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1 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS LINHA DE PESQUISA EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO SOCIAL Luthyana Demarchi de Oliveira O FÓRUM MÚLTIPLAS PORTAS COMO POLÍTICA PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA E À PACIFICAÇÃO SOCIAL Santa Cruz do Sul 2012 2 Luthyana Demarchi de Oliveira O FÓRUM MÚLTIPLAS PORTAS COMO POLÍTICA PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA E À PACIFICAÇÃO SOCIAL Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – Área de Concentração em Demandas Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Profª Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler Santa Cruz do Sul 2012 3 Luthyana Demarchi de Oliveira O FÓRUM MÚLTIPLAS PORTAS COMO POLÍTICA PÚBLICA DE ACESSO À JUSTIÇA E À PACIFICAÇÃO SOCIAL Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – Área de Concentração em Demandas Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. _________________________________________________ Profª. Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler Professora Orientadora ___________________________________________________ ____________________________________________________ 4 Aos meus pais e meus irmãos!! 5 AGRADECIMENTOS Agradecer normalmente não é um gesto fácil, mas com certeza algumas pessoas merecem o carinho e a atenção pela construção desse trabalho. O maior agradecimento é para aqueles que são os grandes responsáveis por tudo isso: meus pais João e Jurema!!! São para eles as palavras de carinho e atenção que nos momentos mais difíceis foram meus verdadeiros incentivadores. Não mediram esforços para que mais este objetivo fosse alcançado. Com amor e dedicação, deram todo o suporte necessário. Foram mestres nos ensinamentos, nos desafios e nos exemplos da vida. Souberam me propiciar aquilo que existe de mais valioso: o estudo. Ao meu irmão Thyago e minha cunhada Daiana, que jamais hesitaram em me ajudar e compreenderam meus momentos de ausência. À minha irmã Tathy pela compreensão e auxílio nos momentos cansativos e delicados. A minha princesa Isa, pelas alegrias e brincadeiras. Agradeço, também de forma particular, ao restante da minha família, que, durante a realização deste trabalho, sempre me incentivou e entendeu meu distanciamento. Ainda, um carinho especial por aquela pessoa a qual aprendi a admirar e que me acolheu de forma tão generosa. Meu sincero agradecimento a minha professora ―eterna‖ orientadora: Profª Pós-Doutora Fabiana Marion Spengler, não apenas pelo incondicional apoio quanto aos ensinamentos e orientações dados, mas também pela dedicação e pelo diálogo proporcionado nesse tempo. Pela oportunidade de conhecer o professor Eligio Resta, pela viagem a nossa querida e amada Roma, pela experiência e aprendizado no projeto de extensão. Além disso, é importante mencionar uma gratidão imensa pelo acolhimento, exemplo de amor e carinho que somente a família Spengler é capaz de dar. Agradeço aos demais professores do Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Direito da UNISC, pelos ensinamentos e incentivos à minha formação acadêmica. 6 Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e Conselho Nacional de Justiça- CNJ, pela bolsa concedida durante os anos do mestrado. Aos colegas, pelos momentos e pelas viagens partilhadas e aos amigos que souberam entender minha ausência e pelo apoio e incentivo! Por fim, agradeço à pessoa que me foi presenteada pelo mestrado, Fernando Augusto, meu amor, por toda a ajuda recebida, todo estímulo e toda compreensão durante essa nossa conquista. Muito obrigada a todos que contribuíram para essa vitória e principalmente a Deus! 7 ―O ser humano deve desenvolver, para todos os seus conflitos, um método que rejeite a vingança, a agressão e a retaliação. A base para esse tipo de método é o amor.‖ Martin Luther King 8 RESUMO A presente dissertação tem como objetivo demonstrar o exaurimento do sistema jurisdicional na sociedade atual e, a partir disso, apresentar uma política pública que possa promover um tratamento mais adequado dos conflitos. Nessa esteira, analisar-se-á, através do método de abordagem dedutivo, tópicos considerados fundamentais para o desenvolvimento do tema, tais como o exaurimento do sistema jurisdicional e o acesso à justiça, para então tratar do modelo americano ―múltiplas portas‖ e de sua possibilidade de adoção no Brasil, como uma política pública célere e eficaz no tratamento dos conflitos. Também serão investigadas as semelhanças e as diferenças entre a jurisdição e a política pública do modelo americano ―múltiplas portas‖, bem como a evolução deste último (o modelo) no decorrer do tempo, demarcando as deficiências que identificam a primeira (a jurisdição), em meio à complexidade conflitiva atual. O desenvolvimento do estudo dar-se-á pelo procedimento comparativo e pela técnica da pesquisa bibliográfica, baseada em documentação indireta. O modelo americano ―múltiplas portas‖ caracteriza-se por direcionar o conflito a uma ―porta‖ (dentre outras existentes) que se mostre como aquela que se apresente como a mais adequada para o tratamento do conflito. Por fim, estudar-se-á a política pública nacional de tratamento de conflito instituída pela Resolução n.º 125 do Conselho Nacional de Justiça, comparando-a com o modelo americano ―múltiplas portas‖, com o intuito de mostrar a construção de um novo paradigma voltado para a pacificação social. Palavras-chave: Exaurimento Jurisdicional. Acesso à Justiça. Política Pública. Tratamento do Conflito. Múltiplas Portas. 9 Abstract The objective of this dissertation is to show the exhaustion of the present legal system in today‘s society and, on this basis, propose a public policy that would serve as a more suitable approach to dealing with conflict. In light of this, the most important topics relevant to this theme, including the exhaustion of the legal system and access to justice, are addressed using a deductive analytical method, leading to the American ‗Multidoor Courthouse‘ model as an example of a rapid and effective means of addressing conflicts. The similarities and differences between the jurisdiction and public policies of the American ‗Multidoor Courthouse‘ model will also be investigated, as will the evolution of this model over time, clarifying the deficiencies found in the jurisdiction, given the complex nature of present day conflict. The paper is developed as a comparative study that makes use of secondary sources though bibliographic research. The American ‗Multidoor Courthouse‘ model is noted for its channeling of a conflict towards a particular ‗door‘ (amongvarious existing options) which is considered to be the most appropriate means to address the conflict. To close, the national public policy for the treatment of conflict as addressed by Resolution No. 125 of the National Council of Justice, is studied and compared with the American ‗Multidoor Courthouse‘ model, with the objective of showing the construction of a new paradigm aimed at social pacification. Key-Words: Judicial Exhaustion. Access to Justice. Public Policy. Conflict Resolution. Multidoor Courthouse. . 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................... 12 1 O EXAURIMENTO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E O ACESSO À JUSTIÇA............................................................................................................... 17 1.1 A sociedade, seus conflitos e o sistema estatal ......................................................................................................................... .. 17 1.2 O acesso à justiça, o exaurimento da prestação jurisdicional e seus desafios .............................................................................................................................. 25 1.2.1 O acesso à justiça........................................................................................ 25 1.2.2 O exaurimento do sistema jurisdicional........................................................ 28 1.2.3 Os atuais desafios de acesso à justiça........................................................ 36 1.3 A mudança de paradigma do litigio para a justiça consensual...................... 43 2 O FÓRUM MULTIPLAS PORTAS .............................................. .................... 51 2.1 Criação ................................................................ .......................................... 51 2.2 Caracteríticas ................................................................................................ 56 2.3 As portas de tratamento do conflito ............................................................... 59 2.3.1 Negociação ................................................................................................. 61 2.3.2 Conciliação................................................................................................... 