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CAPÍTULO II O PONTO DE VISTA DA NAÇÃO EDIFICADA EM UM REGIME DE ESTADO Sumário — I. Se devemos, no estudo do direito público, nos colocar sob o ponto de vista dos equilíbrios, é necessário nos afastarmos provisoriamente do conceito de personalidade jurídica e enxergar o Estado como uma nação edificada em um regime de Estado. Um dos equilíbrios essenciais do regime do Estado, aquele que o identifica com o estado de direito ou com o Rechtsstaat, é o equilíbrio entre o poder de dominação e as situações estabelecidas. Análise deste equilíbrio sob o ponto de vista constitucional. Esta solução do problema da limitação do poder é mais satisfatória do que a solução por autolimitação subjetiva do Estado. A questão do Rechtsstaat no regime de Estado conduz a questão mais geral da transformação dos estados e coisa em estados de direito ; papel desempenhado nesta transformação pelo equilíbrio do poder dominação e do sistema de situações estabelecidas ; fenômeno da legitimação ; a regra jurídica está sob a dependência do estado de direito ; esta doutrina não se confunde com a doutrina do fato já consumado ; mesmo vista isoladamente, uma situação estabelecida na qual um poder ou uma competência se equilibra com um estado de coisas tende a produzir o direito : 1º exemplo, dos interesse legítimos que se manifestação nas situações administrativas e os qualificam para o ajuizamento do recurso por excesso de poder ; 2º fenômeno da apropriação que se produz em meio a uma situação estabelecida e tende a extrair dela um direito subjetivo . II. Convém retornar à questão da personalidade jurídica do Estado para mostrar que possível abstraí-la provisoriamente. Na prática a teoria da personalidade jurídica é utilizada apenas na vida de relação. Há ramos do direito público, por exemplo, o direito constitucional onde o Estado não visto sob o ângulo de uma vida de relação, mas ao contrário, em sua constituição íntima, e aí a personalidade jurídica não possui qualquer utilidade. A nação edificada em um regime de Estado deve ser considerada como uma individualidade objetiva subjacente à personalidade jurídica do Estado e possível de toma resta individualidade como objeto de estudo. A unidade prática do Estado será restabelecida mais tarde por um equilíbrio entre a personalidade jurídica e a nação. III. Dois exemplos históricos para ilustrar o ponto de vista da nação edificada em um regime de Estado: 1º a propagação do Estado antigo, do século X ao século VIII antes de Cristo e os julgamentos levados a efeito por seus contemporâneos; 2º a Revolução Francesa de 1789 interpretada como a inversão, pela nação, de todo o sistema de situações jurídicas do antigo regime e como o estabelecimento de uma novo conjunto de situações jurídicas. I Os princípios de direito público tem por objeto o Estado. Mas s o seu conceito essencial é o de ordem de equilíbrio, é necessário que o Estado seja ele próprio concebido em sua relação com este conceito; ele deve ser uma sociedade política ordenada e equilibrada de uma forma superior. O ponto de vista da personalidade jurídica do Estado, que é o ponto de vista de observação clássico, não toma em conta a constatação dos equilíbrios. Para ele, a preocupação da unidade indivisível é tirânica: a personalidade é una e indivisível, e já que a soberania do Estado é considerada ela própria como um atributo de sua personalidade, é ela também una e indivisível. Por este ângulo de análise, não se poderá nunca chegar a uma ordem fundada sobre o equilíbrio, porque tal ordem repousa forçosamente sobre elementos múltiplos, e se pelo equilíbrio uma espécie de unidade prática é estabelecida, esta unidade não é, quando me nos, indivisível, eis que podemos apontar seus elementos constitutivos. É necessário aqui fazemos uma hipótese científica: supor que a personalidade jurídica do Estado, ao invés de ser um ponto de partida, seja tão somente um resultado ou um ponto de chegada. Todos admitem que sob a forma do Estado se encontra edificada uma nação. No lugar de analisar a forma do Estado imediatamente em sua personalidade jurídica, é necessário analisar um regime político jurídico particularmente ordenado e equilibrado, que constituindo um projeto razoável de nação, servindo então de base a sua personalidade jurídica. Não diremos, então, com Esmein « o Estado é a personificação jurídica da nação »; procederemos por etapa e diremos « o Estado e uma nação edificada em um certo regime ordenado e equilibrado, que se chama regime de Estado; o regime de Estado engendra a personalidade jurídica do Estado », ou mais simplesmente ‘o Estado é a personificação jurídica de uma nação edificada em um regime ordenado e equilibrado ». Da mesma forma que há fenômenos pré-contratuais e fenômenos jurídicos, há aqui também fenômenos pré-pessoais, antecedentes e preparatórios da personalidade jurídica do Estado. O objeto essencial dos princípios de direito público é estudá-los no que concernem com o Estado. É de se notar que nos últimos anos, impôs-se a preocupação de considerar o Estado Moderno como um regime particularmente jurídico, no qual o império do direito é melhor assegurado do que jamais o fora em todas as sociedades. Todos os poderes de dominação particular estão sujeitos ao poder público, e que o poder público, ele mesmo, está sujeito ao direito, e que este estado de coisas é singularmente favorável a liberdade. Sob o aspecto particular do estado de dire ito, somos levados a enxergar o Estado como um regime, um estado de coisas, um ordem de coisas. Apenas com a predominância da teoria da personalidade jurídica do Estado é que se passou a admitir que o estabelecimento do regime de direito fosse obra da vontade da personalidade jurídica. Esta é a doutrina dos jurisconsultos alemães da escola da Herrschaft. Laband e Jellinek admitem que o Estado, seja como administrador, seja como legislador, se submete à regra de direito, da mesma forma que uma pessoa autônom a se restringe por uma regra interior criada por ela mesma. Desta forma, o direito não é exterior à pessoa jurídica do Estado, ele é, ao contrário, um produto de sua vontade interna, a qual é incontrolável 1. Este corolário da teoria da Herrschaft constitui o seu ponto fraco ; ele se escora na prática sobre um certo manto de misticismo, a onipotência do poder de dominação e ele mereceu as críticas vingativas de M. Duguit2. Neste ponto extremo, em verdade, não podemos deixar de suspeita de um colossal engano. Atribui-se o estabelecimento do regime de direito à ação da pessoa jurídica do Estado, mas não seria, justamente, em uma ordem inversa, a personalidade jurídica do Estado resultaria, por uma espécie de desbordamento espontâneo, do regime de direito estabelecido em um nação? Em todo caso, em presença da solução clarividente e pouco tranquilizadora da autolimitação subjetiva, 1 Cpr. Jellinek, Allgemeine Staatslehre, p. 230. 