da Justiça Restaurativa seja resultado de uma construção coletiva, voltada aos fins maiores da transformação das estruturas das relações humanas na sociedade, e não exclusivamente aos objetivos de uma determinada instituição ou de um grupo de pessoas em detrimento de A Justiça Restaurativa coloca-se, então, como a que recebe as pessoas dos mais variados contextos sociais da comunidade, com as suas diferentes visões de mundo, as quais, a partir do diálogo e pautadas pelos princípios restaurativos fundantes e orientadores, constroem caminhos de convivência razoáveis a todos e que tendam à não E a participação comunitária na construção política da Justiça Restaurativa e na sua base de sustentação incentiva e garante que representantes da comunidade estejam presentes nas práticas restaurativas para que possam oferecer suporte às necessidades de todos os envolvidos, direta ou indiretamente, no conflito, em procedimentos de resolução de conflitos plurais, dialógicos e coletivos, como ocorre nos processos circulares. Ademais, essas pessoas levam dali aprendizados e se articulam para atuar, preventivamente, nos fatores motivacionais da violência de forma a desarmá-los. artigo da Resolução CNJ n° 225/2016, define a Justiça Restaurativa nos seguintes termos9: que, paulatina, a base comunitária da Justiça Restaurativa se estruture e esta se enraíze como uma política local de toda a sociedade. 7 cuidado que se busca é no sentido de que a Justiça Restaurativa não seja cooptada pelas estruturas de poder e, paradoxalmente, passe a atuar para objetivos incoerentes com aqueles que são da sua essência e que não atendem a seus princípios. Nestes termos, quando a Justiça Restaurativa é implementada exclusivamente por um órgão ou uma instituição, sem as articulações e participações interinstitucionais, intersetoriais e comunitárias, tende a atender aos objetivos institucionais dessa entidade que a mantém e gerencia, apenas oferecendo a esta um novo método de resolução de conflitos. E, assim, perde o seu potencial de transformação social, mantendo-se o fazer "mais do mesmo" sob uma nova roupagem. Um passo além na cooptação e na degradação ocorre quando a Justiça Restaurativa e suas práticas são cooptadas, por uma instituição ou por grupos de pessoas que se unem com base em ideologias excludentes, e vêm utilizadas para dominação de pessoas e manutenção das estruturas de poder, ampliando as violências estruturais. Tal pode ocorre quando, por exemplo, práticas de Justiça Restaurativa são utilizadas como verdadeiros julgamentos ou quando se classificam como "restaurativas" ações institucionais ou institutos essencialmente punitivos, mas um pouco mais brandos, dizendo-se que há nisso algum "grau" ou "enfoque" restaurativo ou, ainda, buscando-se "engessar" a Justiça Restaurativa em modelo normativo nacional ou internacional único e rígido. Sobre tais advertências e paradoxos, cf. PAVLICH, George. Governing Paradoxes of Restorative Justice. Nova EUA e Oxon, Canadá: Routledge-Cavendish 2007. 8 George Pavlich, em seu artigo "What are the dangers as well as the promises of community inspirado pelas ideias do filósofo Jacques Derrida, concebe essa formulação abstrata do conceito de comunidade para a Justiça Restaurativa a partir da ideia do anfitrião (PAVLICH, George. What are the dangers as well as the promises of community involvement? In TOEWS, Barb e ZEHR, Howard (editors). Critical Issues in Restorative Justice. Criminal Justice Press, pp. 173 a 183). 9 A Resolução CNJ 225/2016, inclusive a definição de Justiça Restaurativa em comento, ganhou inspiração no Provimento 35, de 11 de dezembro de 2014, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo (CGJ/TJSP), primeira normativa sobre Justiça Restaurativa em todo o país. Provimento CG 35/2014, por sua vez, foi gestado no contexto do Grupo Gestor da Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (GGJR/TJSP) em diálogo com a CGJ/TJSP. GGJR/TJSP é o órgão central de macro gestão da política de Justiça Restaurativa do TJSP, composto por Desembargadores, Juízes e pela Chefe do Serviço de Justiça Restaurativa do e que conta com o Juiz Egberto de Almeida Penido, pioneiro da Justiça Restaurativa no Brasil e referência no tema, como Coordenador dos Trabalhos. GGJR/TJSP, em parceria com a Escola Paulista da Magistratura (EPM) e, mais recentemente, com o Instituto Paulista de Magistrados (IPAM), vêm construindo</p><p>A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma: I) é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos; II) as práticas de Justiça Restaurativa serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras; III) as práticas restaurativas terão como foco as necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para o fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade de reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo fato danoso e as implicações para futuro. Justamente para atender a esse amplo espectro da Justiça Restaurativa, compreendida em seu máximo potencial como instrumento de transformação social, que se volta a todas as dimensões do convívio humano. a Justiça Restaurativa deve atuar nas três dimensões da (I) Relacional Esta dimensão refere-se, por primeiro, ao trabalho interno de transformação pessoal, a fim de que o sujeito enxergue