65 2.3.3 Mediação .................................................................................................... 69 2.3.4 Arbitragem .................................................................................................. 76 2.3.5 Outras portas ............................................................................................. 80 2.3.5.1 Avaliação Preliminar Neutra ............................................................. ..... 80 2.3.5.2 Summary Jury Trial................................................................................... 82 2.3.5.3 Mini Trial.................................................................................................... 82 2.3.5.4 Court- annexed arbitration ...................................................................... 83 2.3.5.5 Med/Arb ou Arb/Med ............................................................................... 84 2.3.5.6 Ombudsman............................................................................................. 85 2.3.6 Adjudicação ............................................................................................ . 86 2.3.7 O Funcionamento do Fórum Múltiplas Portas ................................... ........ 89 3 A POLÍTICA PÚBLICA DO FÓRUM MÚLTIPLAS PORTAS .......................... 97 3.1 O contexto democrático e as políticas públicas ............................................. 97 11 3.2 A política pública nacional de tratamento dos conflitos: um modelo múltiplas portas? .............................................................................................. ................. 103 3.2.1 Os objetivos e as ações da Política Nacional de Tratamento Adequado dos conflito................................................................................................................. 106 3.2.2 Dos mecanismos e da rede de tratamento do conflito ............................................................................................. ............................... 109 3.2.3 Dos núcleos e dos centros de tratamento de conflito e cidadania previstos na politica nacional............................................................. ................................ 114 3.3 As experiências e programas as brasileiros de implementação da politica de tratamento do conflito nos moldes do Fórum Múltiplas Portas........................... 119 3.4 A política pública do Fórum Multiplas Portas como mecanismo de acesso à justiça e a pacificação social........................................................................... ... 129 CONCLUSÃO......................................................................................................135 REFERÊNCIAS............................................................................................... ... 141 12 INTRODUÇÃO Atualmente, pode-se dizer que não existe sociedade sem conflitos. A sociedade é movida por conflitos, em função de fatores que envolvem questões tecnológicas, políticas, econômicas e sociais. Para tanto, é de fundamental importância a análise do conflito e seus aspectos, como elemento de amadurecimento das relações sociais. Nesse contexto, explodem os conflitos sociais, principalmente pela busca da garantia dos direitos. Essa explosão perpassa também pelo sistema jurisdicional, que não consegue dar resposta aos litígios, resultado da morosidade da prestação jurisdicional, do acúmulo de ações, bem como da falta de servidores e magistrados. Por isso, analisa-se o exaurimento do sistema jurisdicional e a adoção de uma política pública no modelo americano múltiplas portas1. Diante do exaurimento do sistema jurisdicional que envolve diversos fatores, como a morosidade da prestação, burocratização, ineficiência, custas e aumento dos litígios, iniciam-se movimentos e programas de modo a transformar o paradigma vigente de litigiosidade para o da consensualidade, com o objetivo de tratar o conflito. Nesse contexto, surge o questionamento sobre se o sistema múltiplas portas pode ser aplicado à realidade brasileira como uma política pública de tratamento de conflitos. Desse modo, o estudo objetiva analisar a aplicação do fórum múltiplas portas como uma política pública de tratamento dos conflitos e averiguar como essa política se aplica à realidade brasileira diante do quadro de exaurimento do sistema jurisdicional, apontando as consequências positivas de transformação do paradigma de consenso. Portanto, além de identificar e apontar os pontos de exaurimento do sistema jurisdicional brasileiro após Constituição de 1988, que estabeleceu como princípio o acesso à justiça, estudar-se-á o surgimento da legitimidade estatal e o modelo adotado no tratamento de conflitos, bem como apresentar-se-á os movimentos de reformas que objetivam o tratamento do conflito, transformando o paradigma da litigiosidade para o da consensualidade. 1 Cabe mencionar que o modelo pode ser denominado tanto de “multiportas” quanto “múltiplas portas”, sendo este último adotado na presente dissertação. 13 Por isso, a adoção de uma políticapública de tratamento do conflito transforma o paradigma de litígio vigente, restaurando o diálogo e o entendimento dos envolvidos. Essa política, além de restabelecer o consenso e a comunicação, adota mecanismos de modo a tratar adequadamente o conflito. Nesse sentido, a aplicação de mecanismos como mediação, conciliação e arbitragem, dentre outros que seguem o modelo americano denominado múltiplas portas, torna-se uma política pública célere e eficaz de modo a enfrentar o exaurimento jurisdicional. E mais, pelas experiências e programas já implementados no Brasil, percebe-se que esses mecanismos são aplicados de modo eficiente no modelo de jurisdição brasileira, sendo que poderá realmente trazer uma nova concepção para a sociedade enfrentar os seus problemas e ter acesso à justiça. Para tanto, ante o quadro de exaurimento do sistema jurisdicional brasileiro, é que se justifica o presente estudo. Tornou-se frequente, na prestação jurisdicional, a burocracia, o formalismo, a morosidade, a ineficiência e a escassez de recursos, tanto de ordem financeira, quanto material ou humana. A explosão de litigiosidade demonstrou a necessidade de adoção de mecanismos de tratamento do conflito, de modo a transformar o paradigma do litígio em consenso, diálogo e participação. Nesse sentido, a construção de um sistema de tratamento de conflitos capaz de lidar com a complexidade pressupõe a adoção de políticas públicas que objetivam a cidadania, fraternidade e a pacificação social. Desse modo, a pesquisa consiste em averiguar e propor a possibilidade de implementar vários mecanismos de tratamento de conflitos, com suas especificidades, junto ao Poder Judiciário brasileiro, seguindo o modelo do Fórum Múltiplas Portas americano, com o intuito de otimizar a prestação jurisdicional, para torná-la mais adequada à realidade das partes e, assim, contribuindo para a construção de soluções e tratamento mais céleres e eficazes. Ainda, salienta-se que a pesquisa faz parte das atividades realizadas junto ao projeto intitulado ―Multidoor Courthouse System - avaliação e implementação do sistema de múltiplas portas (multiportas) como instrumento para uma prestação jurisdicional de qualidade, célere e eficaz‖. Tal projeto é uma parceria entre a Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e a Universidade de Santa Cruz do 14 Sul (UNISC); é financiado pela CAPES e pelo Conselho Nacional de Justiça e se conecta à linha de pesquisa - Políticas Públicas de Inclusão Social, do programa de mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul. Nesse contexto, é de fundamental relevância jurídica e social a avaliação e implementação de uma política pública de tratamento do conflito. Assim, ante os programas e projetos já existentes, justifica-se a adoção do modelo de múltiplas portas como uma política pública célere e eficaz de tratamento do conflito. Por isso, trata-se de um estudo desafiador e inédito não apenas para a comunidade acadêmica, mas também para os próprios operadores do direito, já que escassas são as bibliografias e as pesquisas no país sobre o assunto. No primeiro capítulo do trabalho, abordar-se-á o exaurimento da prestação jurisdicional e o acesso à justiça. Inicialmente, contextualizar-se-á a sociedade, seus conflitos e o sistema estatal, adentrando-se na questão do acesso à justiça, o exaurimento do sistema e os desafios atuais de acesso. Nesse sentido, ainda estudar-se-á a mudança do paradigma do litígio para uma justiça consensual. Desse modo, a explosão de litigiosidade decorrente dos avanços do mundo moderno, bem como das complexidades das relações sociais, exige novos mecanismo de tratamento de conflitos. Além do tratamento do conflito, procura-se a transformação do paradigma do ganhar versus perder para o da consensualidade. O consenso surge pela teoria habermasiana do agir comunicativo. O consenso significa o entendimento de um acordo de comunicação válido. Portanto, o agir comunicativo se dá através das práticas do consenso e, ainda, pelo tratamento dos conflitos de forma consensual, que nesse contexto promove a paz e a inclusão social. Após uma breve contextualização dos conflitos da sociedade, abordar-se-á a teoria do agir comunicativo apresentando, em seguida, os conceitos, as principais características da teoria de Habermas e pressupostos da prática de consenso do agir comunicativo. Dentro desse contexto, adotam-se políticas públicas de reforma, as quais promovem ações que possibilitem o tratamento dos conflitos. Assim, as políticas públicas são ações ou programas instituídas pelo Estado, de modo a enfrentar determinada situação problemática ou conflituosas que objetivam a garantia de direitos e a participação dos cidadãos. 