2 Duguit, L'Etat, le Droit objectif et la loi positive, pp. 124 et s. é possível procurar na via oposta da limitação objetiva, os diversos elementos de Estado pelo equilíbrio que entre eles se estabelece. I. —Ora, há um equilíbrio que se impõe à atenção, e cujas relações com o estabelecimento do estado de direito (Rechtsstaat) são evidentes, que é o equilibro constitucional. Se o estado de direito consiste no exercício regrado do poder de dominação, é claro que os mecanismos constitucionais pelos quais é obtida a moderação do poder são fatores constitutivos do estado de direito. Ficaríamos surpresos ao saber que os teóricos da Herrschaft passaram ao largo do fato constitucional sem ver a sua importância para a gênese do Estado de Direito, se não nos atentássemos para que o fato constitucional e a separação dos poderes eram, de uma forma geral, para eles, pouco importantes, já que não se enquadravam com a teoria de uma personalidade jurídica indivisível 3. M Pode-se enumerar as precauçõesconstitucionais que foram tomadas para obter a moderação do poder e o seu caráter regrado: 1º Decomposição, em dois momentos, de todas as ações do poder político, exercido sob forma administrativa ou governamental, após a distinção de decisão executória e medidas executivas. Antes de qualquer medida executiva uma decisão executória deve ser tomada, ela deve ser notificada e publicada; as vias recursais contra ela são abertas aos interessados, no direito romano pela intercessio perante o magistrado que detém a par majorve potestas, e no direito francês, por excesso de poder (excès de pouvoir) perante o Conselho de Estado (Conseil d’État). Desta forma, os cidadãos não são expostas a medidas executivas irreparáveis, uma discussão jurídica é travada antes que a situação jurídica fique prejudicada. 2° Uma segunda precaução consistem em obrigar a administração a não tomar jamais uma decisão executória particular senão em virtude de uma regra geral pré-estabelecida, que ela própria colocou em um regulamento. O regulamento, por sua própria generalidade, ou em razão da necessidade de este se ajustar a um conjunto mais amplo de fatos, apresenta as garantias da moderação e do caráter transacional, ao mesmo tempo, que da estabilidade; os cidadão são menos expostos a surpresas desagradáveis e a reviravoltas arbitrárias se as decisões fossem tomadas sem esta regração antecedente. 3° Os poderes governamentais são separados, um poder legislativo, mais diretamente controlável pela nação, é organizado ao lado de um poder executivo. As regras gerais colocadas pelo poder legislativo, chamadas de leis, são superiores não apenas aos atos particulares do poder executivo, mas ainda aos regulamentos administrativos. A estas regras gerais (leis), superiores e solenemente pré - estabelecidas, toda a atividade do poder executivo é subordinada. A regra geral subordina o ato particular, e no campo das regras gerais, estabelece-se uma hierarquia baseada na separação dos poderes, a lei subordina o regulamento; como os atos particulares e os regulamentos emanam conjuntamente do poder executivo, diz-se que o poder legislativo subordina o poder executivo. Mas quem vai moderar o poder legislativo? Sem dúvida o poder legislativo age por meio de regras gerais, mas regras gerais prejudiciais podem ser editadas; sem dúvida ele é equilibrado pelo poder executivo, mas em um dado instante, o mesmo partido político pode deter os dois poderes, e o equilíbrio vais ser reduzido, assim, a nada. Pode-se aperfeiçoar os mecanismos de recrutamento do Parlamento, melhorando o regime eleitoral, o procedimento de votação das leis, introduzi a 3 V. Barthélémy, Les théories royalistes dans la doctrine allemande contemporaine, Rev. du droit public, 1905, n° 4 ; H. Nèzard, L'évolution du suffrage universel en France et dans l’empire allemand eod.t 1904, pp. 734 et s. representação proporcional, a representação de interesses, o referendum, mas todos estes paliativos não descartarão o perigo da supremacia do poder legislativo. Deveríamos então nos refugiar na autolimitação do poder legislativo? Uma solução melhor seria introduzir um terceiro poder, o ju iz, que seria encarregado de conter o legislador. Nos EUA, a autoridade judiciária é juiz constitucionalidade das lei, não no sentido de que ela teria o direito de anular uma lei mas no sentido de que ela poderia se recusar a aplicar uma lei em um caso part icular, ao argumento de que ela é inconstitucional, e a inconstitucionalidade abarca, lato sensu, qualquer violação grave da ordem estabelecida das coisas 4. Na Inglaterra, toda regra aplicada pelo juiz é lei de tal sorte que depende dele tornar ineficaz um ato do Parlamento, neutralizando-o por uma outra regra que ele extrairá do arsenal de velhos costumes 5. Esta garantia contra o legislador não existe na França, de tal forma que não se pode dizer que nós estamos inteiramente sob o regime do Rechtsstaat, seria necessário então tornar o judiciário mais independente e dar a ele o poder de recusar a aplicação de leis, pelo menos as inconstitucionais6. É verdade que se o juiz é soberano, é ele, por sua vez, que pode se tornar perigoso, eus iodes ipsos quis custodiet? Mas o equilíbrio de poder têm a vantagem de constituir um circuito fechado. O legislador limita a administração, o juiz limita o legislador, nada impede que o juiz seja, por sua vez, limitado. Além do mais, o juiz autônomo é de todos os funcionários aquele que mais encarna os deveres de sua função; a função da justiça, a mais antiga, é a primeira de todas por sua virtude profissional. Isto é devido à constante prática do ato de julgar, que é o ato, por excelência, mais escrupuloso . Sem mencionar que o juiz é essencialmente um indivíduo e não podemos falar senão por uma figura de linguagem da consciência do legislador ou da administração, mas podemos realmente falar daquela do juiz7. II. — No entanto, não estamos longe de problemas, os equilíbrios constitucionais que organizamos garantem a limitação do poder, mas criam eles verdadeiramente um estado de direito? Para criar uma estado de direito é necessário que eles nos forneçam o direito. Eu entendo que temos um direito regulamentar, um direito legislativo, e um direito jurisprudencial; estas três formas de lei constituirão um bloco equilibrado com uma ligeira supremacia do elemento do direito legal; teremos, assim, uma centralização do direito sob a hegemonia da lei e esta legalidade será equilibrada e moderada, mas esta legalidade será conforme ao direito, isto é, com a verdadeira ordem das coisas? É evidente que o equilíbrio dos três poderes governamentais (executivo, legislativo e judiciário) é em si muito estreita para constituir ela apenas um bom garante da conformidade com a ordem geral das coisas. É necessário que este equilíbrio governamental seja apoiado por equilíbrios mais vastos, que interessem a toda nação, uma nação pode ser praticamente considerada como uma ordem das coisas à qual deve o direito nacional ser conforme. Este direito será feito pelo Governo de uma forma moderada e sábia, mas além disto, ela deverá ser conforme à ordem das coisas nacional, a qual, por sua vez, pelo conjunto das relações internacionais, se encontrará em uma certa conformidade com 4 Cf. Bulletin de la société de législation comparée, 1902, pp. 175 et s. Communication de M. Larnaude. 