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Drogas, contextos e dispositivos de enfrentamento: apresentação Luciana Leila Fontes Vieira Luís Felipe Rios Tacinara Nogueira de Queiroz Temos o prazer de apresentar a coletânea “A problemáti- ca das drogas: contextos e dispositivos de enfrentamento”, séti- mo livro da série “Gênero, sexualidade e direitos humanos”, or- ganizada pelo Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana (LabEshu), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A compilação de artigos, aqui reunidos, é mais um re- sultado do Programa Diálogos para o Desenvolvimento Social de Suape (Diálogos Suape), contando com apoio de recursos da PetroquímicaSuape para a publicação. Este trabalho, rea- lizado entre maio de 2012 e janeiro de 2015, constituiu-se em uma grande ação de pesquisa e intervenção de cunho inter- disciplinar, que teve como objetivos compreender e minimizar os impactos sociais oriundos da migração expressiva de traba- lhadores para a microrregião de Suape, Região Metropolitana do Recife (RMR). Esse afluxo de pessoas foi provocado pela oferta de postos de trabalho na construção civil, em função dos aportes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para o incremento do Complexo Industrial Portuário de Suape. Por meio do Diálogos, a comunidade foi mobilizada a refletir sobre temáticas relacionadas aos direitos à saúde sexual e re- produtiva, por meio de um aporte teórico que deu relevo ao modo como o sistema de sexo-gênero (Rubin, 1993) engendra práticas e subjetividades (cf. Rios, Medrado et al, 2015). Nesse contexto de trabalho, o uso abusivo de álcool e ou- tras drogas pode ser apreendido como marcado pelas relações de gênero, na intersecção (Brah, 2006; Piscitelli, 2008) com outros marcadores sociais, como idade/geração, sexualidade e raça/etnia, sendo tematizada como um importante eixo de trabalho nos diferentes projetos que compuseram o Diálogos Suape.¹ Vários textos produzidos no âmbito do Programa situ- am os modos como a temática foi abordada. O problema do uso abusivo de álcool pelos homens tra- balhadores da construção civil, no lazer de fim de semana, e o consequente aumento de acidentes de trabalho nas segundas- -feiras (Silva, 2014; Medrado, Lyra et al, 2015) solicitaram que este tema fosse objeto de uma das campanhas do projeto “Ho- mens, gênero e práticas de saúde” (Medrado, Azevedo et al, 2014), com foco na redução de danos. O assunto também pôde ser tratado nas formações direcionadas para jovens, no “Ação Juvenil” (Meneses, Adrião e Rios, 2015; Meneses, Adrião, Rios et al, 2015; Souza, 2015; Falcão, 2015; Felipe e Souza, 2015; Freitas, 2015). Alguns materiais informativos (Rios e Queiroz, 2015; Rios, Queiroz et al, 2015) e atividades lúdico-interventi- vas do “Caravana da Cidadania” abordaram o uso abusivo de drogas (Carrazone et al, 2015; Santos et al, 2015). Todas essas atividades tiveram como marca a utilização de uma perspectiva não proibicionista, com foco na redução de danos, em conso- nância com a política brasileira de enfrentamento ao uso abusi- vo de álcool e outras drogas (Brasil, 2003). 6 | Luciana Leila Fontes Vieira et al. ______________________________________________________________________ ¹ O programa foi composto por sete projetos: 1) “Conhecer o Território”: identificar as políticas, os programas e os equipamentos sociais existentes nos municípios, os indicadores sociais e as concepções da população sobre os agravos que são objetos da intervenção; 2) “Ação Juvenil”: instrumentalizar jovens, de 16 a 19 anos, de ambos os sexos, como lideranças capazes de atuar na produção e na disseminação de informações qualificadas nos campos dos direitos da criança e do adolescente, da saúde sexual e reprodutiva, do uso abusivo de álcool e de outras drogas, e no enfrentamento a agravos de saúde e violações de direitos; 3) “Caravana da Cidadania”: mobilizar as comunidades locais e instrumentalizar profissionais dos campos da saúde, da educação e da res- ponsabilização para a promoção da saúde sexual e reprodutiva, o combate à violação dos direitos sexuais e o enfrentamento do uso abusivo do álcool e de outras drogas; 4) “Chá de Damas”: engajar e capacitar profissionais do sexo adultos dos municípios no enfrentamento das DST/Aids e da ex- ploração sexual comercial de crianças e adolescentes; 5) “Mulheres e Educação para a Cidadania”: contribuir no empoderamento de mulheres e jovens dos dois municípios, com ações formativas e informativas, para o enfrentamento da violência doméstica e sexual na microrregião de Suape; 6) Homens, gênero e práticas de saúde”: sensibilizar e informar os trabalhadores das empresas terceirizadas para a promoção da saúde sexual e reprodutiva, para a prevenção da violência e do uso abusivo de álcool e outras drogas; 7) “Observatório Suape”: disseminar informações e recursos desenvolvidos no âmbito do programa Diálogos para o Desenvolvimento Social em Suape. Para mais informações sobre o progresso e principais resultados de cada projeto/ação, remetemos o leitor a Rios, Queiroz et al (2015). Neste livro, temos dois capítulos que apresentam aspec- tos de pesquisas que foram realizadas articuladas com o Diálo- gos, desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPE. O capítulo três apresenta reflexões sobre o uso do álcool entre jovens, a partir de oficinas desen- volvidas no “Ação Juvenil”; o oitavo capítulo aborda experiên- cias de maternidade das mulheres usuárias de crack. Do mesmo modo que em outros livros que compõem os resultados do Diálogos Suape, para este volume contamos com a colaboração de parceiros de importantes grupos de pesquisa do país, que têm se dedicado à questão das dependências quí- micas. Assim, juntamente de produções do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (Gepcol), Núcleo de Pesquisa e Estudo em Clínica Contemporânea (Nu- pecc) e LabESHU, da UFPE, temos colaborações do Grupo Práticas Discursivas e Modos de Viver, da Universidade Fede- ral do Ceará (UFC); do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Saúde Sexual e Reprodutiva do Instituto Nacional de Saúde da Mulher da Criança e do Adolescente - Fernandes Figueira (IFF); da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro; do Grupo Saúde Coletiva, Gênero e Cultura e do Laboratório de Estudos do Trabalho e Subjetividade em Saúde (Letrass), am- bos da Universidade Federal Fluminense (UFF); e do Grupo Transversões - Saúde Mental, Desinstitucionalização e Aborda- gens Psicossociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 1 • Da problemática O aumento do consumo de substâncias psicoativas e o acirramento da violência relacionada ao tráfico de drogas ilí- citas motivaram a intervenção regulatória do Estado, por meio de formulações e implementações de políticas públicas. O proi- bicionismo e a redução de danos são os principais fundamen- tos. A partir de pressupostos morais e criminais, as políticas proibicionistas se baseiam no combate, na redução da oferta e Drogas, contextos e dispositivos de enfrentamento | 7 na demanda de drogas, seja pela via da repressão, seja pela via da criminalização da produção, tráfico, porte e consumo de drogas ilícitas. Nessa perspectiva, o consumo de drogas deve ser modificado por meio da reclusão, usando de tratamentos e reabilitações, para uma patologia de ordem biológica. Con- sequentemente, a abstinência se configura com condição sine qua non para o tratamento e para o usuário. Parece-nos evi- dente que o modelo de atenção à saúde baseado, exclusiva- mente, na abstinência impede que inúmeras pessoas tenham acesso aos serviços oferecidos e fomentam a discriminação. Em contrapartida, os princípios da redução de danos se sustentam em três pressupostos bastante diferentes: 1) cons- tatação histórica de que não há sociedade sem drogas; 2) comprovação de que nem todasas pessoas querem ou con- seguem ficar abstêmias; 3) evidência de que a ação repressiva contribui com o agravamento da saúde e segregação dos(as) usuários(as). Nesse cenário, o propagado ideal de uma cultu- ra livre de drogas se esvanece e se tecem novas estratégias preventivas e terapêuticas para reduzir os danos relacionados ao consumo. Com efeito, essa abordagem insere a problemá- tica no âmbito da saúde pública e o tráfico no âmbito jurídico- -policial. A redução de danos passou a ser referência na estrutura- ção da nova política do Programa de Atenção Integral aos Usu- ários de Álcool e Outras Drogas (Brasil, 2003). Essa estratégia em saúde pública não objetiva se contrapor às diversas abor- dagens existentes de atendimento ao usuário de drogas, mas, ao contrário, apresenta-se como mais uma alternativa para os serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-AD) são os principais equipamentos ofertados pelo Estado, por ofe- recerem um atendimento especializado e articulado com outros pontos da rede de saúde e da comunidade. Mudanças paradigmáticas e ideológicas são fundamen- tais para o estabelecimento de um atendimento adequado, em consonância com os princípios e diretrizes do SUS (Lei 8.080 8 | Luciana Leila Fontes Vieira et al. de setembro de 1990) que regulamentam a atenção à saúde no Brasil. Nesse sentido, todos os profissionais de saúde devem reger as respectivas práticas, sobretudo a partir dos princípios da universalidade, da equidade e da integralidade. Queiroz (2001), no artigo “Os programas de redução de danos como espaço de exercício de cidadania dos usuários de drogas”, salienta que a redução de danos legitima a cidadania dos usuários de drogas na medida em que procura romper com o circuito da exclusão, marginalização e intolerância. Assim, não concebe excluí-los dos programas de saúde, em face dos fracassos na manutenção da abstinência e da indisponibilidade de abandonarem as drogas; neste caso, oferece-lhes a possi- bilidade de escolher a modalidade de atendimento que mais se aproxime dos próprios anseios de saúde, sem a exigência da abstinência total e imediata. No entanto, Rodrigues (2003), no artigo “Política de drogas e a lógica dos danos”, alerta-nos que, apesar dos programas de redução de danos serem conside- rados de “baixa exigência”, sugerem uma nostalgia do Estado de bem-estar social camuflando o grau de controle presente, mesmo quando nos propomos a promover saúde. É inegável que as políticas de redução de danos rom- peram com aspectos importantíssimos do proibicionismo, aba- lando os efeitos moralizadores, criminalizadores e punitivos. Porém, não devemos nos assegurar por meio da alegação de estarmos à frente da cruzada pela vida e higiene social. Pois, como nos lembra Foucault (2000), nos mecanismos de saber- -poder-verdade não há apenas vetores coercitivos e punitivos, mas, também, vetores positivos que produzem modalidades de intervenção capazes de produzir os corpos-úteis. Drogas, contextos e dispositivos de enfrentamento | 9 2 • Drogas, contextos e dispositivos de enfrentamento O conjunto de artigos reunidos nesta coletânea, os quais passaremos a apresentar, buscam, parafraseando Foucault (1984), reinterrogar as evidências, sacudir os hábitos, as ma- neiras de fazer e pensar, desfazer as familiaridades aceitas em torno da problemática das drogas. Sendo assim, lança- -nos na aventura de uma leitura-experiência que nos transfor- ma e transforma aquilo que pensamos. Em suma, trata-se de um convite para desterritorializar, desfazer/refazer conexões, abandonar/construir campos de saber, modos de vida, ou seja, trata-se de uma aposta no atravessamento dos fluxos advindos dos encontros com a cultura, com as subjetividades, com as drogas, com o livro que potencializa novos territórios e devires. Os textos foram distribuídos em três partes. Em “Drogas e contextos”, os autores abordam a multiplicidade de sentidos que o uso de drogas enseja, a depender de tempo histórico e de contextos de vida específicos, o que inclui também posicio- namentos de classe, sexo/gênero, raça/etnia e idade/geração de populações e de pessoas. Na segunda parte, “Dispositivos religiosos”, os pesquisadores abordam as interfaces entre as políticas de enfrentamento do uso abusivo de drogas e as pers- pectivas de cunho religioso, analisando os impasses que dispo- sitivos - tais como as comunidades terapêuticas - trazem para a resposta brasileira às dependências químicas. Na terceira parte, “Dispositivos do SUS”, são analisadas as vicissitudes do atendimento em CAPS-AD e Consultórios de Rua. Como já mencionamos, estes são centrais para o enfrentamento do uso abusivo de álcool e outras drogas e precisam ser objeto de re- flexões qualificadas, na perspectiva de apontar caminhos para os desafios e os impasses na promoção do cuidado. 10 | Luciana Leila Fontes Vieira et al. 2.1 • Drogas e contextos O artigo que abre a coletânea se intitula “As drogas co- tidianas em tempos de sobrevivência”, de Ricardo Pimentel Mello. O autor nos convida a desnaturalizar as verdades esta- belecidas em relação às drogas, atentando para as importantes modificações ocorridas com o avanço do capitalismo. Nesse sentido, destaca a importância de compreendermos os diver- sos usos em consonância com a teia relacional e cultural em que estão inseridos. Distanciando-se de qualquer abordagem policialesca ou maniqueísta, propõe a construção de uma clíni- ca-política que diferencie as nuances das relações singulares estabelecidas com as drogas, que considere o solo histórico- -cultural e fomente as práticas libertárias. O segundo capítulo, “A perspectiva interseccional na com- preensão do uso de álcool entre a juventude quilombola”, Rose- ane Amorim da Silva e Jaileila de Araújo Menezes apresentam resultados de um estudo qualitativo sobre os significados do uso de álcool entre homens e mulheres jovens remanescentes quilombolas do município de Garanhuns, em Pernambuco. As autoras sublinham que o costume é bastante valorizado nas comunidades, visto como mediação de muitas das atividades cotidianas. Assim, o uso emerge como: diversão, lazer, meio de esquecer os problemas e lidar com as dificuldades do dia a dia, algo positivo que favoreceu a saída do privado para o público, que dá coragem para trabalhar em lugares que podem ocasionar riscos à vida, entre outras situações. Elas ressaltam a importância de um olhar cuidadoso para essa prática, uma vez que, ainda que seja valorizada, em especial para os ho- mens, o uso abusivo tem provocado repercussões negativas nas comunidades, como acidentes automobilísticos e violência contra as mulheres. No terceiro capítulo, “Contextos de sociabilidades juve- nis: pensando sobre usos do álcool em território de desenvol- vimento econômico”, Leyllyanne Bezerra de Souza e Jaileila Drogas, contextos e dispositivos de enfrentamento | 11 de Araújo Menezes discutem as experiências de consumo de álcool de jovens participantes do projeto “Ação Juvenil”, do Di- álogos Suape. Analisando dados produzidos em situação de oficinas, as autoras perceberam que as diferentes experiências relativas à bebida são marcadas por sistemas de regulações geracionais e de sexo-gênero. Assim, experiências das(os) jovens interlocutoras(es) da pesquisa-intervenção se circuns- crevem a partir de tensões entre jovens e adultos, homens e mulheres, as quais se configuram, sobretudo, mediante ques- tões relativas à sexualidade e às experiências sexuais das(os) jovens. Tomando o uso de álcool como um analisador das in- terações, o texto visibiliza desigualdades históricas no território em questão. 2.2 • Dispositivos religiosos O quarto capítulo, “Práticas religiosas no campo das dro-gas: complexidade, paradoxos e desafios do campo, e posicio- namentos na ótica da luta antimanicomial no Brasil”, de Eduar- do Mourão Vasconcelos, apresenta uma análise sobre práticas religiosas mediante as “situações existenciais-limite” forjadas pelo uso das drogas, do crack e pelo aumento das situações de violência, no contexto mais pobre da população brasileira. Para tanto, apresenta um aparato teórico-conceitual e elemen- tos histórico-políticos que subsidiam recomendações para o enriquecimento do campo acadêmico, das políticas sociais e das práticas profissionais na atenção psicossocial e assistência social. O quinto capítulo, “Comunidades terapêuticas e a saúde mental no brasil: um encontro possível?”, de Rita de Cássia Cavalcante Lima, discute os desafios para incorporação das comunidades terapêuticas no SUS como dispositivo do eixo das residências transitórias, na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) brasileira, cuja organização foi redefinida pelo Minis- tério da Saúde a partir de fim de 2011. Conforme a autora, em meio a um contexto de fortalecimento político das bancadas 12 | Luciana Leila Fontes Vieira et al. religiosas no parlamento e da desinformação sobre o uso do crack no país, as comunidades terapêuticas têm reivindicado a autoridade para tratar e acolher usuários de drogas. O texto contém breve revisão sobre a história daqueles serviços, a rela- ção deles com práticas religiosas, os objetivos e os componen- tes assistenciais às pessoas com uso nocivo de álcool e outras drogas. Acresce ainda a tensão posta entre as denúncias de violações de direitos humanos por comunidades terapêuticas, a contínua requisição destas por financiamento público federal e os limites e as possibilidades de participar da RAPS. 2.3 • Dispositivos do SUS O sexto capítulo, “Concepções de feminino para profis- sionais de um serviço de saúde destinado ao tratamento de mulheres dependentes químicas”, de Marcia Gabriele Oscar de França e Luciana Leila Fontes Vieira, investiga as concep- ções de feminino que norteavam a atuação de profissionais de um serviço de saúde destinado ao tratamento de dependen- tes químicas. Foram identificados no conteúdo das entrevistas movimentos simultâneos de (des)construção e naturalização das concepções de sexo e gênero. Embora em alguns mo- mentos as(os) profissionais reforcem a compreensão binária sobre o sistema sexo-gênero, muitos relatos aludem à existên- cia de concepções e de práticas de intervenção que rompem com noções naturalizadas de gênero, com vistas a respeitar a singularidade das usuárias e evitar discriminá-las. As autoras destacam que, para entender as subjetividades na particular complexidade de cada usuária, faz-se necessário articular os conhecimentos sobre gênero como categoria analítica e a te- mática “uso de drogas,” uma vez que o processo de socializa- ção de homens e de mulheres estimula ou condena determina- das práticas relacionadas às drogas, que são sustentadas por condições sociais hierárquicas, nas quais as mulheres comu- mente ocupam posição de desvantagem. Drogas, contextos e dispositivos de enfrentamento | 13 O sétimo capítulo, “A produção do cuidado a usuários com uso abusivo de álcool e outras drogas, com foco na práti- ca de redução de danos”, de Gizele da Costa Cerqueira, Túlio Batista Franco e Ívia Maksud, discute a produção do cuidado em saúde a usuários de álcool e outras drogas, sob a perspec- tiva da redução de danos, por meio de um estudo de caso de um Consultório na Rua no município de Imperatriz, Maranhão. O caso analisado possibilita uma rica discussão sobre as vi- cissitudes da produção de cuidados em espaços institucionais, como os consultórios de rua e as comunidades terapêuticas de fundo religioso; sobre os usos normativos da redução de da- nos; e sobre a capacidade de agência do usuário na produção das próprias redes de cuidado. O último capítulo, “A rede de apoio social para as jovens mães usuárias de crack e o circuito que (des)integra as expe- riências de maternidade”, de Shirleidy Mirelle da Costa Freitas Stratton, Karla Galvão Adrião e Bruna Gabriela Monte de Oli- veira Ramos, apresenta os resultados de mais uma pesquisa desenvolvida no âmbito do Diálogos Suape. Os dados discu- tidos foram construídos por meio de observação participante com registro em Diário de Campo e da realização de quatro entrevistas com mulheres de idade entre 19 e 22 anos, que tiveram filhos no contexto do uso de crack e estavam referen- ciadas a um programa de assistência ao abuso de álcool e outras drogas. Neste texto, as autoras realizam uma análise caracterizando como a rede de apoio às jovens - as carreiras escolares e as atividades laborativas, a assistência à saúde e o contexto de violência - influenciou as experiências de mater- nidade delas, integrando-as ou desintegrando-as. Os resulta- dos apontam que as usuárias de crack têm dificuldades de ter acesso aos direitos básicos, tais como saúde, moradia, educa- ção e segurança. O consumo do crack parece potencializar as vulnerabilidades, todavia, essas já estavam na vida das jovens antes do início do contato com a droga. Esse estudo evidencia a importância de utilizar a pesquisa como forma de promover justiça social, ao quebrar os silenciamentos acerca das experi- ências de grupos minoritários como o pesquisado. 14 | Luciana Leila Fontes Vieira et al. A nossa expectativa é a de que os textos aqui reunidos - na medida em que reinterrogam evidências, hábitos, maneiras de fazer e pensar - permitam uma estimulante reflexão sobre as variadas dimensões que atravessam as drogas e as práticas de cuidado, mobilizando leitores e leitoras para que a promo- ção dos direitos da pessoa humana esteja em primeiro plano. Referências BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, v. 26, p. 329-376, 2006. 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Os significados do consumo de bebidas alcoólicas atri- buídos por jovens de camadas populares da sub-região Suape-PE. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade Federal de Per- nambuco, Recife, 2015. 18 | Luciana Leila Fontes Vieira et al. Capítulo 1 As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência Ricardo Pimentel Méllo (...) Vamos vivendo as sensações das coisas boas ou más Há portos livres aonde chegar Palavras, doces desejos Na solidão do mar Eu nunca vou saber Todo o mistério que existe em alguém (...) (Portos Livres — Compositores: Frejat/ Dulce Quental) 1 • Introdução Droga, segundo Cunha (1998), é uma palavra de origem controversa, mas prefere indicar que advém da língua francesa (drogue). Porém, o médico inglês Aidan Macfarlane et al (2003) indica que a palavra tem origem inglesa (droog), significando “folha seca”. Há certa coerência nesta indicação, pois os medi- camentos eram (e muitos ainda são) advindos de folhas (fito- terápicos), maceradas ou não e servidas sob a forma de chá. Elas eram comercializadas como o são até hoje, especialmente em mercados e feiras populares. Porém, a controvérsia con- tinua, pois, ao pesquisar a etimologia, encontrei que droog é uma palavra de origem russa (amigo) que se tornou uma gíria inglesa (membro de gangue), em função do uso pelo escritor Anthony Burgess no conhecido livro “Laranja Mecânica” (A Clo- ckwork Orange), de 1962¹, que em 1971 foi adaptado ao cine- ma e dirigido por Stanley Kubrick. ______________________________________________________________________ ¹ Ver, por exemplo, em <http://dictionary.reference.com/browse/droog>. Acessado em 13 de abril de 2014. Já o termo “fármaco” é mais consensual e tem um signifi- cado originalmente polissêmico interessante. De origem grega, phármako pode significar tanto veneno como remédio (Araújo, 2012). Assim, está mais próximo do uso que se faz de medica- mentos que, dependendo das doses, deixam de ser curativos e acarretam problemas. Também essa polissemia se adequa especialmente aos remédios alopáticos que, não poucas ve- zes, têm efeitos danosos descritos nas bulas como “reações adversas”. Como dizia Paracelso (1493-1541) nos primórdios da medicina: “Nada é veneno, tudo é veneno. A diferença está na dose” (dosis sola facit venenum) (Santos, 2003). Inúmeros textos sobre o consumo de drogas iniciam di- zendo que essa prática faz parte do nosso cotidiano e que a História tem nos mostrado que a humanidade sempre as uti- lizou com as mais diversas finalidades: associadas à música, dança, meditações, jejuns, curas medicinais, experiências espirituais, entre outras (Araújo, 2012; Bucher, 1992; Graeff, 1984; Olievenstein, 1980; Labate e Goulart, 2005). Ou seja, o ser humano, em todas as culturas, procurou várias formas de “transcendência” e de manipulação da “consciência”, ou modos de interagir com o mundo, “atitudes por demais difundidas para serem tratadas como exceções” (Pacheco, 2004, p. 146). Em diversas regiões do nosso país, como no semiárido nordestino, podemos encontrar rituais que envolvem a preparação de be- bidas com determinadas plantas. Entre os kariri-xocó, há uma festa sagrada chamada de “Ouricuri”, em que é preparada uma bebida com um tipo de jurema: O Ouricuri, portanto, é, acima de tudo, um contrato reali- zado entre os ancestrais tribais e seus descendentes: é a “obrigação” que os ancestrais e seus filhos – “os filhos de Jurema” – têm entre si e para consigo mesmo, a fim de que o grupo possa se reproduzir econômica, bioló- gica e ideologicamente. O ritual do Ouricuri envolve o renascimento de uma verdadeira nação sendo uma co- memoração muito especial no círculo da vida, quando as gerações passadas se reencontram com as do presente e as do futuro. Através da ingestão da bebida, seguida- As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 21 mente acompanhada de (...) danças sagradas de origem ancestral, os seguidores da Jurema recebem instruções sobre suas vidas, tanto as individuais quanto a vida cole- tiva. A festa sagrada (...) é o selo da identidade étnica, es- tampada no ser de cada um de seusparticipantes, e dela ninguém pode escapar, se quiser continuar sendo reco- nhecido como um “índio legítimo”. (Mota, 2005, p.226) Nem a planta jurema escapou da perseguição policial e muitos dos juremeiros começaram a se filiar à Federação da Umbanda e, com isso, tanto uns quanto outros mesclaram as práticas rituais e a umbanda incorporou a figura sagrada da Jurema (Grünewald, 2005, p. 249). O uso da jurema nos rituais da umbanda tem o mesmo objetivo dos rituais indígenas: “(...) o de religare – ou de reentrelaçar – os humanos viventes com os deuses e os ancestrais que já se foram” (Mota, 2005, p. 231). Substâncias psicoativas² podem ter usos curativos ou prejudiciais, bem como lícitos ou ilícitos, variando culturalmente tais atribuições de valor, sendo que o consumo dessas subs- tâncias se tornou um problema a partir da organização dos Estados modernos (século XVI), do crescimento da industria- lização (século XIX) e da expansão do sistema capitalista de produção econômica (primeira metade do século XX). Esses acontecimentos trouxeram a introdução do comércio, o contra- bando e o tráfico de drogas psicoativas (Gamella, 1997) e, na medida em que se ampliaram as tecnologias de normalização (Foucault, 2005, 2008, 2009), o uso de drogas psicoativas foi “estrategicamente atrelado aos hábitos de determinados gru- pos populacionais conforme os interesses políticos e econômi- cos de dominação.” (Souza, 2013, p. 95) Tais drogas acabaram se tornando um produto de consu- mo como qualquer outro; ou seja, privilegiou-se a capacidade de produzi-las em larga escala e distribuí-las, comercialmente, 22 | Drogas e Contextos ______________________________________________________________________ ² Drogas psicotrópicas ou psicoativas são substâncias químicas “naturais” (maconha, cogumelos), “sintéticas” (ecstasy, metadona) ou “semisintéticas” (anfetaminas, LSD-25, heroína), lícitas ou ilíci- tas, usadas para fins recreacionais ou não, que agem principalmente no sistema nervoso central, alterando o funcionamento cerebral, ocasionando mudanças em relação à vida ordinária de quem as usou, seja em percepções, humor ou seja nos respectivos modos rotineiros de viver. de forma regular. Desenvolveram-se drogas mais potentes e puras. Além disso, atividades de produção e comércio se torna- ram instrumentos de colonização e dominação europeias sobre inúmeros povos. O intuito comercial objetivava elevar o con- sumo, estabelecendo quais drogas poderiam ser consumidas, promovendo o cultivo de chá, café, tabaco e ópio, bem como a produção de bebida alcoólica destilada. Visitando um pouco a nossa Pré-História, podemos ima- ginar o quanto nossos antepassados e todos os seres vivos dessa época vagavam experimentando alimentos os mais va- riados. Certamente se depararam com plantas psicotrópicas, experimentando-as. Em uma época em que os Estados ainda não gerenciavam a vida das populações, a experimentação não era proibida, mas, ao contrário, era necessária para so- brevivência humana. Referimo-nos à prova de vegetais muito diferentes da maçã, relatada no livro do Gênesis, que - de vilã, responsável por todos os males da humanidade, inclusive em histórias infantis (vide a Branca de Neve) - atualmente passa a ser indicada na prevenção de doenças cardiovasculares e ain- da se tornou símbolo da maior empresa de informática do mun- do: a Apple. Em função das potencialidades, há relatos muito antigos de diversos usos da maconha/haxixe/canabis³ (Canna- bis sativa) desde milênios antes de Cristo: fabricam-se fibras e tecidos, alimento e remédio, além do uso religioso. Desta feita, o Artharaveda, um texto sagrado hindu, es- crito entre 1.200 e 1.000 anos a.C. - que traz conhecimentos importantes da vida (rituais, curas, despertar “amor” em outra pessoa, funerais, fortalecer os dentes, a origem do universo etc.) e, especialmente, trata-se de um dos primeiros textos que contêm informações sobre o que atualmente conhecemos como medicina - se refere à Cannabis como “uma das cinco plantas sagradas, fonte de alegria e prazer” (Araújo, 2012, p. As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 23 ______________________________________________________________________ ³ Alertado pelos escritos de Burgierman (2011), também constatei que a grafia e pronúncia correta é “cânabis” (ver: Houaiss; Villar, 2011, p. 591). A palavra é proparoxítona e não paroxítona (“caná- bis”), e adveio do termo cânhamo, que se originou do espanhol cáñamo. Porém, a pronúncia que se popularizou e se tornou mais usual no Brasil, tanto em matérias jornalísticas, em artigos científicos, quanto cotidianamente, é: “canábis”. 25). Aliás, esquecemo-nos de que a “medicina experimental” (classificadas por alguns como alquimia, no século XII), há mui- to e por séculos se desenvolveu no Oriente Médio, fornecendo a base para diversos estudos, como o reconhecido trabalho do persa Muhammad Rāzī (século IX), citado na British Encyclo- pedia (edição de 1911) como tendo realizado estudos confiá- veis relacionados à varíola. Essa observação é relevante para que não desqualifiquemos os escritos orientais, sob os precon- ceitos ocidentais judaico-cristãos. O álcool também não é novo no uso humano. Nesse caso, temos uma substância fabricada, ou seja, isso inclui uma tecnologia importante. A receita de “cerveja” mais antiga que se conhece “foi escrita pelos Sumérios, povo que se estabeleceu na Mesopotâmia, perto de 8.000 a.C.” (Araújo, 2012, p. 25). Quantos dos cristãos ocidentais não possuem um quadro da Santa Ceia, indicando o apreço dos judeus pela bebida e a im- portância de algumas drogas em rituais religiosos? Referimo- -nos ao vinho, absolutamente entronizado na cultura oriental e ocidental, a ponto do relato sobre o primeiro milagre de Jesus (um judeu) se realizar em uma festa em que se fazia o uso re- creativo desta bebida (João 2.1-12). No detalhe, era a festa de um casamento em que estavam, além de Jesus, os discípulos e a mãe dele. Esta, vendo que o vinho acabara, interpelou o filho: “Eles não têm vinho” (Bíblia, 1981, p. 1.385). Jesus res- pondeu de maneira insólita: “Que temos nós com isso?” (Bíblia, 1981, p. 1.385). Mas, cedeu e, segundo o relato, fez um vinho de excelente qualidade. Por meio das chamadas “grandes navegações”, já havia trocas de mercadorias, e a expansão do comércio pelo mundo ocorreu em torno de especiarias. Na escola, aprendemos que Vasco da Gama e o genovês Cristóvão Colombo se lançaram ao mar, nos séculos XV e XVI, em busca de cravo, noz-mos- cada, pimenta, açafrão, gengibre, canela e outros apreciados produtos para culinária e fabricação de cosméticos, óleos e medicamentos. Os navegadores precisavam encontrar outros caminhos para chegar às fontes dos produtos, já que muitos 24 | Drogas e Contextos destes eram monopólios comercializados por Gênova e Vene- za, conquistadas pelos turcos otomanos, que chegavam à Áfri- ca e Ásia pelo Mediterrâneo. Essa era a tarefa de navegadores portugueses e espanhóis que, além de outros caminhos, tam- bém precisam encontrar outras terras (colônias de exploração), em busca de metais preciosos, mão de obra e, no caso da Igre- ja Católica, conquistar novos fiéis. Porém, não foram “só” esses produtos que fizeram parte das grandes navegações, que ainda incluíram países como a Inglaterra e Holanda. Quando os europeus chegaram às “no- vas” terras ocidentais e orientais, realizaram um importante co- mércio que incluía trocas. A Europa, a Ásia e a África conhece- ram o tabaco e a coca, vindos das Américas, ao mesmo tempo em que apresentaram o haxixe e o ópio, cuja fonte é a papoula, e o haxixe. Com grande utilidade medicinal, o este último, por exemplo, passou a ser comercializado pelos ingleses na China, em função das plantações que estes faziam na Índia. A China acaboutendo problemas com a balança comercial porque pa- gava o produto com prata, o que ocasionou a “Guerra do Ópio”, em 1839, contra a Inglaterra. As navegações trouxeram plantas que, com o crescimen- to das pesquisas dos farmacêuticos no século XVI, passaram a ser fracionadas em busca de compostos orgânicos: buscava- -se as essências das plantas (“princípios ativos”), com o intuito de fabricar remédios. Em 1805, um pesquisador alemão conse- guiu isolar a morfina (advinda do ópio), que passou a ser usa- da como importante analgésico. Em 1860, isolou-se a cocaína (advinda da coca). Ao mesmo tempo, foi inventada a seringa para graduar as dosagens e evitar o óbito dos pacientes (1853). Essas descobertas revolucionaram as atividades cirúrgicas4. Podemos concluir que o mercado de drogas foi um im- portante propulsor das navegações e favoreceu o crescimento de pesquisas científicas e do uso recreativo (esse já existen- te). Essa prática cresceu até os nossos dias. O mercado de As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 25 ______________________________________________________________________ 4 Toda essa importante história foi descrita por Tarso Araújo (2012). drogas, conforme enfatiza Moraes ao refletir sobre o trabalho de Minayo (2003), “faz parte de circuitos globais, com redes internacionais de produção e distribuição, além de uma organi- zação complexa, extremamente capilarizada, que atinge todas as camadas sociais, utilizando (...) sofisticadas estratégias de acumulação de riqueza” (Moraes, 2005, p. 28). Em torno dessas atividades de produção, houve mudan- ças importantes na convivência das pessoas, por meio do uso de diversos tipos de drogas, com impactos impresumíveis nes- se consumo, já que este passou a ser mediado por uma rela- ção quase exclusivamente comercial. Não podemos esquecer dos efeitos da industrialização sobre os corpos humanos: um controle exaustivo do tempo e da quantidade de horas dedica- das ao trabalho, reduzindo os espaços possíveis para uso de substâncias de forma recreativa (Gamella, 1997). 