15 Consequentemente, o Conselho Nacional de Justiça, órgão instituído com a finalidade específica de zelar e planejar, através de metas e programas, pelo serviço de prestação jurisdicional, cumulou a função de formular políticas públicas de acesso e prestação da justiça, de modo eficiente e efetivo, em benefício da sociedade. Nesse aspecto, a política do Fórum Múltiplas Portas, denominado em inglês de MultiDoor Courthouse System, é um sistema no qual se disponibiliza um mecanismo de tratamento e uma solução do conflito para processos trazidos até o Poder Judiciário. Preliminarmente, faz-se uma avaliação, por meio de pessoal especializado, a fim de se identificar às partes ou interessados qual o instrumento de tratamento ou resolução de demandas (ou ―porta‖) é mais adequado à causa proposta. Nasce, assim, como uma alternativa para enfrentar o problema de exaurimento do sistema e de modo a incentivar e adotar, ainda, mecanismos consensuais de tratamento do conflito. Desse modo, no segundo capítulo, de forma mais pontual, estudar-se-á o Fórum Múltiplas Portas, desde sua criação nos Estados Unidos, suas características e, por fim, seu funcionamento. Especificamente, são abordadas as portas de tratamento do conflito que são a negociação, a conciliação, a mediação e a arbitragem. De forma particular, apresenta-se nesse capítulo outras portas existentes no sistema americanos que são a avaliação neutra, o summary jury trial, a mini trial, a court-annexed arbitration, a med/arb e arb/med e a ombudsman. Por último, menciona-se a porta tradicional, conhecida por todos, a adjudicação. Assim, o presente estudo faz uma análise da importância dessa política para o sistema, traçando, através de revisões bibliográficas e de coleta de dados, o alcance desses mecanismos para a sociedade. No terceiro capítulo, abordar-se-á a adoção de uma política múltiplas portas no Brasil, com a análise da Política Pública Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos, nos moldes do modelo americano, apresentando os objetivos e ações, os mecanismos e a rede de tratamento proposto pela Resolução n.º 125. Ainda, especificamente, estudar-se-á os Núcleos e Centros de Tratamento de Conflito e Cidadania, as experiências e programas brasileiros implementados nos moldes da política múltiplas portas. 16 Portanto, a metodologia de que aqui se vale é a dedutiva2, através da qual, a partir da abordagem de tópicos considerados fundamentais para o desenvolvimento do tema, tais como o exaurimento do sistema jurisdicional e o acesso à justiça, passa-se a tratar do modelo americano ―múltiplas portas‖ e de sua possibilidade de adoção no Brasil, como uma política pública célere e eficaz no tratamento de conflitos. Também serão investigadas as semelhanças e as diferenças entre a jurisdição e a política pública do modelo americano ―múltiplas portas‖, bem como a evoluçãodeste último (o modelo) no decorrer do tempo, demarcando as deficiências que identificam a primeira (a jurisdição), em meio à complexidade conflitiva atual. O desenvolvimento do estudo dar-se-á pelo procedimento comparativo e pela técnica da pesquisa bibliográfica, baseada em documentação indireta. Por fim, a implementação da política pública de múltiplas portas de tratamento adequado dos conflitos, além de tornar efetivo o princípio constitucional de acesso à justiça (art. 5º, XXXV da Constituição Federal) contribui para a construção de um novo paradigma para o sistema, no caso àquele voltado ao consenso e à pacificação social. 2 Na lógica dedutiva parte-se de premissas para que se chegue ao resultado. Assim, se as premissas forem verdadeiras, o resultado deverá ser verdadeiro, e, neste caso, estará apenas enunciando o que já havia sido expressado nas premissas, mas ainda não explicitado. Dessa maneira, pela lógica dedutiva trazem-se explicitações às informações trazidas pelas premissas. (LAKATOS, E. M; MARCONI, M.A. Fundamentos de metodologia científica. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 92). 17 1 O EXAURIMENTO DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL E O ACESSO À JUSTIÇA A complexidade das relações sociais modernas e a consequente explosão de conflitos, juntamente com a globalização e a crise estatal tem desencadeado o exaurimento do sistema jurisdicional, de forma que o modelo tradicional de resolução de conflitos já não acompanha os anseios da população. Nesse sentido, após uma breve contextualização da sociedade, seus conflitos e o sistema estatal vigente, adentrar-se-á na discussão acerca da crise da efetivação da prestação jurisdicional e de seus desafios no alcance do acesso à justiça. Após o delineamento do problema, explorar-se-á a mudança de paradigma, visando à passagem do litígio para o da consensualidade. 1.1 A sociedade, seus conflitos e o sistema estatal Normalmente, o conflito nasce da disputa de interesses individuais ou coletivos dentro das complexas relações sociais, sendo que o modo habitual de resolvê-lo, após seu ajuizamento no Poder Judiciário, dá-se pela aplicação do Direito. No entanto, estudar, analisar e, por fim, conceituar o fenômeno do conflito e suas nuances é um desafio imprevisível e enigmático3. A sociedade é movida por conflitos, em função de fatores que envolvem questões tecnológicas, políticas, econômicas e sociais. O conflito nasce de uma disputa de interesses, ideias ou valores. Assim, para que haja um conflito, ―é preciso em primeiro lugar, que as forças confrontantes sejam dinâmicas, contendo em si próprias o sentido da ação, reagindo umas sobre as outras‖4. Para Dinamarco, o conflito significa um choque e pode ser entendido como ―a situação existente entre duas ou mais pessoas ou grupos, caracterizado pela 3 ―Il mondo dei conflito è sempre por molta parte imprevedibile ed enigmático. Non c´é scienza sociale, per quanto ricca di litteratura specialistica sull´argomento, che alla fine ci possa raccontare questo mondo hobbesiano, inestricabile, ricco di passione, interessi, comportamenti, motivazioni; lo si descrive in una scala di possibilità che coinvolgono la ritualitá, la concorrenza, l´invidia, l´inimicizia, sempre a metà tra la rottura irrevocabile e la solida conferma della socievolezza‖ Resta, Eligio. Giudicare, conciliare, mediare. In: Scarparro, Fulvio. Il coraggio di mediare. Contesti, teorie e pratiche di risoluzione alternative delle conttoversie. Milano: Ângelo Guerini, 2005ª, p. 21. 4 MORAIS, José Luiz Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à jurisdição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.45. 18 pretensão a um bem ou situação da vida e impossibilidade de obtê-lo‖5. Nesse sentido, o conflito pode ser concebido de forma mais ampla, pois as relações interpessoais são marcadas por insatisfações decorrentes de estados psíquicos da carência de um bem desejado. O conflito seria ―a situação objetiva caracterizada por uma aspiração e seu estado de não-satisfação, independente de haver ou não interesses contrapostos‖6. Salienta-se, pelos conceitos expostos, que o tema envolve aspectos não apenas jurídicos, mas também sociológicos, psicológicos e filosóficos. Desse modo, várias ciências vêm abordando o assunto, já que a interdisciplinariedade revela-se como um importante instrumento para a compreensão desse fenômeno. A tal respeito, Cruz coloca que ―a normatização jurídica da vida em sociedade constitui uma questão interdisciplinar, compreendendo dimensões filosóficas, históricas, sociológicas econômicas e políticas‖7. Sob a ótica dela uma análise interdisciplinar ―transcende em muito a ‗assepsia‘ do discurso jurídico tradicional fundado na simples análise legislativa e no estudo de conceitos abstratos‖8. Ainda sobre o mesmo tópico, Tartuce aduz que, ―numa perspectiva interdisciplinar, tem- se que o conflito é salutar para o crescimento e o desenvolvimento da personalidade, por gerar vivências e experiências valiosas para o indivíduo em seu ciclo de vida‖9. Nas lições de Resta10, a raiz de identidade do conflito torna-se um paradoxo no momento em que uma relação conflitiva une um grupo em torno de 5 DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, v.1, p.117. 