as influências axiológicas, no mais das vezes individualistas e excludentes, na formação de sua personalidade e que conduzem as suas ações. E, a partir daí, busque compreender e internalizar ideias ligadas aos Direitos Humanos, à Cultura de Não Violência e aos princípios restaurativos que possam contribuir para uma diferente cosmovisão e novos paradigmas, transformando a maneira como enxerga as questões que o mundo apresenta para assimilar novos instrumentais para as formas de se responder a essas questões. Aqui trabalham-se, também, as relações interpessoais, por meio das práticas restaurativas, coordenadas por facilitadores capacitados para tanto e pautadas pela lógica da horizontalidade, do respeito, da inclusão, do diálogo, da cooperação, do atendimento as formações de Justiça Restaurativa, tanto teóricas, presenciais e em EaD, como práticas, presenciais, para o Estado de São Paulo e para o país. 10 Cf. SALMASO, Marcelo Nalesso. Uma mudança de paradigma e o ideal voltado à construção de uma Cultura de Paz. In CRUZ, Fabrício Bittencourt (coord.). restaurativa: horizontes a partir da Resolução CNJ 225. Brasília: CNJ, 2016, pp. 53/57. Disponível Cabe esclarecer que existem movimentos que entendem que a Justiça Restaurativa se define e se basta na sua prática, como ocorre na Europa, em que a Justiça Restaurativa é entendida como sendo a mediação vítima-ofensor, ou, em algumas localidades do Brasil, em que a identidade da Justiça Restaurativa se confunde com a sua prática do processo circular.</p><p>de necessidades, bem como da construção de responsabilidades individuais e corresponsabilidades coletivas, com vistas ao fortalecimento da conexão humana entre as pessoas e das relações sociais, inclusive para fins de resolução conflitos. É certo que, desde seu início, a Justiça Restaurativa desenvolveu uma série de metodologias, com técnicas próprias, para resolução de conflitos, como as conferências familiares, o círculo restaurativo baseado na Comunicação Não Violenta, a mediação vítima- ofensor em base comunitária, o processo circular, dentre outras. O processo circular ganhou e ainda ganha grande impulso no Brasil, assim pelo trabalho de divulgação realizado como também por envolver muitas pessoas e, dessa forma, alinhavar a corresponsabilidade coletiva e atuar de forma ampla nas estruturas De qualquer forma, outros métodos com características semelhantes, como as conferências familiares e os círculos restaurativos, têm também se mostrado muito adequados e apresentado bons resultados. No processo circular, aquele que causou o dano, o que sofreu o dano, famílias, comunidade do entorno direta ou indiretamente atingida e representantes de serviços públicos ou da sociedade civil organizada, reúnem-se, em círculo, para, com a ajuda de facilitadores pessoas especialmente capacitadas para tanto -, a partir do diálogo, refletir sobre as responsabilidades individuais e corresponsabilidades coletivas, e reconstruir as relações sociais esgarçadas. Todos buscam, nessa dinâmica, a construção de um plano de ação, contendo obrigações individuais e coletivas, que, por um lado, contemplem a reparação dos danos causados à pessoa que os sofreu e às pessoas da comunidade que experimentaram indiretamente os seus efeitos, atendam às necessidades que contribuíram para que aquele que causou o dano adotasse tal conduta e aquelas que surgiram para a pessoa que sofreu o dano por conta do ocorrido, e, por outro lado, possam atuar nos fatores da estrutura de convivência social que, como "molas propulsoras", empurram as pessoas para caminhos de violência e A prática restaurativa ostenta maior eficácia quando o trabalho restaurativo não tem a interferência, prévia ou posterior, de uma medida judicial imposta, o que se dá com a não judicialização do conflito ou com a "derivação" do conflito para a prática restaurativa, colocando-o fora do processo judicial, com posterior homologação dos acordos e extinção do processo. 11 Cf. PRANIS, Kay. Processos circulares. São Paulo: Editora Palas Athena, 2010.</p><p>Todavia, as práticas restaurativas podem ser utilizadas para a humanização de medidas impostas (o que não torna estas últimas restaurativas na essência), como ocorre, por exemplo, com a utilização de processos circulares para a realização do Plano Individual de Atendimento (PIA) que precede o cumprimento da medida socioeducativa em meio aberto, para a reflexão sobre a convivência e a resolução de conflitos em unidades de internação ou prisões, para reinserção de egressos do sistema prisional em suas comunidades, para reflexão junto àqueles que são acusados por crimes ligados à Violência Doméstica contra a Mulher, para empoderamento das vítimas e cuidados para com esta, dentre outros. (II) Institucional Em regra, as estruturas institucionais são formatadas como reflexo da estrutura social e, portanto, são hierárquicas, punitivas e excludentes, pautadas pela lógica da obediência, da competitividade e do controle pelo medo, não gerando pertencimento às pessoas que nela convivem. Tais dinâmicas institucionais tensionam as relações e contribuem para que as pessoas respondam de forma violenta, contra os outros ou contra si próprias. Se as práticas restaurativas aterrissam nesse contexto institucional, desvelando as dinâmicas estruturais