5 Dicey, Law of the Constitution, 7e éd., pp. 87 et suiv. ; Bryce, American commonwealth, t. I, pp. 245, 246. 6 Certains auteurs prétendent que ce pouvoir existe déjà (Jèze, Ret>. d’adrn. 1895, II, p. 411. Cfr, Sigaorel, Du contrôle judiciaire des actes du pouvoir législatif, Revue politique et parlementaire, 1904, p. 526); ce qui est sûr c'est que ies tribunaux n’en usent pas. On a plutôt cherché en France du côté de-l'organisation d’une Haute-Cour de justice dont la mission spéciale serait de casser les lois inconstitutionnelles, mais l'expérience a prouvé que cette Haute-Cour finissait toujours par se ranger du côté du Gouvernement (Sénat conservateur déjà Constit, de l'an VIII et de 1852); ou bien on a demandé une Haute-Cour chargée de connaître des atteintes- portées aux libertés individuelles (prop. Charles Benoist, J. off., doc. parl., Chambre, sess. ord., 1903, p. 99); mais un organe spècial chargé de cette mission sera toujours mauvais parce qu’il deviendra politique (Cfr. Duguit, Manuel dr. puèl-, I, p. 655), il faut que le pouvoir souverain du juge reste diffus pnur ' demeurer judiciaire. 7 M. Esmein ne croit pas que la limitation des pouvoirs du législateur par ie juge puisse être introduite en France (Élém. de droit constitut. théor, des constit. écrites, IV). Mais ce progrès ne dépend cependant que d'un nouveau développement du principe de la sépiration des pouvoirs interprété par le principe de l’équilibre. as ordem das coisas do mundo civilizado, a qual, por intermédio das consciências, se encontraráem uma certa conformidade com o mundo imponderável das ideias e dos sentimentos. Se lograrmos êxito em encartar assim os equilíbrios constitucionais em equilíbrios mais vastos que nos conduzem a uma máximo de garantias para a realização do direito, teremos então resolvido objetivamente o problema do estado de direito. Estes equilíbrios mais vastos nos aparecerão se diretamente abordamos a questão da transformação dos estados de fato em estados de direito, não apenas em relação ao regime de estado, mas de uma forma geral. Esta transformação é um fenômeno da ordem geral, a questão do Rechtsstaat sendo apenas um caso particular. Se o estado das coisas políticas instaurado dentro de um Estrado se torna gradualmente um estado de direito, graça à limitação do poder de dominação, é em suma, um estado de fato que se transforma em estado de direito e ele se encaixa dentro de uma categoria mais larga. Ao lado desta questão: como o regime político de um Estado se tora um estado de direito, deve-se com urgência colocar esta outra: como um estado de fato se torna um estado de direito? Poder-se-ia dizer que a noção de estado de direito foi mais fundamental na técnica jurídica que aquela da regra jurídica. Em verdade, é a ocasião em que se pode ver sair o direito do fato e o captar em sua fonte; ele não surge diretamente sob a forma de uma regra jurídica, ele surge do fato sob a f orma de um estado de direito e é o estado de direito que, em seguida, pode ser traduzido em regras jurídicas, vez que se trata de o interpretar na linguagem da conduta humana. Para a solução desta questão temos a necessidade de duas noções, a de poder de dominação e a de « situação estabelecida ». Nós simplesmente precisamos salientar que os estados de fato que se mantém dentro de um país, de uma nação, de uma instituição política, mantém-se apenas pela facção de um poder e, de outra banda, que os estados de fato assim mantidos constituem sempre uma situação vantajosa para alguns beneficiários; é uma situação de proprietário, possuidor, detentor, seja de uma propriedade, de uma profissão, de uma função. Toda a organização social de um país, tanto econômica quanto política, se reportará a um conjunto de situações estabelecidas mantidas por um poder de dominação. Com efeito, por um lado, qualquer atividade social orgânica, qualquer profissão, qualquer função, fornece a quem a exerce benefícios pessoais dos quais ele vive, todo trabalho social alimenta o trabalhador; e como a questão da subsistência é fundamental, esta atividade da qual se vive toma o aspecto de uma situação que se procura estabelecer para dela viver mais comodamente. Toda função é assim acompanhada de uma situação, um casal necessário. Por outro lado, o conjunto de situações conectadas a uma função, aquelas que já se encontram estabelecidas e as que ainda não se encontram ainda, mantém com o poder de dominação relações de mais alto interesse. Primeiro, o poder de dominação tem por função própria criar e proteger as situações estabelecidas, ele é o grande elemento imobilizador das sociedades, o que cria a ordem, a estabilidade, e por consequência, os bens ; esta função lhe é própria, ele não a recebe da lei, ele a exerce legitimamente mesmo na ausência da lei, e além disso, ele contribui para a própria criação da lei ; sem dúvida ele é obrigado a observar a lei positiva quando ela existe, mas não é del a que ele extrai a sua legitimidade nem sua autoridade, ele as retira diretamente de sua função. Enxergamos muito frequentemente o poder sob a forma simplificada do comando e da restrição sem se preocupar com a sua função. O poder tem realmente a sua função própria que é de criar a ordem e a estabilidade, e por consequência, situações estabelecidas, esta função ele a preenche mais ou menos bem, mas quando ele a preenche corretamente ele é legítimo, e não há que se colocar a questão de saber se sua ação é conforme a uma regra de direito. Não há que se colocar esta questão em relação à legitimidade do poder, ela apode ser colocada em vista de garantias superiores do estado de direito, mas é então necessário observar que a facção legítima do poder de dominação contribui para a criação da regra de direito. A concepção romana de poder é em parte responsável elas ideias falsas que dele se faz muito frequentemente. O imperium romano é unicamente o poder enxergado nos seus processos de ação, que são o comando, a regulação e a jurisdição; a função do poder não aparece aqui. Ela aparece ao contrário na noção germânica de mundium que é um poder metade público, metade privado, mas que é ao mesmo tempo uma proteção para as situações adquiridas e que é aceito por ser justamente uma proteção. É justamente para criar os estados de coisas e de situações que o poder político usa o comando e a regulamentação; para além das situações particulares que ele instaura, ele mantém