6 DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 140. 7 ―A abordagem holista em Direito supõe a permissividade da cooperação de várias áreas do conhecimento para com ele, bem como de que o mesmo, positivado, constitui um todo, um sistema integrado, interconectado, tendo todas as suas partes ou leis relações entre si, e, restando como que um plus, um algo mais, correspondente ao lema gestaltista de que o todo é o maior do que a soma das partes, isto é, o Direito é mais do que lei, do que norma, é a busca da Justiça ou de harmonia social, refletindo em suas regras não só os fatos sociais, mas toda uma série de constelações de fundo político, cultural, etc., objetivando, ao seu modo, uma melhor convivência entre os homens‖. CRUZ, Valéria Alvares da. O direito e a nova visão da ciência. São Paulo: Fiuza Editores, 2000, p. 129. 8 CRUZ, Valéria Alvares da. O direito e a nova visão da ciência. São Paulo: Fiuza Editores, 2000, p. 129. 9 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2008, p.33. 10 ―Quello che il conflito mette in luce è il contrasto tra diverse contigenze dell´identità, più meno generalizzabili; il suo codice non è quelli vero-falso, ma riconoscibile- non riconoscibile‖ E estabelece ―La semantica del conflito e la sua condenzazione nelle decisione del giudice ci formano molto più di tante psicologie e sociologie: il suo linguagio duplica e amplifica il dilemma‖. 19 um mesmo objetivo, criando uma identidade social. Assim, o conflito é uma forma possibilitadora de elaborações evolutivas e retroativas no que se refere a instituições, estruturas e interações das relações. ―O conflito pode ser classificado como um processo dinâmico de interação humana e confronto de poder no qual um parte influencia e qualifica o movimento da outra‖11. Freund salienta a importância sociológica do conflito, uma vez que nenhuma sociedade é perfeitamente homogênea. Aliás, seria utópico falar em homogeneidade. È justamente a heterogeneidade das sociedadesque geram os desacordos, as discórdias, as controvérsias, as turbulências, além dos choques e enfretamentos. Para ele, toda a ordem social é uma desordem, ao menos latente, uma circunstância que pode ameaçar a coesão social. O jogo de dissensões se traduz segundo o desejo de uns de impor seus pontos de vista sobre os outros mediante a persuasão, o domínio, ou por outros meios 12 . Dessa maneira, o choque de aspirações e interesses divergentes desenvolve uma relação de forças. Simmel explica que a dinâmica conflitiva torna-se o meio de manter a vida social, de demarcar seu futuro, de facilitar a mobilidade e de valorizar determinadas configurações ou formas sociais em detrimento de outras. ―Essa dinâmica conflitiva permite verificar que o conflito pode ser tanto positivo quanto negativo e que a valoração de suas consequências se dará, justamente, pela legitimidade das causas que pretende defender‖13. Assim, a sociedade, para alcançar determinada configuração, necessita de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e de competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis. A sociedade, como conhecemos, é o resultado de categorias positivas e negativas de interação; nesse jaez, o conflito para Simmel promove a integração social. RESTA, Eligio. Le stelle e le masserizie. Paradigmi dell´osservatore. Roma/Bari: Laterza, 1997, p. 84. 11 SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 248. 12 FREUND, Julien. Il terzo, il nemico, il conflito. Materiali per una teoria del politico. A cura di Alessandro Campi. Milano: Giuffré, 1995a, p.101. 13 SIMMEL,Georg. Sociologia. Trad. de Carlos Alberto Pavanelli et. al. São Paulo: Ática, 1983, p.124. 20 Para Weber14, a teoria sobre o conflito está interligada com a relação intrínseca de poder. O poder pode ser legítimo ou ilegítimo e refere-se a uma autoridade. Nesse sentido, o detentor de poder/força, fundado em regras formais/racionais, monopoliza não só a força, mas principalmente a força legítima. A teoria weberiana define o Estado como uma instituição que reivindica o monopólio sobre o uso da força dentro de um território e por meio dessa força, pretende manter a coesão social. Por isso, o conflito apresenta vários aspectos, sendo que o principal é a mudança construtiva. Para Sales, o conflito deve ser visto como uma possibilidade de transformação e de aprimoramento das relações. ―É uma oportunidade de viver, questionar experiências profundas e assim crescer junto com essa avaliação e mudança‖15. Ressalta ela, ainda, que o conflito deve ser visto como um momento natural nas relações, buscando a compreensão não apenas expressa e individual, mas a profundidade da situação, avaliando, a relação entre esses conflitos individuais e os padrões de comportamento social. Assim, o conflito ―é o motor de transformação das relações e das estruturas sociais sensíveis às dinâmicas das relações humanas‖16. Consequentemente, no caso dos conflitos nascidos da sociedade, o Estado, enquanto detentor do monopólio da força legítima, utiliza-se do poder para decidir as situações conflituosas. Em outras palavras, pode-se dizer que o conflito é o enfrentamento, o litígio entre dois indivíduos ou grupos, por um determinado direito, podendo este ser, algumas vezes, garantido através da violência. O Estado toma para si a legitimidade de regular as suas relações, sendo que compete ao Poder Jurisdicional a resolução do conflito. ―A legitimidade 14 WEBER, Max. Economia e sociedade. Fundamentos da Sociologia compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UNB, 1999a. 15 SALES, Lilia Maia de Moraes. Transformação de Conflitos, Construção de Consenso e a Mediação – a complexidade dos conflitos. In: SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER, Theobaldo Spengler Neto (Org.). Mediação enquanto política pública [recurso eletrônico]: a teoria, a prática e o projeto de lei. 1.ed. - Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. Disponível em: < http://www.unisc.br/edunisc >. Acesso em 11 mar 2012. 16 SALES, Lilia Maia de Moraes. Transformação de Conflitos, Construção de Consenso e a Mediação – a complexidade dos conflitos. In: SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER, Theobaldo Spengler Neto (Org.). Mediação enquanto política pública [recurso eletrônico]: a teoria, a prática e o projeto de lei. 1.ed. - Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. Disponível em: < http://www.unisc.br/edunisc >. Acesso em 11 mar 2012. 21 estatal de decidir os conflitos nasce, assim, do contrato social no qual os homens outorgaram a um terceiro o direito de fazer a guerra em busca da paz‖17. Por conseguinte, o Poder Jurisdicional é exercido pelo Judiciário, que, representado por uma pessoa investida de poder, colhe as informações necessárias para análise e julgamento do conflito. Essa forma de resolução do conflito tornou-se o método tradicional, fazendo com que as pessoas buscassem essa prestação. Assim, os conflitos que permeiam a sociedade moderna são resultado de uma série de fatores que englobam o sistema. Este pode ser conceituado como ―toda a organização complexa que recolhe e transmite informação, gera atividades e controla resultados, dotado de certa autonomia, mas permanentemente articulado ao contexto‖ 18. A sociedade está organizada por elementos como Estado, governo, poder, economia e cidadãos. Dessa forma, o Estado é o resultado de um processo histórico de concentração de poder que ocorreu na Europa, entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna. Nas palavras de Rodrigues, ―o Estado moderno se constitui de um conjunto de instituições públicas que envolvem múltiplas relações com o complexo social num território delimitado‖19. Nesse contexto, o governo é uma instituição composta por indivíduos e órgãos que têm como função orientar os rumos da sociedade. O elemento poder é definido pela capacidade de influenciar e exigir da sociedade determinada ação ou conduta. É encontrado em várias esferas, mas é a principal característica de coerção do Estado. Assim, para que o Estado exija o cumprimento de determinadas regras, ele pode lançar mão do seu poder coercitivo. Nas palavras de Höfling, 17 MORAIS, José Luiz Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à jurisdição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p., 65; WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UNB, 1999ª, p.275. 18 SCHIMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS, Jorge Renato; LEAL, Rogério Gesta. (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2326. 19 RODRIGUES, Marta Maria Assumpção. Políticas Públicas. São Paulo: Publifolha, 2010.p.17. 22 torna-se importante aqui ressaltar a diferenciação entre Estado e governo.