violentas antes das necessárias reflexões e da conscientização de mudança, surgirão os óbices para que a Justiça Restaurativa se desenvolva ou, o que é pior, as suas práticas podem ser cooptadas e utilizadas para a dominação. Nesse passo, as instituições são convidadas a repensar e a reformular as suas práticas e as formas de relacionamento das pessoas que a compõem, no sentido de que todos tenham vez e voz, que as necessidades de cada qual sejam ouvidas e compreendidas, em um ambiente realmente democrático, para que se sintam pertencentes àquele espaço e participem ativamente da elaboração das regras de convívio e da solução dos problemas. Assim, com o despertar, em cada qual, nos vários níveis institucionais, desse sentimento de pertencimento à instituição, como verdadeiro protagonista daquilo que ali acontece, e não como um mero receptor de ordens, reforça-se o ideal de corresponsabilidade, para que todos se sintam responsáveis e atuem positivamente na construção de um ambiente justo e pacífico para toda aquela comunidade. (III) Social Por fim, na dimensão social, a Justiça Restaurativa busca a corresponsabilidade da sociedade civil e dos Poderes Públicos, para pensar e buscar soluções aos problemas relativos à violência e à transgressão, de forma a espraiar os valores e os</p><p>princípios da Justiça Restaurativa a toda a comunidade, especialmente por meio de Grupos Gestores locais interinstitucionais, intersetoriais e multidisciplinares, compostos pelos diversos segmentos sociais, tanto da esfera pública quanto da sociedade civil. 3. Marco Normativo Nacional da Restaurativa: a Resolução CNJ 225/2016 A Justiça Restaurativa teve início, no Brasil, formalmente, em 2005, com três projetos-piloto implementados no Distrito Federal, no Estado de São Paulo e no Estado do Rio Grande do Sul, a partir de uma associação entre, por um lado, os respectivos Poderes Judiciários distrital e estaduais, e, por outro, a Secretaria da Reforma do Poder Judiciário do Ministério da Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Durante estes mais de treze anos de história, a Justiça Restaurativa se espalhou e se enraizou em todo o país, com experiências bem sucedidas em vários Estados da Federação, cada qual observando e respeitando, para este processo de implementação, potenciais e fragilidades locais, bem como os contextos institucionais e comunitários Com base nos resultados dessas experiências-piloto e do avanço da Justiça Restaurativa em todo o Brasil, durante o biênio de 2015 e 2016, na gestão do então Presidente do CNJ, Ministro Ricardo Lewandowski, teve início o movimento de consolidação normativa da Justiça Restaurativa no âmbito do CNJ. primeiro passo, então, foi a edição da Portaria de 16 de fevereiro de 2015, que estabeleceu a Justiça Restaurativa como diretriz estratégica de gestão da Presidência. Em seguida, adveio a Meta n° 08, para todos os Tribunais, nos seguintes termos: Implementar práticas de Justiça Restaurativa Justiça Estadual: Implementar projeto com equipe capacitada para oferecer práticas de Justiça Restaurativa, implantando ou qualificando pelo menos uma unidade para esse fim, até 12 Para uma visão geral do atual panorama da Justiça Restaurativa no Brasil, confira-se a pesquisa "Pilotando a Justiça Restaurativa: o Papel do Poder coordenada pela doutora Vera Regina Pereira de Andrade da Fundação José Arthur Boiteux, instituição ligada à Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa foi desenvolvida pela instituição como parte da Edição da Série "Justiça Pesquisa" realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e que traz análises e diagnósticos dos problemas estruturais e conjunturais dos diversos segmentos do Poder Judiciário pesquisados pelas entidades contratadas. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pilotando a Justiça Restaurativa: o Papel do Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2014. mitos 13 Cumpre consignar que a elaboração da Meta 08 foi precedida de debates que, em resumo, trouxeram à tona os riscos de se impor uma meta "quantitativa" aos Tribunais, como proposta inicialmente, pelo que o texto passou a ter uma diretriz "qualitativa", ou seja, a implementação, pelos Tribunais, de um projeto de Justiça Restaurativa, com equipe capacitada para, assim, dar início ao movimento restaurativo, com o adequado e necessário acompanhamento, e a avalição de resultados. Questionou-se, ainda, a pertinência de se ter uma meta de Justiça Restaurativa voltada aos Tribunais, pela possibilidade de tal implementação da Justiça Restaurativa se dar pro forma, sem o fundamental cuidado com a qualidade e com os desvirtuamentos, apenas para fins de cumprimento daquilo que estava sendo imposto. Todavia, ao final, a Meta n° 08 apresentou resultados bastante positivos, pois motivou movimentos concretos de implantação da Justiça Restaurativa nos Tribunais, com algum controle de qualidade e, assim, despertou o interesse, no âmbito de todos os Tribunais do país, quanto ao entendimento da Justiça Restaurativa e de seus princípios e valores.