2 • As drogas no Brasil na onda do prazer rápi- do e duradouro No Brasil, vivemos as décadas de 1960 e 1970 sob o re- gime militar e, na década de 1980, sofremos com o fracasso do “milagre econômico”, inflação altíssima, migração da popula- ção para os centros urbanos, provocando uma explosão demo- gráfica em cidades sem infraestrutura para acolher dignamente as pessoas. Esse cenário causado pelo governo repressivo, com políticas autoritárias, proporcionou a situação ideal para o início do tráfico de drogas e armas: As favelas e periferias urbanas passam a ocupar um lugar estratégico para o forte mercado de drogas, re- crutando jovens pobres para o tráfico. As disputas por pontos de venda de drogas entre facções inimigas e o enfrentamento direto com a polícia agregaram ao mer- cado de drogas o mercado de armas, dando início a uma verdadeira guerra civil que se encontra inserida num “ci- clo global de guerras”. (Passos e Souza, 2011, p. 155) 26 | Drogas e Contextos Foi a partir de 1990 que o Brasil deixou de ser apenas um corredor para escoar a produção de cocaína da Colômbia, Bolívia e Peru para Europa e EUA (Magalhães, 2000). Sem dúvida, esse trânsito foi e é favorecido pela localização geográ- fica do nosso país. Importante notar que “a maconha é a única droga ilícita produzida em larga escala no território brasileiro” (Feffermann, 2006, p. 51), porém, toda escala de produção e distribuição de drogas ilícitas em daqui está diretamente rela- cionada com outras atividades que possibilitaram, inclusive, a infraestrutura usada no tráfico de drogas ilícitas: jogo do bicho, contrabando, roubo e desmanche de carros (Feffermann, 2006, p.51). Em comum, todas essas atividades favorecem a chama- da “lavagem de dinheiro” com volumosa evasão fiscal. Não estamos falando só de consumo em grandes ca- pitais, pois, atualmente, mesmo entre trabalhadores rurais, o consumo de drogas consideradas ilícitas, e que pareciam ser utilizadas somente em grandes centros, vem crescendo. Em reportagem sobre o tema, o jornal Folha de São Paulo publicou importante matéria sobre o uso de crack estar diretamente rela- cionado ao trabalho penoso de cortadores de cana: O jovem maranhense E.D., 27 (...) não vê a hora de en- cerrar mais uma jornada. Às 15h20, o boia-fria já cortou dez toneladas de cana, e agora quer relaxar com os con- terrâneos. No alojamento, onde mora com 18 colegas, nem troca a roupa imunda de fuligem antes de largar o podão. Com o cachimbo improvisado em um cano de plástico, vem a “recompensa” por mais um dia exausti- vo. “É uma tragada e a dor nas costas passa na hora”. (Zanchetta, 2007, s/p). No entanto, não podemos reduzir o tráfico de drogas à produção e comercialização de substâncias, mas nossas aná- lises sobre essas atividades devem se estender ao plano da produção de modos de subjetivação consumista, característi- ca que é desconsiderada pelas políticas governamentais e por muitos de nossos colegas profissionais da área da saúde, ao focalizar esforços em combater somente a produção de dro- As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 27 gas. Nesse sentido, as estratégias policiais e militares assu- mem a função de controle das camadas pobres, pois passam a localizar geograficamente um processo de produção transna- cional: responsabilizam as favelas e os países “periféricos” por um mercado que é movimentado por uma lógica de consumo, mas que é acionada pelos países ditos de “primeiro mundo” (Passos e Souza, 2011). A partir da metade do século XX, a expansão do contro- le e de valores morais disciplinares nas sociedades ocidentais (o que se costuma chamar de “processo de globalização”) só ampliou ainda mais o desmonte de antigos rituais comunitá- rios, presentes na vida dos indivíduos desde os primórdios da humanidade, acarretando transformações nas relações com o tempo e o espaço, regulando atividades como o trabalho e la- zer, transformando nossos corpos como submissos (Foucault, 1989). O efeito de conjunto é que o estímulo ao consumo cres- ceu de tal modo, chegando a constituir formas padronizadas de prazer relacionadas à busca de uma felicidade rápida e perene, por meio de ações que envolvem a compra de materialidades as mais variadas, incitando-nos ao consumo imediato de uma infinidade de produtos. A busca da felicidade completa acabou por excluir a dor e a frustração como parte integrante da vida, instituindo a “tirania da felicidade” que também é estimulada “pela crescente cientifização e tecnologização da vida cotidiana que prometem a garantia de uma felicidade plena, sem fratu- ras” (Cerruti, s/p, 2002). Na “onda” dessa busca pelo prazer e diferentes modos de ver a vida, o ser humano que, como dissemos, sempre utilizou drogas pontualmente (em rituais ou para recreação), transfor- mou o uso de substâncias psicoativas para o prazer rápido, ao mesmo tempo em que pretensamente duradouro (sempre que preciso, sabe-se onde encontrar a “fonte do prazer”). O consu- mo abusivo de substâncias psicoativas se tornou um problema de saúde pública extremamente relevante em todo o mundo. Especialmente a partir da década de 1940, o ser humano 28 | Drogas e Contextos (...) conseguiu fabricar, a partir de síntese química, com- postos particularmente eficazes e seletivos capazes de, por um lado, corrigir distúrbios mentais e de comporta- mento, e por outro, produzir alterações acentuadas no es- tado de humor, no senso e percepção e mesmo naquelas funções mais sutis do pensamento. (Graeff, 1984, p. 11) Ampliou-se o uso de substâncias psicoativas - medica- mentos psicoterapêuticos ou outras drogas psicoestimulantes e alucinógenas. E isso (...) pasa por el ejercicio de un biopoder basado en el jue-go de la norma, de lo normal y lo patológico, y en la re- gulación de las poblaciones. Pero, al mismo tiempo, esa medicalización apela a un poder disciplinario, basado en unos mecanismos de corrección y en unos procedimien- tos de vigilancia y de control que multiplican los cheque- os, los datos epidemiológicos, las estadísticas médicas y los ficheros informatizados, articulando finamente unos procesos de individualización y de totalización. Todo eso se combina, además, con una racionalidad gubernamen- tal de tipo liberal que responsabiliza al sujeto del buen uso de su libertad en la correcta gestión de su salud. La forma que ha tomado hoy en día la medicalización cons- tituye, quizás, el dispositivo más sofisticado del actual ejercicio del poder. (Gracia, 2014, p. 10) Mudanças nos modos de viver, muitas vezes aponta- das como “mudanças culturais”, também devem ser registra- das como responsáveis pelo aumento na criação de drogas e de usos. Essa onda de busca do prazer deve ser interligada ao que, no início dos anos 1980, foi caracterizado por Lasch (1983, 1986) como “cultura do narcisismo” que levou ao “míni- mo eu”: “É o reinado do mínimo eu apocalíptico e hiperpsico- lógico; dos sujeitos que se contentam apenas em olhar para si ou, no máximo, para o petit comité encarregado de satisfazer suas necessidades” (Costa, 1994, p. 17). Lasch, reportando- -se aos campos de concentração nazista, afirmou que “(...) a vida do dia-a-dia teria assumido muitas das características de uma luta pela sobrevivência” (1986, p. 115). Isso significa: es- tamos perdendo a capacidade de gerir nossas vidas, que aca- As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 29 bam sendo impulsionadas pela próxima compra que irá nos definir como consumidores de estilos sempre atuais. É como se a atualização de modos de vida em produtos recentes nos tornasse jovens para sempre. Sem isso, parece que vivemos ameaçados de desintegração, com um sentimento de “vazio”, temporariamente desfeito quando nos atrelamos aos que supo- mos serem “nossos iguais” reclamando direitos. Seguindo esta trilha, Lipovetsky expos muito bem: “(...) na era pós-moderna um valor cardinal perdura, intangível, indiscutível pelas suas múltiplas manifestações: o indivíduo e seu direito (...)” (2005, p. XXI). Este autor ainda afirma: O ideal moderno de subordinação do indivíduo a regras racionais coletivas foi pulverizado, o processo de per- sonalização promoveu e encarnou maciçamente um va- lor fundamental: o da realização pessoal, do respeito à singularidade subjetiva, da personalidade incomparável, quaisquer que sejam as novas formas de controle e de homogeneização realizadas simultaneamente. O direito de ser absolutamente si mesmo, de aproveitar a vida ao máximo é, certamente, inseparável de uma sociedade que institui o indivíduo livre como valor principal e não é mais do que a manifestação definitiva da ideologia in- dividualista; mas foi a transformação dos estilos de vida ligados à revolução de consumo que permitiu esse de- senvolvimento dos direitos e desejos dos indivíduos... (Lipovetsky, 2006, p. XVII-XVIII). O mundo do consumo, com a proliferação de produtos atrelados a maneiras de viver, exacerbou a euforia do “preciso aparecer e ser alguém nesse mundo”. Temos o dever de ser alegres, ter uma vida saudável ou de ter “qualidade de vida”. Isso significa estarmos atentos ao produto da hora. Não estou querendo dizer que a indústria capitalista se reuniu e resolveu que, a partir de determinado momento, o ser humano seria tal e qual eles desejarem, adotando uma teoria conspiratória. Mas essa indústria também é consequência dessa mudança em nossos modos de viver no contemporâneo. Assim, o que estamos chamando de “modos de viver” pode ser comparado ao conceito de Lipovetsky de “processo sistemático de perso- 30 | Drogas e Contextos nalização”, que, na atualidade, multiplica e diversifica a oferta do que cada um de nós pode escolher “livremente”. O autor resume o que vivemos: “a homogeneidade pela pluralidade” (p. 3). A pluralidade de ofertas emerge na homogeneidade do “in- vestimento interior”: A sensibilidade política de 1960 dá lugar a uma “sensi- bilidade terapêutica” (...). No momento em que o cresci- mento econômico perde fôlego, o desenvolvimento psí- quico toma impulso, no momento em que a produção é substituída pela informação, o consumo de consciência se torna uma nova bulimia: ioga, psicanálise, expressão corporal, zen, terapia primal, dinâmica de grupo, medi- tação transcendental; à inflação econômica respondem a inflação psi5 e o formidável impulso narcísico que ela produz. (Lipovetisky, p. 35) Não há, portanto, um rompimento com o dualismo car- tesiano que exacerbou essa separação entre objeto e sujeito, natureza e sociedade e entre interior exterior, mas há uma am- pliação e atualização desse modo de viver, atrelando-o a outras tecnologias, tais como o prazer/desejo como busca incessan- te de preencher uma falta e produtos como os recheios capa- zes de aplacar esse “vazio”. Desse modo, podemos entender a oferta de drogas psicotrópicas como produtos que também vendem o prazer imediato como o maior bem supremo (hedo- nismo), aliado ao encontro com esse “eu essencial”, “interior”. Aí, temos então o casamento perfeito para esse amplo proces- so sistemático de personalização do consumo narcisista se es- praiar, como um rizoma, a todos os estratos sociais atualizando o modo narcísico de viver. As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 31 ______________________________________________________________________ 5 Talvez isso explique por que, em 2015, entre as áreas mais concorridas da Fundação Universi- tária para o Vestibular (Fuvest, que seleciona alunos para a Universidade de São Paulo (USP) e Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo), a graduação de Psicologia ficou em segundo lugar, atrás somente de Medicina. Isso também ocorreu no vestibular de 2014 da Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Apontamos esse fenômeno de “psicologização” das relações e acontecimentos quando analisamos a construção da noção de abuso sexual infantil (ver Méllo, 2006). 3 • Uso de drogas entre jovens e crianças As significativas mudanças culturais, em relação ao uso de drogas e os problemas relacionados ao consumo abusivo de drogas, não ocorrem somente entre os “dependentes” adul- tos que necessitam de tratamento de saúde especializado, mas já se apresentam como problema para adolescentes e crianças com o organismo ainda em formação e que usam diversos ti- pos de substâncias: inalantes, solventes, bebidas alcoólicas, tabaco, maconha e o crack. Isso desencadeia outros proble- mas de saúde pública importantes de forma direta ou indireta, como, por exemplo, manter relação sexual sem preservativo após cheirar cocaína, contraindo doenças como as causadas pelo vírus HIV (Masur e Carlini, 1989). O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mesmo contrariando todas as previsões mais pessi- mistas, concluiu em relatório recente (2014) que a prevalência do uso de drogas no mundo permanece estável. Estima-se que 243 milhões de pessoas, ou 5,2% da população global entre 15 e 64 anos de idade, usaram drogas ilícitas pelo menos uma vez em 2012. Usuários de drogas que apresentam algum proble- ma em relação ao uso somaram 27 milhões, o que representa cerca de 0,6% da população adulta mundial, ou uma em cada duzentas pessoas (United Nations Office on Drugs and Crime, 2014, p. 1). O Ministério da Saúde alertou para um dos problemas im- portantes que envolvem jovens e que tem se agravado em fun- ção do uso abusivo do álcool: os acidentes de trânsito (Brasil, 2004b). Além disso, existe a grave situação da medicalização de pessoas na infância e adolescência,como apontam Sche- ffler e colegas (2007), em relação ao aumento, nos últimos três anos, de 75% das prescrições de Ritalina (cloridrato de metilfe- nidato), conhecida como a “droga da obediência”, para meno- res diagnosticados com transtorno de déficit de atenção e hipe- ratividade (TDAH). Não há, ainda, estudos conclusivos acerca 32 | Drogas e Contextos dos efeitos desse medicamento em longo prazo, mas, por um lado, já existe o debate importante entre pesquisadores cujos trabalhos indicam que crianças que recebem o metilfenidato são menos propensas a desenvolver transtornos de abuso de substâncias quando adultos6, e, por outro lado, pesquisadores que discutem o uso abusivo desse medicamento nessa popula- ção7, sabendo que existem efeitos colaterais importantes aler- tados pelo próprio fabricante na bula: nervosismo, cefaleia, so- nolência ou insônia, diminuição do apetite, dores abdominais, náuseas e vômitos e, mais raramente, “leve retardamento do crescimento durante o uso prolongado em crianças”. O Brasil já é o segundo mercado consumidor mundial da Ritalina (Moysés, 2013). Assinalamos, ainda, que uso de psicoativos entre pesso- as de qualquer faixa etária tem consequências sociais que se agravam quando eles, em abstinência, roubam para sustentar o hábito. No rol das dificuldades, está o fato de o consumo de algumas drogas se constituir em ato ilícito, ampliando os problemas sociais com o tráfico, milícias armadas, corrupção, prisão e morte de dezenas de jovens. Portanto, aquela prática envolve aspectos com variadas dimensões que se imbricam: sociais, psicológicas, físicas, farmacológicas, médicas, psiqui- átricas, judiciais e antropológicas. Tendo como referência estudos realizados sobre ativida- des de trabalho e lazer, arriscaríamos afirmar que o tráfico de drogas e armas nas periferias empobrecidas de nossas cidades parece superar esta dicotomia desenvolvida com o avanço da industrialização nas sociedades modernas. Assim, pesquisas parecem apontar que o envolvimento de jovens nessas ativida- des une trabalho e lazer, na medida em que não há formalida- des ligadas à monotonia de rotinas ou jornadas diárias estres- santes, iniciadas muito cedo, quando da disputa por transporte para chegar ao local do trabalho. Aqui, parece sumir o abismo entre trabalho e “tempo livre”: o trabalho estaria diluído como As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 33 ______________________________________________________________________ 6 Ver, por exemplo, Anderson et al, 2002. 7 Ver, por exemplo, Morton e Stockton, 2000. “uso do tempo livre”. Como esse tem sido um crescente fenô- meno mundial (é só pensar nas relações de trabalho estabele- cidas pela Microsoft, permitindo que os trabalhadores fiquem em casa, ou lhes oferecendo salas de jogos): Urge, portanto, submeter essas noções a um exame sis- temático, sem estabelecer conexões prévias entre traba- lho e lazer. Um dos primeiros passos nessa direção seria repensar as conexões, frequentemente, estabelecidas entre tempo livre e lazer. (Blass, 2004, p. 68) Pesquisadores (Feffermann, 2006; Silva E Graner-Araú- jo, 2011; Guilhom e Peres, 2007) com estudos realizados em diferentes momentos históricos chegaram a conclusões seme- lhantes: o trabalho junto ao tráfico de drogas garante proteção e inserção na comunidade local. A entrada desses jovens no mundo do consumo lhes confere certo status, fazendo-os “as- cender” com essa atividade, galgando cargos e funções que geram “poder”: “(...) esses jovens passam a ter mobilidade so- cial e status - antes vetados, devido às condições econômicas e sociais em que suas famílias viviam” (Silva e Graner-Araújo, 2011, p. 156). Essa temática específica da relação de jovens com o uso de drogas também envolve um aspecto importante apontado por Torossian: “(...) o recurso ao tóxico tem a função de possibilitar a passagem da condição infantil para a adulta” (Torossian, 2002, p. 95) e, em alguns casos, explicitamente, a passagem ao mundo adulto envolve uma discussão impor- tante de gênero, citada por um dos adolescentes participantes da pesquisa de Torossian (2002, p. 61) como “necessidades de masculinidade”. Essa prova de masculinidade vai desde a iniciação no uso de drogas até o envolvimento com tráfico e outros delitos. Por outro lado, a atividade de tráfico pode ser analisada, também, sob o ponto de vista do processo de “precarização do trabalho”, advinda do capitalismo, recentemente caracterizada pela junção entre atividade laboral e lazer, ao mesmo tempo em que se sustenta na insegurança do emprego e incerteza 34 | Drogas e Contextos nas possibilidades de planejamentos de vida. Essa atividade, dentre outras desenvolvidas no sistema capitalista, gera acu- mulação de capital para o “dono tráfico” e subemprego para os jovens que lhe servem (que, como já abordamos, podem ter como plano de “carreira” chegar a ser chefe da venda). Ainda, não podemos nos esquecer de que o mesmo mo- vimento de consumo leva ao contato de jovens com diversas atividades relacionadas ao tráfico de drogas. Ou seja, o envol- vimento de pessoas não é movido exclusivamente pelo consu- mo da droga, mas, ao contrário, “mesmo num ambiente com drogas, as pessoas adictas8 não são meros escravos da ânsia” (Hart, 2014, p. 259). A trajetória de vida do respeitado psicólo- go e neurocientista Carl Hart é um indicativo disso. Ele, negro, nasceu em uma comunidade empobrecida nos EUA. Vejamos o que ele diz em relação ao crack: Na minha vida, portanto, ficava perfeitamente claro que o crime nem sempre, ou nem mesmo com frequência, era motivado por drogas, e muitas vezes não se relacio- nava com ela. (...). Nós roubávamos porque não tínha- mos as coisas de que precisávamos ou que queríamos (...). Tínhamos armas para sermos cool. Isso era muito mais uma questão de necessidade e pobreza, de poder, e não apenas de prazer. (Hart, 2014, p. 113) Na verdade, o crack não é tão maravilhoso assim, nem tão superpoderoso em sua capacidade de recompen- sa. Ele alcançou popularidade no gueto (mais uma vez, muito menor do que se costuma apregoar), porque não havia muitas outras fontes de prazer nem propósitos ao alcance dessas pessoas (...). (Hart, 2014, p. 261) As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 35 ______________________________________________________________________ 8 Alteramos a citação, já que, no texto traduzido e publicado pela editora Zahar, houve a tradução do termo inglês “addiction” para “vício”. Em função das amplas repercussões do termo “vício” na língua portuguesa, sempre relacionadas a estigmas e preconceitos, preferimos manter na citação o termo “adicção”, peculiar e tradicional em estudos no campo da psicologia, psiquiatria e psicanálise, mes- mo no Brasil. É necessário um esclarecimento um pouco mais detido. O termo “adicção” está em uso na língua e podemos encontrá-lo como verbete em dicionários importantes, como o Houaiss. Neste caso, o dicionário remete o verbete “adicção” ao parônimo “adição” e, dentre as várias acep- ções que este último termo tem, há duas rubricas temáticas (oito e nove) que se referem ao uso nas áreas “psi”: “8. Consumo persistente de drogas, de medicamentos ou de substâncias psicoativas, de origem psíquica ou física, dependência; 9. Propensão a ter hábitos compulsivos, a se comportar de maneira singular e invariável qualquer que seja a situação.” (Houaiss; Villar, 2011, p. 83) Não podemos nos esquecer de que o tráfico de drogas ilí- citas é um crime de proporções internacionais em diversos paí- ses. E são os jovens homens e empobrecidos os que mais mor- rem por causa dessa atividade. Portanto, o fator gênero tem de ser levado em conta muito seriamente quando discutimos esse tema. Não é preciso nem que nos atenhamos a longos estudossobre o assunto, basta nos colocarmos à frente do televisor em um dos muitos programas policiais e vermos mais um jovem morto, tendo como justificativa: “foi morto por causa do envol- vimento com drogas” ou “foi acerto de contas com traficantes”. O dado mais impressionante é que o tráfico de drogas emprega mais de 20 mil entregadores, os chamados “aviãozinho”, a maioria entre 10 e 16 anos, que recebem salários de 300 a 500 dólares, muito mais do que pode- riam obter num emprego formal. Outros milhares espe- ram por uma oportunidade para entrar nesse “negócio” altamente lucrativo. (ONU, 2006) Paradoxalmente, “o uso de drogas se inclui como fonte de socialização e como uma linguagem do adolescer e, quan- do acontece de forma abusiva, constitui-se num problema que pode repercutir em todo processo posterior de vida jovem” (Schenker e Minayo, 2003, p. 300). Portanto, repleto de va- riadas nuances, a vida no tráfico, como mostra a pesquisa de Rodriguez (2013), vai do glamour ao desapontamento: Antes da entrada, o olhar que possuíam sobre o tráfi- co era um olhar glamourizado, fortemente ancorado em imagens que afirmavam um campo de oportunidades: o consumo, a atenção das mulheres, o pertencimento ao grupo, um meio de fugir dos problemas familiares, o al- cance de um poder e de uma nova visibilidade social os fazia sentirem-se “uma autoridade”, “um nome”, alguém que gerava medo e obediência nas pessoas. A imagem que faziam do traficante estava pautada nesta imagem de herói/poderoso, o pai protetor, aquele que consome, anda armado, protege a favela e ainda tem muitas mu- lheres. (...) 36 | Drogas e Contextos Com a vivência cotidiana das práticas do tráfico, novos elementos se agregam a este olhar, e o mesmo se mo- difica. Ao perceberem que não contam com ninguém, já que as traições se revelam uma característica comum na dinâmica do trabalho, a ideia inicial de coesão e acolhida do grupo se desfaz. O desejo de estar com a galera, os gritos de guerra que antes fortaleciam o pertencimento e a identidade com a facção não se sustentam mais. (...). As condições estressantes da atividade no tráfico (a vio- lência, os conflitos com a polícia e facções rivais, as trai- ções no grupo, o risco de vida) provocam ainda um es- tado de angústia permanente, obrigando o integrante a manter-se num estado de prontidão e numa antecipação constate ao risco, dormir “com um olho aberto parece ser a regra para sobreviver”. (Rodriguez, 2013, p. 85-86) 4 • A ética do cuidado Estudos como os de Hart (2014) e Alberti e Íñiguez (2008) têm assinalado a importância de entender os diversos usos das drogas feitos por consumidores, além dos tipos de relações que mantêm entre si e com o próprio ambiente social, ou seja, as redes relacionais que os sustentam. Sob esse ponto de vista, é um erro grave adotar termos pejorativos como “drogados”, “vi- ciados”, “drogaditos” ou “dependentes químicos”. Como os dis- cursos são ações, não há como dissociarmos tais palavras dos efeitos discriminatórios que só afastam os usuários que abu- sam de drogas de qualquer possibilidade de cuidado por profis- sionais de saúde, e só os aproxima do tráfico, da violência, do crime. O mesmo vale para a nominação de alguns locais onde há reunião para consumo de drogas ilícitas, a exemplo dos es- paços considerados públicos9: “boca de fumo”, “cracolândia” etc. O uso de palavras, os discursos, promovem certas rela- ções sociais, criam verdades e interferem no modo como nos relacionamos com humanos e não humanos. Assim, certas versões apresentam efeito de verdade que passam a circular como mais apropriadas que outras nas vozes de profissionais, cientistas ou na mídia em geral, constituindo uma ordem: As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 37 ______________________________________________________________________ 9 É provável que, majoritariamente, o consumo de drogas consideradas ilícitas, pelas característi- cas, dê-se em espaços privados, diferentemente do uso de álcool, por exemplo. (...) o que, em dada época, recorta na experiência um campo de saber possível, define o modo de ser dos ob- jetos que nele aparecem, arma o olhar cotidiano de po- deres teóricos e define as condições em que se pode enunciar sobre as coisas em discurso reconhecido como verdadeiro. (Foucault, 1982, p. 151) Portanto, certas nominações espaciais querem nos fa- zer crer que não há qualquer possibilidade de vida social flu- ída, mas apenas doença, violência e morte. É como se essas pessoas “drogadas” que “habitam a cracolândia” não fossem humanos, mas “zumbis” que lá estão por alguma falta de ca- ráter ou fraqueza de “vontade” e devem ser menosprezadas. Precisamos ter enorme cuidado com as versões de pânico que pretendem mudar o foco dos problemas sociais que envolvem o uso abusivo de drogas. Há, sim, pessoas nesses espaços, com dores e alegrias como qualquer outra. O estudo etnográfico de Alberti e Íñiguez (2008), realizado em Barcelona com usuários de heroína, concluiu que há uma rede de amizades e solidariedade nesse ambiente de consumo que também lhes favorece a permanência nesse espaço. Eles indicam que alguns dos programas de “tratamento” oferecidos a esses usuários falham por enfatizarem somente as “ativida- des desviantes”, isolando-os do convívio social com amigos e familiares e lhes fazendo “experimentar um sentimento de isolamento e de perda de relações sociais” (Alberti e Íñiguez, 2008, p. 443). Ao contrário do que podemos imaginar, atitudes como o roubo contra a família, intimidação e prostituição fo- ram comportamentos rejeitados pelo grupo de consumidores pesquisados. E mais: a pesquisa comprovou que as próprias medidas repressivas - fundamentalmente centradas na conde- nação da “aparência desleixada dos usuários” e realizadas sob a alegação exclusiva de que a atividade de consumo é crime - acabam estimulando problemas de ética ou dignidade, impe- lindo os usuários a realizar roubos, a fim de obter dinheiro para consumir droga (Alberti e Íñiguez, 2008, p. 443). 38 | Drogas e Contextos Ainda em relação a espaços, sabemos que alguns des- ses usuários que abusam de drogas vivem nas ruas (no plu- ral!), em momentos de convivência coletiva. Pacheco (2013) realizou uma pesquisa em Fortaleza (CE) e apontou esse as- pecto de forma importante: No território, que torna-se palco das vivências coletivas, um banco de praça, a depender do momento de intera- ção, pode simbolizar descanso, diversão, agrupamento de sujeitos para fins específicos, esconderijo e observa- tório. (Pacheco, 2013, p. 94) Por fim, não poderíamos deixar de falar dos ansiolíticos (hipnóticos, tranquilizantes, sedativos). Aí, misturam-se à pro- posta consumista as promessas de felicidade, de não ter mais qualquer tipo de sofrimento. É a promessa de diminuir as ten- sões cotidianas apenas tomando um medicamento. Essas são as drogas que mais gozam de popularidade e as mais vendidas no mundo (Masur e Carlini, 1989). O grande consumo delas “é proporcional à produção industrial e à publicidade que as sus- tenta” (Bergeret e Lebralnc, 1991, p. 30). Trata-se de um exem- plo importante de que, às vezes, “(...) as drogas que constituem problemas de saúde não são aquelas ilegais, sem uso médico e apenas vendidas pelos traficantes na ilegalidade; ao contrá- rio, às vezes o problema são os produtos lícitos encontrados nas farmácias” (Masur e Carlini, 1989, p. 64). Esclarecemos que concordamos com diversos pesquisadores e profissionais da área da psicologia em relação à medicalização psiquiátrica: deve ser utilizada em situações de exceção. Sua utilização em situações de extremo sofrimento [...], como nas psicoses e em algumas situações críticas de angústia e depressão paralisantes, que impossibilitam qualquer outra forma de trabalho analíticoou terapêu- tico, não só necessária como muitas vezes se constitui em único instrumento de intervenção em situações onde a palavra não consegue operar. A medicação como um dos instrumentos possíveis no cuidado do sofrimento im- plica uma política de clínica muito diferente daquela que vem se impondo em nossa cultura. Esta última ao redu- As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 39 zir o sintoma a um signo de disfunção do funcionamen- to bioquímico do cérebro, não apenas conjura a chave instituída pelo nascimento da clínica moderna (Foucault, 2003) – a singularidade de cada manifestação para cada pessoa – como também passa a ser mais uma máquina de produção de tipo de subjetividade dominante no con- temporâneo: indivíduos isolados em sua clausura narcí- sica, capturados na lógica do espetáculo, privatizados em seu sofrimento, domesticados pela ciência, fora de si (Birmam, 1999) pela anulação da potência de outramen- to10 do pensamento e do afeto. (Cruz, 2010, p. 21) Acrescentamos, sem delongas, que o consumo de bebi- da alcoólica está em situação semelhante à dos ansiolíticos. É uma droga lícita encontrada de forma farta para consumo que causa sérios problemas sociais e de saúde pública. Um le- vantamento realizado em 107 municípios brasileiros, em 2001, pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), apontou o álcool como a droga mais usada no Brasil. Em estudo realizado em Fortaleza, Furtado e Méllo (2010) pesquisaram a relação possível entre ingestão de bebida alcoólica e violência doméstica: constatou- -se que essa associação é feita de forma direta por todos os profissionais entrevistados, seja na Delegacia da Mulher ou seja no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Sem dúvida, como apontam os autores, não devemos fazer uma relação simplista, já que a bebida por si não faz pes- soas violentas, mas bebida alcoólica associada a uma prática de produção de homens que devem a toda hora provar mas- culinidade, tanto pela ingestão de bebida em elevadas quanti- dades, quanto pela demonstração de força física, produz uma associação perigosamente violenta. Ademais, há pesquisas, como a realizada por Bittencourt (2007), que apontam a bebida alcoólica e o tabaco como as drogas lícitas mais familiares, já que se tem o primeiro conta- to com elas na infância e adolescência. Além disso, a bebida 40 | Drogas e Contextos ______________________________________________________________________ 10 Interpretamos esse conceito como a ação de fazer-se outro, sair das mesmices e continuas repetições. alcoólica aparece também como a droga que estimula o uso de outras e favorece recidivas de pessoas que se submetem a algum tipo de tratamento por abuso de outras drogas. Em nosso país, assistimos à fragilidade e ineficácia de ações políticas, em níveis federal, estadual ou municipal, priori- zando o ataque indiscriminado e frontal ao uso de drogas con- sideradas ilícitas, ao mesmo tempo em que “se faz vista gros- sa” ao uso do álcool. O resultado é que usuários são tratados do mesmo modo que traficantes, lotando o sistema carcerário sem qualquer alternativa de cuidado. Ou seja, o manejo do pro- blema nesse momento no Brasil, contrariando estudiosos de todo o mundo, é cadeia ou comunidades terapêuticas (CTs), ambas sem qualquer preparo para lidar com o problema. As CTs ainda têm um agravante: vêm recebendo recursos públi- cos em detrimento da ampliação e melhoria dos serviços ofer- tados por outros equipamentos e dispositivos que integram a Rede de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, principalmente em prejuízo de investimentos nos Centros de Atenção Psicos- social - Álcool e Drogas (CAPS-AD) e nos Consultórios na Rua. Embora previstas na portaria de número 3088/2011, as CTs vão pela contramão das políticas de redução de danos e da anti- manicomial, já que, de forma geral, pautam-se no paradigma da abstinência como “tratamento” prioritário e/ou exclusivo: “A predominância das Comunidades Terapêuticas tem contribuído para a hegemonia do modelo de atenção baseado na interna- ção e na abstinência como objetivo terapêutico exclusivo” (Al- ves e Lima, 2013, p. 20). O Relatório do Conselho Federal de Psicologia de 2011, realizado após inspeção em 68 CTs no Brasil, concluiu que es- tas isolam e segregam usuários sem lhes oferecer tratamento de saúde adequado (muitas sequer têm profissionais de saú- de nos quadros funcionais); algumas, incorrendo em diversas violências e violações de direitos, terminam por ser espaços religiosos, simulacros de manicômios, na medida em que não trabalham a autonomia do usuário nem prezam pelo convívio com a família e comunidade – dispositivos tidos como base da As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 41 atenção em saúde mental. Ademais, o próprio Governo Federal reconhece as conquistas da Reforma Psiquiátrica que se im- põe em direção oposta a propostas de intenção (compulsória o não): O texto da Lei 10.216, de 06 de abril de 2001, marco le- gal da Reforma Psiquiátrica, ratificou, de forma histórica, as diretrizes básicas que constituem o Sistema Único de Saúde; garante aos usuários de serviços de saúde men- tal – e, consequentemente, aos que sofrem por transtor- nos decorrentes do consumo de álcool e outras drogas – a universalidade de acesso e direito à assistência, bem como à sua integralidade; valoriza a descentralização do modelo de atendimento, quando determina a estrutura- ção de serviços mais próximos do convívio social de seus usuários, configurando redes assistenciais mais atentas às desigualdades existentes, ajustando de forma equânime e democrática as suas ações às necessida- des da população. (Brasil, 2004a, p. 6, grifos nossos) Como buscamos expor, as drogas psicoativas nunca es- tiveram fora do convívio em sociedade, mas sofreram modifica- ções importantes em usos com o avanço do sistema capitalista e com o crescimento da chamada “sociedade de risco” (Spink et al, 2002). Assim como os “problemas ambientais” e a “cri- minalidade”, as drogas psicoativas passaram a fazer parte do risco que se supõe ameaçar a vida em sociedade, constituindo, por outro lado, nova oportunidade de mercado: “a indústria da segurança cresce solidamente desde há anos, o planejamento das cidades começa a tê-la em conta no seu desenho, gerando zonas de condomínio fechado e levando a cabo operações de renovação urbana em áreas problemáticas.” (Fernandes, 2009, p. 13) Mesmo presente em toda a história da humanidade, o consumo de drogas está sendo vivido como um “mal contem- porâneo”. Porém, essa situação só pode ser entendida se le- varmos em conta desde a ordem econômica mundial até os modos de relações interpessoais e propostas de vida que bus- cam hegemonia. Apenas assim podemos avaliar os fatores que 42 | Drogas e Contextos contribuem para o aumento não só de usuários, mas de pes- soas que fazem do uso a meta prioritária das próprias vidas. O consumo de psicoativos não está mais restrito ao discurso contracultural que teve o ápice nas décadas de 1960 e 1970, mas se disseminou por toda sociedade como forma recreativa e também como tentativa de diminuir sofrimentos (Nogueira, 1999). Precisamos rever os caminhos propostos pelas políticas dedicadas ao uso abusivo de drogas, colaborando com estu- dos e pesquisas que busquem novas estratégias de enfrenta- mento. Nenhuma abordagem isolada tem chance de sucesso nessa tarefa. O problema ético fundamental, que deve nos guiar em todo esse trabalho, já foi apontado por Nogueira Filho (2001) e se resume na questão: vamos reduzir as nossas práticas clíni- cas a neurotransmissores e reduzir as pessoas que atendemos a seres“fechados em uma mônada de neurônios”, ou vamos tratar toda a problemática do que se costuma chamar de do- ença mental “abertos à cultura”? É preciso diferenciar as mo- dalidades de relação das pessoas com as drogas. Sabemos que os costumes não são exatamente os mesmos para toda população, ainda mais quando se trata do uso de drogas psico- ativas. Para nós, independente da droga envolvida, importa o sofrimento humano. É uso abusivo a utilização de drogas para falsear o sofrimento, sejam elas ministradas por indicação mé- dica, sejam as utilizadas por imposição do mercado legal ou ilegal. Drogas usadas para momentos de recreação não devem se impor em uma relação de dependência que visa a mascarar sofrimentos. Nenhuma droga tem a força mística de impedir isoladamente angústias, seja a ministrada por médicos e pro- pagandeadas por grandes laboratórios, sejam as tentativas lei- gas de plagiar o ato médico pela automedicação ou uso de dro- gas psicoativas. Ao mesmo tempo, as políticas militaristas que levam intolerância ao uso recreativo devem ser repensadas. Ou seja, em nosso campo de estudo, apostamos mais e mais em intervenções pontuais, singulares, que levem em conta as redes sociais envolvidas em cada situação. As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 43 Assim, a ética nos impele a criticar análises simplistas e alarmantes que identificam problemas nas pessoas, deixando de tocar em problemas sociais fundamentais, como o racismo, o machismo e a união de tudo isso com a pobreza. A nossa relação com usuários de droga que delas abusam não pode ser policialesca. Ficou cada vez mais claro pra mim que nossos próprios preconceitos sobre utilização de drogas e nossas políticas punitivas em relação aos usuários faziam com que a as pessoas que usassem drogas parecessem menos huma- nas e menos racionais. O comportamento dos usuários sempre foi explicado em função das drogas, em primeiro lugar, e não considerados à luz de outros fatores igualmen- te importantes do mundo social (...). (Hart, 2014, p. 250) O cuidado que deve ser dedicado a alguém que abusa de drogas, e por isso sofre, deve ser o mesmo voltado a qualquer outro tipo de sofrimento humano: na perspectiva de que cada pessoa participe ativamente do “cuidado de si”. Políticas po- dem e devem ser feitas, desde que (como indicam documentos do próprio Governo Federal) sejam “comprometidas com a pro- moção, prevenção e tratamento, na perspectiva da integração social e produção da autonomia das pessoas” (Brasil, 2004a, p. 5). Essa tão almejada “autonomia” deve fomentar práticas realmente libertárias e, por isso, evitar intervenções globalizan- tes. Mais do que tudo, que nossas práticas respeitem “todo o mistério que existe em alguém...” Ao mesmo tempo, esperamos que este texto se alinhe a outros escritos que fogem ao local comum de condenar ou exaltar o uso de drogas, traçando linhas de fuga que escapem a esses maniqueísmos. Esperamos que tenhamos consegui- do deixar claro que o este consumo está atrelado a modos de viver e se constitui também como modo de viver. Ao exercer- mos a vida, produzimo-nos, constituindo o que alguns chamam de “subjetividade”, mais adequadamente também chamada de “processo de subjetivação”. Tal processo só ocorre na pro- dução do comum, advindo da cooperação e da comunicação 44 | Drogas e Contextos (Hardt e Negri, 2012). Devemos ir além da antinomia privado e público. Nossa “subjetividade” não é privada, mas, trata-se de uma estratégia de vida advinda da relação com o comum. As drogas certamente farão parte dessa estratégia, quiçá como modos de potencializar a vida em vez de se tornarem cadeias de sofrimento. Aprendemos com Freud que toda cultura gera algum mal-estar. Talvez em nossa cultura a proliferação do uso abusivo de drogas seja um mal-estar que se faz na ilusão da completude humana. Portanto, nossa atuação não deve se res- tringir a efeitos químicos, ou a problemas de ordem pessoal (transtornos mentais), mas entendemos que, ao lidarmos com problemas nesse campo das drogas, devemos interligá-los à “ordem social”. Baudelaire afirmou nos escritos “Paraísos Artificiais”: ... o haxixe será, para as impressões e os pensamentos familiares [do ser humano], um espelho que aumenta, mas um simples espelho” (2007, p. 23) O vinho é como [o ser humano]: não se saberá nunca até que ponto podemos estimá-lo ou desprezá-lo, amá-lo ou odiá-lo, nem de quantos atos sublimes ou perversidades monstruosas ele é capaz. Portanto, não sejamos mais cruéis com ele do que com nós mesmos e tratemo-lo como um igual. (2007, p. 187) Assim, o que torna o haxixe, o vinho e outras drogas um espelho ou uma lente de aumento são as nossas invenções vividas ou só projetadas. Cuidemos delas para que não se tor- nem infernos artificiais, muito menos ilusórios paraísos, mas tão somente momentos de vida fugazes. O mesmo vale para a ioga, a terapia, a profissão, o jogo, o amor, etc... As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência - Ricardo P. Méllo | 45 Referências ALBERTI, P.; ÍÑIGUEZ, L. Using drugs: the meaning of opiate subs- tances and their consumption from the consumer perspective Addic- tion Research and Theory, v. 16, n. 5, p. 434–452, 2008. ALVES, V. S.; LIMA, I. M. S. O. Atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no Brasil: convergência entre a saúde pública e os direitos humanos. Rdisan, v. 13, n. 3, p. 9-32, 2012/2013. ANDERSEN, S. L.; ARVANITOGIANNIS, A.; PLIAKAS, A. 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Acesso em: 13/6/2012. 52 | Drogas e Contextos Capítulo 2 A perspectiva interseccional na compre- ensão do uso de álcool entre a juventude quilombola Roseane Amorim da Silva Jaileila de Araújo Menezes 1 • Introdução Este estudo faz parte da pesquisa de mestrado desenvol- vida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univer- sidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2013. Buscamos investigar os significados do uso de álcool entre os(as) jovens remanescentes quilombolas do município de Garanhuns, Per- nambuco, em interface com as questões de gênero, geração, classe social e raça/etnia. Para isso, realizamos uma pesquisa qualitativa de inspiração feminista. Este tipo depesquisa convi- da os(as) pesquisadores(as) para um processo de reflexivida- de, uma espécie de autorreflexão acerca de quem somos, de como as nossas identidades interferem no nosso trabalho e, também, como o nosso trabalho influencia nosso self (Neves e Nogueira, 2005). A partir desse processo de reflexividade, buscamos sub- sídios na interseccionalidade para refletirmos sobre os sig- nificados do uso de álcool, entre os(as) jovens. A noção de interseccionalidade se originou com as feministas negras nor- te-americanas, em virtude de questionamentos sobre o univer- salismo da categoria “mulher”; com isso, as autoras Kimberlé Crenshaw (2002), Avta Brah (2006), Adriana Piscitelli (2008) e outras fazem uso do conceito para abordar os marcadores: gê- nero, geração, raça/etnia, classe e outros, de modo articulados, pois, segundo elas, estes pontos estão entrelaçados na cons- tituição das desigualdades sociais. Ou seja, os marcadores de opressão na sociedade, não agem de forma independente uns dos outros; pelo contrário, se interrelacionam criando um siste- ma que reflete a intersecção de múltiplas formas de discrimina- ção (Nogueira e Oliveira, 2010). Rodrigo e Ordaz, (2012) considerando o uso de álcool e outras drogas a partir da noção de interseccionalidade, ressal- tam que essa perspectiva oferece uma base multidimensional para dar conta da complexidade desse fenômeno: la aplicación de este enfoque interseccional al ámbito del estudio de los usos de drogas supone también analizar cómo los mecanismos de subordinación como el andro- centrismo, el sexismo, el heterosexismo, el clasismo, el etnicismo, el racismo, entre otros, interactúan generando efectos únicos en las experiencias de los usuarios y usua- rias de drogas. En esta dinámica, son especialmente de- cisivos la (re)producción y el reforzamiento de prejuicios y estereotipos sobre las personas y los grupos que usan drogas, generando nuevos procesos y relaciones de de- sigualdad. (...) Se considera igualmente los puntos de vista referentes a la familia, la salud o la moralidad aso- ciados a los usuarios y usuarias de drogas, legitimando la criminalización y la medicalización de tales prácticas y de quieneslas llevan a cabo (Rodrigo e Ordaz, 2012, p.89). Todavia, é importante lembrar que nem sempre estas ca- tegorias sociais de diferenciação, sobretudo classe, raça e gê- nero, atuam como fontes de desempoderamento. A depender do contexto social, classe, raça e gênero, podem atuar como fontes de projetos decoloniais¹. Quando pensamos sobre o uso do álcool no contexto das comunidades quilombolas, consideramos importante recorrer à História para compreendermos como essa substância pas- sou a ser utilizada nessas comunidades. Assim, encontramos dados que apontam que o uso de álcool sempre foi realizado pelos(as) quilombolas, com finalidades diversas. É relatado por 54 | Drogas e Contextos ______________________________________________________________________ ¹ A colonialidade do poder, entendida como um padrão de poder que se constitui com o sistema- -mundo moderno/colonial, engendrou simultaneamente lutas e resistências. Em outras palavras, as populações subalternizadas e colonizadas não se sujeitaram passivamente ao padrão de poder que as inferiorizam; ao contrário, elaboram projetos de resistência e de ressignificação da vida, os projetos considerados decoloniais (Bernardino-Costa, 2013). Guimarães (2005) que a aguardente de cana e outros tipos de bebidas alcóolicas integram historicamente a realidade e a di- nâmica social dos quilombos. Isso se deu não só no âmbito in- terno, mas também nos mecanismos externos de reprodução, como o tráfico de escravos. Ao lado de outros produtos utilizados como moeda na aquisição de escravos no continente africano, a aguarden- te teve importância fundamental, principalmente a partir da segunda metade do século XVIII. Os interesses conflitantes entre os produtores de vinhos destilados e os brasileiros (de aguardente) levaram a Coroa, em 1649, a proibir a venda de aguardente no Brasil, mas com duas exceções: a proibição não se aplicava a Pernambuco e o uso da bebida ficava restrito à população escrava, sendo permitida a produção apenas para consumo próprio. No entanto, essa medida não teve efeito, dada a impossibilidade de fiscalização. Na realidade, a aguar- dente foi o produto que intermediou um amplo movimento, que tinha na extremidade a captura de povos inteiros para serem escravizados e, na outra, a exploração destes (já na condição de escravos). Assim, o produto teve um conteúdo político que remetia à intensa estrutura de dominação e exploração que se expressou tanto na empresa do tráfico quanto na sociedade escravista colonial (Guimarães, 2005). No que se refere ao uso de álcool pelos(as) jovens qui- lombolas não encontramos nas bases de dados investigadas (Biblioteca Digital de Teses e Dissertações – BDTD; Scielo- -Scientific Eletronic Library, online; Biblioteca Virtual de Saúde – BVS) estudos que abordem essa realidade. O que nos chama atenção para a invisibilidade dessa população que também não tem feito parte das discussões sobre juventude rural e, con- sequentemente, para os problemas sociais vivenciados pela mesma. Refletindo sobre os(as) jovens rurais, Wanderley (2007) pontua que esses(as) pertencem à família de agricultores, que são numerosas e desenvolvem estratégias de sobrevivência baseadas em arranjos familiares para o acesso à terra, diversi- Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 55 ficação da produção para consumo próprio e comercialização, e a participação dos membros da família nas atividades em prol da coletividade. Essa realidade também é vivenciada pelos(as) jovens quilombolas. Estes(as) têm as trajetórias marcadas por situações em que ora a homogeneidade conferida à própria geração prevalece e ora a heterogeneidade das condições de gênero, raça/etnia e classe social definem os percursos. Não podemos nos esquecer de que eles e elas se inserem na socie- dade em uma posição desigual e carregam o estigma histórico sobre o local de moradia, quilombola e rural. Ainda sobre o uso de álcool é importante ressaltar que esse pode ter vários significados, de acordo com o contexto onde é feito, e quem faz o uso. E, neste estudo, consideramos também que o consumo de álcool entre os(as) jovens pode es- tar relacionado às dificuldades que vivenciam cotidianamente e que são marcadas pela condição de jovens rurais quilombolas. E chamamos atenção para essa realidade, que pode ocasionar implicações na qualidade de vida dos(as) jovens, repercutindo na realização dos projetos que possuam. A seguir, abordare- mos os caminhos percorridos para a realização do estudo e de nossas reflexões. 