[...], é possível se considerar Estado como o conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos,técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período 20 . Por isso, o governo tem o poder político de tomar decisão de acordo com a preferência e com os interesses de diversos atores. Quando os indivíduos são eleitos para tomarem as decisões, tem-se um governo democrático. Normalmente, as tarefas e ações do Estado são executadas pela Administração Pública. Dessa maneira, o Estado não é somente uma organização burocrática, mas é também o próprio reordenamento jurídico da sociedade com o reconhecimento dos direitos do cidadão. Para Rodrigues21, em primeiro lugar, a organização burocrática estatal nasce da administração pública, que é composta do conjunto das atividades ou ações, definidas por lei ou pelos atos do governo, visando à execução de interesse público. O reordenamento da sociedade se dá pelo Estado de Direito, que é ―um sistema jurídico que garante as liberdades fundamentais, com a aplicação da lei por intermédio de juízes independentes‖ e, por fim, um sistema de proteção social que ―garante renda mínima, saúde, educação, habitação, saneamento e segurança como direito de todo cidadão‖, nascendo, assim o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State)22. Portanto, o Estado do Bem–Estar Social é um sistema de proteção social que emergiu nos países de capitalismo desenvolvido, no período do pós-Segunda Guerra Mundial. Contudo, contrariando essa ideia de Estado de Bem-Estar Social e implementando a bandeira neoliberal que percorria as sociedades modernas, o postulado de Estado Mínimo nasceu com o objetivo claro de que o mercado coordenasse a economia. O intuito era afastar a intervenção estatal do mercado, buscando a auto-regulação e oportunizando a livre atividade econômica de 20 HÖFLING, Eloisa Matos. Estado e Política (Públicas) Sociais. 2001: Disponível em:< http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0101-32622001000300003&script=sci_arttext>. Acesso em: 15 jun 2011. 21 RODRIGUES, Marta Maria Assumpção. Políticas Públicas. São Paulo: Publifolha, 2010.p.18. 22 RODRIGUES, Marta Maria Assumpção. Políticas Públicas. São Paulo: Publifolha, 2010.p.18. 23 acordo com os interesses privados e da economia globalizada. Sobre o Estado Mínimo, Kliksberg explica que, [...] suas funções deveriam ser totalmente mínimas e que se deveria deixar o desenvolvimento entregue ao mercado e à ―mão invisível‖. O Estado foi sentido como um estorvo para a dinâmica a ser impulsionada. Enfatizou-se a existência de uma autonomia entre Estado e mercado. Finalizou-se um ativo processo ―demolição‖ do Estado nos países em desenvolvimento.[...] tratou-se, em muitas ocasiões, de privatizar e eliminar funções, no mais curto prazo 23 . Sob esse enfoque, pode-se dizer que, partirculamente, Estado brasileiro é centralizador, preocupando-se, por tradição, muito mais com seus objetivos econômicos do que propriamente com a proteção social ou com o bem–estar do povo. Dessa forma, o Estado adquiriu uma postura de Estado-fazedor e não- regulador, ou seja, protegia determinados direitos ao invés de dialogar sobre um espaço político com a sociedade civil. Para Bacelar, o Estado centralizador ―junta- se ao autoritário: tivemos uma longa ditadura no período Vargas e, depois, uma longa ditadura nos governos militares pós-64. Então, o viés autoritário é muito forte nas políticas públicas do país‖24. Observa-se que o Estado brasileiro era desenvolvimentista. Seu objetivo principal visava à industrialização e ao crescimento econômico, de modo que o Estado do Bem-Estar Social acabava ficando de lado. Nas palavras de Bacelar, desde o começo do século, optou-se pela industrialização. A grande tarefa era consolidar esse processo e fazer do Brasil uma grande potência. Assim, o grande objetivo era de ordem econômica: construir uma potência intermediária no cenário mundial. O Estado desempenhava a função de promover a acumulação privada na esfera produtiva. O essencial das políticas públicas estava voltado para promover o crescimento econômico, acelerando o processo de industrialização, o que era pretendido pelo Estado brasileiro, sem a transformação das relações de propriedade na sociedade brasileira 25 . Verifica-se, assim, pelo histórico brasileiro, que há um distanciamento entre Estado e a sociedade, já que os ideais do neoliberalismo preconizam o Estado 23 KLIKSBERG, Bernardo. Repensando o estado para o desenvolvimento social. São Paulo: Cortez, 1998, p. 38. 24 BACELAR, Tânia. As Políticas Públicas no Brasil: heranças, tendências e desafios. Disponível em:<http://www4.fct.unesp.br/grupos/gedra/textos/Texto1_politicas_publicas_no_br_TaniaBacelar. pdf.> Acesso em: 16 jun 2011. 25 BACELAR, Tânia. As Políticas Públicas no Brasil: heranças, tendências e desafios. Disponível em:<http://www4.fct.unesp.br/grupos/gedra/textos/Texto1_politicas_publicas_no_br_TaniaBacelar. pdf.> Acesso em: 16 jun 2011. 24 Mínimo e defendem o individualismo, evitando-se a interação social. Portanto, ainda persiste uma imagem negativa e minimalista do Estado. Na visão de Farah, o descrédito com relação ao Estado e à Administração Pública diz respeito à ação estatal como um todo, às diversas políticas públicas, e aos políticos, de um modo geral. A ocorrência de práticas de cunho clientelista e marcadas pela corrupção, após a democratização dos anos 80, e a maior visibilidade desses fenômenos, decorrente da própria democratização, articularam-se à onda minimalista de corte neoliberal, que propõe a redução radical do Estado, contaminando a visão que os cidadãos têm da ação governamental e da Administração Pública em todas as esferas de governo 26 . Dessa forma, contribuindo para tal situação, a economia, como uma instância autônoma e dependente, está intimamente ligada ao mercado, o qual, normalmente, tem ditado as suas regras. A expansão do mercado e a quebra de barreiras existentes entre as nações fez com que o processo de globalização estabelecesse uma nova ordem mundial, fazendo, assim, com que o Estado perdesse parte de suas atribuições. Consequentemente, em função do processo acima observado, o Estado entrou em crise. A crise está afetando a maioria das sociedades do mundo, desde que se instaurou a globalização e que se preconizou a ideia de diminuição da intervenção do Estado em oferecer os direitos sociais à população. Também denominada de crise estatal, ―o processo nasceu de um deliberado enfraquecimento do Estado se transferindo para todas as suas instituições‖27. Nesse viés, observa-se que ―a gradativa perda de soberania do Estado, tem alargado sua incapacidade de dar respostas céleres aos litígios atuais. É evidente a fragilidade nas esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, perdendo ainda a total exclusividade de dizer e aplicar o direito‖28. Por conseguinte, a fim de evitar um colapso mundial, organizações da sociedade civil começaram a tomar iniciativas com o objetivo de burlar o quadro de crise e garantir, assim, os direitos civis e coletivos de todos os cidadãos. Na busca desse espaço de diálogo, a sociedade civil ressurge como a esfera de 26 FARAH, Marta F. S. Parcerias, novos arranjos institucionais e políticas públicas no Brasil. Revista da Administração Pública, V. 35, nº 1, p. 119-145, jan-fev 2001. 27 SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação:por uma outra cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 102. 28 SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 103. 25 interação, de maneira a garantir a autonomia da economia e do Estado. A construção dessa esfera torna-se, então, essencial enquanto participação política e social dos cidadãos. Nesse sentido, o combate da democracia liberal dá-se pela instituição de uma democracia participativa com espaços estruturais de integração social. Por isso, no processo, o próprio espaço político liberal, o espaço da cidadania sofre uma transformação profunda. A diferenciação das lutas democráticas pressupõem a imaginação social de novos exercícios de democracia e de novos critérios democráticos para avaliar as diferentes formas de participação política. E as transformações prolongam-se no conceito de cidadania, no sentido de eliminar os novos mecanismos de exclusão da cidadania, de combinar formas individuais com formas coletivas de cidadania e, finalmente, no sentido de ampliar esse conceito para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres 29 . Portanto, os gigantescos problemas da civilização demandam mobilização no sentido de humanizar a burocracia e a técnica, defendendo e desenvolvendo as convivialidades e solidariedades30. Assim, a sociedade contemporânea, colhendo os resultados negativos do modelo de progresso capitalista, necessita reaprender a viver e conjugar as formas individuais e coletivas de cidadania, de modo a melhor cuidar de seus conflitos. E, o papel do Estado é promover políticas que priorizem a convivência dos cidadãos, de modo a multiplicar os espaços públicos de cooperação e participação com o objetivo de enfrentar os problemas que envolvem as relações sociais, como será abordado a seguir. 