</p><p>Na sequência, foi editada a Portaria n° 74, que se deu em 12 de agosto de 2015, com o fim de "constituir um Grupo de Trabalho para desenvolver estudos e propor medidas visando contribuir com desenvolvimento da Justiça Vale ressaltar que, nesse contexto, se mostrou como preocupação fundamental, logo de início, a observância dos princípios centrais da Justiça Restaurativa, a partir da criação de um Grupo de Trabalho, de forma a reunir Juízes de vários Estados da Federação, que desenvolvem projetos de Justiça Restaurativa, todos em igualdade de posição e de responsabilidade, com vez e para, após apresentação de experiências, estudos, propostas e sugestões, se chegar, ao final, a uma minuta de No dia 31 de maio de 2016, o CNJ, em Sessão Plenária, com votação unânime dos Conselheiros, aprovou a proposta, que se tornou a Resolução CNJ n° 225, de 31 de maio de 2016, a qual: "Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências" Consolidou-se, assim, o primeiro movimento ou a primeira onda do CNJ para a Justiça Restaurativa, qual seja, a construção e a promulgação de um marco normativo para a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário Nacional. A Resolução CNJ n° 225/2016, atualmente a referência normativa nacional para a Justiça Restaurativa, em resumo, delineia a definição e os princípios da Justiça Restaurativa (artigos 1° e 2°); define as atribuições do CNJ (artigos 3° e 4°) e dos Tribunais (artigos 5° e 6°); estabelece fluxos para a derivação dos conflitos judicializados para as práticas restaurativas (artigos 7° ao 12); define requisitos, atribuições e vedações ao facilitador restaurativo (artigos 13 ao 15); traz diretrizes gerais sobre formação e capacitação (artigos 16 e 17); traça linhas gerais sobre monitoramento e avaliação (artigos 18 a 20); e dá outras providências (artigos 21 a 30). Em razão das limitações de espaço para o presente trabalho, passo a ressaltar alguns aspectos da normativa que merecem destaque. Um primeiro ponto importante é que a Resolução n° 225/2016, como se vê em seu artigo mantém o entendimento da Justiça Restaurativa não como um método de resolução de conflitos apesar de conter um leque deles mas como uma verdadeira mudança 14 A construção e implantação desse Grupo de Trabalho deveu-se, em grande parte, à visão e ao trabalho do, à época, Secretário- Geral Adjunto da Presidência do CNJ, Juiz Bruno Ronchetti de Castro, que articulou e envidou todos os esforços para a edição da portaria em comento. 15 A construção da Resolução CNJ n° 225/2016 incorporou aprendizados advindos da observância do percurso da Resolução CNJ n° 125/2010, tanto no que tange à identidade e aos balizamentos normativos definidos por esta, bem como quanto aos efeitos concretos de implantação prática, com acertos e desafios.</p><p>dos paradigmas de convivência, voltada à conscientização dos fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores da violência e da transgressão, de forma a envolver todos os integrantes da sociedade como sujeitos protagonistas da transformação rumo a uma sociedade mais justa e humana. E a normativa traz balizamentos principiológicos e de fluxo mínimos para a Justiça Restaurativa, de forma a definir sua identidade e a encorajar os Juízes a propor a sua implementação, evitando-se desvios perigosos e indesejados. Mas, a Resolução CNJ n° 225/2016 estabelece tais definições a partir de contornos e com formato aberto o suficiente para que os diversos modelos de implementação, de estruturação, de formação e de práticas desenvolvidos nas diferentes regiões do país sejam respeitados, desde que de acordo com a moldura formada pelos princípios restaurativos, a fim de não engessar a Justiça Restaurativa em modelos únicos, personalizados, rígidos e fechados, que poderiam gerar efeitos colaterais nocivos, como imposições e descontentamentos, bem como reservas de mercado, especialmente quando se trata de formações. Ademais, ainda que voltada ao âmbito do Poder Judiciário, como não poderia deixar de ser, dados os limites das atribuições e da competência normativa do CNJ, a Resolução CNJ n° 225/2016 procurou ressaltar que a Justiça Restaurativa é de responsabilidade de todos. Portanto, ela incentiva que, quando os Tribunais e seus Juízes são aqueles que iniciam os programas e projetos de Justiça Restaurativa o que tem se mostrado importante para a sustentação da Justiça Restaurativa, dada a sua posição de legitimidade e de garantidores dos Direitos Fundamentais estes dialoguem e se articulem com a sociedade civil e com as demais instituições públicas e privadas para a formação de um coletivo que enraíze a Justiça Restaurativa como política. O desenho normativo estrutural da Política Nacional de Justiça Restaurativa passa, ainda, pelo incentivo, aos Tribunais, quanto à implantação e implementação, ou fortalecimento de programas, projetos e ações de Justiça Restaurativa, em toda a sua completude, sempre com respeito às características locais e à autonomia dos Tribunais decorrente do próprio Pacto Federativo, conforme artigos 5° e 6°, 16, 18 e 28-A, da Resolução CNJ n° 225/2016. Referida diretriz implica a criação, por parte de cada Tribunal, de um órgão central de macro gestão e coordenação, com característica plural e que busque promover a intersetorialidade, a interinstitucionalidade, a interdisciplinaridade, alocando-o institucionalmente no âmbito mais adequado de acordo com a sua avaliação e as circunstâncias próprias. Compete, ainda, aos Tribunais, em parceria com as Escolas Judiciais e