esta situação geral que é a ordem pública ou a legalidade da qual todas as outras dependem. Se muitas das situações estabelecidas devem ao poder sua origem e se todas as situações estabelecidas lhe devem a garantia de que gozam, ainda que em certa medida ela possam se garantir mutuamente, como contrapartida, o poder político também deve muito às situações que ele é suscetível de criar ou de proteger. Exemplos do autor: poder de um ministro, de um deputado influente ou do parlamento de fazer e desfazer situações, quer individuais (dispor de cargos e empregos, auxiliar ou prejudicar funcionários, etc.), quer gerais, estabelecidas pelas leis. O Poder do Parlamento é feito da possibilidade que ele tem de modificar por uma lei a situação de uma quantidade de pessoas, de melhorá -la ou de piorá-la. ― Se o poder de dominação produz situações estabelecidas e se elas, a seu turno, produzem o poder, parece, neste circuito fechado, que estas duas forças não podem jamais entra rem conflito. No entanto, elas entram, e de sua oposição resulta um equilíbrio. O conflito de poder se produz porque em realidade nem todo poder de dominação provém de situações estabelecidas e porque as situações estabelecidas não tem sua estabilidade unicamente ao poder de dominação ; enfim, porque o poder de dominação possui duas missões difíceis a conciliar, proteger as situações estabelecidas antigas e criar as novas ; bem frequentemente, ele só pode criar situações novas se em detrimento das situações antigas, ele tem a seu favor os beneficiários das novas situações mas contra ele os beneficiários das situações antigas ; ou, ao contrário, se ele não deseja inovar, ele tem a seu lado os conservadores, mas contra ele as pessoas avançadas, a dizer, aqueles que desejam estabelecer situações novas. Concebe-se que o poder de dominação tenha uma certa dose de força própria que não provenha das situações estabelecidas, mas relativas à superioridade intelectual ou física de seus governantes; de outra banda, se o governo tem contra si certos beneficiários de situações estabelecidas ou certos candidatos a estas situações, em geral, ele também terá a seu favor outros tantos. Concebe -se que ele esteja em um estado de luta. Assim, o poder de dominação se debate em meio a situações estabelecidas, onde algumas o apoiam e outras o combatem e ele se encontra pouco a pouco limitado. Ele sofre a mesma sorte do mar, que pelo aporte contínuo de areia, se contrai ele próprio e se obriga a recuar de um lado, para avançar de outro. É ainda uma autolimitação, poder-se-ia dizer, porque as situações estabelecidas são obras do Governo, mas não é uma limitação como ocorre com uma pessoa que toma livremente uma decisão razoável onde são pesados subjetivamente os prós e os contras. É, ao contrário, o caso de uma pessoa que tendo muito feito e realizado, sob o império de seus instintos e de suas paixões mais do que de suas razões, vê o seus atos, transformados em fatos históricos, voltarem -se contra si, restringirem, pouco a pouco, suas possibilidades de ação,fecharem diante de si as perspectivas e os horizontes, e o orientarem, quase que fatalmente para certas direções. É neste contexto extremamente complexo que, mesmo sem o auxílio das precauções constitucionais, tende a se realizar o estado de direito. O poder de dominação tendo a faculdade de criar situações estabelecidas é obrigado a criá-las para alimentar as suas forças, preso entre a necessidade de atentar contra as situações antigas para abrir espaço para as situações novas e de gerenciar as situações antigas a fim de que seus beneficiários não se insurjam e quebrem a paz social ; obrigado a conduzir o Estado de uma maneira prudente, para salvaguardar a sua independência e a sua unidade, tanto do ponto de vista nacional quanto internacional, e de gerenciar ainda neste propósito as situações adquiridas ; este poder de dominação pode tomar apenas decisões bastante condicionadas e equilibradas com o conjunto das coisas, e por consequência, muito harmônicas com a ordem das coisas. O direito não deve se afastar muito do costume. O conteúdo do costume é aquele de uma situação estabelecida e o direito estabelecido pelas decisões judiciais não deve ser radicalmente distinto do direito costumeiro. O costume se cria por acumulação de precedentes, decisões de justiça que se repetem. E elas se repetem (e adquirem a autoridade de um precedente) porque se adaptam a uma situação estabelecida. Na forma, o costume se formula em preceitos e regras, mas estas regras são apenas a interpretação e a tradução de uma situação que se cuida de manter. No conjunto das situações estabelecidas, o estado de fato possui uma tendência natural a se converter em uma situação de direito porque para o espírito humano o direito é a conformidade à ordem e um conjunto de situações estabelecidas, principalmente um conjunto nacional, parece confundir-se com a ordem geral das coisas. — O perigo da teoria seria chegar a justificar o simples fato ocorrido; cair- se-ia assim na máxima de « a força cria o direito », traduzida por Bismarck nesta outra « a força prevalece sobre o direito » Bluntschli tratou cuidadosamente do problema das transformações dos estados de fato em estados e direito e tomou precauções para evitar este perigo. Ele observa primeiro que todo estado de fato que se prolonga em uma sociedade tende a se transforma em um estado de direito pelo só efeito de sua duração e ele cita como exemplo o instituto da prescrição e também o fenômeno da legitimação de que se beneficiam os governos estabelecidos, à medida que sua dominação se prolongue, ainda mesmo quando inicialmente estabelecidos por usurpação. Mas a condição da duração sem outro qualificativo seria inoperante para explicar o fenômeno da legitimação; não basta, para a transformação do fato em direito, que haja o prolongamento do fato ocorrido, é necessário que haja um melhoramento do fato, a adaptação do fato ocorrido à ordem geral das coisas. Para que a duração seja a garantia deste melhoramento e desta adaptação, é necessário que esta duração se dê em paz no meio do conjunto social. A paz social é o grande critério de realização do direito. Quando uma situação estabelecida dura em paz durante um certo tempo, há a presunção de que está adaptada à ordem geral das coisas e ela então se torna uma situação jurídica. Se no início ela apresentava as características de usurpação, de violência, de força pura, é de se crer que ela se corrigiu, que a força se equilibrou por outros elementos, que os sacrifícios ocorreram de uma parte e de outra, e que o mundo imponderável das consciências já se acostumou. Em sentido contrário, há situações estabelecidas que durante um longo período foram jurídica, e que podem lentamente perde resta característica porque elas cessam de estar adaptadas a uma nova ordem das coisas que se cria pouco a pouco, e elas se tornam