2 • Caminhos percorridos Este estudo foi feito em duas comunidades de remanes- centes quilombolas, Castainho e Estivas, em duas etapas. Na primeira, realizamos visitas aos locais e observação participan- te nos diversos espaços existentes: estivemos junto aos(às) jovens na escola, na creche, na unidade de saúde, nas casas dos(as) moradores(as), no campo de futebol, nas festas que ocorreram, o que nos possibilitou desenvolver a pesquisa a partir de uma orientação etnográfica. Na experiência etnográfica, observamos idiossincratica- mente uma cena da qual fazemos parte. O que envolve, além da relatividade que a subjetividade impõe à percepção, a ca- pacidade de se incluir como peça exterior, cuja presença altera 56 | Drogas e Contextos a cena. Não se trata apenas de uma observação que altera a situação observada, mas de uma alteração produzida pela participação do(a) observador(a) na cena (Silva, 2009). Assim, foi preciso que estivéssemos em todo momento questionando aquilo que nos parecia corriqueiro, trivial. Na segunda etapa,realizamos 20 entrevistas semiestruturadas com os(as) jovens quilombolas, com a faixa etária entre 18 e 24 anos. As entrevis- tas ocorreram nos espaços pelos quais circulam nas comunida- des e nas próprias casas. Os dados construídos através dessas duas etapas foram considerados com base na perspectiva da análise crítica do discurso e da interseccionalidade de gênero, geração, classe social e raça/etnia. A análise do discurso permite “um apro- fundamento da compreensão das estratégias discursivas que moldam as formas distintas de construção do meio social, ao colocá-las abertamente sob a crítica, acabando por facilitar os processos de transformação e não os reproduzindo” (Nogueira, 2001, p. 47). A interseccionalidade: oferece ferramentas analíticas para apreender a articu- lação de múltiplas diferenças e desigualdades. É impor- tante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexua- lidade, mas da diferença, em sentido amplo para dar ca- bida às interações entre possíveis diferenças presentes em contextos específicos (Piscitelli, 2008, p. 269). Na análise do discurso e interseccional, estivemos aten- tas a como operam os marcadores de desigualdade de modo relacional, embora tenhamos percebido também que, em al- guns momentos da análise, um dos marcadores opera com maior relevância, o que não significa que os demais não es- tejam presentes. Apresentaremos a seguir o que é ser um(a) jovem quilombola para estes(as) e alguns dos significados do uso de álcool atribuídos pelos(as) mesmos(as). Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 57 3 • Ser jovem e quilombola Quando buscamos conhecer o que é ser um(a) jovem qui- lombola, muitos(as) dos(as) participantes da pesquisa fizeram referência ao preconceito sofrido, sobretudo quando em con- tato com os(as) moradores(as) da cidade². Alguns e algumas jovens por sofrerem preconceito gostariam de morar em outro lugar, não se sentem pertencentes à comunidade de origem, ao sítio. As comunidades são chamadas pelos(as) moradores(as) com essa denominação, “sítio”. Como pode ser observado no relato de uma jovem: Eu não gosto nem de dizer que sou do quilombo, porque eu não gosto não de dizer que eu sou do quilombo. O povo oia, uma situação precária. Se eu pudesse, eu me mudava, porque, assim, os quilombolas têm uma tradi- ção e eu já tenho outra, quilombola é mais negócio as- sim de quilombo, gosto não. A maioria do povo da cidade tem preconceito: aconteceu um assalto, pensa logo que é no Castainho, porque os povo da cidade pensa que o povo aqui da Estivas e do Castainho são tudo mafio- so, trombadinha, e não são, porque aqui, apesar de ter muita coisa ruim, tem muita gente boa. Mas o povo da cidade só fala mal do povo do sítio. Também o povo do sítio não tem vergonha, mulher, só vive na porta da dele- gacia, por isso que o povo da cidade fica dizendo (que) são um bando de mundiça, por isso que eu não gosto de dizer que sou daqui, porque eu sou diferente. (Bahati³, F., 22 anos, solteira) Podemos inferir, quando a jovem afirma que “os quilom- bolas têm uma tradição, e eu já tenho outra, quilombola é mais negócio de quilombo, gosto não”, que existe uma dificuldade nas comunidades de repassar geracionalmente o orgulho iden- titário. Ficamos refletindo o porquê disto acontecer, pois as di- ficuldades que precarizam as condições de existência dos(as) quilombolas poderia, por outro lado, justamente levá-los(as) a 58 | Drogas e Contextos ______________________________________________________________________ ² Referimo-nos a cidade de Garanhuns, que fica a 6 km de distância das comunidades quilombolas. Vale destacar a ausência de transporte público que garanta mobilidade entre esses contextos. ² Os nomes usados neste estudo são fictícios no intuito de preservar a identidade dos(as) partici- pantes. divulgar e transmitir as questões culturais como forma de resis- tência. Talvez isso não esteja sendo realizado devido às dificul- dades de acionar a participação política, a entrada nos meios de comunicação de massa, as novas atividades que acabam competindo com as atividades tradicionais, em que os ensina- mentos históricos eram repassados, entre outros fatores. Com isso, há um enfraquecimento do sentimento de pertencimento à coletividade, que pode ter repercussões negativas na vida dos(as) jovens. Percebemos ainda o quanto as questões de raça/etnia e classe produzem situações que oprimem e preca- rizam a vida dos(as) quilombolas, de modo a ameaçar o reco- nhecimento identitário, por meio da negação pelos(as) jovens da condição vivenciada por essa população. As comunidades são lugares marcados pela falta de equipamentos que garan- tam a assistência como as destinas à saúde, educação e lazer. Outra questão é que alguns e algumas jovens afirmaram não se importar com o preconceito sofrido, como o jovem do re- lato abaixo que se referiu a situações que o desqualifica como algo normal: Quando a gente passa na cidade, tem gente que diz “Oia os negro do Castainho”. Já vai: “Eu sou negro, mas não me troco por vocês não”. Mas eu não ligo não pra essas coisas não, acho até normal. Porque, desde pequeno, já cresce com isso na cabeça, ‘negro do Castainho’, normal, a pessoa nem liga mais. (Yerodin, M., 22 anos, solteiro) Nesses discursos, chamou-nos atenção o fato dos(as) jo- vens considerarem a violência sofrida como algo normal, sem demonstrarem insatisfação com essa situação, e ficamos nos indagando o porquê desse modo de pensar. Será que ignorar a realidade é uma forma que encontraram para lidar com o so- frimento vivenciado? A violência racial constitui um constante ataque às iden- tidades e subjetividades dos(as) excluídos(as), por meio da veiculação de um discurso que estabelece o padrão cultural dominante - capitalista, branco e androcêntrico - ao qual a po- Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 59 pulação negra é constantemente pressionada a se adaptar e moldar. A dominação racial estabelece ao racialmente domina- do o lugar da desonra, o lugar de objeto do desejo do outro. O racismo, o sexismo e a classe social se reforçam mutuamente, na medida em que ocorre uma potencialização entre a domina- ção racial/étnica e a dominação de gênero, e fazem com que grupos racialmente dominados estejam como quem circula por territórios de outrem (Anjos, 2004). Com isso, as consequên- cias são diversas e percebemos que essas podem repercutir no uso de álcool. Os(as) jovens quilombolas relataram que o principal ob- jetivo para os projetos de vida é ter um emprego e o casamen- to. Mas, vários fatores dificultam de eles e elas conseguirem um trabalho formal: o nível de escolaridade baixa, a condição de raça/etnia, o local de moradia. Alguns e algumas afirmaram que, quando vão à cidade procurar trabalho, se revelarem que moram no “sítio”, é difícil serem contratados(as), porque as co- munidades são afastadas da cidade e também pelo estigma por serem remanescentes quilombolas. Com isso, percebemos que vários fatores estão presentes e, de modo relacional, con- tribuem para as dificuldades de empregabilidade entre os(as) jovens: gênero, raça/etnia, classe, território/local de moradia, entre outros. As desigualdades de gênero e raça/etnia se mostram como preditores significativos do desemprego. As mulheres ne- gras são as que possuem o mais alto nível de desemprego, a posição mais vulnerável no mercado de trabalho (IPEA, 2010), para as quais a interseccionalidade entre as condições raciais e de gênero agravam a discriminação sofrida. Caldwell (2000, p. 100) chama atenção para o fato de que “as relações de poder têm moldado as vidas, posições so- ciais e identidades de mulheres negras e brancas, realçando a inter-relação de raça egênero na sociedade brasileira”. Há um aprisionamento do corpo e imagem da mulher negra a uma posição no sistema de estratificação social brasileiro, uma he- rança do nosso passado colonial, que se tornou um fenômeno 60 | Drogas e Contextos retroalimentado pelas práticas cotidianas atuais, que, através dos eixos de poder, raça, classe, gênero, geram e reforçam as opressões, conforme percebemos. É importante ressaltarmos que a dificuldade para conse- guir um emprego formal na área urbana do município faz com que esses(as) jovens trabalhem na informalidade, ficando mais uma vez à margem da sociedade, sem carteira de trabalho as- sinada, não podendo usufruir dos direitos de todos(as) os(as) trabalhadores(as), sendo também mal remunerados(as). As- sim, algumas jovens exercem atividades como domésticas e em salões de beleza na cidade, e os jovens trabalham como serventes de pedreiro, em oficinas mecânicas, vendedores am- bulantes, entre outras atividades. Vimos que muitos(as) jovens abandonaram os estudos, sobretudo pela necessidade de tra- balharem, e algumas por terem engravidado e não contarem com uma rede que ajudasse nos cuidados com a criança. Encontramos também os(as) jovens que possuem uma visão positiva de ser quilombola e que relataram um pouco do que a comunidade oferece para se divertirem, como no relato abaixo: Na verdade, ser um jovem quilombola, aqui dentro, a pessoa é mais livre: a gente sai, aproveita o dia, por- que não tenho compromisso, enquanto não começa a escola. A pessoa sai, fica conversando com os outros, se empolgando, pra o dia passar mais ligeiro. Quando não, a gente sai pra os açude que tem aqui perto. Quando é tempo de fruta, a gente sai pra se divertir, pra umas grota que têm plantação de manga aqui perto. Aí, sai pra curtir e se divertir, agora tudo na brincadeira. (Rashid, M., 18 anos, solteiro) Percebemos que alguns e algumas jovens fazem refe- rência a um modo de vida não urbano que eles(as) gostam de manter, pois têm a possibilidade de usufruir da natureza; por outro lado, vimos o quanto a falta de equipamentos sociais para lazer, formação e capacitação dos(as) jovens nas comunidades acaba fazendo com que recorram sempre às raras atividades para “passar o tempo” e se divertir. Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 61 Existe uma circulação dos(as) jovens quilombolas entre os contextos rural-urbano. Estes(as) costumam frequentar a cidade em dias de festa, para fazer compras, passear, ter cui- dados em relação à saúde, trabalhar e, principalmente, para estudar. Os(as) jovens e adultos da área urbana de Garanhuns também costumam frequentar as comunidades, sobretudo nos fins de semana, quando participam de torneios de futebol aos domingos e vão aos bares. Lá, eles e elas dançam, ligam o som de carro, bebem e namoram. Percebemos que os(as) jovens quilombolas aces- sam o urbano, mas precisam retornar, sem poder usufruir de muitas das coisas que este mundo possui. Já os(as) jovens urbanos(as) vão às comunidades quilombolas e nestas reatua- lizam relações hierarquizadas, pois usufruem do local de modo invasivo, numa dinâmica totalmente diferente da vivenciada pelos(as) remanescentes quilombolas quando estão na cida- de. Estes procuram manter discrição num espaço que “não é deles”. Os(as) urbanos(as) chegam de carro nas comunidades, ligam o som em alto volume, incomodam algumas pessoas do local e não são repreendidos porque acabam colaborando para movimentação dos bares que fazem parte da renda de alguns moradores(as). Nesse sentido, observamos que os espaços rural/urba- no - ao mesmo tempo em que possibilitam que os(as) jovens urbanos(as) e quilombolas se aproximem e vivenciem novas experiências - segregam estes(as), principalmente os(as) qui- lombolas. Vejamos o relato a seguir que apresenta como ocor- re a interação entre os(as) jovens quilombolas e urbanos(as) nas comunidades: Vem muita gente da rua nos finais de semana pra os bares. Eles chegam, ligam o som do carro e ficam lá bebendo, dançando. Eu bebia mais com eles antes, que todo domingo eu ‘tava nos bar, em festa; agora, depois que eu tive a menina, eu não bebo muito com eles não, só às vezes que eu vou pra o bar. Bebo mais em casa mesmo agora. (Mali, F., 24 anos, casada) 62 | Drogas e Contextos O uso de álcool tem funcionado como uma prática que faz parte da sociabilidade entre os mundos rural e urbano, aproximando os(as) jovens no contexto das comunidades qui- lombolas. Pois, vimos também que os(as) que não fazem uso de álcool e não frequentam os bares não interagem com os(as) urbanos(a) no espaço das comunidades, do mesmo modo que ocorre com aqueles(as) que bebem. Constatamos também que o tipo de bebida é um dos elementos que distingue quilombo- las dos(as) jovens urbanos(as) no contexto comunitário. Nas festas e nos bares observados no presente estudo, vimos que o consumo de aguardente entre os(as) jovens quilombolas é muito comum, e os(as) urbanos consomem principalmente cer- veja. A bebida dos primeiros possui alto teor alcoólico, produz efeito mais rápido do que outros tipos e o custo é menor. As- sim, percebemos que isso também define status no contexto quilombola. 4 • Os(as) jovens quilombolas usuários(as) de álcool Nas observações e nas entrevistas realizadas, percebe- mos que muitos(as) jovens, adultos e idosos(as) quilombolas consomem álcool. As que fazem uso e frequentam os bares ge- ralmente são as solteiras e algumas têm filhos(as). Há também mulheres jovens casadas que frequentam os bares na com- panhia das amigas e parentes (irmãs, cunhadas), e tivemos conhecimento de algumas que frequentam com os companhei- ros, mas essa não é uma prática frequente. Em relação aos homens jovens, encontramos solteiros que estudam e/ou trabalham na área urbana de Garanhuns ou nas comunidades; os que não estudam, não trabalham; os que são pais e jovens casados. Estes, mesmo com família, costu- mam frequentar os bares durante a semana e nos fins de se- mana, quando consomem álcool. A seguir, podemos observar o relato de uma jovem sobre o uso: Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 63 Eu bebo, só assim pra me divertir mesmo. Bebo com as amigas, fica lá no bar todo mundo: começa na cerveja, de- pois vai pro rum, Pitú4; quando todo mundo tem uma quan- tia boa, a gente bebe uísque. (Jamila, F., 18 anos, solteira) Como podemos observar, a bebida é um elemento que faz parte dos momentos de sociabilidade, de encontro, em que as amigas bebem e conversam. Chama-nos atenção também a questão relatada por Jamila: quando elas possuem mais di- nheiro, compram uísque. A mulher ter condições financeiras de bancar a própria bebida lhe atribui certo poder no próprio contexto, pois visibiliza ter algum recurso, afirmando em algum nível a individualidade dela. A situação financeira também fa- vorece a saída do espaço doméstico e a ampliação do papel tradicional de dona de casa. É importante lembrar que gênero é constituído e repre- sentado de maneira diferente segundo a localização de cada sujeito dentro das relações globais de poder. A inserção nas relações globais de poder se realiza através de uma miríade de processos econômicos, políticos e ideológicos. Dentro des- sas estruturas de relações sociais, as mulheres não existem apenas como mulheres, mas como categorias diferenciadas, tais como “mulheres da classe trabalhadora”, “mulheres cam- ponesas”, “mulheres imigrantes”. Cada descrição está referida a uma condição social específica (Brah, 2006, p. 341). Assim é que, nas comunidades de remanescentes qui- lombolas, as mulheres podem sofrer as desigualdades e a opressão de modos diferenciados, de acordo com a posição que ocupam; se trabalham na agricultura, em casa de família ou na cidade;se são esposas ou filhas de pessoas que têm uma visibilidade dentro do contexto, a exemplo das lideranças quilombolas, entre outras. Diferença nesse sentido é também de condições sociais, de modo que o foco analítico está co- locado na construção de categorias de mulheres dentro dos processos estruturais e ideológicos mais amplos (Brah, 2006). 64 | Drogas e Contextos ______________________________________________________________________ 4 Marca de aguardente popular na região. No contexto das comunidades quilombolas investigadas, as mulheres também realizam a iniciação ao uso de álcool das mais jovens, até por estarem cumprindo a função tradicional atribuída, a de cuidar dos irmãos/irmãs mais novos(as), como no relato abaixo. Eu bebia com meus 13, 14 anos, porque eu saía com a minha irmã pra o bar. Aí, ela bebia e me dava também. Eu bebia. Minha irmã tinha uns 17, 16. Minhas primas também gostavam muito, aí, nós ia, saía pra casa onze horas da noite quando o bar ia fechar, aí, ficava lá be- bendo, dançando, mas eu não fazia o que elas faziam não, porque minha irmã saía com os cabra e eu ficava no bar esperando ela, porque, se eu chegasse em casa sem ela, mãe ia dizer coisa com nós duas. Aí, ela saiu e eu ficava, mas eu não fazia o que elas faziam não. (Bahati, F., 22 anos, solteira) Outra questão presente nesse relato é a idade em a que os(as) jovens se referem para o início do uso de álcool. Alguns e algumas tiveram as primeiras experiências de consumo com 13, 14, anos; outros, antes. Esses dados corroboram com os estudos realizados com jovens de áreas urbanas, inclusive com um estudo realizado com os(as) estudantes de escolas públicas e privadas de Garanhuns, em que foi verificado que o início do consumo ocorre entre 13 a 15 anos, em ambos os sexos. A maioria dos(as) estudantes começou a usar álco- ol em festas e na companhia de amigos(as), sendo estes(as) considerados(as) uma das maiores influências para que ocorra o início e a continuidade do uso (Silva et al, 2010). Durante as observações realizadas nas comunidades, sobretudo nos dias de festa, pudemos perceber que alguns meninos, que aparentavam ter menos de 15 anos, também fa- ziam uso de álcool com os grupos de amigos(as), mas o início do consumo com familiares é uma prática comum. Os(as) jo- vens quilombolas vivem em um contexto em que o uso de álco- ol faz parte da cultura, da sociabilidade, do lazer e do trabalho, presente nos espaços públicos e privados das comunidades, e vimos também que é transgeracional. Um dos fatores que Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 65 devem ser considerados é a necessidade da atuação de políti- cas públicas para que o uso não se torne abusivo, o que pode desencadear problemas, a exemplo de doenças, violência de diversos tipos e acidentes automobilísticos. Diante desse contexto, buscamos conhecer os significa- dos do uso de álcool para os(as) jovens e encontramos que esses são diversos: relacionado à alegria, coragem, para se refugiar dos problemas, esquecê-los; lidar com sentimentos como o de raiva, fracasso; como algo que facilitou mudanças na vida consideradas pelos(as) jovens positivas, entre outras situações. Vejamos os relatos a seguir: A bebida dá alegria, que a pessoa não tem outra coisa pra se divertir, aí, a bebida dá alegria. (Ghali, M., 18 anos, solteiro) (...) eu também bebo, assim, pra me divertir, porque eu gosto da bebida, e por aqui não tem nada, aí, todo mundo vai beber pra se divertir. Quando eu estou com raiva, eu bebo, pra me embebedar, esquecer tudo. Quando eu não estou, eu bebo feliz da vida. (Randa, F., 21 anos, solteira) Podemos perceber nos relatos acima que fazem parte das motivações a alegria que, segundo os(as) jovens, o álcool proporciona, é um meio de diversão. E isso é algo muito fre- quente, nos discursos delas(as) e adultos(as) quilombolas, o fato de que na comunidade não há nada para fazerem, nada para se divertirem, então, o uso funciona como uma prática de lazer. Outra questão é o consumo no intuito de esquecer algo que causou algum desconforto na vida; e, referidos por homens e mulheres jovens, problemas financeiros e familiares. No relato abaixo, pode ser observado o discurso de um jovem que trabalha e costuma fazer uso de álcool. A bebida para ele parece funcionar como uma forma de relaxar, de se distrair das atividades cotidianas que muitas vezes são difíceis. Bebo, Pitú é boa demais, comecei com uns 13 anos, mas é bom, porque a pessoa trabalha a semana todi- nha. Quando não ‘tá trabalhando tem que vir pra o bar se divertir, dançar, já trabalha a semana toda. (Em quais 66 | Drogas e Contextos lugares você costuma beber?) Bebo pro lado daquelas bandas ali, aí, bebo sozinho, bebo acompanhado, no bar, em casa, em todo canto por aqui eu bebo. Eu, pra beber, não tem hora boa, não tem hora ruim, eu bebo qualquer hora, todo dia uma dose, é porque eu gosto mesmo da bebida, eu vou deixar de beber uma coisa tão boa dessa? (Ghedi, M., 20 anos, casado) Encontramos também jovens que atribuem um valor posi- tivo ao início e à continuidade do uso de álcool, pois percebem que a bebida proporcionou mudanças de vida, como podemos observar a seguir: Desde que eu comecei a beber que minha vida ‘tá mais feliz, me divirto com minhas amigas, a gente vai pra o bar, fica dançando, eu acho bom. (Halima, F., 18 anos, solteira) Esse relato da vida “mais feliz” depois do uso de álcool é algo mais presente nos discursos das jovens, mesmo que os jovens digam que beber é bom, que traz alegria, que se diver- tem. Quando algumas se referiram às mudanças, é como se a bebida funcionasse como um elemento favorecedor ao empo- deramento das mulheres na saída do privado para o público. Esta referência foi feita por jovens solteiras e casadas, ainda que a comunidade não aceite essa prática quando realizada pelas mulheres. Em um estudo realizado por David e Caufield (2005) com mulheres de classes populares, foi visto que algumas veem o uso do álcool como um fator de relaxamento e lazer, sobretudo quando associado à companhia do companheiro. O que parece significar também, para as jovens casadas, uma forma de po- der estar na companhia dos maridos, de interagir socialmente com eles. As motivações para o uso de álcool são diversas e estão de acordo com as situações juvenis vivenciadas. Um exemplo disto são os homens jovens casados que afirmaram que be- bem por diversão e para lidar com as dificuldades do dia a dia; jovens mulheres casadas que bebem porque os companheiros bebem, jovens solteiras que bebem para se divertir, para estar Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 67 no bar paquerando. E várias outras situações que perpassam a relação dos(as) jovens com o uso dessa substância psicoa- tiva. Existe uma reprovação nas comunidades em relação ao uso de álcool feito pelas mulheres, mas algumas jovens não veem nenhum problema relacionado às mulheres beberem também, como podemos observar a seguir quando a jovem foi indagada sobre o que acha das mulheres que bebem: Elas estão certa, ‘tão mais do que certa, porque quando eles saem de casa, que vão pra festa, deixam elas em casa, aí, elas tem que ir beber também. (Randa, F., 21 anos, solteira) A jovem se refere às mulheres casadas e apresenta a ideia que algumas jovens da comunidade possuem: se eles (companheiros) podem beber, elas também podem - ou seja, de algum modo, o uso de álcool pode ser também uma forma de reivindicar um lugar de igualdade perante os homens, e um modo de contrariar o companheiro que sai de casa e deixa a mulher só. O comportamento de beber considerado transgres- sor quando realizado por uma mulher pode ser também uma forma de lidar com a insatisfação diante da situaçãovivencia- da, inclusive porque, se a jovem casada fica “mal falada”, o companheiro também passa a ser percebido de outra forma, como algumas jovens relataram que nas comunidades há ho- mens que são “dominados” pelas mulheres. É comum, nas comunidades de remanescentes quilom- bolas que fizeram parte deste estudo, a violência de gênero contra as mulheres, que ocorre nos espaços de intimidade ou em espaços públicos e que é explicada pelas quilombolas por meio do uso abusivo de álcool realizado pelos companheiros, alegando, que quando estes não estão embriagados, não co- metem nenhum tipo de violência. E as mulheres que fazem uso de álcool e frequentam os bares também são alvo de violência, como podemos observar no relato a seguir: 68 | Drogas e Contextos As jovens ficam aqui se depravando nos bares, no outro dia ‘tá cheio. Como ontem, o menino pegou aqui, deu uma pisa em uma menina lá no bar e todo mundo ‘tá sa- bendo já. (...) Se fosse casado entre quatro paredes, né? Mas não em público, porque, se ela tivesse em casa, e ela é quase mulher dele, se ela tivesse em casa, nada disso teria acontecido; ou, se acontecesse, ninguém ia saber. (Quando indagada se dentro de casa o homem pode bater na mulher, ela respondeu o seguinte) Não, eu não acho não, mas tem marido aqui que dá dentro de casa na mulher, mas é diferente de chegar e meter o pau no bar na frente de todo mundo, porque, dentro de casa, mesmo que errado, ele deu ali, só vão saber se ele sair dizendo ou se ela sair dizendo, mas é totalmente diferen- te de chegar no bar e dar uma pisa na mulher. (Gina, F., 22 anos, solteira) Há uma reprovação da jovem entrevistada muito mais pelo ato da violência ter sido cometido em público do que por ter acontecido uma violência contra a mulher. O modo como ela relata a situação ocorrida também revela que nas comunidades a violência de gênero contra as mulheres é algo que se faz muito presente, e que alguns e algumas quilombolas ainda têm lidado com a situação seguindo o ditado popular: “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. A violência contra as mulheres é uma questão de viola- ção dos direitos humanos. Quando observamos o relato acima, sobre a jovem que foi agredida no bar, e as pessoas não toma- ram nenhuma providência quanto à situação, não só sofreu a que apanhou, mas todas, porque a violência de gênero contra as mulheres é muito mais coletiva do que individual. Os im- pactos do racismo e a subordinação econômica - articulados com as desigualdades nas relações de poder engendradas no marcador gênero - estão presentes nas situações de violência vivenciadas pelas jovens quilombolas. Nesses termos, pode- mos dizer que o uso de álcool e as repercussões disso têm desdobramentos bem distintos nas dinâmicas de gênero entre os(as) quilombolas e nas dinâmicas sociais mais amplas que envolvem os(as) jovens quilombolas rurais e os(as) jovens ur- banos. Uso de álcool entre a juventude quilombola - Roseane A. da Silva | 69 5 • Considerações finais Vimos que os(as) jovens fazem uso de álcool em casa, nos bares nas comunidades, sozinhos(as), acompanhados(as) pelos familiares e amigos(as). Não negamos os aspectos cul- turais que circunstanciam o consumo entre eles(as) e por toda a comunidade. Por outro lado, consideramos que uma com- preensão cultural separada de uma análise sobre os efeitos sociais desta pode contribuir para a reificação das desigual- dades que têm marcado a existência dos(as) remanescentes quilombolas. Estivemos atentas a essas questões durante a pesquisa, pois ingerir bebida alcoólica é uma prática cultural que sempre se fez presente, mas, constatamos também que não deixa de ser preocupante quando tomada como justificati- va para a desassistência ou assistência moralista e autoritária a essa população, o que tem repercussão para a execução de projetos coletivos e individuais dos(as) quilombolas. A análise interseccional contribuiu para visualizarmos as condições de existência marcadas pela ausência de ativida- des diversificadas de lazer, dificuldade em arranjar emprego, preconceito sofrido por serem negros(as) e/ou remanescentes quilombolas, por morarem na área rural, em comunidades que são estigmatizadas, enfim, situações que têm repercutido no uso de álcool. Contribuiu também para a compreensão das di- nâmicas de poder, vimos que as relações são verticais: os(as) jovens não são ouvidos(as), pois não são considerados(as) preparados(as) para participar das decisões sobre as comuni- dades. Vimos também que há fortes delimitações sobre com- portamentos não permitidos às mulheres, a exemplo da pre- sença dos homens no bar ser vista com naturalidade e a das mulheres resultar em difamação, entre outras questões. Muitos são os significados do álcool entre os(as) jovens pesquisados(as): consideramos importante valorizar os signi- ficados positivos atribuídos ao consumo por parte dos jovens, mas não deixamos de considerar também que, por vezes, o 70 | Drogas e Contextos uso realizado de forma abusiva tem ocasionado problemas de diversas ordens para essa população. Assim, é importante a existência de uma compreensão contextualizada, que seja, in- clusive, não moralista e não estigmatizadora, para que políticas públicas possam ser criadas no intuito da qualidade de vida nas comunidades quilombolas. Referências ANJOS, J. C. Etnia, raça e saúde: sob uma perspectiva nominalis- ta. In: MONTEIRO, S.; SANSONE, L. (Org.). Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. p. 97-119. BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, v. 26, p. 329-376, 2006. BERNARDINO-COSTA, Joaze. 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Inseriu-se no Programa Diálogos para o Desenvol- vimento Social de Suape, articulada aos trabalhos do projeto Ação Juvenil (Menezes, Adrião e Rios, 2015; Menezes et al, 2015), uma das ações integrantes do primeiro, a qual trabalhou junto à população jovem da região Suape, especificamente com jovens, mulheres e homens, estudantes de ensino médio em escolas da rede pública. O Ação Juvenil desenvolveu atividades a partir da arti- culação de dois objetivos: 1) investigar processos pelos quais as relações de poder e desigualdades atravessam os modos de subjetivação de homens e mulheres jovens participantes do projeto; 2) formar e instrumentalizar jovens de ambos os sexos, residentes no município de Cabo de Santo Agostinho e no de Ipojuca, com idades entre 16 e 20 anos, enquanto lideranças e agentes multiplicadores de informações no âmbito da pro- moção dos direitos de crianças e adolescentes e dos direitos sexuais e reprodutivos (Menezes et al, 2015). ______________________________________________________________________ ¹ É importante ressaltar que as reflexões desenvolvidas aqui não integram o conteúdo da disserta- ção mencionada, uma vez que foram realizadas a partir de roda de conversa (datada em 5 de junho de 2014) que não foi objeto de reflexão para o referido trabalho de mestrado. Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 75 A pesquisa-intervenção se constituiu como referencial te- órico-metodológico adotado para o trabalho com grupos a partir de uma perspectiva feminista de pesquisa, como trabalhado por Karla Adrião (2014). Entendemos, assim, o processo de construção de conhecimento científico a partir da ação política, que consiste em uma atuação transformadora da experiência social, buscando desarticular práticas e sentidos instituídos pela fórmula “conhecer para transformar” para propor “transfor- mar para conhecer” (Rocha e Aguiar, 2003). No processo de execução do Ação Juvenil, encontrávamo- -nos duas vezes por semana com as(os) jovens estagiárias(os) do projeto² para realização de oficinas temáticas na UFPE. Nesses espaços, buscávamos trabalhar os assuntos mediante técnicas de teatro e desenvolvimento participativo (McCarthy e Galvão, 2001), cujo objetivo era potencializar lugares de fala no espaço-tempo do grupo a partir da valorização da experiência. Esta última entendida não como mera vivência íntima e subjeti- va, mas como algo que precisa de interpretação, uma vez que articula dimensões microrrelacionais e macroestruturais para a constituição de sujeitos (Scott, 1999) em contextos históricos, sociais, culturais e políticos específicos. 2 • Dos bastidores: o trabalho de campo em suas especificidades Vale destacar que, apesar de se inserir no Ação Juve- nil e contar com a interlocução das(os) estagiárias(os) desse projeto, a pesquisa sobre o consumo de bebidas alcoólicas se desenvolveu em um momento específico (junho de 2014), em que as atividades do Diálogos se encontravam suspensas por dificuldades relativas às questões de financiamento das ações. Desse modo, em vez de encontros com as(os) jovens na UFPE, a equipe se deslocou para a cidade de Cabo de Santo Agos- tinho, para a realização de rodas de conversa, que ocorreram ______________________________________________________________________ ² As(os) jovens receberam uma bolsa para participação no projeto. 76 | Drogas e Contextos em uma escola da rede pública estadual de ensino, local onde três jovens participantes do grupo estudavam: Raiane, Saory e Charlii³ - esses dois últimos, irmãos. A participação não se caracterizou como atividades do projeto, tendo participado somente aquelas(es) jovens que ti- veram interesse e possibilidades, inclusive financeiras, de ir ao nosso encontro. Parte significativa do grupo de estagiárias(os), sobretudo as(os) residentes no distrito de Nossa Senhora do Ó, situado em Ipojuca, falou do interesse em participar, mas também da impossibilidade financeira relativa aos custos com o transporte. Nesse contexto específico, além das(o) partici- pantes mencionadas(o), foram, respectivamente, interlocutora e interlocutor no encontro, que ora trazemos à reflexão, a jo- vem Taís e o jovem Emanoel - este último estudante da escola- -sede, que não era estagiário do Ação Juvenil, mas que teve o desejo de participar da atividade conosco. Além das(os) jovens, participaram integrando a equipe que esteve em campo neste encontro: Leyllyanne Souza e Raissa Falcão, mestrandas no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFPE), e Basílio Queiroz, estudante de Psicologia (UFPE). Objetivamos refletir, no grupo, sobre práticas de tempo livre e lazer de jovens no território de Suape – atentando-se para a (não) emergência do consumo de álcool, assim como possíveis impactos de questões correlatas ao desenvolvimento econômico na região sobre tais práticas. Para mediação das conversas, construímos um cartaz referente às atividades de tempo livre e lazer das(os) interlocutoras(es) (Fotografia 1). Buscamos articular diferentes marcadores sociais para compreender e refletir sobre as experiências de consumo de ál- cool trazidas pelas(os) jovens, considerando-os a partir de uma perspectiva interseccional (Psiciteli, 2008; Nogueira, 2013). Dessa forma, geração, território, sexualidade/posicionamento sexual e gênero foram elencados como possíveis elementos que atravessariam as experiências de jovens relativas ao ál- ______________________________________________________________________ ³Todos os nomes aqui mencionados são fictícios e escolhidos pelas(os) interlocutoras(es) da pesquisa. Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 77 cool. A partir da discussão sobre tempo livre e lazer de jovens habitantes da região de Suape, pudemos refletir nesta pesqui- sa sobre contextos de sociabilidades juvenis, no diálogo com o consumo de álcool. 3 • Beber em família: quando se colocam hie- rarquias geracionais A partir de conversas sobre diferentes formas de viven- ciar o tempo livre, as(os) jovens referenciaram situações de lazer junto à família, nas quais o álcool está presente muitas vezes. No âmbito do privado, o churrasco em família foi ca- racterizado como importante atividade realizada, em geral aos fins desemana, como agregadora das famílias nucleares e mais extensas. Raiane afirmou que, nessas ocasiões, às ve- zes, acontece dos familiares beberem vinho, sugerindo des- taque para certa permissão e aceitação desse tipo de bebida, mesmo se tratando de uma família religiosa: “Às vezes, rola só vinho” (sic). Emanoel destacou que, nessas ocasiões, apesar da família beber, ele não o faz, por ter se tornado adepto de religião evangélica. Segundo ele: “Passo longe... Fico só pra comer mesmo” (sic). Fotografia 1: Grupo na construção de cartaz relativo às práticas de tempo livre e lazer de jovens habitantes da região de Suape/Acervo de imagens do Diálogos Suape 78 | Drogas e Contextos Sobre o beber em família, Saory comentou: “Não é a mes- ma vontade” (sic), comparando com o beber entre amigas(os). Charlii concordou com o posicionamento da irmã, sinalizando haver diferenças entre o os assuntos entre amigos e em fa- mília: “A conversa é diferente. A conversa dos véi... falam do tempo que eles viveram” (sic). Taís também concordou: “É di- fícil conversar com a família o que conversa com os amigos” (sic). Charlii complementou, descrevendo o cenário de beber em família: “Eu brinco, todo mundo brinca, tira onda, mas... não é aquela conversa fixa de amigos... Imagina, o cara chega pra mãe: ‘E aquela menina lá?!’ O cara não fala isso!” (sic). Perguntamos ao grupo: “Então, é a conversa sobre pa- quera, sexo... que rola com os amigos, com a bebida, e que não rola na família?” (sic). O grupo informou que, em geral, ouvem-se conselhos das pessoas adultas quando se bebe em família; citando alguns: “Quando for sair, beba menos”, “Quan- do for beber, não vá ficar por aí, bebendo e caído”, “Tem que ter consciência”, “Se quiser beber, venha pra casa, que a gen- te bebe até estourar o cano... porque já ‘tá em casa”, “Tenha consciência... beba devagar”. Carlos disse que, quando bebia, era “pra ficar caído mesmo” (sic) e, quando chegava em casa, a mãe sempre dizia: “Amanhã a gente conversa!” (sic), trazendo ameaças à próxima vez que bebesse e ficasse assim. Segundo informou, tais conselhos e advertências não tiveram a ver com a escolha por parar de beber; a participação na religião é que teve importância fundamental. Como explicou: “Foi por causa da religião mesmo... Vi que não levava a nada mesmo” (sic). O contexto da família é descrito pelas(os) jovens como marcado por regulações segundo um modo de organização hie- rárquico geracional. Como espaço fundamental aos processos sociais, sobretudo aqueles iniciais, de contato do sujeito com a cultura e os sistemas de crenças desta, valores e costumes, a família se constitui como um importante dispositivo discipli- nar, marcado por lugares determinados para cada membro do grupo. Desse modo, o poder e o respeito – como formalidade inerente às relações hierárquicas – são elementos caracterís- ticos desse contexto, vivenciados nas relações entre sujeitos (Menezes, Arcoverde e Libardi, 2008). Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 79 A exemplo do álcool, as regulações em torno do beber e de como beber, vivenciadas nas relações familiares sob a forma de conselhos, ameaças e punições, podem produzir/possibilitar aprendizados às(aos) jovens em torno dessa prática social, de sociabilidade e lazer. Ensina-se, por exemplo, quanto beber, como e onde, enfatizando-se uma preocupação em torno do que se entende como limite do consumo, estando tal preocupa- ção circunscrita no imaginário sobre espaços públicos, perpas- sados pelos signos da violência, do perigo e do medo. Nesse sentido, o limite, como normativa de como se deve beber, parece ter sido relativizado na fala trazida por jovens referente ao que escutam na família: “Se quiser beber, venha pra casa, que a gente bebe até estourar o cano... porque já ‘tá em casa”. O local do lar é caracterizado pelo signo da se- gurança em oposição à rua, oferecendo a proteção necessária ao sujeito quando este “bebe até estourar o cano”, alterando o estado de consciência dele. O limite do consumo, nesse caso, não é relativo ao que ou ao quanto se bebe; mas, a onde se bebe. Cabe considerar que esse foi um conselho dirigido a Charlii pela mãe, de modo que seria válido pensar, consideran- do-se os códigos normativos de gênero e sexualidade, se este mesmo conselho seria mantido em relação à irmã, Saory – tan- to pela necessidade/legitimidade quanto pelos efeitos. Dirigir tal frase-conselho de maneira mais explícita a uma mulher se- ria admitir-lhe a possibilidade do consumo excessivo (além do que se estabelece como limite), considerando que isto pode ter efeitos de controle sobre o corpo e a sexualidade. Isto porque a relação rua-bebida-excesso, em geral, tende a ser pensada em relação a homens, de modo que os opostos poderiam ser relativos às mulheres, segundo uma compreensão binária e di- cotômica das relações de gênero. 80 | Drogas e Contextos 4 • Beber no grupo de amigos: estratégias de sociabilidade e diversão Diferente do beber junto à família, beber entre amigas(os) foi trazido como, de fato, quando se experiencia um lazer mais descontraído. Sobre o consumir nesse contexto, Saory pon- tuou: “Mas tem gente que só tapeia” (sic). Charlii explicou: “Ta- peia... é, bota a cerveja e fica lá, pescando peixe dentro do copo... não toma. (...) São pessoas que diz que bebe, mas não bebe” (sic). Raissa perguntou: “E por que vocês acham que as pessoas fazem isso?” (sic). Charlii respondeu: “É pra não ficar de fora do grupo, né? Porque vê todo mundo bebendo, aí, pô... Ele não bebe aquela quantidade que a gente imagina bom, mas bebe um copo, dois... aí bebe” (sic). Perguntamos ao grupo: “E vocês acham que, geralmen- te, num grupo de pessoas que bebem, aí, pra ‘tá junto, tem que ser pessoas que bebem também?” (sic). Charlii respondeu que não: “Não. Pra mim, tanto faz. Se eu ‘tiver bebendo... e ela... se ela ‘tiver achando que é bom não beber, é bom pra ela, né?” (sic). Saory concordou com Charlii: “É bom pra ela. Mas... se a gente... e tem mulher... se não quiser beber, tem refrigerante” (sic). Diante dessas falas, tentamos entender: “Geralmente são mulheres que ficam tapeando?” (sic). Charlii e Saory confirma- ram. Continuamos: “Homem não tapeia não?” (sic). Disseram que não, e Soary completou: “É. Tem aquele que diz que dei- xou de beber, mas bebe mesmo assim” (sic). A ideia de “tapear” trazida pelo grupo, referente a en- ganar, “fazer de conta”, coloca-se de maneira diferente para homens e mulheres. Estas, em geral, dizem que bebem, mas “não bebem”, no sentido relativo à frequência e/ou às quanti- dades esperadas para quem tem esse tipo de prática. Já para os homens, parece ser o inverso: muitos que dizem não beber continuam consumindo álcool. Para mulheres, a “tapeia” se re- fere a “fingir beber” e se coloca como estratégia de sociabilida- de, quando o contexto social requer participação, ainda que o Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 81 álcool não seja colocado de forma explícita como exigência ao convívio social. Já para os homens, “tapear” parece dizer mais sobre uma redução do quanto se bebe, do que sobre o parar de beber de fato. Mulheres e homens parecem partir de lugares diferentes para pensar sobre/ fazer uso de bebidas alcoólicas: respecti- vamente, do a priori não beber, e de beber. No entanto, ainda que por vias diferentes, para mulheres e homens, beber parece funcionar como um signo de “igualdade” e pertencimento entre as pessoas, circunscrevendo-as em grupos, ainda que momen- taneamente. Bebe-se quando as demais pessoas estão beben- do; bebe-se para não ficar diferente dos demais. Diferenças também se colocam entre homens e mulheres no tocante às regulações entre pares. Para as últimas o não beber é trazido como“lugar comum” e positivo, como indica as seguintes falas: “(...) se ela tiver achando que é bom não beber, é bom pra ela, né?” (Charlii); “É bom pra ela. (...) e tem mulher... se não quiser beber tem refrigerante” (Saory). Nesses casos, consumir álcool aparece como possibilidade às mulheres. Destaca-se a prática de beber justamente como pos- sibilidade – algo que pode, ou não, acontecer – às mulheres, ressaltando-se benefícios da própria não escolha: é “bom” para ela tomar somente refrigerante. Essa ideia contrasta com as noções de ousadia e safa- deza trazidas pelo grupo em relação às mulheres que bebem. Charlii, por exemplo, argumentou que, em geral, os homens se divertem mais do que as mulheres nas festas, acontecendo diferente somente em relação às “mulheres ousadas”: 82 | Drogas e Contextos Charlii: Quem se diverte mais é o homem... Porque o homem fica mais solto que a mulher. Leyllyanne: É? Vocês acham isso? Raiane disse não saber. Charlii: É, tipo, eu sou homem, eu sei como é que é isso. Eu vou pra festa e sou mais solto. Tem meninas que são assim, tem mulheres que são mais ousadia, têm mais ousadia e tal, e dança igual o homem, assim, mais solto também. Mas a maioria das mulheres fica mais... (sic) Saory: Fica mais num grupinho, conversando... Charlii: É. Fica mais conversando. O homem não, ‘tá aí pra dançar, pra beber, pra chamar atenção e tal, aquilo, aquilo outro. Mulher, não. Mulher fica ali, na dela. É as- sim que eu vejo, né? [...] “As pessoas ficam mais safa- das quando bebem, [porque] o álcool altera a adrenalina da pessoa; a pessoa fica mais liberada” (sic). A ideia do não beber como algo positivo parece funcionar como uma “prescrição” para um estilo de vida “livre do álcool”, como uma estratégia para a mulher, de “prevenir” comporta- mentos possivelmente compreendidos a partir dessa chave de leitura: a ousadia e a safadeza. Ainda que sejam “as pessoas” (mulheres e homens) que ficam “mais safadas” quando bebem, parece ser em relações às mulheres que a prescrição à evita- ção desse tipo de conduta chega com mais força – e um meio de evitar seria recusar o consumo de bebidas alcoólicas. De modo contrário, as regulações em torno dos homens parecem considerar o beber como necessidade, estando o que não bebe no alvo de piadas e brincadeiras, por ter a virilidade questionada, segundo padrões estereotipados e normativos de gênero. É o que se percebe a seguir: Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 83 Leyllyanne: E quando tem alguém que não bebe em um grupo de pessoas que bebem, como é? Rola piadinha? Charlii: Não. Agora, quando é homem, aí, a gente tira um sarro, né? Só por... brincadeira mesmo, só por di- versão. “Eita, a mulher não deixa... Se chegar em casa bebo, a mulher bota de castigo”, tal... Aí, a gente brinca... quando é casado, né? Ou quando namora. Aí, a gente tira onda, faz piadinha de mal gosto. Mas... (sic) Saory: Mulher, não. Mulher aí... respeito. Leyllyanne: E por que rola essas piadinhas de mal gos- to? A ideia do homem dominado, é? Saory: É raro encontrar um homem assim. Emanoel: Se o homem é dominado é porque ele deixa a mulher dominar ele... Não pode fazer nada, que a mu- lher... Não pode chegar bebo em casa, a mulher reclama também... (sic) Raissa: E a mulher? Tem mulher dominada? Charlii: Tem muita. Saory: Mulher é o que não falta. Raissa: E vocês tiram onda assim... [Na sequência, o grupo trouxe outros assuntos, mudando o foco da con- versa.] Não beber, para homens, significa atender ao estereó- tipo do “homem dominado”, aquele que “abre mão do próprio poder e atividade” para se colocar de modo passivo na relação com a mulher, “deixando-se dominar”, como trazido por Ema- noel. É interessante considerar que esse tipo de rótulo pare- ce se colocar, sobretudo, para homens que têm parceiras, a exemplo de como foi trazido por Charlii, namoradas e esposas, sendo o modelo de casal, em geral, pensado pelo grupo a partir da referência heterossexual – em referência ao marcador posi- cionamento sexual. 84 | Drogas e Contextos Referir-se a um homem como “dominado” na cultura brasileira, sobretudo no Nordeste, consiste em uma forma de xingamento. Como afirmam Valeska Zanello e Tatiana Gomes (2010), xingamentos são termos que apontam para valores so- cioculturais, que, quando expressos, têm o poder de agredir e ofender o ouvinte por meio de palavras. Conforme as autoras, podem ser considerados como sintomas de nossa cultura, re- velando valores das relações de gênero, uma vez que “não se xinga de qualquer forma, com qualquer vocábulo; e também, há palavras que são consideradas mais ofensivas do que ou- tras, a depender do sexo do xingado4” (Zanello e Gomes, 2010, p. 265). Pelo xingamento, que pode assumir formas de chistes e brincadeiras, delimitam-se modos de ser homem e de ser mulher, estabelecendo-se valores específicos, relativos a um e outro, em geral, por relações de oposição segundo a lógi- ca binária relativa a sexo, gênero e sexualidade. Pelo termo “dominado”, busca-se desqualificar um homem. Este adjetivo pode vir a questionar traços valorizados em relação a uma ideia dominante de masculinidade, tais como independência, investi- mento em si mesmo e a autonomia. Dessa forma é que o “sarro” e as “brincadeiras de mal gosto”, como mencionados pelo grupo, funcionam como con- trole social, exercendo uma “espécie de microfísica do poder, na qual se situam e se (re)constituem (dinamicamente) os lu- gares sociais (in)desejáveis para os sujeitos” (Zanello e Go- mes, 2010, p. 166). Manter-se nas posições de sujeito ativo e independente, de certo modo, como argumentam as autoras, é tentar apagar as menores evidências de vulnerabilidade do homem, sob a necessidade de constante afirmação da mascu- linidade, via demonstração/afirmação da virilidade, segundo o imperativo “Seja homem!” ______________________________________________________________________ 4 Como exemplo, as autoras trabalham o termo “vagabundo”: “quando atribuído a uma mulher, toma a conotação de atividade e variabilidade sexual; quando atribuído a um homem, conota a falência da produtividade” (Zanello e Gomes, 2010, p. 265). Desse modo é que as autoras destacam que é preciso compreender os xingamentos pelo aspecto pragmático, para além do semântico. Dizendo de outra forma, é preciso considerar a dimensão da linguagem em uso para pensarmos sobre os diferentes sentidos possíveis das palavras, assim como os efeitos, a depender de como se fala, com quem se fala e de onde se fala, por exemplo. Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 85 De maneira semelhante, a partir dessas regulações é que também se dividem as tarefas entre mulheres e homens no tocante à organização de festas. Charlii falou sobre esse pro- cesso: Pronto, a gente vai pra uma festa, a gente faz a festa, nós aqui. Aí, eu fico com a parte da carne. Ele fica com a parte da bebida. Vocês ficam com a parte do local. Aí, outro fica com salgadinho, ou o som ou outras coisas que quiserem levar. Aí, cada um faz sua ação. Se for fazer todo mundo junto, geralmente não dá certo. (sic) Perguntamos ao grupo: “E a bebida, geralmente fica com quem?” (sic). O mesmo jovem respondeu: “A bebida fica com o anfitrião da festa” (sic). Ele disse que já foi para festas or- ganizadas por meninas, mas, em geral, são homens que são os anfitriões e que compram a bebida. Segundo o jovem, “é mais discreto pro homem comprar bebida” (sic). Saory con- cordou, dizendo que “as pessoas acham estranho a mulher comprando bebida. É mais visto o homem comprar” (sic). Charlii destacou: “Tem mulheres que compram, mas são sol- teiras, tipo... amigas entre amigas e tal” (sic). Quando questionado sobre a relação entre solteiras e casadas,ele disse que estas últimas também podem comprar bebidas alcoólicas, “mas o que se vê mais são as solteiras” (sic). Raiane comentou: “Sei lá, tem gente que compra, eu já vi, mas... eu acho que a sociedade julga” (sic). Questionamos ao grupo se era a mesma coisa para um homem jovem e uma mulher jovem comprar bebida. Saory disse que, quando vai comprar, passa sem dar importância à opinião dos outros que, segundo ela, “soltam piadinhas... ‘Já vai beber, né?!’” (sic), ao que responde “‘Não é da sua conta!’. Eu sou assim, véi” (sic). A estranheza referente à compra de bebidas por mulhe- res contrasta com a discrição trazida em relação aos homens. Isso sugere que mulheres que compram bebidas, no territó- rio específico em questão, não são bem vistas, sobretudo se estiverem em uma relação conjugal. Por meio de julgamen- tos, “piadinhas” e fofocas, como dispositivos de controle da 86 | Drogas e Contextos comunidade, as ações de mulheres são reguladas, sendo o consumo de álcool objeto/meio desse controle, como prática desvalorizada para as que pretendem ser “boas mulheres” e, assim, disputar espaços e/ou se manter no “mercado matrimo- nial”. Considerando-se que o matrimônio é, em geral, colocado como regra para as mulheres, como elemento fundamental da cadeia “casar, ter filhos, constituir família”, ser “bem vista” deve ser algo cultivado constantemente por elas, para o que devem se manter vigilantes de si – leia-se, aqui, vigilância em relação à sexualidade/reputação sobremaneira – cuidando-se para não ficar “mal faladas”. É interessante, no entanto, perceber como Saory se po- sicionou, de modo a não responder às expectativas em relação ao próprio lugar de mulher, afirmando não se importar com es- ses mecanismos, que acabaram não tendo efeitos de contro- le sobre a jovem, pelo menos na situação narrada. Pensamos que, talvez, e só talvez, o fato da jovem se reconhecer e se afirmar como homossexual possa, de alguma maneira, ter a ver com esse posicionamento. Talvez, possam ter menores pe- sos discursos referentes a “como deve ser uma boa mulher”, como prerrogativas que, uma vez atendidas – por exemplo, por performances de comedimento e de uma vida mais voltada ao âmbito do privado e às relações de intimidade – tendem a capi- talizar as jovens no mercado matrimonial. 5 • No contexto escolar: quando beber vira “baderna” O tempo passado pelas(os) jovens no espaço da esco- la foi caracterizado pela dicotomia entre aprender e fazer ba- derna. De acordo com o grupo, vai-se à escola para aprender coisas novas, ter conhecimento e fazer amigas(os). Criticando a baderna na escola, Saory disse que têm pessoas que não entendem que só serão “alguém na vida” se estudarem e, en- quanto isso, vão para a escola fazer baderna. Esta última foi relacionada a não assistir às aulas, quebrar equipamentos como ventiladores e carteiras, além de beber e fumar dentro da escola. Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 87 Segundo Emanoel, “o povo bebe dentro das salas [refe- rindo-se às que não estão ocupadas com aulas], fuma... pega maconha e começa a fumar... A diretora vê, reclama e...‘Ah, eu vou parar’” (sic). Saory completou: “Não respeita... Tem gente que mal chega e já sai” (sic), referindo-se às pessoas que não permanecem em sala durante as aulas. Esta jovem comentou ainda: “À noite, é tudo liberado: o povo chega a hora que quer, faz o que quer e não vem de farda, fuma...” (sic). Taís disse que, na escola onde estuda, “o povo bota [a bebida] na garrafa de refrigerante e leva... Bebe toda hora, manhã, tarde, noite... Às vezes, misturam... botam vodca com refrigerante” (sic). Se- gundo esta jovem, as pessoas geralmente consomem álcool tanto nas salas, durante as aulas, quanto na hora do recreio. A prática de beber – provavelmente pela associação ao consumo de maconha, em geral percebida como droga, pelo estatuto de então, no Brasil, de substância psicoativa ilícita – foi significada a partir de uma conotação negativa, como um des- respeito ao ambiente escolar. Curiosamente, nesse cenário, a ideia de liberdade também foi marcada por um cunho negativo, associando-se o “fazer o que se quer” a práticas consideradas ilícitas e moralmente indesejáveis, como fumar maconha. Isso parece apontar para o fato de que, apesar da liberdade ser rei- vindicada pelas(os) jovens, sendo buscada por diferentes vias e valorizada como possibilidades de viver diferentes experiên- cias, elas e eles parecem advogar também por cerceamentos, bordas que a circunscrevam. As noções de respeito e obediência à disciplina da es- cola emergem caracterizando o que não cabe, ou não deveria caber, no espaço institucional escolar: o uso de substâncias psicoativas. Destaco que, nesse caso, o álcool também parece ser “ilícito”, por tampouco caber nesse espaço5, assim como ______________________________________________________________________ 5 Interessante perceber o contraste que esse tipo de situação faz com o episódio que foi narrado por Diego durante a primeira roda de conversa, em relação à feira de conhecimentos promovida pela escola. Sob a justificativa de construção de conhecimento – acerca da cultura brasileira –, o álcool teve a entrada permitida na instituição escolar, ainda que o consumo tenha sido proibido em termos formais. Por outro lado, “para o simples (prazer do) consumo”, a mesma substância tem a entrada proibida no espaço da escola. Mais uma vez, é possível pensar que “o problema”, considerado pelos adultos envolvidos nessa avaliação, não seria a bebida alcoólica em si mesma, mas a possibilidade de consumo pelas(os) estudantes; ou seja, a relação juventude-álcool. 88 | Drogas e Contextos outras substâncias, a exemplo da maconha. Isso é indicado pelas estratégias utilizadas pelas(os) estudantes para acessar esse espaço escolar portando bebidas alcoólicas: trocá-las de garrafas ou misturá-las aos refrigerantes, de modo a camuflá- -las. Saory disse que beber na escola geralmente ocorre em grupos formados por uma maioria de meninos, com apenas uma, duas ou três meninas. Emanoel concordou: “Mais meni- nos... aí, bebe, aí, fuma...” (sic). Perguntamos ao grupo: “Por que vocês acham que os meninos estão, assim, mais envol- vidos com essas coisas de bebida...? Pelo menos na escola, né? Pelo que vocês tão trazendo” (sic). Saory disse achar que é mais fácil para os meninos fazerem baderna, comparando-os com as meninas. Segundo ela, “os meninos aparece mais pela baderna. As meninas aparece mais pelo desfile, né?” Charlii concordou que era assim que funcionava de maneira geral. Os signos e estratégias de visibilidade e reconhecimen- to no espaço escolar são, assim, diferentes para homens e mu- lheres; diferenças estas valorizadas no jogo da paquera e da conquista. A baderna e a bagunça são traços característicos e valorizados para os jovens, pois parecem funcionar, nesse contexto específico, como signos de masculinidade e virilidade, podendo, portanto, favorecer a visibilidade dele no espaço es- colar, contribuindo para torná-lo afetiva e sexualmente atraen- te. Por outro lado, as meninas (ou algumas delas) se afirmam e são reconhecidas, sobretudo, a partir do modo como se vestem e como se portam na escola, em termos de beleza e estilo “na moda”. Charlii exemplificou a baderna com uma ocasião que aconteceu nesse mesmo dia, pela manhã. Disse que largou um pouco depois das nove horas e se reuniu com um grupo para beber no pátio da instituição. Participaram ele, dois amigos e duas amigas, as quais não beberam, “ficaram só comendo pi- poca” (sic). Os meninos compraram vinho e encheram duas garrafas de refrigerante de dois litros com a bebida. Pergun- tamos sobre como foi organizado esse momento, ao que o jo- Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerrade Souza | 89 vem respondeu, sinalizando que não houve uma organização prévia: “Foi assim, alguém chamou pra beber, os outro concor- daram e compraram vinho” (sic). Dessa maneira, parece ca- ber muito mais aos meninos a responsabilidade por momentos de consumo de bebidas na escola, enquanto que as meninas parecem mais os acompanharem nessas ocasiões, segundo arranjos de sexo-gênero em alguma medida estabelecidos no contexto escolar. Como argumenta Judith Butler (2003, p. 59), o gênero – a própria condição de ser – consiste na “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”. Cenários e práticas de consumo de álco- ol, pensados como contextos de sociabilidades juvenis, consti- tuem lócus, marcados por essas estruturas regulatórias, para o ser/fazer-se jovem como construção resultante de parâmetros políticos. Por via da instituição de uma heterossexualidade na- turalizada e compulsória, regula-se a sexualidade a partir de uma lógica dual e rival entre o que é da ordem do “masculino” e do “feminino”, regulações estas que se fazem também me- diante diferentes formas de controle das práticas de consumo de álcool. 6 • Sobre liberdade e regulações: “O povo fala...” O grupo trouxe a estranheza como aspecto relativo às mulheres que bebem, referindo-se a como estas são vistas na comunidade, por ocuparem lugares diferentes daqueles que lhes são esperados, a exemplo do “viver dentro de casa”, como trazido por Saory. Neste sentido, os lugares do público e da diversão, em alguma medida, seriam cerceados às mulheres, como sugere a fala de Saory: “[...] quando a mulher resolve sair e se divertir, aí, quando ela chega no topo, que não aguenta mais, aí, acha estranho; porque geralmente só vê a mulher dentro de casa” (sic). 90 | Drogas e Contextos A expressão “chegar ao topo” parece caracterizar um estado significativo de desprendimento e despreocupação, o qual poderia ser mediado pelo consumo alcoólico. Tal estado se contrapõe ao autocontrole como valor social associado às/ esperado das mulheres. A comunidade, incluindo-se aí muitas vezes os próprios pares, parece se descentrar diante disso; quer dizer, não sabe como ver nem como agir diante de uma mulher bêbada e reage, por meio de comentários e fofocas. A fofoca consiste em relatos sobre fatos, reais ou ima- ginários, relativos ao comportamento de outra pessoa com o intuito de lhe fazer mal. Pode funcionar para informar sobre a reputação dessa pessoa, alvo da fofoca, contribuindo para prejudicar a imagem pública (Fonseca, 2000). No caso da mu- lher que bebe e/ou fica bêbada, a fofoca ao mesmo tempo em que pretende desqualificá-la a partir do comportamento de be- ber, na medida em que dissemina em determinada localidade referentes negativos sobre a reputação e a honra dela, tam- bém funciona segundo uma função educativa: outras mulhe- res aprendem, a partir do exemplo prático, princípios morais de determinado grupo. A fofoca, portanto, tem como efeitos a produção de regu- lações em torno dos comportamentos; no caso aqui em ques- tão, sobretudo aqueles relativos às mulheres com as bebidas. Isto na medida em que ataca, pela força da palavra – pelo efei- to performático – “o que há de mais íntimo [do sujeito], a ima- gem que ele faz de si” (Fonseca, 2004, s/p.). Assim, atingir a imagem pública é o mesmo que feri-l(o) fisicamente. Julgamos interessante destacar o sentido de pesar tra- zido por Charlii relativo aos julgamentos feitos pela comunida- de em torno do consumo de álcool: “(...) Aí, o povo vai dizer... ‘Poxa, esse menino nunca bebia...’ A mesma coisa é com a mulher. É difícil ver mulher beba” (sic). Segundo essa fala, pa- rece ser possível considerar que a prática de beber associa- da à juventude tende a ser pensada a partir de um lamento, como algo que pode pôr em risco o futuro dos jovens e, talvez, de forma mais enfática o das mulheres. Tal prática parece ser Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 91 julgada segundo um marcador geracional, considerado como um empecilho à realização de projetos de vida bem-sucedidos, conforme julgamentos de pessoas mais velhas, adultas e ido- sas, a exemplo de familiares e vizinhos. Quando perguntamos ao grupo “Por que vocês acham que é difícil6 ver uma mulher beba?” (sic), Charlii respondeu: “Porque a mulher sabe se controlar” (sic). Raissa logo ques- tionou: “A mulher sabe se controlar? E as pessoas controlam a mulher? Ou não?” (sic). Raiane comentou: Se a gente for pensar direitinho... Se as mulheres for pela cabeça da sociedade, ela não manda em si mesma... Porque mulher não pode fazer nada... Mulher não pode ficar bêbada, que é feio... Mulher não pode ter quantos relacionamentos quiser... Mulher não pode nada. Não pode frequentar bar, porque é cheio de homens... Mas a mulher é independente, ela faz o que ela quer. (sic) Continuamos perguntando ao grupo, a partir da fala de Raiane, sobre a independência e a possibilidade da mulher fa- zer o que quer: “E será, quando ela decide fazer o que ela quer, será que tem alguma consequência? Pra ela?” (sic). Saory res- pondeu: Assim, se ela tiver ciente da situação que ela ‘tá fazen- do, não. Mas se ela fizer uma coisa e... Aí, ela vai sofrer. Porque os véi quando começa a julgar mesmo... Não liga não, se é mulher ou homem, pisa mesmo em cima da pessoa. Principalmente homem, homem gosta de humi- lhar uma mulher. A habilidade de “saber se controlar” associada às mu- lheres, inclusive em relação ao álcool, diz de processos socio- culturais e subjetivos de fazer gênero (doing gender), ou seja, de constituição de sujeitos “gendrados”. O que, por sua vez, implica em normas regulatórias de modos de ser-estar em re- lação com outros sujeitos, segundo as próprias marcações de ______________________________________________________________________ 6 Essa expressão diz respeito ao caráter pouco comum dessa experiência na sociedade: ver uma mulher bêbada. 92 | Drogas e Contextos gênero, na intersecção com outros marcadores sociais, como o geracional. Tais normas regulatórias tendem a incidir sobre mu- lheres no sentido de lhes imbuir o controle, quer por cobranças oriundas dos outros, quer como cobranças feitas por e para si mesmas. Michelle Perrot (2003, p. 15) refere que a “mulher ‘tal como deve ser’, principalmente a jovem, casadoura, deve mos- trar comedimento nos gestos, nos olhares, na expressão das emoções, as quais não deixará transparecer senão com plena consciência”. É incentivado às mulheres que desenvolvam uma espécie de “perícia” na gestão dos próprios desejos e ímpetos a partir dos referentes valorizados do comedimento e do con- trole. Escapar em alguma medida a essas normas regulatórias, às mulheres, é se tornar alvo de julgamentos e violências, a exemplo do que foi trazido por Saory, segundo uma associação entre a masculinidade, via consumo de bebidas, e a violência: “(...) homem gosta de humilhar uma mulher. Eu conheço mui- to homem que a mulher não pode, assim, tocar num gole. Aí, começa a beber e começa a humilhar. A primeira coisa é des- contar na mulher quando chega bebo em casa” (sic). Desse modo, “fazer o que quer”, como trazido por Raiane, pode trazer consequências às mulheres em termos de punições ao que se entende como transgressões, ou seja, fazer o que não lhes se- ria devido. Trata-se de dilemas vivenciados entre as desigualdades em relações de gênero e as tentativas por equidade em lutas diárias. Nestas, muitas vezes, as mulheres precisam “pagar o preço” por atitudes e ações que de alguma forma rompem, ainda que situacionalmente, padrões pré-estabelecidos do que lhes é,ou não, permitido – permissões e proibições que se eri- gem a depender do gênero, da geração, da situação socioeco- nômica, dentre outros elementos em intersecção, que orientam modos de ser e estar em sociedade, delineando as experiên- cias dos sujeitos. Contextos de sociabilidades juvenis - Leyllyanne Bezerra de Souza | 93 7 • Considerações finais A partir das conversas desenvolvidas nesse encontro, destacamos a importância da interseccionalidade entre os mar- cadores geração e sexualidade para compreender a dimensão do lazer envolvida, de maneiras distintas, nas práticas de beber com a família – consumo que se dá no espaço privado – e com amigas(os) – tanto em espaços privados quanto públicos. As relações em família, marcadas pelas hierarquias geracionais, colocam o álcool em cena mediante conversas nas quais ten- dem a ser destacados os riscos envolvidos nas experiências de consumo etílico – inferindo que estão aí inclusos aqueles relativos à sexualidade – a as maneiras de os evitar. Por outro lado, entre amigas(os) “a conversa é outra”, como disseram. Aí, cabem experiências afetivo-sexuais, faladas e/ou vividas; ademais, parece existir um maior potencial para a diversão. Os “riscos”, aqui, parecem trazer mais a possibilidade da experimentação do que do perigo/evitação. Amizade e se- xualidade consistem em esferas interligadas e privilegiadas no processo de construção da autonomia das(os) jovens, quando passam a “conquistar um espaço maior de ação para si, longe do controle familiar” (Franch, 2010, p. 31). Nessa roda de conversa, foi interessante perceber os efeitos da presença de um “estranho”: Emanoel que, apesar de já ser conhecido por Raiane, Saory e Charlii, por estudarem na mesma escola, era novo no espaço do grupo, até então forma- do por integrantes do Ação Juvenil. A presença dele favoreceu posicionamentos das demais jovens e de Charlii de apropria- ção do espaço do projeto, bem como favoreceu intervenções, sobretudo por parte das meninas, em relação às discussões sobre gênero, acionando, dessa maneira, estratégias discursi- vas de visibilidade de relações de poder que resultam em de- sigualdades. 94 | Drogas e Contextos Destacamos a participação das jovens Saory e Raiane nesses movimentos de questionamentos, que tiveram impor- tantes efeitos para o grupo em termos de desestabilizações às normas de gênero. São exemplos: a sinalização de desigual- dades entre mulheres e homens relativas às (im)possibilidades e dificuldades enfrentadas na construção de próprias carreiras sexuais; desigualdades relativas ao desempenho do trabalho doméstico e o correlato direito ao tempo livre para lazer; assim como o direito das mulheres de desfrutar do tempo livre me- diante o consumo de álcool, caso seja da vontade delas, sem precisar ser alvo de fofoca, julgamentos, punições e violência. Além disso, há que considerarmos a indicação de que mulhe- res com orientação sexual diferente da hegemônica podem ex- pressar outras afetações sobre o dispositivo matrimonial tão valorizado no território em questão, o que pode consistir em uma interessante variação intersecional relativa à orientação sexual e ao consumo de álcool, a ser aprofundada em outros trabalhos. Referências ADRIÃO, K. G. Perspectivas feministas na interface com o processo de pesquisaIntervenção-pesquisa com grupos no campo. 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Parte 2: Dispositivos religiosos Capítulo 4 Práticas religiosas no campo das drogas: complexidade, paradoxos e desafios do campo, e posicionamentos na ótica da luta antimanicomial no Brasil Eduardo Mourão Vasconcelos 1 • Apresentação Este pequeno ensaio visa, apesar do alcance e tamanho limitado deste tipo de texto, a indicar de forma muito sintética e panorâmica um conjunto de elementos teóricos, conceituais, históricos e políticos, bem como algumas referências de textos importantes para leituras de aprofundamento, para subsidiar a análise sobre o uso de práticas religiosas para lidar com aquilo que chamamos aqui de “situações existenciais-li- mite”, marcadas pela dor, sofrimento, uso abusivo de drogas e pela exigência de reelaboração/reposicionamento subjetivo e social do sujeito e do círculo de laços relacionais dele para lidar com elas. Essa trajetória visa a subsidiar a atual discussão sobre práticas religiosas no campo da atenção às neces- sidades decorrentes do uso de drogas, tendo como pano de fundo a realidade brasileira atual, de difusão do con- sumo de crack e do apelo a comunidades terapêuticas de cunho religioso para o tratamento. O pressuposto é de que esta temática se insere em um campo de conhecimento com- plexo, paradoxal e multidimensional, cuja análise não pode ser reduzida a abordagens unidimensionais, uniteóricas e lineares, que acabam empobrecendo a discussão das várias facetas e particularidades. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 99 Por outro lado, porém, a complexidade do campo de conhecimento e da análise deste não pode justificar, no campo diretamente político, a ausência de posicionamen- tos claros em relação ao que acontece atualmente no Bra- sil, particularmente quando se leva em conta a perspectiva da reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, que assumimos integralmente. No entanto, em temáticas como esta, estes po- sicionamentos necessários no presente não devem nos tran- quilizar, diante do enorme esforço de aprofundamentoteóri- co, histórico e político em nossas discussões, no sentido de evitar e superar simplificações e esquematismos fáceis e sectários, que podem nos impedir de reconhecer a situação dramática, as demandas implícitas de cuidado e atenção, e os repertórios usuais de lidar com situações existenciais-limite, particularmente pelas parcelas mais empobrecidas de nossa população diante das drogas, sobremaneira do crack e do au- mento das situações de violência a que são submetidas. Para lidar com esta imensa tarefa, vou propor algumas “teses-sínteses”, visando a resumir os argumentos e as tra- jetórias teóricas e históricas que serão apresentadas, mesmo que de forma panorâmica e sintética, no decorrer de cada se- ção. Trata-se de propor uma agenda de temas para aprofun- damento, para pesquisa e debate. 2 • As religiões como um fenômeno humano complexo e multidimensional Tese 1: Os processos religiosos e espirituais representam fe- nômenos complexos e multidimensionais, persistentes ao longo de toda a história humana e, portanto, não redutíveis a visões simplificadoras ou a abordagens unidimensionais e uniteóricas. Assim, qualquer tentativa de estudá-los de forma sistemática, nas respectivas implicações subjetivas, existenciais, sociais e políticas, deve partir deste reconhe- cimento de base. 100 | Dispositivos Religiosos Antes de discutir essa tese, é crucial fazer uma impor- tante distinção conceitual. Por religião, entendemos um con- junto de valores, crenças, textos, rituais, práticas e estruturas simbólicas, coletivas com alto nível de institucionalização, con- tinuidade histórica e poder social que possibilita uma relação controlada dos adeptos com a esfera do sagrado, com os pro- jetos e ideais de vida deste, com as demais pessoas e com a sociedade mais ampla. Por vez, as formas de espiritualidade se diferenciam das religiões por constituir crenças e práticas de relação com o sagrado, com forças cósmicas ou apenas de desenvolvimento pessoal e ético-político, mas com baixo nível ou nenhum tipo de institucionalização estável. As ideias e práticas religiosas e espirituais, os ritos e os mitos, presentes ao longo de toda a história humana, buscam responder a variadas necessidades, perguntas e desafios humanos. a) A morte e a relação dela com destino de cada ser humano constituem um desafio permanente para todos os se- res humanos. Para os arqueólogos, os vestígios de práticas ri- tuais de enterro dos mortos constituem uma marca de se tratar de hominídeos. No Homo sapiens, os rituais de sepultamento revelam a preocupação permanente e universal dos nossos ancestrais para com a morte e com os mortos, que revelam o próprio destino de cada um de nós, e que inspiram fascínio e horror. A ritualização e mitos decorrentes significam, então, uma tentativa de domesticação, de despojá-la da violência e brutalidade, da dor da separação e desamparo, de transformá- -la em uma “passagem” e propiciar a elaboração do luto. E, mais além, a questão da morte nos coloca a pergunta sobre a possibilidade de formas de vida após esta “passagem”, de contatos e convivência com seres na esfera do sagrado e das implicações éticas para a vida concreta, inclusive para se me- recer atingir patamares considerados mais elevados nesta con- vivência. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 101 b) Os mitos de criação e dos diversos deuses buscam oferecer uma explicação para a origem do cosmo, da vida humana e dos demais seres, bem como dos fenômenos re- gulares e da organização que viabilizam a vida no planeta, contra a possibilidade de caos e da desintegração. Assim, a regularidade da ordem celeste, com o sol, as estrelas e a lua se repetindo ciclicamente no dia e noite, e em estações previsíveis do ano, apontam para a projeção de uma realidade arquetí- pica de ordem e perenidade no reino divino, associado aos céus, da qual teríamos ‘saído’ e ‘deveremos voltar’, como uma forma de superar a fragilidade terrestre, marcada pela instabilidade, dor, sofrimento e morte. c) Esta fragilidade humana e a forte dependência dela em relação à natureza - em sociedades baseadas na caça, pesca, no extrativismo ou nas formas mais primitivas de agricultura e pastoreio - colocam a necessidade de entender e controlar ou buscar mais estabilidade e proteção para fenômenos naturais (sol, água, terra, fogo, chuvas, en- chentes, secas, catástrofes naturais, etc) e para os animais dos quais dependiam ou tinham medo, que, pelo pensamento mágico, passam a ter atributos sagrados, gerando muitas das formas de politeísmo. d) Em outras vertentes do politeísmo, os deuses e os mi- tos encarnam também atributos, forças psíquicas em confli- to ou facetas específicas e polares da experiência humana, da natureza cósmica, pulsional e simbólica, e que são vistas por teorias psicológicas e antropológicas contemporâneas como de natureza inconsciente. Isso pode ser exemplificado pelos cultos politeístas desenvolvidos nas culturas clássicas mais complexas, como a grega e romana, ou nas comunidades e culturas primitivas e tradicionais, nos cultos africanos e afro- -brasileiros. Na visão da antropologia de Lévi-Strauss (1949), uma das principais formas dessas últimas para lidar com ex- periências existenciais-limite está no que chamou de eficácia 102 | Dispositivos Religiosos simbólica. A doença ou crise pessoal é vista como expres- são da perda da força espiritual de mitos pessoais e coletivos benignos específicos, com forte conteúdo simbólico e psico- fisiológico. O ritual xamânico promove uma revivescência de um combate dramático entre as forças míticas benfeitoras e as malignas, polarizadas, e mais amplas e universais, até a vitória e libertação das forças protetoras. Assim, o sofrimen- to e o mal-estar da pessoa ganham significação cósmica, são personificados e dramatizados, e as entidades curadoras são chamadas para derrotar os espíritos que provocam a doença, assim restaurando a ordem corporal e afetiva. Neste processo, há uma reafirmação do universo mítico e normativo dominante, pois o doente e a comunidade creem nestes mitos, e o ritual significa a reatualização e o fortalecimento do sistema simbó- lico invocado. Na cultura greco-romana, menos normativa, um exemplo típico destas polaridades mítico-existenciais está em Baco/Dionísio (representantes do prazer, embriaguez e exces- so) e Apolo (racionalidade e ordem). Nestas culturas, havia no calendário algumas festas anuais para Dionísio e Baco, nas quais o uso de bebidas e desregramento sexual eram oficial- mente aceitos, em níveis mais radicais que nos carnavais con- temporâneos (Vernant, 1992; Vernant e Vidal-Naquet, 2005). Algumas versões mais místicas e menos normativas das principais religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo), bem como algumas tradições orientais, também constituem, ao longo da história, em vias de exploração des- ta esfera. Nesta perspectiva, na ótica da psicologia analítica, essas práticas possibilitam a objetivação e exploração de dimensões e forças além da consciência, como parte do processo pessoal de subjetivação, individuação e de cui- dado de si, como exigência de amadurecimento espiritual, psíquico e existencial (Jung, 1983, 2008, 2012). É importante lembrar ainda neste tópico que, desde a Pré-História, os humanos fazem uso de drogas, geralmente em forma de ritual, para alcançar estas esferas mentais, espirituais e religiosas mais profundas (Araujo, 2012). Na Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 103 década de 1970, as plantas usadas para isso receberam de antropólogos e botânicos o nome de enteógenos, termo criado a partir de dois radicais gregos, entheos e genesthai, significan- do algo como “trazer deus para dentro de si”, para aproximar osentido histórico deste uso. Por exemplo, no Rig Veda (livro ori- ginal dos hinduístas da antiga Índia, escrito entre 1700 e 1100 a.C.), e no Avesta (livro do zoroastrismo iraniano, 559-330 a.C.) - e, portanto, em dois dos mais antigos livros sagrados - uma mesma palavra era usada para deus: planta alucinógena e a bebida que se faz dela, usada nos respectivos rituais. Alguns exemplos deste uso místico de drogas mais conhecidos de nós brasileiros são: - o tabaco, pelos indígenas e pajés americanos e brasilei- ros, cujo uso foi depois generalizado para todo o mundo; - o tabaco e bebida alcoólica no transe, em algumas tra- dições de origem iorubá; - a ayahuasca, de origem inca, no Santo Dayme, União do Vegetal e grupos derivados; - o peyote para alguns grupos indígenas mexicanos; - e a maconha pelo movimento rastafari, de origem ja- maicana. Práticas orientais de ioga e meditação, a dança sufi (uma das tradições místicas do islamismo) e certos rituais esotéricos ocidentais também têm objetivos similares, porém, normalmen- te sem uso de drogas. Estas religiões geralmente apresentam níveis mais baixos de institucionalização e centralização. e) Muitas vertentes religiosas, particularmente as mono- teístas, mostram um forte componente de criar e dar susten- tação a valores morais individuais e principalmente coleti- vos. Na História, algumas foram capazes de sustentar a luta contra a injustiça e pela emancipação de grupos étnicos subjugados, ou de moldar a coesão/solidariedade social, ét- nica e política para formas específicas de economia, socieda- de e Estado. Além disso, dependendo da conjuntura histórica e da associação com o poder político, as religiões também têm 104 | Dispositivos Religiosos servido de dispositivo funcional ou ideológico para manter a dominação, exploração e alienação de grupos e classes sociais submetidas, como na forma escravista, monárquica, colonialista ou imperialista, ou em formações sociais capitalis- tas mais tradicionais. Esta dimensão é enfatizada por Marx na análise do que chamou de alienação religiosa (Vasconcelos, 2010a, 2010b e 2010b). Este tema será retomado a seguir com mais detalhes. f) Outras vertentes religiosas têm ligações menos diretas com as instituições morais e sociais articuladas com o aparelho de Estado e com formas de governo, pois visam à construção de respostas, no âmbito da sociedade civil e da esfera privada, para os dilemas mais fundamentais do sentido da vida e das experiências de caos, doença, sofrimento e desamparo hu- mano, da busca da felicidade e do aperfeiçoamento moral e ético, tanto individual como grupal e societal. As respostas coletivas a estas perguntas existenciais tão radicais, forjadas e estabilizadas ao longo da História, são reproduzidas nos textos, objetos sagrados e rituais religiosos, constituindo imaginários compartilhados e sistemas simbólicos, alguns deles com forte continuidade histórica (Castoriadis, 1982). Portanto, do ponto de vista da psicossociologia, as religiões colocam à disposição dos indivíduos estruturas psíquicas comuns, inconscientes, com mecanismos de defesa, para regular a relação com os impulsos inconscientes, particularmente com o prazer e a agressividade, com as situações existenciais-limite e com os anseios de reciprocidade, convivência, solidariedade, justiça e amor humano (Kaës, 1991). Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 105 3 • As ciências das religiões como campo plu- ral e interdisciplinar de conhecimento Tese 2: Ao longo da história humana, as religiões e as práti- cas espirituais foram objeto de várias formas de conheci- mento. Atualmente, as ciências das religiões constituem um campo variado e interdisciplinar, incapaz de ser reduzi- do a apenas uma ou poucas abordagens particulares. As- sim, o estudo sistemático e de longo prazo das relações com outros fenômenos sociais recentes, como a drogas, requer mobilizar contribuições destas várias disciplinas, buscando superar as simplificações e os reducionismos. Até o Renascimento, as três principais formas domi- nantes de conhecimento foram: - o pensamento mágico-religioso e a criação/reelabo- ração de mitos e rituais, com fortes conotações me- tafóricas e simbólicas; - a filosofia, buscando dar respostas racionais aos di- lemas humanos, às vezes teísta ou interpelando a esfe- ra do sagrado, outras vezes abertamente ateístas (afir- mação explícita da não existência de deus ou da esfera divina) ou agnósticas (afirmação da impossibilidade do conhecimento sobre a natureza dos fenômenos sagrados e religiosos) (Smith e Piva, 2012a e 2012b); - as diversas formas de teologia, predominantemente confessionais, em que se destacam comentários de tex- tos sagrados e de ideias religiosas, bem como relatos de experiências religiosas pessoais e coletivas. A partir do Renascimento, e principalmente com o Ilu- minismo, desenvolve-se uma busca de se construir uma his- tória das religiões cada vez mais autônoma da teologia e da filosofia teísta. Um dos precursores desta abordagem foi o filó- sofo empirista e historiador escocês David Hume (1711-1776), com a obra História natural da religião, de 1757. No século 106 | Dispositivos Religiosos XIX, após a revolução burguesa e as primeiras experiên- cias republicanas de secularização, temos a emergência e consolidação das ciências naturais e sociais, com amplo de- senvolvimento de estudos sobre as religiões, com base em for- mas autônomas de conhecimento científico, e polarizadas por várias tendências: - pelo positivismo, que se limita aos fatos sociais obser- váveis; - pela antropologia evolucionista; - pelo pensamento social revolucionário; - e pelas primeiras formulações de um pensamento com- preensivo e interpretativo nas ciências humanas. Ainda no século XIX, as principais abordagens dos fe- nômenos religiosos foram marcadas por pelo menos duas ten- dências principais de reducionismo: - por um evolucionismo positivista, mas com fortes co- notações etnocêntricas e/ou confessionais eurocêntri- cas, voltado para classificar e identificar fases gerais e necessárias da evolução das formas religiosas, em que o monoteísmo cristão geralmente era visto como uma fase mais avançada; - pelo pensamento social revolucionário (Feuerbach, Marx, Engels e seguidores) que, apesar das contribui- ções fundamentais, reduziu a multidimensionalidade e variedade dos processos religiosos e espirituais à forma cristã dominante na Europa, a funções sociais ideológicas desta e ao fenômeno da alienação religiosa, constituindo- -a inclusive como matriz analítica para as demais formas de alienação social e econômica. No século XX, o campo plural e interdisciplinar das ciências das religiões (Filoramo e Prandi, 1999; Terrin, 2003) se diversifica, apresentando uma ampla gama de perspectivas disciplinares, com boas possibilidades de complementação e diálogo, mas comportando também fortes contradições e con- flitos entre si. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 107 a) A história das religiões, com várias “escolas” e grupos de pesquisa em vários países, em que se destacam os estudos diacrônicos e comparativos, os possíveis contatos e influências entre religiões, as respectivas relações com as especificidades históricas, sociais e culturais etc. (Brelich, 1979; Eliade, 2010; Lanternari, 1959; Wright, 2012; Pagels, 2002; Scarpi, 2005; Ra- veri, 2005; Filoramo, 2005). b) A sociologia das religiões, que as vê como fenôme- nos oriundos de processos e estruturas sociais, com dimen- sões simbólicas, institucionais, de regulação social ou como componente de processos ideológicos e de alienação social. Entre os autores clássicos mais importantes, destacam-se o positivismo de Comte; o funcionalismo de Durkheim; a socio-logia sócio-histórica de Marx, Engels e seus seguidores; os estudos das interações entre os processos socioeconômicos e políticos e a dinâmica religiosa de Weber; os trabalhos de Mauss sobre o sacrifício como mediação simbólica e ritual en- tre o impuro e o sagrado, entre outros (Teixeira, 2003; Villaime, 2012). Vários sociólogos mais recentes, dedicados às religiões e aos processos sociorreligiosos, também têm contribuições importantes (Troeltsch, Seguy, Luckmann, Berger, Wilson, etc), bem como outros autores dedicados a temáticas mais amplas, mas que também acabam incidindo sobre o campo das reli- giões (Manheim, Norberto Elias, Bourdieu, Touraine, Giddens, Bauman, etc). c) As perspectivas fenomenológicas, com a busca de estudos descritivos e comparativos das práticas e crenças, mas visando a particularmente compreender por dentro a ex- periência vivida do sagrado, as formas de manifestação deste, a intencionalidade e os sentidos atribuídos a ele pelas pesso- as e grupos sociais. Neste campo, se destacam Rudolf Otto e principalmente Mircea Eliade, este com um enorme conjunto de obras no campo da História e das demais ciências das reli- giões. 108 | Dispositivos Religiosos d) As psicologias da religião, passando pelas abor- dagens clássicas, entre a quais se destacam os trabalhos de Willian James, a crítica radical de Freud (Morano, 2003), par- ticularmente nos livros Totem e tabu, Moisés e o monoteísmo e o Futuro de uma ilusão, e a aproximação mais simpática mas também crítica de Jung (Jung, 1983, 2008, 2012; Dourley, 1987), além de autores mais contemporâneos como Maslow e Hillman. Há também importantes contribuições indiretas de cor- rentes da etnopsicologia e de algumas abordagens da análise institucional, particularmente a psicossociologia. e) A antropologia das religiões, centrada sobre os ritos e os mitos e as funções e relações de ambos com as institui- ções e estruturas sociais e culturais. Entre os principais autores clássicos, destacam-se o funcionalismo de Malinowski, o es- truturalismo de Lévi-Strauss, a perspectiva dos sistemas sim- bólicos de Clifford Geertz e os estudos das religiões de origem africana no Brasil, de Roger Bastide. f) Os estudos linguísticos, especialmente a linguística histórica e comparada, abordando as ligações e estruturas co- muns das diversas línguas e as repercussões no estudo dos textos sagrados e de significados originais. g) A medicina integrativa, que faz uso de formas con- vencionais de evidência médica como experimentos controla- dos e estudos epidemiológicos (Levin, 2001). Tem revelado que crenças ativas e práticas religiosas/espirituais têm em geral uma correlação positiva com relações familiares mais estáveis, maior apoio social, mais cuidado ao corpo e à saúde, menos hábitos nocivos (drogas, fumo, etc.), menos estresse e depres- são, mais esperança, maior adesão a tratamento e melhor evo- lução quando se é acometido por doenças. Paradoxalmente, algumas crenças e práticas também podem tem uma influência negativa no quadro de saúde e recuperação de doenças, por exemplo quando estas são vistas como castigos divinos, aba- Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 109 lando a expectativa de melhora. Ou, quando possuem regras morais e corporais muito rígidas, gerando estresse, culpa e em- pobrecimento das dimensões da vida associadas ao prazer e alegria. Ou, ainda, quando estimulam apenas os tratamentos espirituais, em detrimento do cuidado profissional. 4 • O caráter dialético e paradoxal das práti- cas religiosas monoteístas ao longo da História para lidar com o poder social/político e com as forças do inconsciente Tese 3: A avaliação das práticas religiosas para lidar com si- tuações existenciais-limite e de uso abusivo de drogas, no contexto brasileiro, exige modelos analíticos complexos, não lineares, interdisciplinares, capazes de lidar com o ca- ráter dialético e paradoxal do processo. É preciso reconhe- cer uma certa eficácia imediata no plano pessoal, micros- social e comunitário, particularmente no curto prazo, mas também os efeitos problemáticos e conservadores a médio e longo prazo, bem como no plano macrossocial e cultural. Para podermos compreender este processo mais integral- mente, precisamos retomar uma perspectiva histórica de longo prazo, político-social e psicológica. 4.1 • Uma análise histórica de longo prazo das religiões monoteístas e os efeitos paradoxais Na análise história de longo prazo das três principais religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo), é possível verificar este processo dialético e paradoxal. Apesar das especificidades, podemos identificar a partir do trabalho de Wright (212), uma estrutura comum de momentos diferencia- dos, que representam estruturas culturais, psíquicas e políticas profundas, e não necessariamente lineares no tempo. 110 | Dispositivos Religiosos a) Um momento inicial em que a revelação e os desdo- bramentos históricos mais imediatos implicam em: - afirmação do universalismo e da dignidade humana: qualquer pessoa, independente de etnia/raça e classe social, é considerado um(a) filho(a) de Deus, e, portanto, deve ser tratada com amor, caridade, respeito e dignida- de, contra as formas então presentes de opressão étnica e social; - uma identidade e um projeto libertador para um gru- po étnico oprimido (judeus no Egito), para grupos espe- cíficos submetidos a um império dominador (Jesus e os primeiros cristãos sob o Império Romano) ou para os se- tores mais empobrecidos da população árabe (Maomé em Meca). b) Um momento intermediário, em que os grupos de adeptos estão espalhados e submetidos a um império con- quistador, com religião politeísta e com forte atividade comercial, e que aceita e dá alguma autonomia às demais religiões locais. Neste contexto, as três religiões têm que con- viver mais ou menos pacificamente com as demais (exem- plo: judeus sob os impérios assírio e romano; cristianismo na fase da expansão inicial no Império Romano, particularmente sob a influência do trabalho missionário de Paulo; Maomé nos momentos iniciais da pregação em Medina). c) Um outro momento, geralmente mais longo, em que a religião monoteísta se institucionaliza em uma sociedade autônoma, particularmente como religião de Estado, pas- sando a conquistar ou perseguir adeptos de outras seitas e religiões, ou os próprios dissidentes internos, estabele- cendo os textos sagrados e a teologia como forma de co- nhecimento padrão e às vezes único para toda a socieda- de. Exemplos: Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 111 - reis, lideranças, profetas judeus e trechos atribuídos ao próprio Iavé, perseguindo outras confissões remanescen- tes no meio do próprio povo hebreu, relatado no Antigo Testamento (exemplo: reinado de Josias, iniciado em 640 a.C., descrito no II Reis, bem como passagens do Deute- ronômio, 13 e 18); - o cristianismo desde o reconhecimento como religião oficial do Império Romano até a Revolução Francesa, com perseguição de outras religiões e de grupos cristãos dissidentes, como na matança e destruição de textos gnósticos; nas Cruzadas e Inquisição; e na evangeliza- ção orgânica ao colonialismo e escravismo; - o islamismo, durante e após a conquista de praticamen- te todo o mundo árabe da época, em poucos anos, sob a liderança do próprio Maomé. Outra dimensão importante deste momento é o quase monopólio, por estas religiões, das formas e dispositivos de filantropia, assistência social e educação, bem como de estratégias pessoais de subjetivação e individuação. Neste último campo, há inúmeras formas e movimentos de resis- tência às abordagens institucionais dominantes, por meio de seitas místicas e/ou secretas, com diferentes níveis de auto- nomia, compromissoou contestação ao poder constituído, sendo que algumas delas sofreram aberta perseguição (Arms- trong, 2008). d) Um quarto momento mais recente, na modernidade, com a formação dos regimes republicanos, com a consequente separação entre religião e Estado e o processo de secula- rização, que atingiu mais claramente o cristianismo e parcial- mente o judaísmo. No islamismo, alcançou apenas alguns pou- cos países árabes, tendo a Turquia e a Síria como exemplos mais conhecidos. Neste momento, as religiões monoteístas são obrigadas a abrir mão dos privilégios do terceiro mo- mento e a buscar conviver pacificamente com a demais religi- ões, como no segundo momento, mas com enormes tensões. 112 | Dispositivos Religiosos As estruturas culturais e psíquicas profundas, difusas na socie- dade; os repertórios e estratégias delas para lidar com situa- ções existenciais-limite; bem como as respectivas instituições concretas, particularmente aquelas associadas à vida moral, assistência social e educação, particularmente aquelas forja- das no primeiro e no terceiro momento, estão difusas no meio social ou ainda estão disponíveis para serem mobilizadas. Esta tentativa de sistematizar os principais momentos da história das grandes religiões monoteístas nos permite compre- ender melhor, por exemplo, como os movimentos milenaris- tas e de libertação social interpelam as estruturas religiosas do primeiro momento para fins mais coletivos, como na versão mais contemporânea e abrandada da Teologia da Libertação. Outros exemplos são as igrejas cristãs e, particularmente, as pentecostais, que as mobilizam para fins mais individu- ais e/ou privados em situações de crise social e pessoal, mas com isso necessariamente trazem consigo as estruturas do terceiro momento, com as pretensões de hegemonizar o campo religioso ou moral. Abordagens que associam os fenômenos religiosos a estes processos sociais dialéticos e paradoxais, como propos- to aqui, já foram realizadas por exemplo por Feuerbach, no livro sobre a alienação religiosa A essência do cristianismo, de 1841. Sem focar os processos religiosos, Sartre, no estudo sobre a Revolução Francesa (A crítica da razão dialética, de 1961), também identifica processos paradoxais similares em movimentos e grupos de militância política, e particularmente nos processos de revolução social. Este tipo de análise me pa- rece fundamental quando o nosso objeto de estudo é o uso das práticas religiosas no campo das drogas. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 113 4.2 • As consequências psicopolíticas da insti- tucionalização do cristianismo e a ascensão à religião de Estado, e a negação do diálogo com o inconsciente, a sexualidade e a feminilidade A expansão do cristianismo primitivo se fez, em vários aspectos, em oposição à cultura romana, em que havia os componentes de dominação de outros povos, escravidão, uso vulgarizado da morte como diversão pública e abuso sexual de escravas e servas. Assim, neste primeiro momento, caminhou na direção de uma ética de respeito e amor universal por todos os demais seres humanos, de uma igualdade mais universalis- ta, independente de etnia, de uma solidariedade comunitária e de uma moral sexual mais restritiva e responsável. Ao mesmo tempo, estimulou a autonomia do cristão em relação ao poder romano, às vezes desafiando abertamente a autoridade e as leis, o que levou a mais perseguição e mortes, muitas vezes na tortura ou simplesmente sendo jogados aos leões para diver- são pública. No entanto, havia na época outras seitas cristãs, in- cluindo os gnósticos, mais místicos, que pregavam maior li- berdade pessoal, moral e sexual, em função de uma explora- ção mais profunda e metafórica dos mistérios da fé, da mente e dos sonhos, de um diálogo maior com as forças sombrias do psiquismo e de uma maior valorização dos elementos fe- mininos. À medida da institucionalização das igrejas locais e bispos, estes grupos foram perseguidos e aqueles textos des- truídos. Versões originais destes evangelhos gnósticos foram redescobertos apenas no século XX, e estão sendo publicados e discutidos, revelando concepções muito diferenciadas em vá- rias destas dimensões para os próprios seguidores, com gran- de impacto inclusive na literatura atual (Pagels, 1995). Este processo de institucionalização e fechamento do cristianismo se completou com a ascensão à religião oficial e única do Império Romano, a partir de conversão do impe- rador Constantino, em 313, passando a perseguir as demais 114 | Dispositivos Religiosos religiões. Do ponto de vista das ideias, Agostinho de Hipona (354-430), teólogo santificado mais tarde pela Igreja Católica, foi quem melhor expressou essas mudanças. Reinterpretou o livro de Gênesis como a queda, o pecado original e, desde então, a humanidade seria doente, pecadora e desamparada, incapaz de autonomia e livre-arbítrio. O corpo e a sexualidade, parte inferior e tentadora, associada ao pecado, deveria seguir o controle da vontade e da alma racional. Isso o fez eleger como principal virtude a obediência e aceitar o governo dos homens, mesmo que tirânico, como mal necessário e como uma defesa indispensável contra as forças que o pecado teria originado na natureza humana, submetendo-a ao poder combinado do Es- tado e da Igreja. E, ao mesmo tempo, defendia abertamente o submetimento da mulher ao homem, “como o espírito predomi- na sobre a carne” (Pagels, 1992). Karl Gustav Jung, psiquiatra suíço fundador da psico- logia analítica, em escritos sobre o cristianismo, mostra como essa concepção unilateral acabou recalcando o diálogo com a libido, a feminilidade e com as forças inconscientes (que chamou sinteticamente de sombra), dissociando-as e rejeitan- do-as como diabólicas (Dourley, 1987). Na Idade Média tardia, com a Inquisição e a Contrarreforma, a perseguição, a tortu- ra e a morte de milhares de mulheres curandeiras, herdeiras da farmacopeia popular e das práticas esotéricas, expressam muito bem este processo. Assim, sem possibilidade de se ex- teriorizarem em figuras simbólicas e míticas reconhecíveis e de se estabelecer o diálogo com elas, estas forças passam então a ter uma dinâmica reprimida, autônoma e perigosa em cada pessoa e nas instituições. A histeria feminina e os sintomas exacerbados dela, encontrados por Freud no final do século XIX, certamente significavam alguns dos sinais visíveis deste processo até então e que, depois, transformou-se gradualmen- te pelas conquistas e liberação da mulher durante o século XX. A revolução feminista também gerou na Europa, a partir dos anos 1980, uma enxurrada de estudos sobre as deusas, em contraposição à visão hegemônica de um deus único, masculi- no e com características patriarcais (Pollack, 1997). Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 115 Para exemplificar, dois outros bons exemplos mais atu- ais deste processo de recalque/repressão, dos efeitos de auto- nomização provenientes e do retorno sintomático do recalcado, estão na proibição da homossexualidade e nas consequên- cias da exigência anacrônica de celibato para sacerdotes na Igreja Católica, única entre as demais religiões cristãs. Es- tas últimas certamente têm estimulado, mesmo que de forma indireta, a pedofilia e a própria homossexualidade nas casas de formação e entre os padres, em uma incidência muito aci- ma daquelas encontradas na sociedade em geral, e em forte contexto de dissonância entre o que se prega e o que se vive emocionalmente e na vida concreta, gerando ainda mais cul- pa, angústia e neurose entre os seminaristas e religiosos. Além disso, o celibato constitui uma fonte de imenso sofrimento psí- quico para muitos sacerdotes com vocação pastoral genuína, mas que têm de abandoná-la por desejarem constituir umafa- mília. E, para aqueles que seguem a carreira, a exigência aca- ba gerando uma profunda solidão quando idosos, nas casas de padres anciãos, isolados e sem a companhia de cônjuge e filhos e dos paroquianos com os quais conviveram na vida ativa (Pereira, 2012). 5 • O ‘estoque de estratégias’ de controle social para lidar com desviantes, pobres e ‘de- mentes’ na transição dos séculos XVIII e XIX Tese 4: É importante sistematizar, na transição para a socie- dade capitalista na Europa, nos séculos XVIII e XIX, o re- pertório de estratégias de controle social e de lidar com desviantes, pobres e dementes, pois irão permanecer como um ‘estoque de dispositivos’ de controle social no desenvolvimento posterior da sociedade capitalista e para lidar com situações existenciais-limite. 116 | Dispositivos Religiosos Os trabalhos clássicos de Michel Foucault, A história da loucura, publicado em 1961 (Foucault, 1972), e de Robert Cas- tel, A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo (1978), reconstituem os principais dispositivos de controle social dos desviantes e ‘dementes’ acionados nos séculos XVIII e XIX na França e no Reino Unido. a) O aprisionamento indiscriminado nas casas de tra- balho e nos hospitais gerais, com uso regular de acorrenta- mento e coerção física, dispositivo que seria então criticado e reformado pelo processo revolucionário francês, que afirma os direitos fundamentais do homem, ainda que na esfera formal. b) A filantropia religiosa, que inaugura no Reino Uni- do a segregação do demente em comunidades de trabalho e disciplina, com o tratamento moral de orientação religio- sa: a experiência matriz deste modelo é o Retreat (Retiro), em York, Reino Unido, comandado pela filantropia quaker (ou qua- cre), uma versão do protestantismo britânico, que enfatizava a importância da religiosidade e do apostolado leigo. O projeto foi coordenado pela família Tuke, na qual se destaca Willian Tuke (1732-1822), conhecido pela libertação das pessoas com transtorno mental das correntes, pelo tratamento em uma co- munidade rural separada da vida social, com ênfase no traba- lho, na disciplinarização moral e na autoridade do filantropo. A meu ver, não há dúvida de que este modelo significou cla- ramente uma das principais inspirações das comunidades terapêuticas da segunda metade do século XX¹. ______________________________________________________________________ ¹ “O Retiro deverá agir como instrumento de segregação: segregação moral e religiosa, que pro- cura reconstituir, ao redor da loucura, um meio tão semelhante quanto possível à Comunidades dos Quacres. [...] Mas a razão principal [...] é que a religião pode representar este duplo papel de natureza e de regra, uma vez que ela assumiu, no hábito ancestral, na educação, no exercício cotidiano, a profundidade da natureza, e uma vez que ela é ao mesmo tempo princípio constante de coerção. Ela é simultaneamente espontaneidade e coerção, e com isso detém as únicas forças que podem, no eclipse da razão, contrabalançar as violências desmedidas da loucura; seus pre- ceitos. [...] Vê-se que no Retiro a supressão parcial das coações físicas faz parte de um conjunto cujo elemento essencial era a constituição de uma “autocontenção” onde a liberdade do doente, comprometida no trabalho e no olhar dos outros, é ameaçada incessantemente pelo reconheci- mento da culpabilidade.” (Foucault, 1972: 477 e 481). Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 117 c) O tratamento moral ‘científico’ da psiquiatria pi- neliana, despido então de conotações religiosas, que consti- tuiu no início do século XX, com Philippe Pinel (1745-1822), a emergência da psiquiatria moderna, a partir do mandato recebido pelos revolucionários franceses. Embora inspirado em diversos tipos de práticas filantrópicas e hospitalares ante- riores, assumiu um cunho exclusivamente secular, racionalista e positivista, com forte ênfase na disciplina e na visão moral da ‘alienação mental’, realizado no ambiente segregador dos hospitais psiquiátricos especializados, sob a direção única do alienista (Foucault, 1972; Castel, 1978; Vasconcelos, 2010b). 6 • As relações sociais capitalistas e a refle- xidade introduzida na lógica de reprodução delas: o potencial emancipador, os insuperá- veis riscos, o repertório de estratégias para o controle social e a interpelação de práticas religiosas Tese 5: A modernidade e o capitalismo - ao eliminarem os vínculos feudais de servidão e dependência, os dispositi- vos compulsórios de socialização e promoverem a secula- rização e a venda ‘livre’ da força de trabalho - introduziram a construção do eu ou a reflexividade na própria base da reprodução do sistema econômico e social. Assim, fizeram emergir um projeto emancipatório potencial, fundamental para a subjetividade e para o gênero humano, mas que é abertamente contraditório, e de forma estruturalmente in- superável, nos próprios marcos deste tipo de sociedade, gerando ‘anomia’ e uso abusivo de drogas. A gestão social destas contradições vem utilizando uma série de disposi- tivos e estratégias de controle social e subjetivação, com diferentes formas de interpelação religiosa, cuja natureza precisamos compreender para lidar com elas, do ponto de vista dos interesses populares. 118 | Dispositivos Religiosos Na conformação histórico-cultural da modernidade, três processos históricos e culturais estimularam o individualismo cultural e a noção de um sujeito mais ativo: - a invenção da imprensa, permitindo cada vez mais indi- víduos formarem uma opinião individual sobre o mundo; - a Reforma Protestante, traduzindo a Bíblia para a língua corrente e estimulando uma relação direta com Deus, com formas menos diretas de mediação e dependência em relação à hierarquia religiosa; - a visão heliocêntrica e de um cosmos infinito, em que o ser humano não representa o centro do universo e o objeto prilegiado de uma relação tão direta com a esfera divina. Mais tarde, no século XIX, a publicação da teoria da evolução também teve um efeito similar. Logo após, a modernidade e o capitalismo difundiram a cultura individualista, ao liberarem o indivíduo comum dos la- ços tradicionais de servidão, de dependência interpessoal, de submissão ao mestre na corporação de ofício e à autoridade ilimitada combinada da igreja cristã, da aristocracia e do poder de Estado. Assim, os mecanismos compulsórios clássicos de socialização e formação moral foram flexibilizados ou transfor- mados pela adesão voluntária. Além disso, o capitalismo difun- diu as relações mercantis, que ampliam cada vez mais o conta- to com as potencialidades de todo o gênero humano. No plano cultural, a modernidade realizou a passagem da antiga cultura do mérito herdado, associado ao direito aris- tocrático da posse e herança, para uma cultura mais igualitária do mérito pessoal conquistado, com base principal no próprio projeto de ampliação da educação. Esta visa a substituir os mecanismos tradicionais de socialização e a ampliar as possi- bilidades de cada futuro trabalhador ser absorvido em um mer- cado aberto e competitivo de trabalho. Há um grau relativo de autonomia para a escolha de um projeto de vida, que exige de cada cidadão uma avaliação do respectivo contexto social, das possibilidades e de formação pessoal não só técnico, mas também humano e pessoal mais amplo. Neste sentido é que Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 119 podemos dizer que a ideia de uma adolescência e juventude associada a uma crise de identidade, inerente à escolha de um projeto de vida, constitui um fenômeno inaugurado apenas pela modernidade. Assim, a modernidade e o capitalismo requerem um projeto consciente de construção do eu, de reflexividade, introduzido na própriabase da reprodução do sistema eco- nômico e social, a ser gerenciado por cada indivíduo, em um contexto que amplia e fragmenta as possibilidades de conduta e de escolha, em um mercado ‘livre’ de trabalho e de posturas morais (Vasconcelos, 2010c). Algumas versões deste projeto ti- veram um viés fortemente racionalista, outros incorporaram as emoções e sensibilidade. A gestão coletiva e individual deste projeto em cada formação social é fortemente influenciada pela própria inserção diferencial nas relações capitalistas, pelas estruturas profundas da cultura e componentes re- ligiosos dela. Por exemplo, no Norte da Europa, incluindo a França, e em vários países influenciados pela cultura anglo- -saxônica, a maioria deles com uma história associada ao pro- testantismo e forte processo de secularização, o componente de individualismo e de autonomia pessoal é enfatizado. Nos países europeus mediterrâneos, de forte influência cultural latina e católica, bem como nos países periféricos que colonizaram, temos uma cultura mais fortemente hierárquica e de base familiar e comunitária, que valoriza pouco a autonomia individual, na qual o imaginário religioso constitui uma matriz central e difusa nas massas populares. Os Estados Unidos da América apresentam uma mescla destes dois universos, com- binando o forte individualismo com uma acentuada presença religiosa difusa na cultura. As características diretas das relações sociais ca- pitalistas geraram contradições profundas na gestão des- te projeto. Transformaram o indivíduo em mercadoria, força de trabalho ‘livre’, atomizada, a ser vendida em um mercado de trabalho competitivo, regido por mecanismos impessoais e completamente desfavoráveis a interesses daquele. A bus- 120 | Dispositivos Religiosos ca por emprego, o amplo exército industrial de reserva e as longas jornadas de trabalho acentuaram a migração, o aglora- mento urbano precário e as péssimas condições de vida, como também dificultaram a manutenção de vínculos relacionais, fa- miliares e comunitários de base local que, até então, também compunham a base da socialização convencional, aumentando enormemente os riscos de ‘anomia’ e uso abusivo de álcool e outras drogas. Assim, o projeto emancipatório potencial da modernida- de só apresenta condições satisfatórias de conquista ampla e democrática para todos se atingidas determinadas condições de vida e trabalho. Isso inclui a socialização dos meios de vida; o amplo acesso a bens e políticas educacionais, culturais, de lazer e a tempo livre; bem como a serviços de bem estar social, infraestrutura urbana e de cuidados em saúde e saúde men- tal. Na sociedade burguesa atual, eles só estão disponíveis em tese para a elite minoritária e dominante - e ainda assim de for- ma distorcida e fetichizada, pela perspectiva de classe e pela mercantilização -, o que leva esta elite a se apropriar desta proposta em termos muito limitados ou redutivamente indivi- dualistas. Temos, então, uma sociedade que não oferece dis- positivos acessíveis de formação e de subjetivação no campo moral, ético e psicológico, para a maioria da população, capa- zes de gerar a reflexividade e a autonomia necessárias para a formação pessoal e para lidar com os desafios existenciais no novo contexto histórico e cultural. Em paralelo, no século XIX, o desenvolvimento da in- dústria química e da medicina propiciou a síntese de formas cada vez mais puras das drogas convencionais da farmaco- peia, e as transformou em mercadoria, aumentando a acessi- bilidade e o efeito concentrado desta. Em seguida, a produção e mercatilização das drogas psicoativas foram transformadas em processos ilícitos no século XX, pela política proibicionis- ta promovida principalmente pelos Estados Unidos, em plano mundial. Esse quadro estimulou a apropriação pelo narcotrá- fico, como mercadorias proibidas e caras, o que aumentou o Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 121 poder econômico, militar e particularmente sociocultural do país. Além disso, o narcotráfico passa a oferecer aos jovens das classes populares uma carreira que, mesmo ilegal e peri- gosa, dá-lhes rapidamente poder, dinheiro, prazeres imediatos e prestígio entre os pares, principalmente em sociedades mar- cadas pelo desemprego e pela desigualdade social, econômica e territorial. Uma das poucas excessões a esta regra foram as bebidas alcóolicas, cujos efeitos perversos do proibicionismo foram reconhecidos rapidamente pelas autoridades norte-ame- ricanas na década de 1930, permitindo a volta delas à plena legalidade. Desta forma, em conjunturas históricas ou em regiões específicas em que as condições de vida, trabalho e suporte so- cial das classes trabalhadoras são deterioradas, a combinação destes fatores amplia claramente as possibilidades de carreiras de ‘anomia’ e abuso de drogas. Para lidar com as contradições inerentes à gestão da reflexividade, o Estado capitalista e se- tores da sociedade civil engendram desde o século XIX alguns dispositivos institucionais, culturais e de subjetivação específi- cos (Vasconcelos, 2010c). Entre eles, podemos citar alguns de maior relevância para nosso tema. a) A continuidade e a expansão dos dispositivos clás- sicos de controle social via repressão, segregação terri- torial e/ou em instituições fechadas, como as casas de tra- balho, os hospitais psiquiátricos, os hospitais fechados para doenças contagiosas, os asilos de velhos e particularmente a ampliação do sistema policial e penitenciário, como se dá atu- almente de forma vertiginosa nos principais países ocidentais, com clara liderança dos Estados Unidos da América e, em se- gundo lugar, o Brasil. b) Os movimentos de eugenia, com base em teorias sustentadas por correntes da medicina com forte legitimação acadêmica, que pregavam o racismo institucional e societário contra as massas populares miscegenadas e migrantes, por 122 | Dispositivos Religiosos meio de medidas autoritárias de controle de casamentos, de ocupação de cargos nos seviços públicos, esterilização de mu- lheres etc, cujas versões mais radicais geraram o horror nazis- ta (Costa, 1980). c) Os movimentos e as ligas de higiene mental do iní- cio do século XX, que nasceram nos EUA e se expandiram nos países e continentes sob a influência norte-americana ou europeia, muitas vezes também associados a valores eugêni- cos, e que visavam a modelar um novo indivíduo para a nação, com forte normatização das práticas familiares, educacionais e assistenciais (Vasconcelos, 2000). d) Os movimentos de reinterpelação das identidades religiosas tradicionais, de valores e formas convencionais de controle moral, podendo ser abertamente confessionais ou não, mas combinadas com uma abordagem social individualis- ta e contra a intervenção pública. Um dos melhores exemplos foi o movimento da temperança, que teve enorme difusão na Inglaterra, nos Estados Unidos e outros países de maior pene- tração da cultura anglo-saxã e capitalista, a partir da segunda metade do século XIX (Vasconcelos, 2003). Nas Sociedades da Temperança e na literatura delas, as marcas evidentes do neodarwinismo, do puritanismo religio- so e da cultura vitoriana moralista são mescladas ao individu- alismo liberal e empresarial. Assim, reforça-se junto aos traba- lhadores o chamamento para a autoeducação e o cuidado de si como motores do crescimento do indivíduo, rejeitando a ajuda externa oriunda de programas sociais filantrópicos e públicos. Um exemplo típico da continuidade no século XX de vá- rios componentes da matriz da temperança está nos Alcoólicos Anônimos (AA) e nas organizações derivadas, desenvolvidas a partir de 1935 nos EUA, e atualmente difusos em mais de 150 países. Trata-se de um fenômeno complexo, cujo disposi- tivo grupal e estratégiascognitivas e espirituais para lidar com comportamentos compulsivos apresentam muitos valores e as- Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 123 pectos progressistas e com relativa eficácia em determinados segmentos populares, que precisam ser reconhecidos e reque- rem uma avaliação séria, complexa e cuidadosa (Vasconcelos, 2003). No entanto, lidam com o abuso de drogas e outros pro- blemas de comportamento compulsivo, de forma inspirada na conversão religiosa (embora não diretamente confessional), e com ênfase exclusiva na abstinência absoluta e na reforma mo- ral de cada indivíduo, sem consideração de aspectos coletivos e sociais. Outro exemplo similar desta tendência, mas de maior vulto, é a crescente difusão da igrejas pentecostais no Brasil, particularmente em comunidades faveladas, periferias urbanas e novas áreas de expansão do mercado de trabalho, sem po- líticas sociais efetivas. São claramente apropriadas pela popu- lação para lidar com situações de perda de vínculos e apoio social, de violência social e de uso abusivo de drogas ou, resu- mindo, em situações existenciais-limite e de crise social aberta. Vamos voltar a este tema mais abaixo. e) A literatura e as práticas convencionais de autoa- juda, que muitas vezes são inspiradas em matrizes religiosas e nas interpelações do movimento da temperança. Combinam os objetivos utilitaristas do individualismo possessivo tradicio- nal com o estímulo ao desenvolvimento de capacidades pesso- ais subjetivas e objetivas. Visam a atingir o sucesso pessoal no trabalho, nas relações amorosas, na família e no convívio social, de forma inteiramente pragmática e instrumental. Em alguns casos raros, no entanto, podem estimular formas ge- nuínas de reflexividade e reelaboração pessoal, com alguma abertura para uma exploração da personalidade e da vida es- piritual. Contudo, a maior parte desta literatura é voltada para um utilitarismo de cunho claramente adaptador e ajustador das pessoas aos valores e expectativas dominantes da sociedade, já que inteiramente voltada para a busca de ‘sucesso’ na vida social. 