da</p><p>Magistratura, promover cursos de formação com qualidade, e, sem prejuízo, cabe-lhes implantar ou expandir espaços qualificados nos quais se desenvolverão as práticas restaurativas, com fluxos internos e externos, o que traz a necessidade de articulação com órgãos e instituições, públicas e privadas, e com a sociedade civil, para atuação tanto voltada ao conflito, como também preventiva. Por sua vez, a Resolução CNJ n° 225/2016 atribui ao CNJ, nos termos de seus artigos 3° e 4°, um papel de incentivo à Justiça Restaurativa, por meio da organização das diretrizes de um modelo de política nacional a ela voltada e da promoção de articulações, em âmbito macro, com os mais diversos setores, sempre com respeito à autonomia dos Tribunais e aos contextos próprios de cada local. Em assim sendo, o CNJ, por intermédio de seu Comitê Gestor da Justiça Restaurativa, criado por força do artigo 27, da Resolução CNJ n° 225/2016, opera o segundo movimento ou a segunda onda, no sentido de desenvolver e implementar o Planejamento para a efetivação da Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário Nacional prevista, normativamente, em abstrato, na Resolução CNJ n° 225/2016. Referido Planejamento da Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário Nacional busca promover o fortalecimento e a expansão da Justiça Restaurativa em todo o país, mas sem perder de vista a qualidade, garantida pelos princípios 4. Movimento da Mediação e Conciliação e o Movimento da Justiça Restaurativa: pontos de contato e identidades próprias O passo preliminar, para evitar confusões, ruídos e distorções, é esclarecer que, por um lado, Mediação e Conciliação, e, por outro, a Justiça Restaurativa, são grandes movimentos filosóficos e ideológicos, e não se reduzem aos métodos e técnicas que cada qual adota para a consecução de seus objetivos, inclusive a resolução de conflitos. Nestes termos, referidos movimentos da Mediação e Conciliação, e da Justiça Restaurativa, como ponto comum, estão, filosoficamente, compreendidos e orientados sob o "grande chapéu" da Cultura da Não Violência, e comungam alguns princípios comuns, que também informam as respectivas práticas, como participação, voluntariedade, sigilo, diálogo, responsabilidade, consenso, reconstrução de relações. 16 O Planejamento da Política da Política Nacional de Justiça Restaurativa está disponível na página da Justiça Restaurativa no site do CNJ, em: justica-restaurativa/</p><p>Todavia, apesar desse referencial comum, por um lado, a Mediação e Conciliação, e, por outro, a Justiça Restaurativa configuram-se como dois movimentos distintos ligados à Cultura da Não Violência e têm as suas próprias histórias, foram construídas, com muito esforço e cuidado, a partir de caminhos diversos e por protagonistas diferentes, e possuem as suas próprias identidades conceituais, principiológicas, estruturais e de desenvolvimento. Tanto assim, que se mostrou imprescindível a elaboração de uma nova normativa para a Política Nacional de Justiça Restaurativa, qual seja, a Resolução CNJ n° 225/2016, com diretrizes principiológicas, estruturais e de fluxo próprias e condizentes com a lógica e a filosofia da Justiça Restaurativa, diversas, portanto, daquelas constantes na Resolução CNJ n° 125/2010, que se mostra adequada à Mediação e Conciliação. Neste âmbito, até mesmo há a necessidade de um plano pedagógico próprio de formação no que diz respeito à Justiça Restaurativa, optando-se por não se incorporar as formações ou os quadros de facilitadores que foram estabelecidos nos termos das Resolução CNJ n° 125/2010. Dentre tantas diferenças conceituais, é possível trazer o fato de a Mediação e Conciliação estarem centradas na resolução do conflito, a partir de seus métodos. E, por isso, a própria normativa que parametriza a Mediação e Conciliação foca em suas práticas de resolução de conflitos, como define o quarto "considerando" da Resolução CNJ n° 125/2010, ao dispor: cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação (grifo não constante no original). Ademais, a visão e os métodos da Mediação e Conciliação voltam-se, com primazia, para as partes diretamente envolvidas no conflito, alocadas em dois polos opostos, e a solução para a questão é construída por elas, a partir do diálogo e do consenso, em uma lógica linear, atendendo-se aos interesses daquele que, de alguma forma, se sente lesado, a partir das possibilidades do outro, que deve fazer ou deixar de fazer algo. Por vezes, tal pode se dar de forma recíproca, em uma via de mão dupla, mas, ainda assim, linear. Já a Justiça Restaurativa objetiva trabalhar a questão da violência em toda a sua complexidade e a transformação dos paradigmas de convivência social, tanto por meio de seus métodos como também a partir de um feixe de ações complementares.