injustas. Aqui se aplica o mesmo critério, a paz social é turbada no entorno de tais situações, um estado de desconforto se cria, reformas parecem inevitáveis, ou, se elas não se operam a tempo, uma revolução se prepara. Escapa-se assim do perigo de glorificação do fato ocorrido pela condição de que a duração em paz no interior de um conjunto social que implique o melhoramento do fato pelo equilíbrio estabelecido com a ordem das coisas. ― Este perigo evitado, só nos resta observar o postulado da adaptação à ordem gera das coisas. Toda situação estabelecida será tão mais jurídica quanto mais conectada às ordem ambiente das coisas, e também quanto mais esta ordem das coisas for por ela estendida. Esta última observação nos explica dois fatos igualmente importantes: porque os estados de direito são ligados às instituições políticas e porque eles tendem se estabelecer em instituições políticas as mais vastas. A instituição política é um conjunto completo, uma ordem social total das coisas, ela é o conjunto social mais próximo dos indivíduos, a assumir que ela própria esteja implicada nos conjuntos internacionais. Este critério de conjunto social completo é um critério que da inst ituição política do qual não podemos escapar quando pretendemos diferenciá-la dos outros agrupamentos sociais; somos obrigador a convir que as associações diversas das quais os indivíduos fazem parte não têm sobre ele uma influência total comparável à da instituição política e elas não tem uma influência total porque elas próprias não são um conjunto social de abrangência universal, mas sim parcial. Assim, a instituição política é, por ela mesma, uma ordem completa de coisas e é porque os estados de direi to possuem afinidade com a ordem total de coisas que eles a possuem com a instituição política. É ainda um fato que as situações jurídicas são ligadas à mais extensa instituição política, vez que as instituições políticas são englobadas uma dentro das outras. O equilíbrio do poder de dominação e do conjunto das situações estabelecidas explica então a transformação dos estados de fato em estados de direito no interior de uma nação, com isto, ele nos permite compreender como o governo, ele próprio, se submete ao império do direito. Os mecanismos constitucionais facilitam esta tarefa, mas estes mecanismos, tomados apenas em si mesmo, seriam impotentes. Seria necessário que eles fossem ligados ao equilíbrio fundamental. Durante muitos anos foram eles incompletos e insatisfatórios. Apenas na época moderna que os mecanismos constitucionais se apoiaram de uma forma direta sobre o regime eleitoral representativo, que é simplesmente a organização metódica e racional entre os poderes do equilíbrio entre o poder de dominação e o conjunto de situações estabelecidas na nação. III. Seguramente, em uma situação estabelecida isolada não se verá verdadeiramente nascer o estado de direito, porque o direito só pode se afirmar pela conformidade a um conjunto de coisas; mas o conjunto só poderá gerar o direito se as partes são orientadas em direção ao direito; o conjunto de situações estabelecidas de um país só criará o direito se, em cada uma das situações estabelecidas, produzir-se um estado pré-jurídico que prepare e chame o reconhecimento do direito. Primeiro, é bem entendido o que nós chamamos de « situação estabelecida » aquela que resulta do exercício de um poder. Um poder se exerce sobre um objeto, sobre um território, sobre um grupos de homens e mantem um certo estado de coisas. Um equilíbrio se estabelece entre o poder de dominação e o estado de coisas criado, em um certo momento há uma reação ao estado de coisas e resistência às modificações. O possuidor de uma propriedade, após ter feito uma primeira vez a organização desta propriedade, fica prisioneiro destas medidas, e uma série de considerações conformes a seu interesse lhe condicionam a não mais abrir mão desta situação. O chefe de uma tropa estabelece uma certa disciplina e um certo estado de coisas na tropa. Após, ser-lhe-á extremamente difícil de alterar qualquer coisa queseja, seus homens resistirão e se insurgirão. Pode ocorrer que o próprio estado de coisas se modifique e que o senhor ou o chefe sejam obrigados a suportar as consequências destas modificações. Após, sob ou ao lado deste poder de dominação principal, manifestam-se os interesses, as finalidades e, como resultado, as funções, algumas vezes outros poderes, e todos estes elementos buscam se combina rem uma síntese jurídica. Na sequência, a situação estabelecida que em si apresenta uma caráter objetivo acentuado, tende pela intermediação do fenômeno da apropriação, pela distinção entre o sujeito e a coisa, a criar um direito subjetivo. 1º Exemplo: departamentos franceses criados em 1790, de forma artificial, agrupando populações que não possuíam qualquer interesse comum. Não havia a partir da sua criação senão um poder ou uma competência de Estado planando solta sobre o território. Não havia nenhum órgão próprio departamental salvo um conselho geral composto de notáveis com atribu ições puramente consultivas. Em 1833 é criado um órgão local sob a égide do poder provincial, o conselho geral será escolhido pelo voto, e bem atuará como representante da circunscrição. Este órgão ainda não tem competência para cumprir sua função e esta competência lhe será dada apenas a partir de 1838, por leis sucessivas, e pouco a pouco suas atribuições crescerão. A partir de 1838 ocorrerá a descentralização, a dizer, a organização completa de uma administração local autônoma, e na medida desta autonomi a, na criação de direitos departamentais, sempre sob a égide do poder provincial. A lei, por certo, teve neste processo, o seu papel, mas é importante não lhe conferir de forma exclusiva todas as honras. As leis de descentralização foram durante longos anos reclamadas pelas populações a fim de que atuassem sob a influência de uma situação pré-jurídica estabelecida, na qual os interesses departamentais espontaneamente se aproximaram da natureza destas leis. Segundo exemplo do autor: recurso por excesso de poder (excès de pouvoir) manejado perante a Administração e contra um ato específico desta; o interesse legítimo que qualifica o reclamante para manejar tal recurso é sempre extraído de uma situação estabelecida na visão da administração, e assim uma « situação estabelecida » soube fazer produzir de um simples interesse um efeito de direito que é mola propulsora do recurso contencioso. Lembremos que o recurso por excesso de poder não é a tentativa de realização de um direito, ele é aberto a hipóteses em que o reclamante não possui um direito que pretende fazer valer em face da Administração, mas ele simplesmente invoca razões de boa administração para fazer anular uma decisão que modifica justamente uma situação estabelecida. O que nos importa é que o interesse que dá qualifica a reclamação é sempre extraído de uma situação anteriormente estabelecida com relação à Administração, situação que a princípio a Administração poderia modificar por seus atos já que sua competência se estende sobre ela, mas ela deveria modificar apenas por atos conformes à boa administração. Esta situação objetiva é oponível aos atos de má administração; o mais comum é que esta situação seja estabelecida por atos anteriores da própria administração. 