124 | Dispositivos Religiosos f) As psicoterapias individuais para as elites sociais que podem pagar, no âmbito da clínica médica ou psicológica liberal, dos consultórios particulares, com forte viés psicologi- zante e da cultura individualista. São inacessíveis para a maio- ria da população, tanto do ponto de vista econômico quanto cultural, pois mobilizam representações do fenômenos mentais conflituosos com a cultura hegemônica nas classes populares, de viés hierárquico e marcada pelo modelo do nervoso (Vas- concelos, 2008a e 2008b). 7 • A crescente difusão das igrejas pentecos- tais no Brasil, e a busca da compreensão da dinâmica e efeitos sociopolíticos e psíquicos delas A interpretação da expansão das igrejas pentecostais no Brasil é variada e polêmica entre os estudiosos do campo. A partir da década de 1980, houve fortes tendências iniciais a associá-las de forma redutora à alienação social e políti- ca, mas outras correntes têm buscado desenvolver uma visão mais complexa e compreensiva, “por dentro”, e que tam- bém sejam capaz de explicar a dinâmica interna e a difusão tão acentuada no Brasil e nos países latino-americanos (Machado, 1996). Embora não invalidem as análises centradas nos efei- tos alienantes, particularmente no plano macrossocial, estas últimas reconhecem que tais denominações religiosas ofere- cem oportunidades em suporte pessoal, social e em saú- de/ saúde mental que não estão facilmente disponíveis nos serviços públicos seculares (Valla, 2006). Esta interpretação é similar à perspectiva adotada no presente texto, pela qual as classes populares estariam mobilizando as estruturas e estra- tégias forjadas no terceiro momento da história das religiões monoteístas, indicado acima, bem como os dispositivos religio- sos disponíveis para lidar com as contradições da modernidade e do capitalismo, em uma conjuntura de políticas sociais públi- cas precárias ou ainda inacessíveis para elas. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 125 Além disso, do ponto de vista subjetivo, as religiões pen- tecostais estariam ofertando, particularmente para os grupos sociais mais atingidos pela crise social atual, motivações sim- bólicas, rigidez moral, intensidade emocional e mecanis- mos psicológicos de defesa mais compatíveis com o grau de mobilização subjetiva necessária para: - reconhecer, chamar e submeter simbolicamente, nos rituais de desobsessão e cura, as forças ‘malignas’ que atormentam as pessoas, nas situações existenciais- -limite. Como indicamos acima, estes rituais de eficá- cia simbólica fazem parte de um repertório universal da maioria das sociedades primitivas e tradicionais; - confrontar o esgarçamento moral e ético com uma con- versão que implica na introjeção de um conjunto rí- gido de valores/comportamentos e de uma estrutura psíquica inconsciente coletiva fortemente defensiva, acompanhada pela vigilância da comunidade religiosa e por uma mídia confessional difusa e onipresente, que reforçam estes valores e buscam prevenir em cada in- divíduo a aproximação dos ambientes e práticas sociais ‘tentadoras’; - evitar, suportar, reorientar ou eventualmente ajudar a sair de situações existenciais-limite, com dramáticas consequências para si e os familiares (o chamado “fundo do poço”), como carreiras pessoais de crime e abuso de álcool e drogas, convívio regular com a violên- cia e doenças; ideais de recanalizar a sexualidade para o casamento e de reinvestir e cuidar da família, etc. Muitos dos próprios pastores pentecostais tiveram trajetórias prévias de vida similares e são exemplos concretos desta possibilidade de mudança; - resistir ao atual quadro generalizado de isolamento, miséria, desemprego, desesperança, deterioração pes- soal, familiar e comunitária, com a recriação de vínculos de apoio e suporte pessoal concreto, e revalorização de cada pessoa. Os novos adeptos se transformam as- 126 | Dispositivos Religiosos sim em exemplos vivos e bem-sucedidos de conversão, que “se aprumaram” novamente na vida pessoal, familiar e de trabalho, e são colocados como modelos próximos para identificação por parte das pessoas a serem atraí- das; - representar uma estratégia concreta de se recriar uma vida pessoal, familiar e comunitária que atualmente ten- de a ser a única respeitada pelo tráfico de drogas na maioria das comunidades. Outro componente destas estratégias é constituído pelas chamadas “comunidades terapêuticas”, que não têm nada em comum com as experiências de psiquiatria alternativa da história da psiquiatria, forjadas a partir da II Guerra Mundial. Estas comunidades cristãs surgiram em vários países do mun- do desde a década de 1970, colocando-se à disposição dos fiéis que fizeram uso abusivo de drogas. Assim, no Brasil, em um contexto de baixa eficácia dos métodos convencionais da psiquiatria ‘científica’ e de uma rede pública ainda precária de atenção psicossocial para pessoas com necessidades decor- rentes do uso de drogas, temos um retorno claro a uma das estratégias do repertório histórico da transição para a so- ciedade capitalista, antes da emergência da psiquiatria pine- liana, e que demonstrou alguma eficácia no passado para lidar com tais problemas: o tratamento moral da filantropia reli- giosa, exemplificado aqui no modelo britânico do Retreat de Tuke. Atualmente, ele é combinado com os dispositivos grupais e morais sintetizados pela tradição dos Alcoólicos Anônimos, conhecido como Tradição dos Doze Passos, ou das versões mais secularizadas desta, como o Método Minnesota. Entretanto, como indicamos acima, para todo processo histórico associado aos fenômenos e movimentos religiosos, estas estratégiastêm facetas fortemente paradoxais, pois, ao mesmo tempo, elas implicam nos fatos seguintes. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 127 a) Nas sociedades modernas marcadas historicamente pelo monoteísmo, os rituais de eficácia simbólica reforçam a reintrojeção de valores e de uma estrutura simbólica coletiva compartilhada, associada a versões mais tradicionais destas religiões. Nestas sociedades complexas, no entanto, elas con- vivem com outras tradições e exigências culturais que também requerem formas mais maleáveis de reflexividade. Os rituais de eficácia simbólica e o conjunto de valores morais destas tra- dições cristãs reiteram e difundem uma estrutura psíquica e moral muito rígida, fortemente defensiva, às vezes com tra- ços de fundamentalismo, apoiada em uma rede de vigilância da comunidade religiosa, que no médio e longo prazo padroniza o repertório existencial e dificulta o processo de individu- ação e de experimentação de novas identidades pessoais, sexuais e sociais difusas nestas sociedades. b) A expressão moral, política e social é extremamen- te conservadora e desrespeitosa dos valores laicos e dos direitos humanos na vida social e na política pública, bem como dos outros credos religiosos, das formas não convencio- nais de família, das diversas identidades sexuais e do conheci- mento científico e profissional. Exemplos disso estão: - na reivindicação de financiamento público para as co- munidades terapêuticas, que oferecem internação pro- longada, com apenas a elaboração ou conversão muitas vezes uniconfessional como tratamento, além de muitos problemas, em termos de condições sanitárias e de vida institucional e diária, que violam os direitos fundamentais e humanos. Este tema será tratado mais adiante; - na defesa do conteúdo e da prática de ensino religioso confessional nas escolas públicas e em campanhas que confrontam claramente conquistas e descober- tas científicas já consensuais na comunidade cientí- fica mundial; - na intolerância religiosa, particularmente para com as religiões afro-brasileiras, e às vezes também com a Igreja Católica e o culto à Nossa Senhora e aos santos; 128 | Dispositivos Religiosos - nas tentativas de legitimar os tratamentos de “cura gay”, reforçando a homofobia, a despeito de todo o movimento científico e profissional mundial na direção inversa, de retirada das várias identidades sexuais dos quadros de psicopatologias, bem como do avanço dos direitos LGBT; - nas diversas iniciativas contrárias à conquista dos plenos direitos reprodutivos da mulher, particularmen- te quando vítimas de violência sexual, no tratamento do aborto como problema de saúde pública, bem como da liberação de pesquisas com células-tronco; - na difusão de uma moral sexual muito restritiva, com efeitos perversos em relação às estratégias de preven- ção de doenças sexualmente transmissíveis, como o HIV, dado que o uso da camisinha é desaconselhado em algumas das igrejas cristãs. No cenário político brasileiro atual, estas forças políticas constituem uma ampla rede de meios de comunicação, con- cedidas pelos últimos administradores públicos, e uma frente ampla parlamentar e base de sustentação da atual gestão do Governo Federal, com forte poder de atuação em todas as ins- tâncias do Poder Legislativo brasileiro (Machado, 2006). Temos aqui um claro exemplo dos paradoxos do quarto momento da história das religiões monoteístas sistematizado acima, em ten- tativas de retomada do poder conquistado no terceiro momen- to. Um bom exemplo disso está no mandato, no discurso e na prática política polêmica do pastor evangélico e deputado Mar- co Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, até 2013, que acabou gerando uma forte oposição dos movimentos sociais de defesa dos direitos humanos. É interessante lembrar que a radicalização destas forças tem também induzido a emergência de novos movi- mentos e atores sociais para se contrapor a elas. Um deles é representado pelas entidades, movimentos religiosos e grupos reunidos pela consigna “Em defesa da Liberdade Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 129 Religiosa”, que há seis anos fazem caminhadas ecumênicas na orla marítima da Zona Sul do Rio de Janeiro, promovidas por comissões públicas e entidades de combate à intolerância religiosa. Mais recentemente, o protesto contra a homofobia também ganhou expressão nessas caminhadas. Outra ativida- de é mais recente e se coloca diretamente como uma frente de lutas: o Movimento Estratégico pelo Estado Laico - MEEL, criado em junho de 2013, e que busca, entre outras coisas, “contribuir para garantir que as decisões sobre a legislação, políticas e serviços públicos sejam baseadas em evidências e não em crenças religiosas de qualquer natureza”². 8 • Algumas conclusões e princípios orientado- res para o debate da política de atenção psi- cossocial no campo das drogas e para a prática profissional, na perspectiva antimanicomial A partir de todo o percurso feito até aqui, penso que podemos retomar as principais teses e propor algumas reco- mendações para nossas iniciativas de debate acadêmico e de análise crítica para as políticas sociais envolvidas no campo e para a nossa prática profissional na atenção psicossocial e assistência social em geral. a) É importante reconhecer que os processos religio- sos e espirituais representam fenômenos complexos e multidimensionais, não redutíveis a visões simplificado- ras. b) Na atualidade, as ciências das religiões constituem um campo variado e interdisciplinar, incapaz de ser redu- zido a abordagens unidimensionais e uniteóricas. Assim, o estudo sistemático e de longo prazo das relações delas com ______________________________________________________________________ ² Fonte: <http://www.meel.org.br>, acessado em julho de 2013. 130 | Dispositivos Religiosos outros fenômenos sociais recentes, como as drogas, requer mobilizar contribuições e estimular interações entre estas vá- rias áreas de conhecimento. c) A modernidade, o capitalismo e o regime republicano fizeram emergir um projeto emancipatório fundamental para a subjetividade e para o gênero humano, liberando o indivíduo comum dos laços feudais de submissão e introduzindo a cons- trução do eu ou a reflexividade na própria base da reprodu- ção do sistema econômico e social. Contudo, este projeto é abertamente contraditório e estruturalmente insuperável, nos próprios marcos deste tipo de sociedade, gerando ‘anomia’ e uso abusivo de drogas. d) Um dos dispositivos que emergem no interior destas sociedades para lidar com esta contradição, desde o início do capitalismo, é a reinterpelação das identidades e estratégias religiosas tradicionais, de valores e formas convencionais de controle moral. O movimento da temperança no século XIX no contexto anglo-saxônico e a atual difusão das religiões pen- tecostais nos países americanos representam exemplos disso. e) A análise deste processo exige modelos analíticos complexos, não lineares, capazes de lidar com o caráter dialético e paradoxal. É preciso reconhecer as religiões como uma forma importante de buscar responder a questões exis- tenciais profundas, bem como a longa tradição das entidades e práticas religiosas na esfera da elaboração das identidades, da moralidade individual e coletiva, e das práticas filantrópicas e assistenciais, particularmente nos países ocidentais. Elas representam um repertório histórico de estratégias de con- trole social e de dispositivos de subjetivação, com relativa eficácia para lidar com situações existenciais-limite e com cri- ses sociais com forte incidência no plano pessoal, microssocial e comunitário, e para a reelaboração das identidades amea- çadase de novos projetos de vida, particularmente no curto Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 131 prazo. Isso é mais claro em países periféricos de colonização cristã e/ou católica, como o Brasil, onde o imaginário religioso está difuso nas classes populares e as iniciativas das igrejas cristãs são muitas vezes as únicas alternativas ao alcance ime- diato. Ao mesmo tempo e paradoxalmente, elas apresentam também os próprios efeitos problemáticos e conservadores, particularmente no plano macrossocial. Esses efeitos se ex- pressam em estruturas psíquicas muito rígidas que, em ação conjunta com a vigilância da comunidade religiosa local, padro- nizam o repertório de opções existenciais e os processos de individuação; em valores morais e políticos conservadores na vida pública; em desrespeito à liberdade de culto, à convivência interreligiosa e à autonomia do conhecimento científico/profis- sional e das contribuições deste para a vida social, a partir de evidências. f) Este caráter paradoxal está intrinsecamente associado ao longo processo macro-histórico das três principais religiões monoteístas, à longa e difusa influência delas sobre as massas populares e à interpelação regular nos processos de busca da redenção social e política de grupos e classes em situação de opressão ou crise social. Portanto, não é possível se pensar na supressão por iniciativas “de cima” em sociedades republica- nas, democráticas ou socialistas, como muitas vezes é defen- dido por teorias e forças políticas revolucionárias ultrarradicais. g) Entretanto, na sociedade e na esfera política e parla- mentar no Brasil, o espaço de ação civil, política e para o cres- cimento da mídia das igrejas cristãs, particularmente as pen- tecostais, constituem uma decisão de governo que deve ser necessariamente avaliada. Atualmente, os partidos e a frente parlamentar cristã e evangélica, com a atuação conservadora, têm integrado a base de apoio dos governos Fernando Henri- que Cardoso, Lula e Dilma, e eles devem ser avaliados politi- camente por isso. 132 | Dispositivos Religiosos h) Do ponto de vista da assistência aos usuários de dro- gas, apesar dos aspectos paradoxais da atuação das institui- ções cristãs, o princípio da liberdade religiosa implica em rea- firmar o respeito às tradições religiosas e à livre iniciativa destas instituições no campo da filantropia, assistência social, da formação das identidades sociais e da esfera moral, e particularmente da assistência confessional vo- luntária a usuários de drogas, no âmbito da sociedade civil e da esfera privada. Mesmo em países europeus com am- pla cobertura de serviços de bem-estar social, estas iniciativas existem há várias décadas. Entretanto, este reconhecimento não pode significar abrir mão da obrigação legal da esfera pública de fiscalizá-las, mesmo quando não recebem re- cursos públicos. i) Assim, cabe ao poder público fiscalizar tais espa- ços, para verificar se neles são realizadas violações dos di- reitos fundamentais e humanos; se oferecem os recursos necessários de tratamento em saúde e saúde mental, in- clusive no caso de situações de emergência; se as práticas profissionais estão de acordo com os padrões éticos, cien- tíficos e profissionais reconhecidos; bem como se oferecem as condições sanitárias e de hotelaria adequadas. Além dis- so, os mecanismos de se tentar garantir a ordem interna e a abstinência de drogas, bem como os efeitos das longas internações, devem também constituir itens fundamentais das fiscalizações do poder público. Os vários relatórios recentes, realizados por conselhos profissionais e comissões legislativas de direitos humanos no Brasil, têm constatado inúmeras viola- ções de direitos em muitos destes itens (Vasconcelos, 2014). j) Na rede pública de atenção psicossocial, isso também significa em reconhecer estes aspectos paradoxais das estra- tégias religiosas no cuidado em saúde mental e drogas, assim como a necessidade de promover o direito à assistência reli- giosa e/ou espiritual plural e opcional para os usuários que Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 133 assim o desejarem, quando ainda se encontram em um dispo- sitivo tradicional e fechado de internação, o que constitui um direito constitucional (Vasconcelos, 2014). Da mesma forma, devem ser divulgadas aos usuários dos serviços públicos AD (álcool e outras drogas) todas as informações sobre as práticas dos grupos de Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e similares, e aqui também podemos incluir os Centros de Valorização da Vida (CVV), bem como as formas de acessá-los. l) No entanto, acredito que, como desdobramento lógico do princípio republicano do Estado secular, não cabe à esfera pública financiar ou injetar recursos públicos neste tipo de serviços, principalmente nos serviços explicitamente uni- confessionais, bem como naqueles de internação de média e longa permanência, que tendem a reproduzir todos os efeitos conhecidos do institucionalismo. m) Por outro lado, temos que reconhecer que a atual di- fusão do crack no Brasil - mesmo que não tenha a dimensão e a gravidade superdimensionadas pela grande mídia conserva- dora - representa um desafio para a atenção psicossocial, pelos seguintes motivos: - no país, temos apenas cerca de uma década desde que a área da saúde pública assumiu, como política explícita, a atenção aos usuários de drogas, apresentando uma rede de serviços ainda incipiente neste campo, na maioria dos municí- pios; - os modelos de atenção psicossocial tinham até recente- mente poucos recursos e dispositivos para lidar com uma dro- ga como o crack, bem como com o uso multidrogas que ele estimula, que gera um nível muito baixo de contratualidade e efeitos tão agudos em tão pouco tempo de uso contínuo. 134 | Dispositivos Religiosos n) Assim, o desafio está em como oferecer imediata- mente acolhimento e tratamento em ambiente protegido, em caso de desejo do próprio usuário ou de familiares, de encaminhamentos compulsórios feitos pelo Judiciário ou de encaminhamentos gerados pela própria rede de saúde mental, quando a rede AD não está disponível ou não pos- sui a quantidade e a qualidade dos serviços necessários. A maioria dos municípios brasileiros não conta ainda com uma rede adequada destes serviços e, particularmente, com os de acolhimento, nos moldes preconizados pela reforma psiquiátri- ca. Nestes casos, o Governo Federal, por meio da Secretaria Nacional Antidrogas e do Gabinete Civil, mas não pelo Minis- tério da Saúde, tem estimulado o uso destas comunidades no programa de enfrentamento ao crack, bem como prefeituras e estados acabam realizando convênios com estas comunidades terapêuticas. o) Nestes encaminhamentos em municípios sem uma rede AD adequada, é importante reivindicar que a rede de atenção psicossocial local detalhe mais claramente, em caráter provisório, normas precisas para o uso eventual das comunidades terapêuticas, para que possam excepcio- nalmente receber algum repasse de recursos por serviço rea- lizado. p) Se as comunidades terapêuticas forem consideradas ainda como inevitáveis pelo Judiciário, em locais onde a rede de serviços comunitários é reduzida, precisamos lutar para que as internações realizadas nas comunidades terapêu- ticas passem primeiro e sejam controladas pela rede de atenção psicossocial. O objetivo é estabelecer os parâmetros principais do encaminhamento responsável e monitorado de cada caso, como a avaliação preliminar, o projeto terapêutico singular, a duração, as atividades prioritárias, o acompanha- mento regular e o retorno planejado para os serviços comunitá- rios, no momento da alta. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 135 q) Pela legislação atual, as internaçõesencaminhadas pelo Judiciário para estas comunidades terapêuticas, em caso de pedido pelo próprio usuário ou pela família, são ainda clas- sificadas como compulsórias, embora na prática tenham todas as características de internações voluntárias ou involuntárias. No entanto, o monitoramento das internações por esta esfera do poder é apenas inicial, e as garantias e direitos inerentes às internações voluntárias e involuntárias não são reconhecidos. Aqui, portanto, temos um claro ‘vazio jurídico’ que acaba fo- mentando violações dos direitos fundamentais e humanos, e que requer urgentemente um amplo debate e novas for- mas jurídicas de garantia de direitos (Vasconcelos, 2014). Da perspectiva do movimento antimanicomial e da militância própria, é preciso em primeiro lugar ampliar e com- plexificar internamente este debate, dialetizando nossas aná- lises, e para isso as contribuições deste trabalho podem ser bastante úteis. No entanto, isso não significa abrir mão de ou- tros debates críticos, a serem realizados na rede de atenção psicossocial e na sociedade como um todo, e de estabelecer algumas posições e linhas de ação inequívocas em várias frentes principais³. a) Em primeiro lugar, e de forma clara e explícita, é pre- ciso denunciar o uso de internações forçadas em massa de usuários de crack, que na verdade não significam in- ternações compulsórias e que constituem clara violação dos direitos fundamentais e humanos e uma estratégia de “limpeza urbana”. Neste campo, cabem claramente interpela- ções ao Ministério Público, para tomada de providências (Vas- concelos, 2014). ______________________________________________________________________ ³ Estes posicionamentos estão mais bem fundamentados e detalhados em Vasconcelos (2014). 136 | Dispositivos Religiosos b) Para ampliar o debate, é importante conhecer as ver- sões mais críticas da história humana com as drogas e da política internacional de drogas, mostrando como a visão estritamente proibicionista e criminalizadora imposta pelo Esta- dos Unidos da América foi dominante durante o século XX. No entanto, ela vem sendo questionada por novas abordagens e novas experiências concretas menos repressivas, na dire- ção da descriminalização, que atualmente estão ocorrendo em estados específicos dentro dos próprios EUA e em países como Holanda, Portugal, Espanha e sobretudo no Uruguai. Re- comendamos também acompanhar o debate recente no Brasil sobre a atual política exclusivamente proibicionista de drogas, a avaliação crítica sobre ela e as bases jurídicas para políticas alternativas, que já estão avançando a passos largos. c) É necessário também conhecer de forma mais críti- ca e realista o perfil de uso de drogas ilícitas e dos usuá- rios no país como um todo e em cada região, para superar a imagem gerada pela grande mídia no Brasil, que aumenta a gravidade e a dramaticidade da situação, particularmente em relação ao crack. No país atual, há inúmeras pesquisas em curso e sendo publicadas que traçam um outro quadro menos dramático no campo. d) É fundamental conhecer e divulgar as experiên- cias municipais mais avançadas de serviços de atenção psicossocial inspiradas na reforma psiquiátrica, para pessoas com necessidades decorrentes do uso de drogas, sem fazer uso das comunidades terapêuticas. e) É preciso reivindicar investimentos maciços na im- plantação da rede diversificada de serviços psicossociais na área, com características antimanicomiais, nos municípios ou regiões. Práticas religiosas no campo das drogas - Eduardo M. Vasconcelos | 137 f) É muito importante estabelecer alianças com o Minis- tério Público, parlamentares, instituições de direitos humanos, membros dos conselhos de saúde, de assistência social e de direitos da criança e do adolescente, bem como com intelectu- ais que atuam no campo. Com eles, poderemos discutir mais amplamente o assunto e estabelecer ações comuns, bem como sensibilizar e informar adequadamente a sociedade, os gestores, os profissionais de direito e o Judiciário so- bre o tema. Neste sentido, é fundamental conhecer as diversas frentes e fóruns nacionais e estaduais de drogas e direitos humanos que estão se formando e atuando ativamente em nosso país. g) Precisamos monitorar e fiscalizar regularmente, junto destes aliados, a situação e a assistência dentro das co- munidades terapêuticas, denunciando os casos de violações e exigindo a investigação e a responsabilização. h) É necessário reivindicar iniciativas de estímulo à pes- quisa e avaliação dos diversos tipos de serviços de aten- ção no campo das drogas (inclusive os de natureza religio- sa), com desenvolvimento de metodologias de pesquisa multidimensionais, e particularmente de indicadores mais confiáveis de reabilitação e qualidade de serviços e dispositi- vos no campo, para subsidiar mais rigorosamente a discussão pública das várias iniciativas na área; i) Estabelecer alianças e iniciativas comuns com os grupos e movimentos de defesa da liberdade religiosa, de luta contra a homofobia e de fortalecimento do Estado lai- co. Estas são apenas algumas das recomendações que se pode fazer neste campo, a partir de nosso compromisso com a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. A expectativa é de que o presente texto possa contribuir para uma compreensão 138 | Dispositivos Religiosos mais ampla, dialética e multidimensional do campo, para su- perarmos os posicionamentos simplificadores da complexidade do tema, mas sem perder a firmeza em relação aos nossos ob- jetivos estratégicos e aos posicionamentos políticos imediatos, necessários frente à atual conjuntura brasileira. Rio de Janeiro, novembro de 2014 Referências ARAUJO, T. Almanaque das drogas: um guia informal para o debate. São Paulo: Leya, 2012. ARMSTRONG, K. Uma história de Deus. São Paulo: Cia das Letras, 2008. BRELICH, A. Storia delle religione: perque? Napoles: Liguori, 1979. CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Ja- neiro: Paz e Terra, 1992. COSTA, J. F. História da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Cam- pus, 1980. 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No primeiro, destinam-se aos usuários com consumo de baixo risco ou nenhum; no segundo, àqueles com consumo de risco moderado; e o terceiro nível de cuidado, aos usuários com alto risco, particularmente, parte dos casos de dependência e os de dependência grave (SICAD, 2014: 30). Os Cuidados de Saúde Especializados aos usuários de álcool e outras drogas compa- recem nos três níveis de cuidado com os Centros de Respostas Integradas, junto às outras unidades que participam da Rede de Referenciação. Nesta articulação intrassetorial, as comuni- dades terapêuticas comparecem para os cuidados de usuários situados nos dois últimos níveis, particularmente, para: Casos com um elevado grau de desestruturação psico- lógica, familiar e/ou social, que tenham necessidade de um afastamento temporal do meio em que estava inse- rido; fracasso dos múltiplos tratamentos realizados em ambulatório; motivação para a mudança do estilo de vida; situação judicial problemática (cumprimento alter- nativo de pena judicial) (SICAD, 2014: 40). Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 143 Como veremos, as comunidades terapêuticas vêm parti- cipando da rede de tratamento aos usuários de álcool e outras drogas em vários outros países na Europa, conforme confirma o European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMDDCA), vinculado à União Europeia: Os pacientes em regime de internamento recebem aloja- mento e tratamentos psicológicos estruturados de acor- do com as suas necessidades individuais, e participam em atividades orientadas para a sua reabilitação e rein- tegração social. Muitas vezes recorre-se, neste contexto, a uma abordagem baseada em comunidades terapêu- ticas. Os hospitais psiquiátricos também providenciam tratamento em regime de internamento, nomeadamente para pacientes com patologias psiquiátricas comórbidas” (EMDDCA, 2012: 35). Mas existem muitas dúvidas sobre a composição atual, o manejo assistencial e a efetividade das comunidades na Euro- pa (Vanderplasschen, Vandevelde e Broekaert; 2014). No Brasil, essas dúvidas também comparecem, e três se colocam sobre a possibilidade de integração das comunidades terapêuticas com a saúde pública: primeiro, a coexistência de um manejo assistencial religioso confessional no interior do Estado laico e republicano; segundo, a abstinência às drogas como meta única do cuidado; e terceiro, a requisição do fun- do público para financiamento desses serviços. Esses ques- tionamentos, no entanto, advêm de um mirante ético-político que será apresentado ao longo do artigo, pois não são dados a priori. Esse texto está sendo escrito no ápice deste debate no Brasil, marcado por muitas tensões políticas e, particularmente, com dois instrumentos normativos em tramitação no Estado: de um lado, no Legislativo Federal, o Projeto de Lei da Câmara de número 37 (Senado Federal, 2013), que prevê as comunidades terapêuticas como serviços de acolhimento, presentes na rede assistencial, mas distintas dos equipamentos de saúde (Art. 26-A, § 5º, 2013) e, de outro lado, no Executivo da União, a 144 | Dispositivos Religios formulação do marco regulatório nacional para esses serviços, sob direção da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Como veremos, trata-se de uma estratégia articulada no ce- nário nacional promovida pelas comunidades terapêuticas bra- sileiras e respectivos representantes na esfera estadual para ratificar uma autoridade sobre o cuidado às pessoas com uso de drogas e para participar de forma ampla do financiamento público. Este artigo, então, intenciona contribuir para problemati- zar se comunidades terapêuticas podem compor uma rede de atenção para usuários nocivos de álcool e outras drogas, como prevê a Rede de Atenção Psicossocial brasileira, bem como observar possíveis semelhanças e diferenças de sua participa- ção na Rede de Referenciação no caso português. Desta forma, esse artigo vem recuperar um fenômeno pouco estudado na área da atenção aos usuários de álcool e outras drogas: a comunidade terapêutica (CFP, 2011; Damas, 2013; Vanderplasschen, Vandevelde e Broekaert; 2014). Inte- ressa-nos recuperar a história delas no plano brasileiro e inter- nacional, a relação com práticas religiosas confessionais, com a reforma psiquiátrica e com os grupos anônimos, os objetivos e componentes assistenciais. Dados sobre o financiamento pú- blico para tais organizações e a construção dos marcos regu- latórios no Brasil serão apresentados. Para responder a esses objetivos, um levantamento bibliográfico e documental foi reali- zado em fontes nacionais e internacionais. 2 • Histórico das comunidades terapêuticas eas conexões assistenciais A inquietude para este artigo começou a ser elaborada em setembro de 2013, quando o Projeto Integrado de Pesquisa Saúde Mental, Desinstitucionalização e Abordagens Psicosso- ciais¹, do qual participo, junto ao Projeto de Pesquisa Gênero, Religião, Ação Social e Política, ambos integrados ao Programa ______________________________________________________________________ ¹ Esse projeto teve coordenação do professor doutor Eduardo Mourão Vasconcelos e aprovado pelo CNPq. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 145 de Pós-Graduação de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), promoveram o Seminário Conexões e Dissensos entre Religião, Saúde e Drogas, justamente para problematizar o fortalecimento na esfera pública da relação en- tre práticas religiosas e práticas assistenciais em saúde para usuários nocivos de álcool e outras drogas no Brasil. Essa inquietude se deu em um contexto de resistências e lutas: de um lado, organizações religiosas que se identificavam como comunidade terapêutica reivindicando a autoridade téc- nica e política para tratar usuários de crack no Brasil e, de ou- tro, entidades, frentes e fóruns nacionais e conselhos federais profissionais organizados para denunciar violações de direitos humanos promovidas nas práticas assistenciais daquelas orga- nizações (CFP, 2011). Em particular, a reivindicação daquelas organizações em participar do financiamento público se forta- lecia e se tornava um dos principais objetos de resistências de grupos vinculados aos direitos humanos e à saúde pública, particularmente, os da saúde mental. De forma subjacente, enquanto espaço acadêmico, pre- ocupava-nos a precária problematização da força cultural das religiões e da religiosidade na formação identitária brasileira e da relação histórica dela com a saúde, o que poderia promover estratégias e táticas de resistências e de lutas pouco precisas. A busca pelo pretérito, então, intenciona lançar luzes na análise do que são comunidades terapêuticas atuais, pois, no Brasil, a heterogeneidade interna parece criar um quadro difu- so de compreensão do que sejam esses serviços. Observam- -se clínicas, centros de tratamento, comunidades religiosas e laicas, casas terapêuticas, comunidades terapêuticas acolhe- doras – filantrópicas e privadas – e outras nomeações conver- gindo para uma identidade institucional de comunidade tera- pêutica. De uma modalidade assistencial, elas se apresentam como organizações institucionais na área da atenção ao usuá- rio de álcool e outras drogas. O que elas seriam? Quais são as origens? Quais são os principais traços atuais? A que público atende? Que princípios as orientam? E, finalmente, que resul- tados possibilitam? 146 | Dispositivos Religios Um estudo recente publicado no European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (EMDDCA, 2014), intitu- lado Comunidades terapêuticas para o tratamento de adições na Europa: Evidência, práticas atuais e desafios futuros, afirma que esses serviços estão, de fato, associados a uma série de tradições de tratamento e abordagens que promovam mudan- ças sociais e psicológicas que facilitem o usuário de drogas a entrar em abstinência. Os espaços de tratamento devem ser livres de drogas e possibilitar que pessoas com dependência vivam juntas de forma organizada e estruturada, cujas relações entre os pares promoveriam a mudança individual. A caracte- rística distintiva fundamental da TC² é o uso da própria comuni- dade como um agente de mudança fundamental (“comunidade como um método”) (Vanderplasschen, Vandevelde e Broekaert, 2014, p. 9, tradução nossa). As fontes secundárias brasileiras também caminham nessa direção, como a de Fracasso (2008, p. 20): Considerando que a CT é um ambiente de tratamento, as interações entre os membros são planejadas para se- rem terapêuticas dentro do contexto das normas [...]. O objetivo do tratamento não é somente ajudar o depen- dente a começar a sair das drogas, mas ajudá-lo tam- bém a desenvolver um estilo de vida que sustente uma vida sóbria. Como se pode depreender, não se trata de uma organi- zação, mas de uma instituição, que se apropria de um proble- ma da realidade com os próprios saber e prática, definindo-os como objeto (Albuquerque, 1986). E, neste caso, maneja-o em processos grupais com uma força normalizadora sobre os indi- víduos, na qual, abstinência de drogas e mudança comporta- mental são objetivos perseguidos. Porém, uma recente reportagem do Jornal O Globo, de 20 de setembro de 2014, intitulada Casa Terapêutica no Acre trata dependentes químicos com chá do Santo Daime, demonstra a ______________________________________________________________________ ² TC, em inglês, é abreviação de Therapeutic Communities. Na língua portuguesa, como esperado, autores, como Fracasso (2008), usam CT. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 147 dificuldade de caracterizar instituições desse tipo. Seria essa casa uma comunidade terapêutica? Nesse caso, equipe e re- sidentes – como são chamados os assistidos em comunidades terapêuticas (Fracasso, 2008, p. 20) – vivem em comunidade, em área distante do centro urbano, por um período de nove meses e consideram que os efeitos da planta mágica ayahuas- ca contribuem para a recuperação. Tratar a dependência de drogas com outra droga pode parecer um contrassenso. Mas é justamente o que pro- põe a casa terapêutica Caminho de Luz, onde Juliana se internou. Em meio a mangueiras e castanheiras, em alojamentos de madeira simples e espaçosos, o lugar trata mais de 250 dependentes químicos com doses di- árias de ayahuasca. O método, que custa R$ 150 men- sais para aqueles que podem pagar, pressupõe reclusão por, no mínimo, nove meses e terapia ocupacional, além do uso cotidiano do chá. Para dar conta da demanda, ali são produzidos cerca de 400 litros da bebida por mês. É a única casa de terapia nesses moldes no Brasil. Seus donos dizem que o índice de recuperação dos depen- dentes ascende a 50%, contra uma média de 20% das clínicas de recuperação convencionais. Não há, porém, estudos que comprovem a eficácia do tratamento (San- ches, 2014: sp) Essa matéria demonstra a heterogeneidade das experi- ências que se denominam de comunidades terapêuticas, mas indicam traços comuns referidos nessa experiência: o isola- mento, a vida em comunidade, o tempo extenso de “reclusão”, a “terapia ocupacional” e o possível traço terapêutico e/ou reli- gioso do uso da ayahuasca. Mas, em particular, o uso desta planta mágica colocaria em questão a expectativa de um ambiente livre de drogas e o temor da substituição de uma droga por outra, demonstrado por autores que advêm de comunidades terapêuticas³. ______________________________________________________________________ ³ Goti (2000) expressa a heterogeneidade das comunidades terapêuticas por meio de uma tentativa de tipificá-las, conforme certos traços: pública e privada, rural e urbana, religiosa e laica, democráti- ca e hierárquica e, finalmente, pela condição dos operadores. Se a equipe for composta por adictos reabilitados, a CT será conhecida como de ex-adictos; caso seja composta por esses sujeitos e profissionais, será considerada mista; e, finalmente, se for apenas formada por profissionais, será nomeada como tal. Para a autora, as primeiras experiências de comunidade terapêutica na área de drogas foram de ex-adictos, coexistindo depois com as mistas e, mais tarde, com as profissionais. E avalia que a mais comum na área de drogas seja a mista (2000: 16-17). 