</p><p>Como dito, a Justiça Restaurativa parte do entendimento de que uma situação de violência ou transgressão nasce a partir da confluência de uma série de variáveis, tais como responsabilidades pessoais, necessidades não atendidas, estrutura familiar, condições dinâmicas institucionais, omissões da comunidade e do Poder Público. Portanto, todas essas vertentes devem ser trabalhadas para a construção de uma dinâmica de convivência em novas bases, com vistas à afirmação de direitos mas também de responsabilidades individuais e corresponsabilidades coletivas, não apenas para solucionar um determinado conflito, mas, para além, a fim de obstar que novos atos de violência e transgressão venham à tona. Ou seja, além de apresentar metodologia diversa, a Justiça Restaurativa busca trabalhar as mudanças institucionais, a articulação dos serviços públicos e privados (seja para adultos, crianças e/ou adolescentes), de modo interinstitucional e em parceria com a comunidade, em uma lógica holística e multidimensional, pelo que necessita de estruturas e formações diferenciadas. E essa diretriz conceitual e prática da Justiça Restaurativa está bem delineada nos "considerandos" e no conceito trazido pelo artigo todos da Resolução CNJ n° 225/2016. Neste escopo, a Justiça Restaurativa atua tanto para fins de resposta a um conflito existente, por meio de suas práticas restaurativas, como também em termos preventivos, a partir de uma série de ações que visam às mudanças institucionais e sociais, inclusive algumas delas em formato circular, como círculos de diálogo, círculos de tomada de decisão, no que também se difere da sistemática da Mediação e da Conciliação, cuja atuação é desencadeada a partir de um conflito concreto. Quanto à estrutura central de macro gestão da Justiça Restaurativa, a história e a realidade prática demostraram ser adequado garantir a cada Tribunal autonomia para alocar a coordenação da Justiça Restaurativa no espaço institucional que considerar como mais adequado a viabilizar a consecução plena da Justiça Restaurativa em todas as suas dimensões, o que está materializado no artigo 5°, da Resolução CNJ n° 225/2016. Mesmo porque, ao longo da história de construção da Justiça Restaurativa no país, os Tribunais inseriram a estrutura central de macro gestão e coordenação da Justiça Restaurativa em espaços institucionais diversos uns dos outros, de acordo com as suas realidades, alguns, nas Coordenadorias da Infância e da Juventude, mesmo que com atribuição para todas as áreas jurídicas; outros, no próprio NUPEMEC; outros, ainda, em grupos intersetoriais ligados à Presidência, à Vice-Presidência ou à Corregedoria.</p><p>De forma diversa, a Resolução CNJ n° 125/2010, nos termos do seu artigo impõe uma estrutura uniforme para todos os Tribunais, pois já define que o órgão competente para a macro gestão e coordenação da política de Mediação e Conciliação é o NUPEMEC. Ademais, a materialização da Justiça Restaurativa nas Comarcas dá-se por meio da implantação e implementação dos espaços (Núcleos, Centrais etc.) de Justiça Restaurativa nas localidades, com o envolvimento do Poder Judiciário local e sempre em parceria com os demais setores da comunidade, conforme delineado no artigo 6°, da Resolução CNJ n° 225/2016. Referido espaço de Justiça Restaurativa, em cada localidade, constitui-se como uma estrutura formal e abstrata, que conta com um Juiz coordenador e pessoas dedicadas à Justiça Restaurativa, estas provenientes dos mais diversos setores sociais, servidores públicos ou não, e tem por finalidade implantar e organizar espaços físicos adequados e seguros nos quais se desenvolverão as práticas restaurativas. Para além, compete ao espaço de Justiça Restaurativa a articulação com os mais diversos setores da comunidade e com os serviços públicos e privados disponíveis, objetivando que se tenha o efetivo envolvimento comunitário, para que as necessidades de todos os envolvidos nos conflitos sejam eficazmente atendidas, e a fim de que os fatores motivacionais da violência sejam trabalhados em todas as suas dimensões. Já no que toca à Mediação e Conciliação, estas práticas são desenvolvidas nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC), criados e mantidos pelos Tribunais, que se configuram como "unidades do Poder Judiciário, preferencialmente, responsáveis pela realização ou gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação" tudo de acordo com os artigos 8° ao 11, da Resolução CNJ n° 125/2010. Neste ponto, cabem alguns esclarecimentos. E o primeiro deles diz respeito à questão estrutural de tais movimentos e como o Poder Judiciário se posiciona nesse sentido, salientando que, apesar dos mais de quinze anos de história da Justiça Restaurativa no Brasil, é possível observar alguns resultados, mas tantos outros ainda não se desvelaram e estão por vir. O que se tem notado é que existem, em algumas localidades, experimentos de Justiça Restaurativa sendo desenvolvidos nos espaços dos CEJUSC. Como dito, trata-se ainda de algo experimental a introdução da Justiça Restaurativa, com sua lógica própria, em um espaço institucional estabelecido como órgão do Poder Judiciário e pensado sob medida para a Mediação e Conciliação, ou seja, voltado à racionalidade própria destas</p><p>O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio de seu Grupo Gestor da Justiça Restaurativa, sempre apostou na implantação da Justiça Restaurativa em espaços físicos e estruturais pensados, formatados e gestados em conformidade com a racionalidade própria da Justiça Restaurativa e especificamente voltados ao desenvolvimento desta em toda a sua potência e nas três dimensões, e conta com suporte de equipes técnicas multidisciplinares e participação comunitária, os quais são chamados de Núcleos de Justiça