1.2 O Acesso à justiça, o exaurimento da prestação jurisdicional e seus desafios 1.2.1 O acesso à justiça Na forma tradicional de resolução do conflito, as pessoas acessam o sistema jurisdicional, de modo a buscar ―justiça‖ para seus problemas. Nas 29 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o politico na pós-modernidade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997, p. 276. 30 MORIN, Edgar. Terra Pátria. Traduzido por Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 1995, p.32. 26 palavras de Cappelletti e Garth, ―o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos‖31. Consequentemente, o aumento dos conflitos é resultado do crescimento da população mundial. O acesso ao Judiciário torna-se, assim, um direito para o cidadão, o que acaba acarretando um crescente número de demandas. A explosão de litigiosidade, em virtude das inovações, fez com que as pessoas encontrassem nessa a estrutura a única forma válida de solução do conflito. Nessa esteira, o mecanismo predominante utilizado pelo nosso sistema jurisdicional é o da solução adjudicada dos conflitos, que se dá por meio de sentença do juiz. Assim, a adoção desse critério vem gerando o que é denominado de ―cultura da sentença‖, que traz como consequência ―o aumento cada vez maior da quantidade de recursos, o que explica o congestionamento não somente das instâncias ordinárias, como também dos Tribunais superiores, e até mesmo da Suprema Corte‖32. Dessa maneira, o princípio do acesso à justiça, proclamado no inciso XXXV, do art. 5º da Constituição Federal, não assegura somente o acesso formal aos órgãos do Judiciário, mas garante também ao cidadão o acesso qualificado à ordem jurídica justa. Nas palavras de Azevedo, ―o acesso à Justiça está intrinsecamente ligado à contínua redução das insatisfações com o sistema público de resolução de conflitos‖33. Para Watanabe, o inciso XXXV, do art. 5º da Constituição Federal, ―dever ser interpretado não apenas como garantia de mero acesso aos órgãos do Poder Judiciário, mas como garantia de acesso à ordem jurídica justa, de forma efetiva, tempestiva e adequada‖34. 31 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 12. 32 WATANABE, KAZUO. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses. In: RICHA, Morgana de Almeida; PELUSO, Antonio Cezar. (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 04. 33 AZEVEDO, André Gomma. Desafios de Acesso à Justiça ante o Fortalecimento da Autocomposição como Política Pública Nacional. In: RICHA, Morgana de Almeida; PELUSO, Antonio Cezar. (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 11. 34 WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses. In: RICHA, Morgana de Almeida; PELUSO, Antonio Cezar. (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da política judiciária nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 05. 27 Desse modo, todos os cidadãos que tenham qualquer problema jurídico merecem atenção por parte do Poder Público, em especial do Poder Judiciário e a este não cabe somente organizar os serviços que são prestados por meio de processos judiciais, mas também de socorrer os cidadãos ―de solução por vezes de simples problemas jurídicos, como a obtenção de documentos essenciais para o exercício da cidadania, e até mesmo de simples palavras de orientação jurídica‖35. Por isso, ―no processo democrático, o acesso à justiça desempenha um relevante papel ao habilitar o cidadão a tutelar seus interesses e possibilitar a composição pacífica dos conflitos‖36. Para tanto, atenta-se para a distinção entre justiça e jurisdição; a primeira ―é um ideal de equidade e de razão, é um sentimento, uma virtude, um valor‖. E, a segunda, ―é uma das funções da soberania do Estado, consistente no poder de atuar o direito objetivo, compondo os conflitos de interesses, resguardando a ordem social‖37. Nesse contexto, entender o acesso à justiça como sinônimo de acesso à jurisdição é uma questão que deve ser salientada. Como pondera Dinamarco, o acesso à justiça é o acesso à ordem jurídica justa, ou seja, ―abarca uma série de possibilidades de verificação e realização da justiça, o que se coaduna com a nossa realidade multifacetada na configuração de um sistema jurídico pluriprocessual‖38. Portanto, embora o acesso efetivo à justiça seja reconhecido como um direito fundamental, o que deve ser igualmente destacado, como preconiza Cappelletti e Garth39, é o conceito de efetividade, isto é, o de proporcionar o acesso igualitário a todos e produzir resultados individuais e socialmente justos. O que se objetiva não é somente ―conceber a realização da justiça como valor superior em relação à forma para sua obtenção‖, mas sua grande importância 35 WATANABE, Kazuo. Politica Publica do Poder Judiciário Nacional para Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses. In: RICHA, Morgana de Almeida; PELUSO, Antonio Cezar. (Coord.). Conciliação e mediação: estruturação da politica judiciária nacional. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 04. 36 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2008, p.97. 37 BARBOSA,Aguida Arruda. Mediação Familiar: uma nova mentalidade em direito de família. Revista de Doutrina e Jurisprudência. Brasília: JTDF, n.28, set./dez.1998, p.52. 38 DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, v.1, p.114. 39 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 15. 28 está ―na composição dos conflitos dando a cada um o que é seu, realizando os direitos violados ou ameaçados com o mínimo de convulsão social‖40. Por isso, é relevante ―os juristas passarem a reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais, bem como que as cortes não constituem a única forma de solução de conflitos a serem consideradas‖41. Cabe salientar que o Estado deve administrar e zelar pelos conflitos nascidos da sociedade, enquanto detentor do monopólio da força legítima. A atuação desse monopólio se dá pela jurisdição, definida por Dinamarco como o amparo que, por obra dos juízes, o Estado ministra a quem tem razão em um litigio deduzido em processo. Ela consiste na melhoria da situação de uma pessoa, pessoas, ou grupo de pessoas, em relação ao bem pretendido ou à situação imaterial desejada ou indesejada. Receber tutela jurisdicional significa obter situações felizes e favoráveis, propiciadas pelo Estado mediante o exercício da jurisdição 42 . Para tanto, reitera Assis que a jurisdição surge através do processo ―como única modalidade institucional eficiente, competindo ao Estado, na condição de representante da sociedade política, instituir órgãos para a resolução das lides‖43. Assim, o exercício do poder estatal consiste precisamente na ―capacidade de decidir imperativamente e impor decisões‖44. Dessa forma, após essa breve contextualização do acesso à justiça, adentrar-se-á no exaurimento do sistema jurisdicional. 1.2.2 O exaurimento do sistema jurisdicional A partir do momento que houve a organização política dos povos, o Estado, buscando eliminar a vingança privada, ―reservou-se o poder (não compartilhado 40 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 12. 41 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 12. 42 DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, v.1, p.106. 43 ASSIS, Araken de. O direito comparado e a eficiência do sistema judiciário. Revista do Advogado. São Paulo, n.43, p. 9-25, jun.1994, p. 10. 44 DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, v.1, p.36. 29 com outrem) e o dever (não sujeito à escusa) de tutelar os direitos com o intuito, por tal controle exclusivo, de obter a harmonia e a paz social‖45. Nessa esteira, explica Citra46 que a conceituação de jurisdição tem destaque em três aspectos: poder, função e atividade. A jurisdição é poder enquanto capacidade estatal de decidir imperativamente impondo decisões. Nas suas funções, ela expressa o dever de promover a pacificação dos conflitos, realizando no processo o direito justo e, como atividade, constitui o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função atribuída pela lei. No entanto, frente a esse contexto, duas questões vem à tona quanto ao monopólio estatal sobre a jurisdição: o Poder Judiciário vem cumprindo, adequadamente, o seu papel de pacificador social? O modelo clássico de prestação da tutela jurisdicional atende aos anseios da população? Obviamente que a resposta às duas questões acima é negativa. Conclui-se que a insatisfação com o Poder Judiciário é tão antiga quanto o Direito. A ausência efetiva de pacificação conduz ao inconformismo, gerando, assim, uma explosão de litigiosidade, o que, por consequência, resulta no que é denominado por muitos de crise do sistema jurisdicional (exaurimento do sistema jurisdicional). Defende-se, no presente trabalho, o termo exaurimento no sentido de ―esgotar completamente; fazer secar; ensecar; ressecar; gastar ou dissipar inteiramente; empobrecer; cansar-se; exaurir as forças e/ ou os recursos‖47. Convém salientar que o exaurimento do sistema jurisdicional deve ser estudado no sentido amplo, sendo que, atualmente, esse conceito também é denominado por muitos de crise do Estado. O problema não é exclusivo do Judiciário, mas também do Legislativo e do Executivo. Nesse sentido, explica Spengler que ―todas as considerações sobre a jurisdição e suas crises (criadas e 45 SIDOU, J.M. Othon. A controvertida jurisdição voluntária. In; CALMON, Eliana; BULOS, Uadi Lammêgo (Coord.). Direito Processual: inovações e perspectivas; estudos em homenagem ao Ministro Sálvio de Figueredo Teixeira. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 305. 46 CITRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido R. Teoria geral do Processo. 20.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 131. 47 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Froteira Editora. 1986. 30 fomentadas a partir da globalização cultural, política e econômica) são consequências da crise estatal‖48. Por conseguinte, o exaurimento é próprio do processo de enfraquecimento do Estado que, inevitavelmente, afeta também suas instituições. O Direito que se aplica é escrito pelo Legislativo, o qual sofre grande pressão do Executivo. Os interesses são muito mais políticos do que sociais, sendo que o descrédito e a fragilidade das esferas Legislativa, Executiva e Judiciária completam a perda de força do Estado. Nessa esteira, um dos pontos de exaurimento refere-se ao desconhecimento por parte da população do Direito. Por isso, antes de dizer o Direito, incumbe ao juiz fazer conhecer o Direito. Pois na medida em que o conhecimento daquilo que está disponível constitui pré-requisito da solução do problema, da necessidade jurídica não atendida, é preciso fazer muito mais para aumentar o grau de conhecimento do público a respeito dos meios disponíveis e de como utilizá-los 49 . Nesse sentido, Santos50 ressalta que estudos sociológicos revelam que quanto mais baixo o Estado Social em que se situam os cidadãos, maior a sua distância em relação à administração da justiça em razão de fatores econômicos, sociais e culturais. Para ele, a falta de informação dos cidadãos sobre seus direitos e como exercê-los resulta em inseguranças e desconfianças em buscá-los para a maior parte da população. Ele aponta também que ―as classes de nível mais elevado tendem a resolver seus conflitos de forma extrajudicial para que seus interesses econômicos sejam solucionados com certa privacidade‖51. Constata-se, aí, a negação de acesso à justiça para camadas mais baixas da população. Para tanto, 48 SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 102. 49 NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero3/artigo08.htm>. Acesso em: 20 set 2011. 50 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da justiça. Revista de Processo. São Paulo, ano X, n. 37, p. 121-139, jan.-mar.1985, p. 127. 51 SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à sociologia da administração da justiça. Revista do Processo. São Paulo: Ano X, n 37, p. 121-139, jan. mar. 1985, p.127. 31a barreira da pobreza impede a submissão de todos os conflitos à apreciação de um juiz imparcial. Mas é verdadeiramente trágica se considerada a dimensão do acesso do pobre aos direitos. Os despossuídos são privados até dos direitos fundamentais de primeira geração, para eles meras declarações retóricas, sem repercussão em sua vida prática 52 . Assim, muito mais que enfrentar a pobreza, deve-se, igualmente, erradicar a miséria, já que o objetivo de uma Constituição dita Cidadã é construir uma sociedade livre, justa e solidária. No entanto, os altos índices de litígios no Judiciário brasileiro apontam que poucas são as pessoas ou instituições que utilizam intensamente o sistema, já que a maior parte da população não tem sequer conhecimento de que podem acessar a justiça (acesso ao meio formal). A título de exemplo, segundo o relatório da ―Justiça em Números‖ do Conselho Nacional de Justiça, os dez maiores litigantes do país são: 1º- Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) com 22,33% de demandas, 2º - Caixa Econômica Federal com 8,50%, Fazenda Nacional com 7,45%, União com 6,97%, Banco do Brasil S/A com 4,24%, Estado do Rio Grande do Sul com 4,24%, Banco Bradesco S/A com 3,84%, Banco Itaú S/A com 3,43%, Brasil Telecom Celular S/A com 3,28% e Banco Finasa S/A com 2.19 % de demandas53. Por isso, existe um foco central de discussão, há um excesso de demandas judiciais que não decorre da democratização do acesso à Justiça, mas de sua utilização exagerada por poucos atores, dentre os quais o Poder Público, as empresas concessionárias prestadoras de serviços e as instituições financeiras [...] A presença recorrente desses como réus ou autores na Justiça acarreta a multiplicação de feitos de igual teor, de conteúdo idêntico e repetido 54 . 52 NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Disponível em:< http://www.cjf.gov.br/revista/numero3/artigo08.htm>. Acesso em: 20 set 2011. 53 O Relatório Justiça em Números 2010, integrante do Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário (SIESPJ), é apresentado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça. Esse importante sistema engloba a coleta e o tratamento de dados que possibilitam abrir, em bases consistentes, a discussão para o entendimento de indicadores orçamentários, administrativos e de litigiosidade da Justiça brasileira. Disponível em:<http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/sum_exec_por_jn2010.pdf>. Acesso em 15 mar 2012. 54 BOTINI apud CAMPOS, André Gambier. Sistema de justiça no Brasil: problemas de equidade e efetividade. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/tds/td_1328.pdf>. Acesso em: 20 fev 2012, p. 12. 32 Nas palavras de Sadek, conclui-se ―que a excessiva facilidade de acesso a certo tipo de litigante e o estímulo à litigiosidade podem tornar a justiça não só seletiva, mas principalmente ―inchada‖, estando repleta de demandas que pouco tem a ver com a garantia de direito‖55. Consequentemente, ultrapassado o obstáculo inicial relativo ao acesso à justiça, outros três pontos (males endêmicos) podem ser destacados: a incerteza do direito, a lentidão/morosidade do processo e os altos custos. A incerteza do direito configura-se tanto nos aspectos qualitativos, pois não se sabe qual será a interpretação aplicada ao caso concreto, quanto nos aspectos temporais, já que não se pode prever exatamente quando a satisfação do direito ocorrerá56. Essa incerteza do direito resulta, ainda, na questão referente à exposição fática e na falta de contato entre o juiz e as partes. Isso significa que a exposição fática nem sempre deduz expressamente a extensão do conflito, sendo que o terceiro que lida com interesses diferentes de cada parte nem sempre consegue averiguar a verdade. Ou seja, ―a situação do magistrado, assim, fica limitada a um panorama deliberadamente recortado pelas partes, o que pode gerar intensas dificuldades para a reconstituição histórica dos elementos relevantes e a dedução do que é realmente justo‖57. Percebe-se, então, que o ―processo escrito e o excesso de trabalho conduziram a um progressivo distanciamento entre o juiz e as partes e à criação de resistência e dificuldade ao contato pessoal das partes e do julgador‖58. Nesse sentido, 55 SADEK, Maria Teresa. Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 41. 56 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2008, p.172. 57 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2008, p.109. 58 GRECO, Leonardo. O acesso ao direito e à justiça. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 20 fev 2012. 