2º exemplo do autor: apropriação. No interior de situações estabelecidas se produz o fenômeno jurídico da apropriação, que se constituiu, de um lado, por coisas que tenham um valor social, e de outro, por direitos sobre as coisas, o que podemos chamar de títulos jurídicos individuais. Analisemos tal questão em meio a situações administrativas e de serviços públicos. Ela se opera, primeiro, em uma situação de agentes que possuem a competência para exercer uma função. Primitivamente esta competência está em relação apenas como o conjunto de poder administrativo e político ; de acordo com a linguagem hoje atualmente consagrada, a competência aparece unicamente como uma delegação do poder público, e não há qualquer relação entre a competência e o agente nela momen taneamente investido ; a competência é uma máquina toda montada na qual o agente será colocado, e sobre a qual o agente não terá qualquer direito salvo aqueles inerentes a um mecânico, ao qual uma companhia de trem de ferro confia uma locomotiva, teria s obre esta máquina. Mas em uma situação que adquire uma certa estabilidade, esta situação puramente objetiva perdura por um longo período. Os agentes, isto é, os indivíduos humanos que se encontram alojados em uma dada esfera de competência durante um período prolongado, experimentam a necessidade de se apropriar das vantagens da situação que o exercício da competência lhe proporciona, ao menos, das vantagens que são apropriáveis, a dizer, aquelas que se apresentam como honra, lucros pecuniários, posse de territórios, comodidades de uso, etc. O mecânico instalado habitualmente sobre a mesma máquina bem o diz: minha máquina. Esta apropriação individual produz ao longo do tempo um desdobramento da esfera da competência: ela se constitui de coisas, isto é, de elementos objetivos que, em relação ao indivíduo investido na competência são bens que podem ser colocados ao seu serviço; e sobre estas coisas, o indivíduo, investido da competência adquire um direito subjetivo inerente a sua pessoa. A competência puramente objetiva do início se resolve em dois elementos, uma coisa na qual se refugia o que havia de objetivo na função, e um direito objetivo, colocado sobre a função que se tornou uma coisa, ou quando menos, sobre certos elementos desta função, e tal direit o objetivo favorece ao agente. O mesmo fenômeno pode ser observado nas situações administrativas criadas em proveito dos ocupantes ou concessionários do domínio público. Durante muito tempo, foi dito: estes ocupantes não possuem qualquer direito real, não há em seu proveito qualquer apropriação do domínio e é igualmente melhor que o domínio público não seja alienável. E então, bem lentamente, pela força das coisas, pela prolongação e multiplicação das situações, em consideração ao interesses que foram por isto revelados, percebeu-se que era justo reconhecer aos ocupantes um certo título jurídico e que era possível lhes conceder direitos reais de natureza administrativa que não atentassem contra a inalienabilidade do domínio, que são os modos de apropriação administrativo, sem serem desmembramentos da propriedade civil Cfr. Cons. d’Ét., 25 mai 4906, Ministre du Commerce c. Chemin de fer d’Orléans, S. 1908. 3. 65 et la note). Outro exemplo: lei de separação dirigida aos católicos para constituírem associações de culto. Em dezembro de 1908 expirou a data fixada nesta lei para a criação destas associações, e o membros do clero, assim como os fiéis, se viram sem título jurídico para ocupar as igrejas. Legalmente, estes edifícios deveriam ser fechados, mas por razões políticas permaneceram abertos. Até dezembro de 1907, durante um mês, a questão do título não foi regrada; a paz e a ordem não foram turbados, graça à disciplina geral da nação; a situação estabelecida antes continuou a existir, no sentido de que os edifícios permaneceram abertos, e esta situação estabelecida foi o único elementos jurídico que subsistiu no início. Em janeiro de 1907, havia esta regra, a saber que « na ausência das associações de culto, os edifícios afetados ao exercício do culto continuarão, salvo desafetação, a serem deixados à disposição dos fiéis e dos ministros do culto para a prática de sua religião » (art. 5, Lei 2 jan. 1907) Último exemplo: serviços de assistência pública e amparo à velhice. Ora, este direito não é um crédito sobre os serviços de assistência, é simplesmente o direito para o indigente de ser colocado, pelas decisões administrativas, em uma certa situação legal, a ser inscrito em uma lista de assistência, de modo a poder se beneficiar da distribuição de auxílios, i sto apenas se eles são distribuídos; é o direito deser colocado na engrenagens da máquina administrativa, e de ser acionado pelas engrenagens da administração, é um estatuto 8. 8 Cfr. mon Précis de droit adm.y 6* édit,, p. 355, dont j’accentue ainsi la doctrine dans le sens de la situation objective des administrés vis-à-m de tous les servic&s publics- H y a quelques rapports entre cette théorie et ceiie des « droits reflets » sou tenue par Jelünek (System der subject. offentl. Rh.r p. G4 et. 65). Mais il me. parait que la conception de la situation, statutaire des administrés' est plus réaliste que celle des droits reflets, d’autant que nous considérons le statut comme doué d'éléments actifs. — V. infrà, ch. m, in fine.. II Antes de avançarmos pela via eleita, é necessário responder às seguintes indagações: pode-se realmente colocar de lado, ainda que provisoriamente o ponto de vista da personalidade jurídica do Estado; sobra qualquer coisa de Estado quando faz-se a abstração de sua pessoa e, se subsiste qualquer coisas, o que é este elemento e quais relações ele mantém com a personalidade jurídica. A tomar o Estado como um regime imposto a uma nação, seremos levados a nele ver apenas um sistema de coisas estabelecidas, a coisa pública; é o sentido etimológico da palavra respublica e é também o sentido geral da palavra status. O Estado seria então um categoria de coisas; mas de outra parte, não é possível esquecer que o conjunto de coisas estabelecidas que constitui o Estado possui um propósito que é a realização de um certo meio de vida, a busca de certos destinos para uma nação; que, ainda, este conjunto de situações estabelecidas é dominado por um poder político que os mantém e que os faz servir a seus fins. O Estado é comparável a uma fundação encarregada de realizar uma certa obra e que possui os órgãos necessários por garantir