Restaurativa. Dessa forma, o que se traz em termos de orientação, é que, caso se desenvolva a Justiça Restaurativa nos CEJUSC, estes estejam devidamente estruturados para tal fim, pautados pela lógica sistêmica, interinstitucional, intersetorial e interdisciplinar, e reconfigurando seus espaços para se tornarem seguros e adequados às práticas restaurativas, com fluxos internos e externos, e participação comunitária, em observância ao disposto nos artigos 5° e 6°, da Resolução CNJ n° 225/2016. O segundo ponto a ser destacado diz respeito à metodologia de resolução de conflitos da mediação, que, ainda que em formatos diferentes, é citada pela literatura a integrar tanto o movimento da Mediação e da Conciliação como aquele da Justiça Restaurativa. Especificamente no que toca ao contexto da Justiça Restaurativa, a metodologia de resolução de conflitos da mediação esteve presente no início de sua história sob a denominação mediação vítima-ofensor (MVO) ou, na língua inglesa, "victim-ofender mediation (VOM). Cumpre esclarecer que referidas práticas restaurativas iniciais deram-se em bases comunitárias, como, por exemplo, em centros universitários e comunitários, locais de atendimento social, centros de grupos religiosos, dentre outros, desenvolvendo-se, portanto, em uma estrutura formada pela comunidade, para os fins desta e com reflexos externos. É diferente, portanto, de práticas que ocorrem dentro de um ente público, com servidores deste, voltadas a seus fins institucionais. Nestas mais de cinco décadas de desenvolvimento e aperfeiçoamento prático e teórico da Justiça Restaurativa pelo mundo, consolidou-se a ideia de que a base da Justiça Restaurativa, ou seja, o suporte estrutural em que ocorrerão as práticas restaurativas e as ações correlatas, como programa ou projeto, deve se desenvolver no contexto da comunidade em sentido amplo, como já frisado supra, e os representantes da comunidade, de alguma forma, devem participar das metodologias para resolução de conflitos e outros fins, de maneira a garantir suporte às necessidades dos envolvidos e para que os aprendizados possam ensejar ações externas e preventivas.</p><p>Ademais, a Justiça Restaurativa, como já frisado neste trabalho, não se resume a uma metodologia de resolução de conflitos, mas trabalha, ao mesmo tempo, com uma série de ações complementares, com vistas à mudança dos paradigmas de convivência nas instituições e na sociedade, com foco na construção de comunidades de cuidado, cooperativas e de paz. Nestes termos, a partir de tais diretrizes, é possível compreender que a mediação, enquanto método de resolução de conflitos, pode estar no escopo de atuação da Justiça Restaurativa desde que, para além de observar os requisitos de atendimento das necessidades dos envolvidos e de reparação dos danos, ela se desenvolva sobre um programa ou projeto de base comunitária em sentido amplo; que conte, de alguma forma, com a participação de pessoas da comunidade, para fins de compartilhamento de responsabilidades; e, ainda, que irradie efeitos externamente, buscando sempre a transformação das instituições e da O artigo § inciso V, da Resolução CNJ n° 225/2016, traz parâmetros ao definir as características do "enfoque 5. Conclusão Comemoramos, neste momento, uma década da Resolução CNJ n° 125/2010, que veio para consolidar o movimento da Mediação e Conciliação no Brasil, construído a tantas mãos e com muito trabalho, o qual desencadeou uma verdadeira revolução, em termos de metodologia de resolução de conflitos, em todo o Brasil. 17 O próprio Center for Justice and Peacebuilding do Zehr Institute, em Harrisonburg, Virginia, EUA, tem trabalhado com a ideia de Conferência Vítima Ofensor ou Victim Offender Conferencing (VOC), definida como "uma reunião facilitada entre pessoas impactadas por um crime, os responsáveis, seus apoiadores e, às vezes, membros da comunidade local. (...) A Conferência Vítima Ofensor oferece oportunidade para diversas vozes estrem presentes em um diálogo, enquanto oferece flexibilidade situacional em como e quando essas perspectivas são compartilhadas. Consistente com uma abordagem informada pelo trauma, o processo equilibra a estrutura com a capacidade de resposta às necessidades únicas dos participantes na sala" (grifo não presente no original). HARTMAN, Matthew & LYONS, Aaron. Victim Offender Conferencing: Facilitator Training Manual. (Trad. Silvana Pena). Just Outcomes, LLP, 2019. Material de base distribuído aos alunos do Curso de Treinamento em Conferência Vítima Ofensor, ministrado pelo Center for Justice and Peacebuilding do Zehr Institute, em Harrisonburg, Virginia, EUA, em maio de 2019. Apesar de, na definição transcrita supra, constar a participação "às vezes" da comunidade local, todo o treinamento reforçou a importância dessa participação e se desenvolveu com base nela. E cumpre ressaltar, aqui, que as práticas de mediação conhecidas como mediação comunitária e mediação transformativa bastante se aproximam da lógica da Justiça Restaurativa em razão da forte participação comunitária como elemento central. 