33 a ideologia corporativa responsável pela formação e orientação da magistratura, bem como o próprio modelo doutrinário adotado na concepção do sistema processual brasileiro reforçam a compreensão do papel do juiz como um agente neutro, passivo e eqüidistante das partes. Se de um lado a postura inercial pode oferecer garantia relativa de equilíbrio processual, de outro gera distorções no curso dos processos capazes de desvirtuar completamente o objetivo pretendido para um sistema como o Judiciário. Em raras situações existem processos judiciais em que há real igualdade de recursos entre os litigantes. A rotina forense revela, de fato, um universo de desequilíbrios que espelham um verdadeiro microcosmos das mazelas e desigualdades contidas na sociedade brasileira 59 . Esse distanciamento entre partes e magistrado e a utilização instrumental técnico de representação através de um advogado geram, ainda, insatisfações reprimidas que redundam em novas lides. Como explica Sales, a decisão judicial fundamenta-se, exclusivamente, no processo, resultando, muitas vezes, na falsa máxima de que ―o que não está nos autos, não está no mundo‖60. Dessa forma, ―em muitos casos os reais problemas, os aspectos relevantes da questão não são estudados. A decisão judicial, portanto, resta insatisfatória, dificultando o seu cumprimento e ainda produzindo mais impasses‖61. Outro aspecto de exaurimento a ser levantado é a questão da lentidão/ morosidade da prestação jurisdicional, privilégio que não é somente do Brasil. A despeito da demora, ―o processo brasileiro não precisa humilhar-se no mundo. De qualquer forma, ninguém deixa de reconhecer que a demora da Justiça é também uma forma de injustiça‖62. Para Feitosa, a demora na prestação jurisdicional acarreta custos que se aproximam ou, até mesmo, superam o valor objeto do litígio. Por isso, o tempo excessivo entre o início e o término do processo leva a maioria das partes a desistirem da causa ou a realizarem acordos, em grande parte, desvantajosos. ―O conhecimento sobre a morosidade judicial repercute nas escolhas das partes, interfere na sua disponibilidade em ingressar em juízo e 59 FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira. Virtualização do Processo, Acesso à Justiça e Miséria: limites do modelo de justiça informal. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/anais/36/07_1361.pdf>. Acesso em 20 mai 2012, p. 1799. 60 SALES, Lilia Maia de Morais. Justiça e Mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 65. 61 SALES, Lilia Maia de Morais. Justiça e Mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 65. 62 NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Disponível em:< http://www.cjf.gov.br/revista/numero3/artigo08.htm>.Acesso em: 20 set 2011. 34 acaba por oferecer uma vantagem adicional àquele que pode suportar os custos da demora por mais tempo‖63. Evidentemente, o aumento crescente do ajuizamento das ações gera um acúmulo enorme nos cartórios, ocasionando igualmente um crescimento na quantidade de trabalho, sem aumentar o número de pessoas para dar suporte ao aparato judiciário. Nessa situação, verifica-se, ainda, a sobrecarga do trabalho dos magistrados e, assim, não conseguem agilizar e fundamentar suas decisões. Para Santos, ―na maior parte do século XX, nos países latinos americanos, o Judiciário não figurou como tema importante em matéria de reforma, cabendo ao juiz a figura inanimada de aplicador da letra da lei emprestada do modelo europeu‖64. O quadro piora quando as ações coletivas não conseguem mais dar respostas à população em geral e há a reiterada prática de interposição de recursos de decisões já pacificadas no sentido protelatório de ganhar tempo. Nas palavras de Theodoro Junior, deve-se reconhecer, infelizmente, que o Poder Judiciário é visto por muitos como o mais burocratizado e mais ineficiente dos poderes estatais além de ser considerado o mais ritualista e mais refratário à modernização. Tais circunstâncias por certo o atrapalham a superar a morosidade de sua atuação, especialmente em face do esclerosamento de suas rotinas operacionais 65 . Ainda, contribuindo para a situação, há o acúmulo de instâncias, a falta de preparo dos operadores, bem como dos servidores e magistrados frente aos mecanismos de agilidade dos procedimentos judiciais. A título de ilustração, conforme relatório do Projeto ―Justiça em Números‖66 do Conselho Nacional de Justiça, relativamente ao ano de 2010 ingressaram 24,2 milhões de processos nas três esferas da Justiça (17,7 milhões na Justiça Estadual, 3,2 milhões na Justiça Federal e 3,3 milhões na Justiça trabalhista), sendo que havia no mesmo período 59,2 milhões de processos pendentes. Tramitaram, nos três ramos da 63 FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira. Virtualização do Processo, Acesso à Justiça e Miséria: limites do modelo de justiça informal. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/anais/36/07_1361.pdf> Acesso em 20 mai 2012, p. 1799. 64 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008, p.11. 65 THEODORO JUNIOR, Humberto. Celeridade e efetividade da prestação jurisdicional. Insuficiência da reforma das leis processuais. Revista Síntese de Direito Civil e Processo Civil, Porto Alegre, n.36, p. 19-37, 2005, p.30. 66 O Relatório Justiça em Números 2010, integrante do Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário (SIESPJ). Disponível em:<http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas- judiciarias/Publicacoes/sum_exec_por_jn2010.pdf>. Acesso em 15 mar 2012. 35 Justiça pesquisados, cerca de 83,4 milhões de processos em 2010, quantitativo que equivale à soma dos casos novos e dos processos pendentes, além da taxa de congestionamento no elevado percentual de 70% para um quadro de 16.804 magistrados e 321.963 servidores. Outro aspecto de exaurimento refere aos custos associado à movimentação da máquina judiciário. Nesse sentido, explica Feitosa, a oferta de assistência judiciária gratuita, na forma de advogados pagos pelo Estado ou por Defensorias, a flexibilização das regras de sucumbência ou mesmo a criação de organismos judiciais especializados e gratuitos contempla algumas das dimensões das barreiras impostas aos mais pobres 67 . Resumidamente, o escasso orçamento dedicado ao Judiciário acarreta a sua má-reputação e a sua falta de descredibilidade perante a sociedade, aumentando os problemas de exaurimento instaurado no sistema de justiça brasileiro. Para Spengler e Morais, desenham-se os seguintes tipos de crise jurisdicional: a objetiva ou pragmática, que é aquela referente a questões de linguagem técnico-formal utilizada nos trabalhos forenses e que acumulam burocracia e lentidão ao procedimento; a crise subjetiva ou tecnológica, que refere-se à (re)formulação das mentalidades, em especial por buscar apenas soluções para conflitos transindividuais; e a última, considerada paradigmática, que é aquela que se refere aos métodos e conteúdos utilizados para a busca de um tratamento pacífico para os conflitos, ou seja, ―a adequação do modelo jurisdicional para atender às necessidades sociais do final do século e do milênio‖68. Para Dinamarco, as fontes dos problemas se originam 67 FEITOSA, Gustavo Raposo Pereira. Virtualização do Processo, Acesso à Justiça e Miséria: limites do modelo de justiça informal. Disponível em: < http://www.conpedi.org.br/anais/36/07_1361.pdf>. Acesso em 20 mai 2012, p. 1799. 68 MORAIS, José Luiz Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativa à jurisdição. 2.ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p.79. 36 da Lei vêm defeitos como a extrema burocracia dos serviços judiciários e pequena abrangência dos julgamentos, com causas que se repetem às centenas e congestionam os juízos e tribunais [...] Da realidade econômica vem insuficiência de recurso das pessoas carentes para custear o litígio sem prejuízo da subsistência, associada à precariedade dos serviços de assistência Judiciária. Da realidade cultural da nação vem a desinformação e, o que é pior, a descrença nos serviços judiciários. Da estrutura política do Estado vem dificuldades como a que se apóia no mito da discricionariedade administrativa e exagerada impermeabilidade dos atos administrativos à censura judiciária 69 . Assim, o exaurimento é resultado, também, da própria concepção de jurisdição. Normalmente, entende-se que a jurisdição é exercida por aquela autoridade estatal (Juiz) encarregada de resolver o conflito dos cidadãos, sendo que, nesse sistema, para se alcançar a ―justiça‖, necessariamente haverá um perdedor (além do ganhador, é obvio), ou seja, há uma cultura que ―privilegiou o paradigma ganhar-perder, que funciona com uma lógica determinista binária, na qual a disjunção e a simplificação limitam as opções possíveis‖.70 Ressalta-se, ainda, que o conflito deve ser analisado como uma forma de mudança, isto é, ―os conflitos entre pessoas, sistemas ou subsistemas de sistemas complexos podem ser percebidos como um aspecto indesejável ou como uma oportunidade de mudança‖71. Desse modo, visto alguns dos principais aspectos que tem levado o modelo tradicional de prestação jurisdicional ao exaurimento, impõem-se verificar as possibilidades de mudanças, propostas a seguir. 1.2.3 Os atuais desafios de acesso à Justiça A noção de acesso à justiça sofre com os problemas em nível estrutural, conceitual e cultural. Capelletti72 salienta essa temática quando trata das três ondas de desafios para enfrentar o exaurimento da prestação jurisdicional. 69 DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2002. v.1, p.113. 70 SCHNITMAN, Dora Fried; LITTLEJOHN, Stephen. Novos paradigmas em mediação. Trad. Marcos A.G. Domingues e Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999, p.17. 71 SCHNITMAN, Dora Fried; LITTLEJOHN, Stephen. Novos paradigmas em mediação. Trad. Marcos A.G. Domingues e Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999, p. 17 72 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 12.
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