esta obra. A questão da personificação do Estado se coloca então necessariamente, ela é da mesma natureza da relativa à personificação das fundações ou das instituições. Conjunto de coisas, se assim o queremos, conjunto de situações, conjunto de interesses, mas também um propósito, mas também um poder, e trata-se de saber se, desta combinação de elementos, não defluiria uma personalidade jurídica. Em presença deste problema eis a posição que tomaremos: Primeiro, evitaremos com certeza negar a existência da personalidade jurídica do Estado. Não se insurge contra um fato. M. Duguit comprometeu o sucesso de sua campanha contra a doutrina da Herrschaft pelo exagero de suas negações. Ainda que a personificação do Estado constitua apenas uma construção jurídica, ele se inseriu na série de fatos sociais, suas conexões se estenderam ao conjunto de operações jurídicas, ela produziu e ainda produz serviços, consequências práticas dela advieram, e ela se tornou, ela mesma, um fato social e não se discute a legitimidade de um fato 9. Assim, admitiremos a personificação jurídica do Estado, mas, ao mesmo tempo, admitiremos que a importância prática desta personificação é limitada, a dizer, que em certas ocasiões, efetivamente é vantajoso considerar o Estado como uma pessoa, e em outras ocasiões, ao contrário, é vantajoso considerá -lo como um conjunto de situações estabelecidas em uma nação, equilibrada com um poder de dominação. Se o Estado é uma pessoa jurídica, as relações que existem entre esta pessoa jurídica e a nação me parecem ser da mesma natureza das que existem entre a pessoa jurídica do homem e sua individualidade objetiva, com a única diferença de que a individualidade do homem é psíquica, ao passo que a da naçã o é social. Mas há aqui uma certa semelhança, no sentido de que a individualidade social de uma nação somente apta a ser completada por uma personalidade jurídica após ter sido anteriormente edificada em um regime de estado por um sistema de equilíbrio de poderes e de situações estabelecidas, da mesma forma que a individualidade psíquica do homem somente estará apta a ser completada por uma personalidade jurídica após ter sido, ela própria, construída por equilíbrios psíquicos e psicológicos. Em suma, a personalidade jurídica, como, de outra banda, a peronalidade jurídica. 1. O conceito de personalidade jurídica do Estado, teoricamente ilimitado, eis 9 M. Daguit qui, dans son livre théorique L'Etat, le droit objectif, et la loi posîftttf, avait fait une charge violeate contre la personnalité juridique de l’État, s'est vu obligé dans son Manuel de droit public, livre plus pratique, de lui donner une place et de l'étudier comme un fait existant, t. I, pp, 43 et s. Dans le même Manuel de droit public, partie de droit administratif, M. Moreau reconnaît, exactemeut comme nous, qu’il ne sert de rien de s’élever contre un fait aussi bien établi, et d’ailleurs avantageux dans une large mesure (t. II, pp. 30 et s.). que ele é uma construção lógica do pensamento humano, limita -se praticamente em seus efeitos ao que se poderia chamar de « vida de relação », por oposição aos « modos de existência ». Ele é empregado de forma útil todas as vezes em que Estado é concebido em relação a um terceiro, ele não serve de nada todas as vezes em que o Estado é enxergado em sua organização interna. Isto não possui nada de surpreendente. A personalidade jur ídica é organizada antes de mais nada em vista dos indivíduos humanos. Ora, o direito não possui qualquer interesse em penetrar na organização interior dos homens, nem nos debates de sua consciência, ele se ocupa apenas de suas relações com terceiros. Dar- se-á uma definição da personalidade jurídica suficiente pelas duas proposições seguintes: 1° Ela é um expediente da técnica jurídica destinado a facilitar a vida de relação pela síntese que é própria de cada indivíduo. 2° Ela supõe uma individualidade subjacente que ela busca completar ao definir o que lhe é próprio, mas que ela não constitui integralmente. Ao afirmar que a personalidade é um expediente tecno-jurídico não está aqui a se afirmar que ela seja uma criação artificial, nem uma ficção, os seus elementos são capturados da realidade social, ela constitui um procedimento de relação dos mais vantajosos, aquele rumo ao qual vai naturalmente o sistema de direito ; a prova se encontra no fato de que se vários outros procedimentos jurídicos foram já empregados para a vida das associações e corporações, como por exemplo o Gesammte Hand do direito alemão, ou o trust do direito inglês, ou a pessoa interposta do direito francês, gradualmente, e malgrado as inexitosas tentativas de ressurreição, estes procedimentos foram abandonados em favor daquele da personalidade corporativa. A personalidade jurídica se firmou porque ele foi o instrumento aperfeiçoado de regramento dos riscos e das responsabilidades de cada um, regramento que constitui o grande assunto do d ireito na série de relacionamentos com terceiros. A personalidade jurídica prestou -se a tornar mais justo o regramento dos riscos e da responsabilidade, ao introduzir o ponto de vista da síntese, daquilo que é próprio a cada sujeito, tanto para a apreciação da responsabilidade quanto para as garantias de pagamento em casos de indenização; ela estabeleceu que cada sujeito é responsável por seus próprios atos e apenas por seus próprios atos, e que respondem pelas suas ações apenas a totalidade de seus bens e apenas bens que são seus. Ela, seguindo a expressão consagrada substituiu o ponto de vista da responsabilidade objetiva pelo da responsabilidade subjetiva. A responsabilidade objetiva é em si grosseira e de uma justiça sumária, e no seu tipo mais comumente referido ela é uma responsabilidade coletiva, a de um membro qualquer de um grupo por um dano causado por outro membro deste mesmo grupo. Assim a responsabilidade é concentrada sobre o indivíduo, mas a esfera do que é próprio ao indivíduo, a esfera determinada pela personalidade jurídica, lhe fornece um assento sólido, ao anexar a responsabilidadepessoal (atos de um sujeito) à responsabilidade real (ao seu patrimônio). Ao mesmo tempo, os homens são livrados do peso da solidariedade do grupo, os patrimônios se separam e as relações do comércio jurídico são facilitadas. A utilidade da personalidade jurídica de corporações e estabelecimentos, no que concerne a riscos e responsabilidade, é sensivelmente a mesma ; ela estabelece a continuidade dos atos de um estabelecimento, ela garante a separação de um patrimônio entre bens próprios do estabelecimento e bens próprios dos associados e dos membros, e por consequência, ela separa a responsabilidade por atos do estabelecimento e a afeta aos bens do estabelecimento, e, de igual forma, separa a responsabilidade pelos todos dos associados, e a afeta ao bens dos associados, por fim, ela afeta a totalidade dos bens próprios do