18 Art. (...) § Para efeitos desta Resolução, considera-se: (...) V Enfoque Restaurativo: abordagem diferenciada das situações descritas no caput deste artigo, ou dos contextos a elas relacionados, compreendendo os seguintes elementos: a) participação dos envolvidos, das famílias e das b) atenção às necessidades legítimas da vítima e do ofensor; c) reparação dos danos sofridos; d) compartilhamento de responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima, famílias e comunidade para a superação das causas e consequências do ocorrido.</p><p>É tempo de celebrar as conquistas tão significativas e honrar todos aqueles que fizeram parte desta história! A Justiça Restaurativa, tema deste artigo, por ocupar um espaço debaixo da filosofia da Cultura da Não Violência e da principiologia dos Direitos Humanos próximo daquele da Mediação e Conciliação, em determinado momento foi inserida na normatividade da Resolução CNJ n° 125/2010. Mas. como desenvolvido neste trabalho, a sua história, a sua principiologia, a sua identidade, a sua estrutura e a sua dinâmica próprias conduziram à necessidade da construção de uma normativa a ela voltada, a Resolução CNJ n° 225/2016, e ao reconhecimento de identidades e caminhos diversos. Não se quer, aqui, estabelecer graus hierárquicos de uma em relação à outra, pois ambos os movimentos têm a sua importância e situações de incidência em que ora as práticas de um, ora as práticas de outro apresentam maior efetividade e melhores resultados. Mas é preciso deixar claro que, a despeito de pontos comuns de contato, ostentam concepções, não só jurídicas, mas filosóficas distintas, respeitando-se a história e a identidade de cada qual desses grandes movimentos. Nestes termos, pretender absorver o grande movimento da Mediação e da Conciliação por este da Justiça Restaurativa, ou vice- versa, teria por consequência abafar ou até mesmo suprimir a história, a importância e a identidade de um e de outro. Como tenho ouvido a todo o tempo de uma das grandes referências da Justiça Restaurativa no país, o amigo e Juiz Egberto de Almeida Penido, é no reconhecimento da trajetória, do lugar de importância, das identidades e das especificidades de cada movimento, ou seja, do outro como ele é, que se mostra possível construir "pontes" e canais de diálogo, em que se formam e ambos se fortalecem. Por fim, a concretização da Cultura de Não Violência e de um paradigma holístico, que orientam tanto a Mediação e Conciliação como a Justiça Restaurativa, demanda um trabalho árduo, de grandes dimensões e, por consequência, com imenso potencial transformador, que visa a um mundo mais justo, com pessoas responsáveis e De qualquer forma, para que toda essa transformação ocorra, existe uma mudança, superior e anterior a todas as demais, que deve ocorrer como condição primordial, 19 Estas linhas acabam ganhando um sentido especial e mais intenso dado o momento em que este artigo é escrito, ou seja, em meio à pandemia causada pelo COVID-19 no Brasil, no contexto do isolamento social imposto como uma das medidas para contenção da disseminação do coronavírus. Muito se tem dito que tal experiência catastrófica em vários âmbitos, inclusive no que diz respeito às vidas ceifadas e ao sofrimento das pessoas, seja apta a criar a oportunidade a despeito dos oportunismos de um ambiente propício para reflexões e reconstruções, a fim de que, quando superada, os seres humanos possam reconstruir a si próprios e as estruturas relacionais sob outros valores, que tragam mais cooperação, igualdade e humanidade, a partir de uma maior responsabilidade consigo, com o outro e com o meio ambiente.</p><p>que é aquela que se dá no íntimo de cada um de nós, para que não aceitemos qualquer forma de violência e muito menos façamos parte de seu ciclo de reprodução, pois, como já ensinou o pacifista: "Nós devemos ser a mudança que desejamos ver no mundo". 6. Bibliografia ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pilotando a Justiça Restaurativa: Papel do Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2014. CAPRA, Fritjof & LUISI, Pier Luigi. A Visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. ELLIOT, Elizabeth. Segurança e Justiça Restaurativa e sociedades saudáveis. São Paulo: Palas-Athena; Brasília: ABRAMINJ, 2018. HARTMAN, Matthew & LYONS, Aaron. Victim Offender Conferencing: Facilitator Training Manual. Just Outcomes, LLP: 2019. JAREZ R., Xesús. Educar para a paz em tempos difíceis. São Paulo: Editora Palas-Athena, 2004. PAVLICH, George. Governing Paradoxes of Restorative Justice. Nova Iorque, EUA e Oxon, Canadá: Routledge-Cavendish, 2007. Restorative Justice's Community: Promise and Peril. In TOEWS, Barb e ZEHR, Howard (editors). Critical Issues in Restorative Justice. Criminal Justice Press, 2004. PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. In Novos Estudos, CEBRAP, n° 68, 2004. PRANIS, Kay. Processos circulares. São Paulo: Editora Palas Athena, 2010. SALM, João; KAYINGO, Gerald & HASS, Virginia MacCoy. Creating a Culture of Restorative Justice. In KAYINGO, Gerald & HASS, Virginia MacCoy (editors). The Health Professions Educator: a practical guide for new and established faculty. Springer Publishing Company, LLC: Nova 2017. SALMASO, Marcelo Nalesso. Uma mudança de paradigma e o ideal voltado à construção de uma Cultura de Paz. In CRUZ, Fabrício Bittencourt (coord.). Justiça restaurativa: horizontes a partir da Resolução CNJ 225. Brasília: CNJ, 2016.</p>

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