estabelecimento à garantia das responsabilidades deste. A personalidade jurídica dos Estados não é diversa. Estabelece a continuidade dos atos de governo, relaciona a responsabilidade do Estado por atos pretéritos, presentes e futuros; permite a duração infinita dos tratados internacionais, e dispensa renovações e confirmações, que praticavam as monarquias do ancien régime. Sobre as utilidades primárias da personalidade jurídica estabelecida por relação aos riscos e à responsabilidade vieram agregar-se outras que lhe são a contrapartida lógica. Sendo a mola propulsora da responsabilidade própria, a personalidade se tornou o suporte dos poderes próprios e tomou-se consciência que era o exercício dos poderes próprios que conduzia à responsabilidade própria. A personalidade jurídica, neste sentido, não passou, antes de tudo, de um procedimento em vista da vida de relação , mas ela caracterizou a vida de relação como sendo essencialmente constituída de relações com outros. Ao definir o que é próprio de cada indivíduo ela separou mais claramente os indivíduos, dando a eles o mesmo valor jurídico que a si própria, o que é expresso perfeitamente na palavra outro (autrui). O outro, em verdade, é o ser distinto de nós e que não depende de nós, que é autônomo em relação a nós, tão independente de nós quanto somos dele, e, por assim dizer, igual a nós E será no domínio estrito das relações que se estabelecem com o outro que veremos os limites do emprego da personalidade jurídica, já que nem todas as situações jurídicas se analisam necessariamente por uma relação com o outro . Nas sociedades modernas todas as relações individuais da vida privada são relações entabuladas com o outro, e o direito não se preocupa com debates internos da consciência humana. No direito das associações, corporações, estabelecimentos, administrações públicas, o limite das relações se marcam mais claramente. Os estabelecimentos tem dois tipos de vida jurídica, uma exterior e outra interior. Se nas relações exteriores entretidas com terceiros o traço da relação com o outro é evidente, ele definitivamente não o é no que diz respeito às relações internas que se estabelecem seja entre seus órgãos, seja entre o estabelecimento e seus membros; nem os órgãos, nem os membros, colocam-se na relação com o estabelecimento na situação de outro. Outro é um ser completamente apartado, que não pertence ou compõe a mesma personalidade, a menos que o órgão e o membro pertençam forçosamente à personalidade. Isto quer dizer quer as relações que se estabelecem no interior de uma personalidade jurídica, entre suas engrenagens e mecanismos internos, não são relações de pessoa jurídica. A questão se coloca de uma forma bastante clara a propósito do Estado. Aqui, são compartimentos inteiros do direito público nos quais a personalidade jurídica ou bem desempenha um papel, ou não o faz. A relações entre Estados são relações com o outro, um outro igual a si, elas se dão entre partes soberanas (na fórmula dos tratados diplomáticos entre altas partes contratantes), e elas acarretam responsabilidades que são cômodas de determinar, certificar e de delimitar, conforme a teoria da personalidade jurídica O direito administrativo, ele próprio, reconhece a personalidade jurídica do Estado e mesmo aquela das administrações locais, departamentos e comunas e aquelas dos estabelecimentos públicos. Durante muito tempo, ela ficou restrita ao círculo de operações que a doutrina alemão chamava de fiscais, a dizer, operações da mesma ordem daquelas encontradas na vida privada. Atualmente, e ainda que existam divergências doutrinárias, ela se estende praticamente a todas as operações do comércio jurídico executadas pela administração para a gestão do serviço público, sejam elas ou não de natureza pública, isto é, exorbitantes em relação às relações privadas. Mas há uma outra região do direito administrativo onde a administração assume a atitude de um poder que fala a seus súditos, para determinar situaçõ es jurídicas subjetivas, e onde ela emite decisões executórias que lhes são oponíveis; neste domínio, é altamente duvidoso que a personalidade jurídica deva desempenhar um papel. De um lado, o administrado, enxergado como súdito da administração do Estado pode ser considerado como um terceiro ou um outro em relação à esta administração, ou não seria ele mais um membro ou coparticipante? De outro, qual a utilidade prática teria aqui o emprego da personalidade jurídica? Assim, já no direito administrativo encontramos um limite prático ao emprego da noção de personalidade jurídica. Mas há um outro ramo do direito público onde o limite a este emprego parece tão tosco que é válido se perguntar se há um interesse qualquer em fazer-lhe penetrar esta noção. Trata-se do direito constitucional. O direito constitucional tem por objeto a organização e os relacionamentos dos grandes poderes públicos, ou ainda, a organização da soberania. Haveria, para este objeto, um interesse qualquer a que os grandes poderes fossem considerados como órgãos de uma pessoa jurídica, ou que a soberania fosse considerada a vontade desta mesma pessoa jurídica? Praticamente não se percebe tal interesse. Os feitores das constituições se preocupam em garantir a unidade do Estado considerado como uma instituição objetiva, se eles organizam uma separação de poderes, e, por consequência, se eles criam órgãos separados, é para realizar um equilíbrio objetivo da instituição favorável à liberdade e não, definitivamente, para preparar os melhores órgãos de uma pessoa jurídica. Em seu célebre capítulo VI sobre a constituição da Inglaterra , Montesquieu prega a separação dos poderes como uma garantia da liberdade e não como uma organização da pessoa jurídica do estado, com a qual ele pouco ou nada se preocupa. Os poderes constitucionais, uma vez constituídos, trabalham para ampliar o seu próprio poder, para fortalecer a sua própria situação, para preencher a sua própria função. Teremos toda a dificuldade do mundo para fazer com que poderes respeitem a unidade objetiva do Estado, quanto a sua personalidade objetiva, esta será a menor de suas preocupações. Com grandes dificuldades se exigirá a observância de que a conduta de um dos órgão, face ao outro, seja sancionada por uma responsabilidade patrimonial, será somente por uma responsabilidade política, completamente estranha à personalidade jurídica e ao patrimônio. III Dois exemplos históricos para ilustrar o ponto de vista da nação edificada em um regime de Estado: 1º a propagação do Estado antigo, do século X ao século VIII antes de Cristo e os julgamentos levados a efeito por seus contemporâneos; 2º a Revolução Francesa de 1789 interpretada como a inversão, pela nação, de todo o sistema de situações jurídicas do antigo regime e como o estabelecimento de uma novo conjunto de situações jurídicas.
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