148 | Dispositivos Religios A dependência química não pode ser tratada com medi- cação alternativa para aliviar o sofrimento que a própria doença causa porque este tipo de medicação impede o dependentede entrar em contato consigo mesmo, per- petuando o seu estado de dependência. Nenhum depen- dente consegue fazer uso de substâncias psicoativas todos os dias na quantidade e qualidade que deseja; al- gumas vezes não faz uso por diversos dias e não morre por crise de abstinência (Fracasso, 2008, p. 16). A posição contrária de Fracasso (2008) para o uso de ou- tras drogas na minoração de sofrimentos não pode ser tomada como padrão para todos os serviços que adotam o manejo da comunidade terapêutica, sobretudo as profissionais, como as existentes em hospitais psiquiátricos. Ademais, no caso do uso da ayahuasca, conhecida como Santo Daime, existem estudos que demonstram os usos culturais dela integrados no país4. Porém, a extração dessa matéria jornalística demonstra o de- safio de apreender o campo das organizações que se definem como comunidade terapêutica no Brasil. Fracasso (2008) é uma das autoras interessadas em de- limitar esse campo e considera que a manutenção de uma hie- rarquia interna, expressa na dualidade equipe-residente, impe- de que a vida comunitária seja efetivamente terapêutica (2008, p. 13), pois faltaria a necessária interação entre os membros mais antigos e os novos, que se ajudam por meio de um pro- cesso identificatório, nomeado de espelho. Justamente o caráter de convivência entre os pares foi um traço também reconhecido pelo marco normativo brasilei- ro, emanado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, em 2001: a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) de número 101. É um lugar cujo principal instrumento terapêutico é a con- vivência entre os pares (ANVISA, 2001, p. 2). Esta RDC partiu de uma demanda de regulamentação das próprias organiza- ções (ANVISA, 2001; Fracasso, 2008), parecendo se constituir numa estratégia de redefinição interna do campo das comuni- dades terapêuticas, a fim de estabelecer o caminho formal para reconhecimento na esfera pública. ______________________________________________________________________ 4 Para aprofundar, sugiro o texto de Edward MacRae: A elaboração das políticas públicas brasilei- ras em relação ao uso religioso da ayahuasca. In: LABATE, Beatriz Caiuby et al (orgs.). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 149 Esse foi certamente um momento histórico e importante para as Comunidades Terapêuticas (CT) porque são re- conhecidas, oficialmente, pelo Ministério da Saúde (MS) como um serviço de atenção a pessoas com transtornos decorrentes de uso ou abuso de substâncias psicoati- vas, segundo modelo psicossocial (2008, p. 18). Parece que a difusa heterogeneidade interna também incomodava aqueles que se reconheciam como comunidades terapêuticas, mas já havia em curso uma estratégia técnica e política para convocar o Estado a reconhecê-las e a financiar tais serviços. Contudo, os anos 2000 vão demonstrar que essa RDC, apesar do processo de indução e de consultas públicas promovidas com coletivos de comunidades terapêuticas, tor- nou-se uma barreira a essa estratégia na esfera pública fede- ral. Por que aquele marco normativo produziu efeito inverso ao esperado? Que expectativas as comunidades terapêuticas bra- sileiras nutriam com essa participação na esfera pública, que não foram confirmadas com as normas definidas pela RDC de número 101/01? Para responder a essas questões, aprofunde- mos que componentes e perspectivas vêm se construindo na história das comunidades terapêuticas que as podem aproxi- mar e distanciar da relação com o Estado. Vejamos, antes, al- guns itinerários internacionais e o brasileiro, propriamente dito. 2.1 • A tradição reformista da psiquiatria ingle- sa após a 2ª Grande Guerra (1939-1945) As reformas psiquiátricas inglesas implementadas após este grande conflito internacional são reconhecidas como o solo do nascimento da ideologia da comunidade terapêutica (Schittar, 1985). Não se tratava de organizações institucionais, mas de um último grito da psiquiatria tradicional para humani- zar o hospital psiquiátrico. Como a Inglaterra foi o solo da larga produção de reformas psiquiátricas, a comunidade terapêutica é considerada uma invenção tipicamente anglo-saxã (1985, p. 135-6), tendo no psiquiatra sul-africano Maxwell Jones (1907- 1970), radicado no Reino Unido, o principal expoente. 150 | Dispositivos Religios Mas as determinações para o surgimento da comunida- de terapêutica foram eminentemente políticas. De um lado, o pacto de uma solidariedade inter e intraclasses sociais no período imediatamente posterior ao conflito mundial valorizou uma reciprocidade social, que permitiu a construção do Serviço Nacional de Saúde inglês, quando se deu, pela primeira vez, a inserção do doente mental (...) em um programa de reabilitação exterior ao hospital (1985, p. 137); de outro lado, a crítica con- tundente ao poder médico, particularizado no psiquiatra, que respondia a um mandato de contenção e de isolamento dos indivíduos tipificados como doente mental. Na prática hospitalar estas tentativas de contestação da autoridade e do poder médico enquanto mandato social e enquanto resíduo de elementos antropológicos de ca- ráter mágico assumiram a forma de discussões em gru- po dos problemas que iam surgindo na vida comunitária, discussões das quais pacientes, médicos, enfermeiros e assistentes sociais deveriam participar a título igual, com os mesmos direitos e com igual capacidade de decisão (Schittar, 1985, p. 137). Maxwell Jones se tornou o psiquiatra mais representativo da última tentativa de reforma no interior do hospital psiquiátri- co: a comunidade terapêutica. Na trajetória profissional, utili- zou-a de diversos públicos e lugares, como o que era conven- cionado como síndrome de esforço (1941-44): o hospital em Dartford (1945), onde tratavam de ex-prisioneiros de guerra; a reabilitação industrial (1947); o hospital Henderson para psico- patas e, mais tarde, a direção do Dingleton Hospital, na Escó- cia. Embora o livro dele, intitulado The Therapeutic Community: a new treatment method in psychiatry, publicado em 1953, seja fundamental para compreender o método da comunidade te- rapêutica, Schitter (1985) rememora que a noção comunidade terapêutica foi cunhada antes por T. F. Main, em 1946, quando publicou The Hospital as a Therapeutic Institution, descrevendo o hospital de Northfield sob o título Uma comunidade terapêu- tica (1985, p. 137). Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 151 Nesse período pós-guerra, com a recente criação da Organização Mundial de Saúde entre 1946 a 1948, foram or- ganizados grupos de especialistas para diversas morbidades. Segundo Schittar (1985), em 1953, o comitê referente à saúde mental afirmou o seguinte: (...) o hospital psiquiátrico deveria ser, em sua totalidade, uma comunidade terapêutica. Tal comunidade estabele- ceria princípios como a conservação da individualidade do paciente, a convicção de que os pacientes são dignos de confiança e que têm a capacidade de assumir res- ponsabilidades e iniciativas, o comprometimento regular de pacientes em determinados tipos de ocupação, etc (1985, p. 138-9, grifos originais). Como se pode observar, tratava-se de recomendações para humanizar os hospitais psiquiátricos e, de forma simultâ- nea, conservá-los. Segundo Schittar (1985), no contexto pós- -guerra, essa recomendação ratificava a expectativa de rees- truturação dos hospitais psiquiátricos, mas chama atenção que a radicalidade da proposta de Maxwell Jones estava na des- construção da verticalidade da relação médico-paciente e na utilização, para fins terapêuticos, de todos os recursos da insti- tuição, concebida esta última como um conjunto orgânico não hierarquizado de médicos, pacientes e pessoal auxiliar, o que fora,à época, recebido como uma ideia revolucionária (1985, p. 139). No período em que Schittar (1985) está escrevendo - fim da década de 1960 -, ele avalia que a heterogeneidade do que se passava a chamar de comunidade terapêutica estava posta, não havendo um modelo de comunidade terapêutica, mas di- versas modalidades de aplicação (1985, p. 139). Mas, utilizan- do-se de autores da psicologia e da sociologia, Schittar (1985) continua tratando a comunidade terapêutica como ideologia e delineando alguns traços comuns: liberdade e horizontalidade da comunicação, análise de tudo o que se passa na comunida- de (dinâmica individual e interpessoal), tendência à horizonta- lidade do exercício da autoridade, aprendizagem social e reali- zação de uma reunião diária. 152 | Dispositivos Religios Neste período, as correntes da Análise Institucional es- tavam em plena produção, apreendendo a capilaridade, o mo- vimento e as contradições do exercício do poder nas organi- zações institucionais. Assim, tais traços comuns se tornaram analisadores, levando a questões como: qual era o poder de decisão real dos pacientes e qual a real participação deles no poder (1985, p. 142). O próprio Maxwell Jones reconheceu a diferença entre o poder dos pacientes e o do líder (médico), mas também a desigualdade interna, quando criou a noção de autoridade latente. O exercício deste poder, quando certos li- mites da tolerância comunitária eram atingidos, é o que daria segurança à eficiência organizativa do modelo da comunidade terapêutica. Schittar (1985, p. 142), ao citar a análise de Rubenstein e Lasswell, revela que: (...) o paciente continua [na comunidade terapêutica] a ser privado de certas liberdades, e os membros da equipe do hospital continuam sendo agentes habilitados mandatários da sociedade para exercer um poder ex- traordinário sobre os pacientes que lhes são confiados. O diretor continua autorizado a privar os pacientes dos direitos e privilégios normalmente considerados como prerrogativa dos cidadãos da democracia. Como se pode depreender, se as determinações princi- pais da emergência da comunidade terapêutica foram de na- tureza do poder político, ela produziu efeitos fundamentais no exercício do poder ideológico. A tendência real ao movimento descendente do poder, embora estimulando algumas áreas do exercício de poder dos pacientes, não alterou essencialmen- te as práticas segregadoras do manicômio. Ao contrário, a co- munidade terapêutica como método de manejo clínico, como corpo de orientação ídeo-operativo, mostrou-se potente para atualizar traços de uma instituição total, que foi definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (Goffman, 1992: 11). Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 153 A terceira revolução psiquiátrica, a partir de técnicas de manejo grupal, teria cumprido um duplo movimento: moderni- zava as relações de poder do manicômio, mas as atualizava nas diferentes assembleias e reuniões em meio à forma demo- crática própria. Se isso estava se dando no campo da psiquiatria, no mesmo período da crítica institucional feita a ela, quando, onde e como houve uma aproximação da comunidade terapêutica com a atenção aos usuários de drogas? 2.2• Comunidades terapêuticas nos Estados Uni- dos da América e a atenção para usuários de álcool e outras drogas Como dito no subitem anterior, no início da década de 1950, a comissão de especialistas da saúde mental da Organi- zação Mundial de Saúde se pronunciou sobre a reestruturação que o hospital psiquiátrico deveria sofrer, indicando a comuni- dade terapêutica como o caminho para esta reforma. O pro- nunciamento desta agência internacional indicava que tal ex- periência podia não estar mais circunscrita somente à reforma psiquiátrica inglesa. Segundo Schittar (1985), uma das primeiras comunida- des terapêuticas nos Estados Unidos expressou a natureza contraditória das relações de poder. Tratava-se do Centro Psi- codiagnóstico da Marinha dos EUA, em Oakland, Califórnia. Convém, contudo, chamar a atenção para o fato de que se tratava de uma instituição militar (na qual a hierarquia militar era respeitada), com regras bastante rígidas, ins- critas em quadros sobre as paredes de todas as peças. Além disso, tratava-se de um pavilhão fechado à chave (Schittar, 1985, p. 142, grifos do autor). Como pode uma proposta de horizontalidade no exercício do poder institucional ser praticado em uma unidade militar? De forma simultânea, a convivência comunitária sob as normas e o completo isolamento não eram uma contradição à comunidade 154 | Dispositivos Religios terapêutica, mas uma condição para a aprendizagem social a ser vivida pelos residentes, criando um modelo assistencial que atualizava o tratamento moral da psiquiatria5, apesar da crítica ao poder médico. Porém, esta experiência da saúde mental nos EUA ain- da não estava associada ao tratamento de pessoas com uso de álcool e outras drogas. A revisão bibliográfica identifica uma aparente controvérsia sobre qual teria sido a primeira experiên- cia de comunidade terapêutica para essas pessoas. Parece ter partido de membros de Alcoólicos Anônimos a necessidade de terem espaços mais protegidos para membros com dificuldades de alcançarem a abstinência com os recursos da comunidade. Da fundação de AA, em 1935, derivou iniciati- vas informais de hospedagens, espaços de convivência entre membros e, também, de internação. A primeira conhecida foi a de St. Thomas Hospital, em Akron, Ohio. Tratava-se de uma unidade de saúde, que se tornou o primeiro centro baseado nos princípios de AA e contou com o suporte do doutor Bob Smith, um dos cofundadores, e da Irmã Ignatia (Junta de Ser- viços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, 2000). Não se pode afirmar que se tratava de um manejo como comunidade terapêutica, mas houve uma aproximação entre saberes e prá- ticas de profissionais e membros de AA em reabilitação. No ano de 1948, deu-se a criação da primeira comunida- de terapêutica mista na área de drogas: a do Modelo Minneso- ta. Foi fundada no município de Center City, Minnesota, na Clí- nica de Hazelden, onde se utilizou os princípios de Alcoólicos Anônimos, elaborando o manejo profissional dos Doze Passos. A equipe profissional recrutava membros de AA e ex-pacientes da unidade em reabilitação para compor a equipe. Ainda era um período em que esta organização estava construindo todo o arsenal de princípios, o que somente fora completado em meados de 1950, com a publicação de Os Doze Passos e As Doze Tradições. ______________________________________________________________________ 5 Para aprofundar as determinações do poder psiquiátrico e o tratamento moral, recomendo ler Paulo Duarte de Carvalho Amarante. O Homem e a Serpente: Outras Histórias para a Loucura e a Psiquiatria. RJ: FIOCRUZ, 1996, pp. 39-69. E Michel Foucault. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). SP: Martins Fontes, 2006. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 155 Assim, a aparente controvérsia na revisão bibliográfica se observou com a reverência à experiência de Synanon como primeira comunidade terapêutica para usuárias de drogas, em 1958 (Goti, 2000; Fracasso, 2008; Damas, 2003). Como obser- varemos, tratou-se da primeira formada por ex-adictos. Era um período após a 2ª Guerra Mundial em que o con- sumo de heroína havia crescido exponencialmente (Rodrigues, 2004) e Dederich recebia na garagem de casa um grupo de alcoólicos e, depois, também de usuários de heroína. Segundo Goti (2000: 21), eles buscavam reduzir o consumode drogas ou conseguir a abstinência total. Na mesma direção, Fracasso (2008: 10) registrou: No dia 18 de setembro de 1958, Chuck Dederich e um pequeno grupo de alcoolistas em recuperação decidiram viver juntos para, além de ficarem em abstinência, bus- carem um estilo alternativo de vida. Fundaram em Santa Mônica, na Califórnia, a primeira Comunidade Terapêuti- ca (CT) que se chamou Synanon. O líder Dederich advinha de Alcoólicos Anônimos, fun- dado duas décadas antes, período imediatamente seguinte à proibição da produção, distribuição e consumo das bebidas al- coólicas em todos os EUA (1920 a 1933). É importante situar a força política das pautas dos puritanos e dos higienistas para requisitar uma sociedade livre do álcool, condição para um es- tilo de vida temperante para toda a população, refratário aos excessos6, e para o projeto expansionista do Estado. Inaugurava-se, assim, o período da Grande Proibição, modelo que, na crença dos seus partidários, suprimiria o vício e restituiria a dignidade e a retidão moral aos ci- dadãos norte-americanos. (...) Era não só a vitória dos segmentos sociais puritanos, mas a consagração do te- rapeutismo paternalista estatal, com o controle e a inge- rência sobre o comportamento individual e coletivo dele provenientes (Rodrigues, 2004, p. 53). ______________________________________________________________________ 6 Um clássico para discutir os excessos, as paixões, pode ser encontrado em Joel Birman: A psi- quiatria como discurso da moralidade. RJ: Edições GRAAL, Biblioteca de Saúde e Sociedade, v. 3, 1978. 156 | Dispositivos Religios Rodrigues (2004) distingue, dentre as forças políticas para a conformação do proibicionismo ao álcool, a articulação entre grupos religiosos, do movimento de temperança e gru- pos da saúde pública advindos do movimento higienista. É um exemplar importante a se observar, pois o atual tecido ideoló- gico do proibicionismo ainda contém uma atualização dessa convergência, o que expressa a possibilidade de articulação entre normatividade religiosa e saúde pública. Mas, retornando à fundação de Alcoólicos Anônimos, cabe destacar a influência e o distanciamento dos cofundado- res da Oxford, cujo grupo se inscrevia no Movimento de Tempe- rança de âmbito internacional ao buscar revitalizar os princípios cristãos do primeiro século. Em 1860, foi fundada uma orga- nização religiosa chamada Oxford. Esta organização era uma crítica à Igreja da Inglaterra e o objetivo era o renascimento es- piritual da humanidade (Fracasso, 2008: 10). Em 1938, quando a Universidade de Oxford solicitou a retirada deste nome dos grupos, o movimento assumiu o nome de Rearmamento Moral, abreviado para a sigla, em inglês “M.R.A.” (Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, 2000: 185). Por que recuperar esse ator para discutir as comunida- des terapêuticas no Brasil? No País, o Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos (CFP, 2011) identificou essas organizações institucionais referindo usar os Doze Passos de Alcoólicos Anônimos (AA) como uma das referências de trata- mento. A conexão entre comunidade terapêutica e Alcoólicos Anônimos se deu nos EUA e a experiência de Synanon foi uma marca inicial dessa aproximação. Porém, quando se observa a apropriação dos Doze Pas- sos de AA por comunidades terapêuticas internacionais, que também se fazem presentes no Brasil, como a Cruz Azul, ob- serva-se um dirigismo confessional ausente em Alcoólicos Anô- nimos: Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 157 É uma entidade sem fins lucrativos (filantrópica), de ca- ráter civil privado, cujos membros professam Jesus Cris- to, como seu Senhor, Salvador e Libertador pessoal, e têm como princípio abster-se de bebidas alcoólicas e ou- tras drogas em solidariedade as pessoas dependentes; [...] Tem seu trabalho todo focado na orientação e apoio a dependentes, familiares e outras pessoas afetadas pe- las drogas (Cruz Azul, 2014). Apesar do AA ter mantido práticas religiosas - a referên- cia a um Poder Superior, o uso da oração da serenidade, o uso de depoimentos etc -, ele rejeitou a natureza confessional e se- letivo dos Grupos Oxford. Na trajetória de maturação do AA nos EUA, um dos fundadores, Bill Wilson, que frequentou aqueles grupos até 1937, reconheceu a importância da influência posi- tiva da mensagem cristã, mas indicou os limites e riscos dessa abordagem para reabilitação dos alcoólicos. Vejamos algumas: 1. O princípio do evangelismo agressivo, tão proemi- nente como atitude dos Grupos Oxford, teve que ser abandonado para se conseguir algum resultado com os alcoólicos. [...] 6. Descobrimos que os princípios da to- lerância e do amor tinham que ser muito mais enfatiza- dos na prática real, do que eram praticados nos Grupos Oxford, especialmente a tolerância. Tivemos que nos tornar muito mais inclusivos e nunca, se fosse possí- vel, exclusivos. Nunca poderemos dizer (ou insinuar) a ninguém que ele deve concordar com nossa fórmula ou será expulso. O ateu pode falar numa reunião de A.A. e negar a existência de Deus, relatando entretanto como foi ajudado de outras formas. A experiência nos diz que ele irá mudar de idéia, mas ninguém diz a ele que pre- cisa fazer isso (Junta De Serviços Gerais De Alcoólicos Anônimos Do Brasil, 2000: 186-7). Assim, a conexão entre comunidade terapêutica e o ma- nejo dos Doze Passos não pode ser necessariamente associa- da a uma apropriação orgânica de Alcoólicos Anônimos, como foi o Modelo Minnesota. Em alguns casos, como a Cruz Azul, ela atualiza um movimento anterior: os Grupos Oxford. Essa diferenciação merece atenção não só do ponto de vista his- tórico, mas para problematizar o conteúdo dos Doze Passos 158 | Dispositivos Religios nas comunidades terapêuticas, que as referem utilizar. Uma associação indevida e imediata entre CTs e AAs, na atualidade, pode gerar no campo do cuidado e da política análises e en- frentamentos indevidos na luta por direitos humanos. Observe- -se que o AA é de um exemplar da ajuda mútua, mas ancora- do na independência financeira, na voluntariedade da adesão, na proposta da abstinência do álcool aos membros e não para toda a sociedade, além de manter reuniões em espaços aber- tos e inseridos na comunidade7. A ajuda mútua é um tipo de prática conhecida a partir dos grupos de AA, que trocam experiências, vivências e ajuda emocional em torno de um problema comum. Esses grupos possuem uma organização autônoma, na qual a história de cada membro é valorizada como um caminho para o outro buscar suas próprias soluções e enfrentar seus desafios (Reis, 2012: 193). Portanto, Synanon parece ser um dos marcos da expe- riência de membros de AA, ao criar nos Estados Unidos uma comunidade terapêutica que também se aproximava e se dis- tanciava dessa associação. Segundo Damas (2013), Synanon se tornou um modelo comunitário com uso de corrente psica- nalítica, que me pareceu ter sido influenciada pela psicologia do ego8, considerando a larga veiculação nos Estados Unidos naquele período; e, também, pelo tipo de análise referida pelo autor. Modelo Synanon: proposta por Charles Dederich, um ex- -alcoólatra, tem essência predominantemente analítica. Prescrevia que o comportamento desviado do depen- dente químico só poderia ser corrigido por novas formas de convívio e métodos terapêuticos. Propunha, além de um modelo comunitário, um novo lar, uma nova socie- dade para os dependentes químicos e seus familiares que quisessem acompanhá-los. Apesar de basear-se em parte dos preceitos do AA, não estimulava a entrega ______________________________________________________________________ 7 Para aprofundar os limites e possibilidades de Alcoólicos Anônimos, recomendo Reis (2012). 8 A psicologia do ego foi uma correnteempirista e neopositivista na psicanálise norte-americana, a partir da década de 1940. Ela descartava o papel disruptivo do Id e acentuava o papel do Ego como centro do processo de adaptação do indivíduo às exigências do meio, principalmente por meio dos trabalhos de Anna Freud, Hartmann, Kris e Lowenstein (Vasconcelos, 2000: 160). Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 159 da confiança a um ser superior, mas sim na autoconfian- ça do indivíduo. Muitas vezes utilizava recursos como a humilhação e a atribuição de culpa, sendo o trabalho (la- borterapia) um dos pilares deste método9 (Damas, 2013: 53). Desta forma, Synanon parece ter iniciado como uma co- munidade terapêutica de ex-adictos, particularmente de alcoo- listas em reabilitação. A ajuda mútua10 no ambiente comunitário se tornou traço característico dessa modalidade terapêutica para pessoas usuárias de álcool e outras drogas. Outra experiência muito difundida foi a Daytop Village, fundada cinco anos depois, em 1963, pelo monsenhor William Bóbrien e David Deitch. Segundo Fracasso (2008: 11), a expe- riência atravessou o Oceano Atlântico e deu início a programas terapêuticos no norte da Europa, principalmente na Inglaterra, Holanda, Bélgica, Suécia e Alemanha. Mas Fracasso não reve- la como se deu essa expansão. Uma das hipóteses foi o apoio do governo estadunidense, particularmente da Embaixada Americana. Nos anos de 1990, por exemplo, no Brasil, líderes do Daytop Village realizaram treinamento para profissionais no Rio de Janeiro, em unidade educacional pública e federal, com financiamento dessa Embaixada, o que também expressou a participação do Governo Federal brasileiro nesta iniciativa. O grupo trouxe um arsenal técnico-operativo em processos gru- pais voltados para operar reuniões diárias, manejar conflitos no cotidiano da comunidade, facilitar o processo de autoconheci- mento via mútua-ajuda e induzir mudanças comportamentais. Não se falava em Doze Passos de Alcoólicos Anônimos e uma ______________________________________________________________________ 9 Damas (2013) parece ter extraído essa afirmação de RIBEIRO, M.; FIGLIE, N. B.; LARANJEIRA, R. Organização de serviços de tratamento para a dependência química. In: FIGLIE, N. B.; BORDIN, S.; LARANJEIRA, R. (Orgs.). Aconselhamento em dependência química. São Paulo: Roca, 2004 10 Eduardo Mourão Vasconcelos recupera a tradição anglo-saxã do empowerment, referindo ser o aumento do poder e autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações inter- pessoais e institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão, dominação e discriminação social (Vasconcelos, 2003:20). A mútua ajuda é considerada o primeiro nível da estratégia de empowerment, que pode ascender ou não para as seguintes formas de organização: suporte mútuo, defesa de direitos (advocacy), transformação do estigma e da dependência, parti- cipação mais ampla no sistema de saúde/saúde mental e militância social e política. Esse estudo pode ser encontrado em VASCONCELOS, E. M. O Poder que Brota da Dor e da Opressão: empo- werment, sua história, teorias e estratégias. São Paulo: Paulus, 2003. 160 | Dispositivos Religios das razões atribuídas era o público prioritário desta comuni- dade: adolescentes e jovens usuários de drogas. Portanto, Daytop Village se conformava como comunidade terapêutica mista, como a tendência majoritária de outras. 2.3 • A emergência tardia e difusa das comuni- dades terapêuticas no Brasil A década de 1960 parece ter sido o contexto de emer- gência das comunidades terapêuticas no Brasil. A influência da psiquiatria na criação de comunidades terapêuticas para usuá- rios de álcool e outras drogas parece ter sido menor, quando se compara com o veio advindo do campo religioso confessional Uma crítica dirigida aos hospitais psiquiátricos era sobre a drogadição implementada nessas instituições, com doses maciças de psicofármacos (Kalina, 1988: 66). Este psicanalista argentino esteve no Brasil ao longo da década de 1990 em interlocução com profissionais da saúde mental. Ele advertia que: Julgamos importante este esclarecimento, porque eles necessitam (salvo exceções), recuperar sua capacida- de de acreditar na vida e de ser livres, ou aprender a tê-la, quando já se esqueceram destes sentimentos ou potenciais humanos, devido a, desde muito jovens, te- rem vivido sob os efeitos da maconha, do álcool, das polifarmacologias tóxicas, etc (Kalina, 1988: 66). Mas a primeira experiência de comunidade terapêutica relacionada à assistência aos usuários de drogas foi registra- da em fontes, como a de Fracasso (2008: 11). O município de Goiânia, em 1968, foi o lugar da criação da primeira Comuni- dade Terapêutica denominada Desafio Jovem, oriunda de um movimento religioso coordenado pelo pastor Edmundo, assim como em Oxford. Nesta fonte, não houve referência às deter- minações para criação desta comunidade terapêutica no Brasil. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 161 Ela se difundiu no país sob diversas entidades e, atu- almente, podem ser encontradas em todas as regiões do País. Com o financiamento público em curso pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), pode-se obser- var no exercício de 2014 que só as entidades que contêm no nome a expressão Desafio Jovem receberam 6,85% dos R$ 92.562.000,00 orçados para todas as comunidades terapêuti- cas no país. Elas se encontram com 456 vagas financiadas pela secretaria, sendo 230 nos estados do Sul; 151 no Sudeste (excetuando Espírito Santo); 60 no Centro-Oeste, entre Goiás, Mato Grosso e Distrito Federal; 60 na Bahia; e 15 no Amazonas. Chama atenção que essas entidades, no exercício de 2013, possuíam um quantitativo significativamente menor de vagas contratadas com a Senad: 195. Tratou-se de um crescimento de 133% no financiamento de vagas, particularmente concen- tradas no Sul do país. Porém, esse aumento na contratação de vagas seguiu a tendência de maior alocação dos recursos do Tesouro Nacional para esses serviços via Senad: em 2013, foi orçado o repasse de R$ 55.188.000,00 para 4.429 vagas, en- quanto em 2014, o número de vagas chegou a 7.379¹¹. Mas outra comunidade muito conhecida no país, de base católica, a Comunidade Terapêutica Senhor Jesus, foi fundada em 1978, no município de Campinas. Foi oriunda de um movi- mento religioso coordenado pelo padre Haroldo Rham, missio- nário estadunidense, que apreende o uso de drogas como uma expressão do afastamento da graça de Deus e não como um objeto da saúde pública. Nesse sentido, a competência para o tratamento daqueles que usam drogas seria requisitada à reli- gião e, secundariamente, se fosse necessário, à saúde pública. Como se pode observar, trata-se de, no mínimo, uma relação de complementaridade entre religião e saúde, mas pode tam- bém se configurar em oposição e, no cotidiano institucional, em negligência assistencial. Por que afirmar isso? Se há referên- cia de que uma pessoa com dependência do álcool, poderia se beneficiar de uma experiência espiritual (Junta de Serviços ______________________________________________________________________ ¹¹ A fonte desses dados adveio de planilhas entregues nas reuniões do Conselho Nacional de Polí- ticas sobre Drogas (CONAD) por representantes da Senad, no fim do exercício de 2013 e de 2014. 162 | Dispositivos Religios Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, 2000), subsumir tal fenômeno a um campo exclusivo de cuidados pode deixar de- mandas importantes sem cuidado. Em comunidade terapêutica no Rio de Janeiro, por exem- plo, foi observado que dois monitores passaram a orar frente a uma convulsão de um usuário de drogas. Embora a unidade fosse de natureza mista, havendo, no momento, enfermagem emédico, esses profissionais não foram chamados ao evento por ter sido considerada pelos monitores, recrutados em igre- jas, uma experiência espiritual. Isso indica os riscos e a com- plexidade no cuidado de usuários de drogas. Mas retornando à Comunidade Terapêutica Senhor Je- sus, apesar do longo tempo de internação - doze meses -, ela criou experiências de reintegração familiar e comunitária em casas do meio caminho, repúblicas, trabalho, possibilitando trajetórias biográficas supervisionadas na cidade. Essas expe- riências merecem atenção pela possibilidade de construção de conexões grupais e sociais amplas para reabilitação do usuá- rio. Tais experiências se dão no período conhecido como pós-tratamento. Esse termo adveio da centralidade da interna- ção para iniciar o tratamento das pessoas com uso de drogas. Tratar e isolar, assistir e se internar se confundiram. E pós- -tratamento se tornou um acompanhamento após a internação para evitar a recidiva na droga e para apoiar os ex-residentes em a convivência familiar e comunitária destes. Nesse sentido, as comunidades terapêuticas e a centralidade de um modelo de saúde hospitalocêntrico no país contribuíram para uma in- versão no cuidado aos usuários de drogas, na medida em que a internação se tornou uma regra e não a exceção. Contudo, o isolamento na área da assistência aos usuá- rios de drogas parece se atualizar como condição do cuidado no senso comum e, também, no âmbito profissional (Kalina, 1988), diferente do que se verificou para os psicóticos insti- tucionalizados com o surgimento dos serviços alternativos da saúde mental, a partir do fim dos anos de 1980, no Brasil. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 163 Porém, nesta década, uma última influência de comu- nidade terapêutica estadunidense chegou ao país: o Modelo Minnesota. Um grupo de empresas com matriz estadunidense, liderado pela Johnson & Johnson, financiou a qualificação de profissionais brasileiros, também dependentes em reabilitação, para se apropriarem do manejo profissional dos Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos, em Hazelden. No retorno, esses pro- fissionais com um duplo chapéu, pois eram, de forma simultâ- nea, profissionais e ex-usuários de drogas, formaram a equipe da Vila Serena, criada em 1982. Esses profissionais foram re- crutados nos grupos anônimos, e o público prioritário desta uni- dade foram os trabalhadores das empresas, que passaram a reconhecer a vantagem de tratá-los, considerando o alto custo para qualificação e para demissão. Como o retorno à produção não poderia retardar, essa unidade desenvolveu metodologia intensa durante um período de 28 a 35 dias de internação, fi- cando o acompanhamento para o período do pós-tratamento. Vila Serena não aparece nas relações de financiamento das esferas públicas, como a Senad, pois o público são trabalha- dores e dependentes destes vinculados às grandes empresas, segurados de certos planos de saúde com maior cobertura e melhor pagamento de procedimentos, além de particulares. Assim, mais uma vez, pode-se observar a heterogeneida- de entre os serviços que se nomeiam comunidades terapêuti- cas, porém, com convergências no manejo assistencial. 3 • Tensões das comunidades terapêuticas brasileiras na rede de atenção psicossocial e no campo dos direitos humanos Finalmente, vale a pena retornar às questões sobre por que as comunidades terapêuticas brasileiras não conseguiram se afirmar no plano federal no início dos anos 2000, mas re- tornaram organizadas e fortalecidas politicamente nos últimos anos dessa década, quando se vivia uma suposta epidemia do crack no país. 164 | Dispositivos Religios Na política sobre drogas, os anos 2000, foi um período de disputa entre projetos distintos na liderança dessa área. Em 2001, de forma simultânea, houve o II Fórum Nacional Antidro- gas, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso lançou a Política Nacional Antidrogas, sob o apoio das comunidades terapêuticas e de grupos do âmbito da política criminal. Mas, também, foi o cenário da III Conferência Nacional de Saúde Mental, em que o tema das drogas foi reposicionado como ob- jeto desta área, mas alinhado à cultura antimanicomial consoli- dada pela Reforma Psiquiátrica. Apesar de ter sido uma déca- da com a recorrente solicitação das comunidades terapêuticas por participar do financiamento público, via expectativa gerada com a RDC de número 101/01, da Anvisa, esse pleito somente logrou êxito na esfera federal a partir de 2010, quando o crack ascendeu à agenda política brasileira, justificando um enfrenta- mento ao problema pouco conhecido naquele período. Contudo, nessa mesma década, a saúde mental definiu a estratégia da redução de danos como ética do cuidado na atenção às pessoas que façam uso indevido de drogas. Essa definição fazia parte de uma estratégia mais ampla de retirar o problema drogas da esfera da político-criminal e deslocá-lo para a saúde pública. Essa estratégia contou com o fortaleci- mento da saúde mental no país, mas se mostrou incoerente com o aumento do encarceramento por tráfico de drogas após a revisão da legislação especial de drogas, em 2006. O clamor amplificado pela mídia e por políticos sobre os danos do uso do crack encontrou uma saúde mental, a partir dos anos de 2010, num período inicial de construção dos ser- viços para álcool e outras drogas. Ao contrário, da legitimação conquistada no processo de desinstitucionalização brasileira, os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) foram questio- nados na potência para oferecer cuidado a esse público. Sem questionar o recorrente subfinanciamento do SUS, uma movi- mentação política na esfera federal demonstrou que as comu- nidades terapêuticas estavam organizadas e já se beneficiando de financiamentos municipais e estaduais (Senad, 2007). Mais Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 165 do que isso, elas possuíam representantes no parlamento que passaram a pressionar o Executivo Federal, para integrá-las à assistência aos usuários de drogas. Instituições como a Federação de Comunidades Tera- pêuticas Evangélicas do Brasil (FETEB), a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), a Cruz Azul do Brasil e os próprios Conselhos (nacional, estaduais e municipais antidrogas), no qual participam representantes de diferentes CTs, são provas desse mo- vimento interno, que tem acontecido no âmbito das co- munidades terapêuticas, de reordenamento e reestrutu- ração física, administrativa e técnica (Costa, sd: 6, grifos da autora). Contudo, é importante observar que esse movimento não se dá apenas no plano nacional. A União Europeia, por exemplo, inclui dados da assistência prestada por esses servi- ços em diversos países desse continente, demonstrando uma aproximação à rede pública e, de forma simultânea, a diferen- ça (EMDCCA, 2012). Em Portugal, segundo dados do site da Cruz Azul, houve o aceite de um pedido para cessão de terreno pela Câmara Municipal do Seixal, em 2005, sendo expedido um contrato de comodato. Desta forma, a relação das comuni- dades terapêuticas com o Estado parece vir se aprofundando no cenário nacional e internacional. Esse fortalecimento, contudo, vem sendo acompanha- do no Brasil por resistências e lutas sociais que avaliam e de- monstram as práticas de violação de direitos produzidas por comunidades terapêuticas. Embora não se possa generalizar as afirmações do relatório elaborado pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia para todas essas organizações institucionais, chama atenção que as 68 visitadas em 25 unidades federativas do país demonstra- ram violar direitos humanos. 166 | Dispositivos Religios A pergunta que nos orientou − sobre a ocorrência de vio- lação dedireitos humanos − infelizmente se confirmou como uma regra. Há claros indícios de violação de di- reitos humanos em todos os relatos. De forma acintosa ou sutil, esta prática social tem como pilar a banalização dos direitos dos internos. Exemplificando a afirmativa, registramos: interceptação e violação de correspondên- cias, violência física, castigos, torturas, exposição a situ- ações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o teste de HIV − exigência esta inconstitucional −, intimidações, desrespeito à orienta- ção sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências registradas em todos os lugares. Percebe-se que a adoção dessas estratégias, no conjunto ou em parte, compõe o leque das opções terapêuticas adotadas por tais práticas so- ciais. O modo de tratar ou a proposta de cuidado visa for- jar – como efeito ou cura da dependência − a construção de uma identidade culpada e inferior. Isto é, substitui-se a dependência química pela submissão a um ideal, man- tendo submissos e inferiorizados os sujeitos tratados. Esta é a cura almejada (CFP, 2011: 190). Esse relatório foi publicizado antes do lançamento da Portaria de número 3.088, de dezembro de 2011, que redese- nhou a Rede de Atenção Psicossocial, incluindo as pessoas em sofrimento com uso nocivo de álcool e outras drogas. As comu- nidades terapêuticas foram incluídas como serviço da Atenção Residencial de Caráter Transitório, portanto, inseridas no SUS, demonstrando a força política a despeito da tensão interna ge- rada no âmbito da saúde pública e, particularmente, da saúde mental. Por que essa tensão? Para alguns atores da saúde mental, como os novos gestores da Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, seria possível alinhá- -las às diretrizes da RAPS; mas, para a grande maioria, seria o consentimento de rupturas com compromissos firmados pelo processo de desinstitucionalização: a internação como último recurso terapêutico, o cuidado no território, a defesa intransi- gente da liberdade e a orientação ética da redução de danos. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 167 4 • Considerações finais Este artigo, então, intencionou contribuir para problema- tizar se comunidades terapêuticas podem compor uma rede de atenção para usuários nocivos de álcool e outras drogas, como prevê a Rede de Atenção Psicossocial brasileira. Ocorre que, de fato, elas já vinham cumprindo competências da saú- de – tratamento – e da assistência social – acolhimento ins- titucional – em nível local (Senad, 2007), mas a participação delas anunciada nesta rede não parece estar sendo orgânica. A busca por financiamento público é pouco porosa a mudan- ças estruturais nos respectivos modus operandi. Uma das ex- pressões dessa assertiva é encontrada na atual minuta para regulamentação das comunidades terapêuticas: elaborar plano individual de atendimento (PIA), em consonância com o Pro- grama de Acolhimento da entidade (Senad, 2014: Art 6º, III) ou permitir a visitação de familiares, bem como acesso aos meios de comunicação que permitam contato com familiares, confor- me o Programa de Acolhimento da entidade (Senad, 2014: Art 6º, IX). Como podemos observar, o tensionamento está dado entre um aceite de passar a elaborar um plano individualizado de acompanhamento, prever uma maior conivência familiar e comunitária, porém, condicionada ao Programa de Acolhimen- to da entidade, ou seja, às normas e às relações institucionais. Mas tanto a minuta para regulamentação das comunida- des terapêuticas como o PLC 37 participam de uma estratégia de tornar essas organizações institucionais uma política de Es- tado e de materializar um novo sistema nacional para acolhi- mento de pessoas com problemas decorrentes do abuso ou dependência de substância psicoativa, denominadas ou não de comunidades terapêuticas (Senad, 2014): o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). Este atuaria em parceria com o SUS e com o Sistema Único de Assistência So- cial (SUAS) e conformaria uma nova rede. 168 | Dispositivos Religios O que o Brasil está construindo na área da assistência aos usuários de drogas merece atenção de pesquisas, da mi- litância, da gestão, dos trabalhadores e das associações de usuários. A própria minuta de regulamentação já prevê a apli- cação a serviços privados com fins lucrativos, o que explicita a voracidade pelo financiamento público para sustentar uma abordagem invertida ao conceito ampliado de saúde e ao cui- dado integrado no território. Como estamos falando de organizações institucionais, o saber e o poder em disputa na área também está presente nes- se movimento de reconhecimento e financiamento das comu- nidades terapêuticas. Está em curso, então, uma clara reivin- dicação de monopólio por um objeto: a pessoa que demanda cuidados relacionados ao consumo nocivo de drogas. O risco atual da área de drogas retomar um amplo processo de institu- cionalização está na hora do dia. Contudo, o desfecho desse cenário desfavorável à luta antimanicomial reabrirá novos mo- vimentos por constituição de uma contra hegemonia. Referências AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Nota Técnica Nº 55/2013. GRECS/GGTES/ANVISA. Esclarecimentos sobre artigos da RDC Anvisa nº 29/2011 e sua aplicabilidade nas instituições conheci- das como Comunidades Terapêuticas e entidades afins. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Resolução RDC nº 101, de 20 de maio de 2001. Estabelece o Regulamento Técnico disciplinando as exigências mínimas para o funcionamento de ser- viços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas. Disponível em: http://www.mprs. mp.br/infancia/legislacao/id2174.htm. Acesso em: 03 fev. 2013. ALBUQUERQUE, J. A. G.. Instituição e poder: a análise concreta das relações de poder nas instituições. São Paulo: Graal, 1986. Comunidades terapêuticas e a saúde mental no Brasil - Rita de Cássia | 169 ASOCIACIÓN DE PROFESIONALES DE COMUNIDADES TERA- PÉUTICAS PARA TOXICÓMANOS (APCTT). Criterios y Normas para la homologación de Comunidades Terapéuticas Profesionales para Toxicómanos. España: APCTT, 1994. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. 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Para se entender os diversos lugares ocupados pelas mulheres na sociedade, é necessário ter clareza do “projeto de verdade” que subsidiou a construção de sujeitos masculi- nos e femininos (Colling, 2004), estabelecendo entre eles uma relação hierárquica, em que a mulher é vista como inferior ao homem. Esta reflexão parte do pressuposto de que a diferença entre os sexos e as “verdades” que a produziram são constru- ções sócio-históricas. Com Foucault (2006a), aprendemos que verdades são produzidas por diversos campos de saber, numa determinada economia de discursos, como uma forma de exercício de poder. O corpo social é constituído por relações de poder múltiplas, que não podem se estabelecer sem a produção de discursos que adquiram caráter de verdade, teoriza Foucault. 174 | Dispositivos do SUS Sabemos que a medicina e a filosofia disseminaram ao longo do século XVIII uma série de “discursos verdadeiros” sobre a diferença sexual, exercendo influência sobre a forma como as pessoas se constituíam enquanto homens e mulheres e legitimando a construção de uma relação hierárquica entre eles. Tais discursos visavam a atender à necessidade política de destinar homens e mulheres, respectivamente, ao espaço público e ao privado, o que reforçou a situação de inferiorida- de feminina. Esse propósito político era camuflado sob o argu- mento de que estavam sendo “descobertas” diferenças entre a natureza de homens e a de mulheres. Os aspectos apontados como diferenças naturais, entretanto, eram carregados de va- lores culturais (Nunes, 2000). Relações assimétricas entre homens e mulheres ainda se fazem presentes na nossa sociedade. Esta assimetria é refor- çada pelas normas de gênero que buscam enquadrar homens e mulheres em um modelo de diferença sexual que estabelece padrões supostamente ideais de masculinidade e feminilidade (Arán; Peixoto Júnior, 2007). No entanto, por necessitarem reiterar tais padrões de feminino e de masculino, as normas de gênero, como cons- truções sócio-históricas, são incessantemente repetidas, o que pode proporcionar alguma diferença, ou seja, um deslocamento no binarismo masculino-feminino (Arán; Peixoto Júnior, 2007). Arán (2003), a nosso ver, ilustra o deslocamento mencionado, ao afirmar que na contemporaneidade tem surgido um novo esboço do feminino e com ele um novo modo de se pensar a diferença sexual. Explica que desde que o movimento feminista¹ argumen- tou que a natureza das mulheres não as destinava a assumi- rem o lugar de mãe; defendendo o direito de traçarem traje- tórias de vida alternativas, elas passaram a ocupar inserções sociais que antes eram reservadas apenas aos homens. A au- ______________________________________________________________________ ¹ Ressaltamos que o movimento feminista apresenta uma diversidade de vertentes que variaram ao longo da História e do contexto social. Ao empregarmos no singular, neste e em outros momentos deste texto, o termo movimento feminista, não intencionamos desconsiderar a pluralidade existente no seio dele. Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 175 tora nos convida a refletir sobre as inserções sociais da mulher, na atualidade, a partir de um contexto relacional de gênero que, enquanto tal, implica mudanças em todo um sistema de pensa- bilidade sobre a diferença sexual. Visto que os campos de saber interferem, por meio da produção de “discursos verdadeiros” na constituição das sub- jetividades, cabe interrogar sobre que lugares os discursos de profissionais, produtoras(es) de saber sobre o feminino, têm reservado às mulheres na nossa sociedade. Dito de outra for- ma, quais concepções de feminino norteiam a atuação das/dos profissionais de um serviço de saúde específico para tratamen- to de mulheres dependentes químicas? Essa reflexão se torna mais pertinente, ao considerarmos que saberes profissionais construídos sobre as mulheres ao longo da História corroboraram o estabelecimento de uma rela- ção hierárquica entre elas e os homens. O tipo de serviço de saúde em questão é público², e foi criado no Recife, no ano de 2004, pertencente à Rede de Aten- ção Integral às(aos) Usuárias(os) de Álcool, Fumo e Outras Drogas. Consiste em espaços terapêuticos protegidos para atender a pessoas que precisam de um tratamento para depen- dência química, sob regime de internação, por se encontrarem em situação de vulnerabilidade diante da exposição aos riscos do uso prejudicial de drogas (riscos à saúde, à relação familiar, de morte iminente). Nessa perspectiva, objetiva conscientizar o público acerca da dependência química que o acomete,aju- dando na melhoria e reelaboração do projeto de vida e exercí- cio da cidadania (Rameh-de-Albuquerque, 2008). Além do mais, a instituição adota a redução de danos como perspectiva norteadora das intervenções. Andrade (2011) concebe a redução de danos como uma política de saúde, cujos princípios e práticas têm o objetivo de reduzir os danos e os ris- cos relacionados ao uso de drogas, sem que a abstinência seja imposta como condição necessária ao tratamento. Esta política ______________________________________________________________________ ² O nome e o tipo do serviço de saúde investigado não são expressos no título para preservar o sigilo acerca das/dos profissionais e da instituição, já que são poucas as unidades com este perfil, no Brasil. Sendo assim, criamos para o modelo institucional o nome fictício Espaço Lóri (EL). 176 | Dispositivos do SUS se baseia no pressuposto de que o consumo de drogas sempre esteve presente na história humana, não podendo, por isso, ser suprimido (Rodrigues, 2003). Participou da pesquisa um total de dezessete profissio- nais do EL, que são divididos nos seguintes subgrupos: equipe técnica (agentes redutores de danos, técnicas(os) de nível su- perior, pessoa responsável pela coordenação clínica); equipe de limpeza e copa; equipe de vigilância; pessoa encarregada das tarefas administrativas. Com vistas a preservar o anoni- mato das/dos profissionais e da instituição, não divulgamos o nome da unidade de saúde, o quantitativo de profissionais por subgrupos, as profissões e os cargos, e, além disso, utilizamos nomes fictícios. Excluímos da pesquisa as/os profissionais que estavam trabalhando no EL há menos de um mês (critério de exclusão), por considerarmos que elas(es) teriam, ainda, pouco contato com as práticas da instituição, de modo que poderiam não dis- correr com propriedade sobre elas durante as entrevistas, o que seria necessário para alcançarmos os nossos objetivos de pesquisa. Participaram, portanto, aquelas(es) cujo tempo de trabalho correspondia a um período igual ou superior a um mês (critério de inclusão), por estarem bem inteiradas(os) da rotina e atuação institucional. De acordo com os critérios apresenta- dos, foram excluídos um psiquiatra e dois vigilantes. Entrevistamos a máxima quantidade possível de trabalhadoras(es) do EL (respeitando nossos critérios de in- clusão e exclusão), a fim de garantir uma investigação em profundidade, requerida pela natureza qualitativa da pesqui- sa. Tivemos a preocupação de incluir como participantes as/ os profissionais que não compunham a equipe técnica, como o pessoal da copa, da vigilância, responsável pela limpeza e tarefas administrativas. Pois o Ministério da Saúde preconiza o reconhecimento da interdependência entre as/os profissionais nas instituições de saúde, que devem desenvolver propostas terapêuticas, nas quais devem ser considerados o saber e a competência de cada uma(um) delas(es) (Brasil, 2007). Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 177 Em outras palavras, a necessidade da inserção das/ dos trabalhadores que não compõem a equipe técnica está em sintonia com as propostas terapêuticas institucionais. Rameh-de-Albuquerque (2008) enfatiza, inclusive, que tais trabalhadoras(es), por conviverem diretamente com as(os) usuárias(os) e acompanharem a rotina da unidade, influenciam na adesão delas(es) ao tratamento. Entretanto, ao realizarmos as entrevistas dessas(es) interlocutoras(es), percebemos grande dificuldade em refletir sobre as concepções de feminino que norteiam a atuação no EL. Acreditamos que essa dificuldade se deva ao fato de as discussões sobre a condução da proposta terapêutica do es- paço estar centrada, infelizmente, no corpo técnico, conforme pudemos notar ao longo do contato com o campo de pesquisa. Diante disso, resolvemos submeter à análise apenas as en- trevistas das/dos profissionais integrantes da equipe técnica, cujas informações sociodemográficas estão listadas no Quadro 1. Estas(es) profissionais têm experiência mínima de dois anos e máxima de seis anos de trabalho na área de tratamento da dependência química; tempo de trabalho mínimo de um ano e oito meses e máximo de seis anos no EL; do total dos dez profissionais, uma tem vínculo de contrato e outra de cargo co- missionado, sendo as(os) demais todas(os) concursadas(os), como apresentado no Quadro 2 178 | Dispositivos do SUS Q ua dr o 1: D ad os s oc io de m og rá fic os Q ua dr o 2: S ob re tr ab al ho e m s aú de Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 179 2 • Instrumentos e procedimentos Realizamos entrevistas individuais em salas privadas no próprio serviço de saúde. Inicialmente, explicamos à/ao parti- cipante em que consistia a nossa pesquisa, nos colocando à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas a respeito dela e assegurando o sigilo acerca da identidade, bem como pedindo permissão para gravar a entrevista em áudio. Solicitamos que lesse e assinasse o Termo de Consentimento Livre e Esclare- cido e, em seguida, aplicamos um questionário sociodemográ- fico. As entrevistas foram do tipo semiestruturadas, ou seja, guiadas por um roteiro de perguntas, que permitiu uma organização flexível e a ampliação dos questionamentos, à medida que as informações foram sendo fornecidas pela(o) entrevistada(o). Minayo e Sanches (1993) argumentam que a fala trans- mite, por meio de uma/um porta-voz, sistemas de valores, nor- mas e símbolos, além das representações de grupos determi- nados em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas. Duarte (2004) acrescenta que as entrevistas são úteis para o mapeamento de práticas, crenças, valores e siste- mas classificatórios de universos sociais específicos, mais ou menos bem delimitados, em que os conflitos e contradições não estejam claramente explicitados. Explica que a entrevista encontra indícios da forma como os sujeitos significam a pró- pria realidade e levanta informações necessárias à compreen- são da lógica de funcionamento das relações existentes em um grupo. Partindo destes pressupostos, vislumbramos a entrevis- ta como uma técnica de investigação que nos permitiu entrar em contato com a fala de determinadas(os) porta-vozes e, con- sequentemente, com os significados relacionados ao objetivo deste trabalho. 180 | Dispositivos do SUS As gravações em áudio e o registro escrito foram arma- zenados no Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana (LabEshu), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com o qual possuímos vínculo, bem como nossa orientadora. 2.1. Procedimento de análise A análise das falas foi realizada segundo os pressupos- tos da Análise de Conteúdo, utilizada comumente nas investi- gações qualitativas (Turato, 2003; Minayo, 1999). A partir da prática hermenêutica, destacamos as situações vividas e expe- rienciadas pelas(os) participantes. Nesta perspectiva, objetivamos alcançar os conteúdos “latentes”, bem como a compreensão do sujeito em relação ao contexto sociocultural dele, revelando possíveis sentidos e sig- nificados na medida em que prioriza “palavras pré-escolhidas pelo locutor, frequência de recorrência de certos termos, apara- to e andamento do discurso” (Turato, 2003, p. 440). Após a realização e a transcrição das entrevistas, ana- lisamos as falas, por meio das seguintes etapas. Inicialmente, delineamos um esquema composto por oito eixos temáticos relacionados aos objetivos da pesquisa, quais sejam: 1) con- cepções de feminino dos profissionais do Espaço Lóri; 2) con- cepções de feminino e modos de compreensão das subjetivida- des das usuárias do Espaço Lóri; 3) concepções de feminino e intervenções no Espaço Lóri;4) identificações e diferenças en- tre profissionais e usuárias do Espaço Lóri; 5) saberes das/dos profissionais sobre feminino; 6) gênero e dependência química; 7) pressupostos que fundamentaram a criação de um espaço acolher específico para mulheres segundo a opinião das/dos profissionais; 8) particularidades do Espaço Lóri. Em seguida, inserimos em torno de cada eixo os conte- údos levantados no conjunto de discursos correspondentes a cada entrevista. Por fim, realizamos possíveis interpretações e inferências baseadas no nosso encontro com as/os partici- pantes e na fundamentação teórica adotada, em um contínuo processo de ida e vinda ao material analisado. Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 181 3 • Concepções de feminino para os profissio- nais do Espaço Lóri No primeiro eixo de análise, denominado “Concepções de Feminino”, analisamos aspectos das entrevistas que nos comunicassem sobre as noções de feminino das/dos profissio- nais. Inferimos que grande parte delas(es) associa, imediata- mente, “feminino” à “mulher”. Vejamos: As imagens que pra mim são mais presentes é de uma mulher trabalhando, é de uma mulher se dedicando a algo que gosta, (...). É de uma mulher também que é mãe (...). É uma mulher que sofre, é uma mulher que passa fome. É uma mulher que dá a mão, que ajuda, que acolhe. (Luana) Aquele mulherão belíssima. (...) Tipo de imagem de filme de antigamente, cheia de glamour. Aquelas mulheres bem exuberantes. (...) com aqueles vestidos maravilho- sos, cheios de pluma, de paetê. De filmes mesmo de Hollywood. (...) Eu adoro ver aquelas novelas, filmes de antigamente que têm aquelas mulheres com aqueles vestidos enormes, naqueles salões de dança, de valsa. Acho lindo! (Cristiane) Também notamos essa associação direta entre “femini- no” e “mulher” quando, ao serem convidadas(os) a falar sobre noções de feminino, as/os profissionais começaram a discorrer, conforme mostram os discursos abaixo, sobre o que, nas res- pectivas opiniões, vem a ser “mulher”: Porque eu acho que o sexo feminino, a gente, mulher, pra uma separação eu acho que a gente é mais fraca do que o homem. (Elisa) Continuar sendo feminina é continuar sendo aquela coi- sa, com aquele estereótipo que a gente diz, delicada, gostar de se maquiar, gostar de se vestir como mulher. (Cristiane) Feminino também me vem sexualidade. (...) Questões que, por exemplo, homens não pensam. Questões de cuidado, questões com o outro, por exemplo. (...) Ques- 182 | Dispositivos do SUS tões a respeito de si própria. Eu acho que a mulher olha muito pra si. (...) Tem a ver com feminilidade: pensamen- tos confusos (...) porque mulher é muito... Como é que eu posso dizer? O feminino da gente é muito mais poé- tico. (Vanessa) Embasados em Butler (2010a), vislumbramos que essa conexão imediata entre “feminino” e “mulher” indica que as/os profissionais utilizaram nestes discursos a lógica linear e binária de gênero para se compreender a diferença sexual. A linearida- de diz respeito ao entendimento do gênero como consequência do sexo. Já o binarismo consiste na compreensão dicotômica da diferença sexual, de acordo com a qual os pares de termos “mulher e feminino”, “homem e masculino” se definem por rela- ção recíproca de oposição. Nos recortes de entrevista acima, ao tentar definir “feminino”, as/os profissionais estabeleceram comparações entre “mulher e feminino” e “homem e masculi- no”, colocando estes pares de termos em relação de oposição, quando, por exemplo, mencionaram que as mulheres são mais fracas que o homem e que o feminino consiste em questões como o cuidado, sobre as quais os homens não pensam, dei- xando subtendido que esta é uma preocupação típica das mu- lheres. Além disso, percebemos que o que vem a ser feminino constitui, na visão das/dos profissionais, um conjunto de atri- butos tidos por elas(es) como característicos das mulheres, a saber, a fraqueza, a delicadeza, entre outros por elas(es) men- cionados nos discursos acima. Nas falas abaixo as/os profissionais realizam uma forte ligação entre a mulher e a maternidade: Eu penso muito no... mãe. Quando eu penso mulher, eu penso muito o lado mãe e família. (Regina) Assim, me traz, pra mim, o pensamento feminino, a questão materna, mesmo, a questão da mulher mãe, da responsabilidade de ser mãe. Me traz mais esse tipo de pensamento. (Samanta) Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 183 Lembro logo de mãe. Filhos. (...) O cuidado com os filhos (...) Pra mim a maternidade e o feminino, pra mulher, é uma coisa mágica. A questão de você gerar um filho, de ter um filho em seus braços, de amamentar um filho, pra mim, é tudo. Seria o topo da mulher, da realização dela. (...) Sentir um outro ser dentro da barriga, se mexendo, depois você ter ele nos braços, é algo... O máximo do prazer pra mim. (Roberta) Até porque o sentimento feminino ‘tá ligado à mãe, gerar filho; então, é um elo muito grande. Eu acho que a gente tem uma diferençazinha em questão de ser feminino, o sexo, pelo dom da mãe, de ser mãe. Eu acho que o dom de ser uma mãe, acho que o sentimento da gente muda um pouquinho. A gente perdoa mais, a gente acaricia mais. (Elisa) Pra mim, o feminino ‘tá muito ligado à questão de cuida- do, questão afetiva, beleza, cuidado com o outro, por conta da questão muito de maternidade, de convivência entre pares, assim: sua amiga de infância. Pra mim, des- de a infância você tem uma amiguinha, você brinca com a boneca, então, sempre tudo muito associado a isso, a companheirismo. (Vanessa) Do ponto de vista histórico, a ligação entre a mulher e a maternidade se iniciou no século XVIII, quando passou a vigo- rar na sociedade o modelo dos dois sexos, de acordo com o qual o exercício da função materna consistia no “destino natu- ral” das mulheres, ou seja, era uma consequência do estatuto biológico. O modelo dos dois sexos encarava o gênero como reflexo do sexo – este entendido como sendo de ordem bio- lógica. Designava uma série de atributos às mulheres, sob o argumento de que eles eram consequência do sexo biológico, ou seja, da “natureza feminina” (Nunes, 2000). Acreditamos que o conjunto de discursos acima se ba- seia, sobretudo, nessa lógica de pensamento sobre a diferença sexual, por apresentar construções discursivas sobre “femini- no” pautadas, parece-nos, em uma suposta predisposição bio- lógica da mulher para a maternidade. 184 | Dispositivos do SUS Outro aspecto que nos chamou atenção se refere à ideia de que nascer “fêmea” garante o desenvolvimento da habilida- de de cuidar com amor, responsabilidade e prazer dos filhos. A condição anatômica da mulher está, então, na base da com- preensão da maternidade e do cuidado como características intrínsecas do “feminino”. Lembremos que, quando se cons- truiu, ao longo dos séculos XVIII e XIX, um perfil materno a ser assumido pelas mulheres, propagava-se a ideia de que elas eram, entre outras características, naturalmente frágeis e, por- tanto, precisavam da proteção de um homem que, por relação de oposição, baseada no modelo dos dois sexos, seria natural- mente dominador e forte (Nunes, 2000). Devido à fragilidade, elas deveriam ficar restritas à atua- ção na esfera doméstica, despendendo todas as energias com o cuidado dos filhos, do esposo e da casa, enquanto que ao ho- mem cabia a execução de atividades no espaço público, para as quais, acreditava-se que tinha vitalidade suficiente (Nunes, 2000). Entretanto, o movimento feminista do século XX questio- nou tal visão, difundida pelo modelo dos dois sexos, de que a natureza das mulheres as destinava a assumir o lugar de mãe, defendendo o direito de elas traçarem trajetórias de vida alter- nativas. Assim, as mulheres aos poucos conquistaramo direito de ocupar o espaço público, passando a desenvolver ativida- des que antes eram apenas da responsabilidade dos homens (Arán, 2003). De acordo com Arán (2003), a ocupação dessas novas inserções sociais pelas mulheres contrariou a lógica do modelo dos dois sexos, segundo o qual, elas estariam fadadas a ser, eternamente, apenas mães e esposas. Neste sentido, pelo ca- ráter relacional do gênero, o sistema de pensamento sobre a diferença sexual está em transformação. Vejamos, então, algumas falas permeadas por descri- ções do feminino que contemplam as novas inserções das mu- lheres na atualidade, ao caracterizá-las como fortes, batalha- doras, equivalentes aos homens do ponto de vista financeiro e Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 185 intelectual. Mas, que, ao mesmo tempo, trazem resquícios de concepções de feminino típicas do modelo dos dois sexos, em que as mulheres são, por excelência, mães e frágeis. É tão comum a gente pensar que a mulher sente mais, é mais frágil, mais sofrida. E, hoje em dia, a gente vê a mulher como batalhadora. Hoje, a gente vê também a mulher como que alcançando o espaço dela. (...) O feminino eu vejo muito, essa parte de fragilidade, mas, ao mesmo tempo, de lutadora. (...) Uma lutadora por- que encara os desafios que essa vida hoje traz, muito mais do que o homem. (...) ela não foge da raia, ela não procura subterfúgio, ela encara mesmo. (...) porque an- tigamente a mulher não tinha seu espaço; ela era muito submissa. Tudo dependia do homem (...). (Gisele) A inteligência, o dom de Deus e o mundo que abriu pers- pectivas e portas pra que a mulher, além de ser mãe e dona de casa, crescesse com sonhos iguais aos dos homens, onde ela pode se equiparar financeiramente, intelectualmente a eles. (...) Mulher pode tudo, igual ao homem, eu acho. Mas ela ainda perde um pouquinho porque ela é mais frágil. (...) Apesar dela puder viver sozinha, se manter sozinha, criar um filho sozinha, morar sozinha, recomeçar uma vida nova, mas eu ainda acho que a mulher é, no ponto de vista emocional, ela é mais fraca. (Elisa) Acreditamos que a coexistência, nos discursos acima, dessas concepções paradoxais sobre mulher-feminino de- monstra a força exercida pelo modelo dos dois sexos, ainda na constituição da subjetividade das pessoas e, ao mesmo tempo, sinaliza que ele não mais dá conta de explicar a diferença en- tre os sexos. Neste sentido, corroboramos com a afirmativa de Arán (2003), segundo a qual não estaríamos em um território totalmente ancorado na hierarquia entre os sexos. Um exem- plo disso é a menção, encontrada no último relato acima, da possibilidade de as mulheres “igualarem-se ou superarem” os homens no campo financeiro e intelectual. No entanto, a autora nos chama atenção de que não es- tamos em um terreno caracterizado pela indiferença entre os sexos, como ilustrado nos relatos acima, quando as/os profis- 186 | Dispositivos do SUS sionais se referem à mulher como frágil, ficando subtendida a adjetivação do homem como forte. Vale lembrar que essa dife- rença tem raízes bem antigas, pois se baseia em uma relação hierárquica tributária do modelo dos dois sexos. Ainda encontramos outros recortes de entrevista que vis- lumbramos como ilustração de que não nos encontramos mais em um território totalmente ancorado na hierarquia entre os se- xos. Vejamos: O feminino pra mim está muito ligado ao cuidar. (...) Por- que na relação, às vezes, o marido, o homem, às ve- zes, assume mais o papel feminino do que a mãe. (...) A imagem que me vem na cabeça, realmente, é a figura da mulher, mesmo sabendo que não é só a mulher que exerce o papel feminino. Muitos homens também exer- cem o papel feminino. (...) Acho que a mídia também co- loca muito isso na mulher, a beleza, a higiene, o cuidado com a saúde. (...) Pode ser que eu esteja indo num pen- samento de estereótipos. (Deise) É como se eu não conseguisse ver uma diferença entre o feminino e o masculino tão... Não consigo separar isso. Talvez, eu poderia dizer, começar a falar algo que você vá aprendendo o tempo todo, vamos dizer: “É o sexo frá- gil.” (...) Vamos dizer que, de alguma forma, na prática, eu não consigo enxergar tão assim. Mas é a única coisa que me vem na cabeça, como se fosse uma forma de reproduzir aquilo que o tempo todo se fala. (...) A ideia é que hoje em dia seja tudo igual [em direitos e deveres]. Se é tudo igual, não consigo ver essa diferença. (Ricardo) Nesses recortes, predomina um movimento de atribuição de proximidade de sentidos aos sexos. No primeiro, por exem- plo, afirma-se que, embora a atividade de cuidar seja associada imediatamente às mulheres, tanto estas como os homens são capazes de se responsabilizar por este exercício. No segundo recorte, coloca-se que as mulheres e os homens são iguais em termos dos direitos que possuem. Inferimos que o reconheci- mento da proximidade de sentidos entre os sexos sinaliza que o regime de oposições binárias do sistema de gênero não dá conta de explicar a constituição das subjetividades, conforme advoga Butler (2010a). Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 187 Em suma, ao longo da discussão realizada neste tópico, percebemos que as falas das(os) nossas(os) participantes des- lizam entre uma demarcação significativa (mulher e homem, masculino e feminino) e uma possível flexibilização dessas diferenças. Dito de outro modo, em alguns momentos as/os profissionais reforçam e, em outros, põem em xeque a com- preensão binária sobre os gêneros. Dentro desse contexto, ora sendo naturalizadas, ora estando em abertura para integrar no- vos sentidos, as concepções de homem, mulher, masculino e feminino se apresentam, nos discursos das/dos profissionais, tais como são: termos polissêmicos em processo as respecti- vas constante de construção. 4 • Concepções de feminino e modos de com- preensão das subjetividades das usuárias do Espaço Lóri Neste eixo de análise, interrogamos como as concepções de feminino das/dos profissionais se relacionam com as res- pectivas noções sobre as subjetividades das usuárias do Es- paço Lóri. Identificamos um conjunto de discursos que, mais ou menos explicitamente, demonstram que as/os profissionais recorrem, em alguma medida, ao modelo de pensabilidade bi- nário de gênero para entender as subjetividades das usuárias. Observemos, por exemplo, que alguns profissionais expressam ser mais difícil trabalhar com o público feminino usuário de dro- gas do que com o masculino, pois acreditam que as usuárias são mais competitivas e conflituosas entre si: É mais difícil trabalhar com mulheres. Elas são mais emotivas, são mais conflituosas entre si, são mais competitivas também entre elas e com a equipe. (...) Como eu também tenho experiência com o público mas- culino, eu também faço uma certa comparação de que realmente as mulheres são mais difíceis. No outro ser- viço, inclusive, quando a gente tem um dia que tem só homens na casa, o clima da casa fica mais tranquilo. (...) E tem as questões mesmo de mulher: TPM, a irrita- 188 | Dispositivos do SUS bilidade, a questão da competição. (...) Elas são mais cheias de cri-cri, mais cheias de fuxico entre elas, aquela picuinha. Que com os homens eu percebo que isso é mais diluído. (Cristiane) Quando eu cheguei aqui, eu levei um choque porque a forma como os usuários se relacionam no [Espaço Aco- lher] masculino não é tão competitiva. (...) a questão de ficarem catucando (...) é algo muito peculiar do femini- no. (...) Cutucando seria provocando o tempo todo, pro- curando alguma forma, como fosse de detonar a outra. No masculino, eu não conseguia ver isso tão forte. Se existia no masculino, era muito camuflado. É como se o homem conseguisse camuflar isso melhor ou,então, lidar melhor com a diferença do outro. (...) O tempo todo tem alguém que ‘tá brigando com alguém (...) você tem que ‘tá mediando alguma coisa de relação entre elas, porque é como se, sozinha, não conseguisse. (Ricardo) Notamos que a forma como se compreende as subjetivi- dades das usuárias nos relatos acima está pautada no sistema binário de gênero, na medida em que elas são descritas em função de relações de oposição com as subjetividades mascu- linas, (re)produzindo dicotomias naturalizadas. No âmbito dessa naturalização, as/os profissionais for- mulam as seguintes dicotomias: de um lado, teríamos as mu- lheres irritadas, conflituosas e competitivas entre si e, do outro, o homem tranquilo e com aparente maior facilidade em lidar com a diferença do outro. A naturalização das concepções de feminino fica bastante evidenciada, quando a profissional ca- racteriza a competitividade, a Tensão Pré-Menstrual (TPM) e a irritabilidade como “questões mesmo de mulher”, expressão que lemos como “aspectos intrínsecos da natureza da mulher”. Sabemos que, ao longo da História, explicações sobre a diferença sexual baseadas em premissas naturalistas foram elaboradas por diversos campos de saber, com o intuito de justificar situações concretas de desigualdade entre homens e mulheres. Recorria-se ao “natural”, que supostamente não poderia ser mudado, para respaldar a permanência e perpe- tuação de situações – construídas socialmente, vale salientar Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 189 – convenientes a um determinado grupo social. Na contempo- raneidade, o essencialismo ainda se faz presente nos discur- sos sobre gênero (Carvalho, 2010); tomemos como exemplo os discursos debatidos, que apontam como essência da mulher o comportamento competitivo. Diante dessa explanação, indagamo-nos se as diferen- ças naturalizadas entre os sexos, presentes nos relatos dis- cutidos, estariam legitimando e/ou construindo desigualdades de gênero. Ao buscar responder a essa questão, percebemos que as duas citações apresentadas até o momento qualificam positivamente os homens em detrimento das mulheres, estabe- lecendo entre eles uma hierarquia, por exemplo, ao dizer que as mulheres são mais conflituosas entre si e os homens apa- rentemente sabem lidar melhor com a diferença do outro. Em outras palavras, na comparação entre homens e mu- lheres, percebe-se uma maior habilidade dos primeiros do que das segundas em lidar com os relacionamentos interpessoais, quando ambos estão entre pessoas do mesmo sexo. Assim, problematizamos que os discursos em questão podem estar operando uma espécie de atualização das relações hierárqui- cas entre homens e mulheres culturalmente estabelecidas na nossa sociedade, legitimando e/ou construindo desigualdades de gênero. Refletindo ainda sobre a atualização de hierarquias, en- tendemos que os relatos abaixo legitimam as relações de do- minação entre homens e mulheres, ao trazerem a ideia de que o público feminino, em tratamento, costuma aceitar com mais facilidade a autoridade da/do profissional, quando esta(e) é do sexo masculino. (...) é bem mais difícil se trabalhar com mulher porque eu acho que ela não aceita... Não sei se aceita essa questão da opinião da outra mulher. (Samanta) Porque com os homens, elas têm um certo respeito: “Você é a pessoa que ‘tá no comando, então, eu te respeito”. Com as mulheres, não. Elas entram na competição: quem manda mais, quem é que ‘tá nesse lugar. Então, elas, o tempo todo, tentam tirar a gente do lugar. (Cristiane) 190 | Dispositivos do SUS Aqui é como se elas tivessem mais respeito aos pro- fissionais masculinos, do que o feminino, e... (...) Já teve outros profissionais masculinos também, dá para perceber isso; não sei se é medo, não sei! (Roberta) Apresentaremos abaixo relatos que, semelhantes a ou- tros discutidos, designam, a nosso ver, a competitividade entre as mulheres como uma característica inerente a elas. Explici- tam que a competitividade acontece entre usuárias e, por parte destas, com relação às profissionais, sobretudo, devido a ques- tões relativas à beleza e aparência pessoal: (...) se uma desce a escada, faz assim com o cabelo, é porque ‘tá se amostrando porque o cabelo dela é liso e o meu é cacheado. Tem muita disputa, tem muita TPM jun- ta também, irritação. (...) Disputa de beleza (...). (Luana) Não sei se é a especialidade do gênero em si, e que a gente percebe que elas te olham de todas as formas, te observam de todas as formas. Se tu vem com uma blu- sa diferente, um cabelo diferente, uma coisa, um brinco diferente, enfim, tudo é observado em você. Já com o homem, não. O homem, ele te respeita totalmente. Ele pode até observar alguma coisa diferente em você, mas ele não menciona. A mulher não, ela vai e fala mesmo. (Samanta) O fato de a competitividade entre as mulheres ser tratada como possivelmente decorrente da “especialidade do gênero” indica que ela se constitui no discurso como um aspecto natu- ralizado do feminino. Inclusive, acreditamos que, no primeiro relato, o fato de o termo “disputa” aparecer junto ao termo TPM, que é muito marcado culturalmente como sendo da ordem da natureza feminina, sugere que a “disputa” é vista de modo si- milar. Essa compreensão da mulher como competitiva tem ra- ízes no sistema binário de gênero, visto que, segundo Butler (2010a), explica-se a diferença sexual a partir de modelos na- turalizados de masculinidade e feminilidade. Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 191 Aprendemos, sobretudo, com Scott (1995) e Butler (2010a), que o gênero consiste em um sistema social que or- ganiza relações, que é, ao mesmo tempo, produtor e produto das diferenças percebidas entre masculino e feminino. Embora muitas vezes não estejamos conscientes deste processo, nós utilizamos esse sistema, em nosso cotidiano, como uma matriz para compreender as subjetividades, em termos das diferenças percebidas entre os sexos (Scott, 1995; Butler, 2010a). Logo, pudemos observar que as(os) trabalhadoras(es) do Espaço Lóri fazem uso desse sistema para compreender as subjetividades das usuárias com quem trabalham, reproduzindo concepções naturalizadas sobre a diferença sexual. Entretanto, confrontamos o aparente estatuto de verdade dos modelos naturalizados de feminilidade e de masculinidade que compõem o sistema binário de gênero, por considerarmos que eles consistem em construções sócio-históricas e, portan- to, variam de acordo com o tempo, espaço e circunstâncias (Butler, 2010a; Nunes, 2000; Scott, 1995). Assim sendo, ten- tamos desconstruir as concepções naturalizadas de feminino e as relações hierárquicas de gênero presentes nos discursos das/dos profissionais, mostrando que elas são socialmente construídas. Para operar a desconstrução referida, empregamos o gê- nero como categoria analítica para interpretação desses dis- cursos, visto que, segundo Carvalho (2010), ele nos permite desconstruir os argumentos – formulados de diversas maneiras ao longo da História – que sustentam que a dominação dos ho- mens sobre as mulheres obedece a uma ordem natural e atem- poral. Entretanto, gostaríamos de considerar que as relações de dominação presentes nos discursos não podem ser enten- didas a partir de uma única causa ou origem histórica (Yan- noulas, 1994). Neste sentido, ressaltamos que o uso de outros eixos de análise que não apenas o gênero – tais como classe, raça, etnia e outros elementos estruturadores das relações de poder – pode resultar em uma compreensão mais abrangente acerca do modo pelo qual as hierarquias têm se estabelecido ao longo da História. 192 | Dispositivos do SUS Discutimos até o momento relatos em que, a nosso ver, as/os profissionais utilizam concepções naturalizadase hie- rarquizantes de feminino, conformadas a um sistema binário de gênero, para compreender as subjetividades das usuárias. Sabemos que, por atuar performativamente, esse sistema dá margem tanto à produção de subjetividades que se encaixam, como de subjetividades que rechaçam as normas binárias de gênero (Arán; Peixoto Júnior, 2007). Diante desta considera- ção, fica claro que o sistema binário de gênero não dá conta de explicar a multiplicidade de experiências subjetivas existentes em nossa sociedade (Butler, 2010a). Os discursos expostos abaixo denunciam ser o siste- ma binário de gênero incapaz de explicar a multiplicidade de experiências subjetivas das usuárias com as quais as/os pro- fissionais interagem no Espaço Lóri. Dizemos isso porque as descrições das experiências subjetivas das usuárias efetuadas nesses relatos não atendem à linearidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual proferida pelo sistema binário: E outra coisa interessante é que aqui dentro (...) tem mu- lher que vem pr’aqui dentro que não tem histórico de ser homossexual e começa a ter relação aqui dentro com outras meninas. (Ricardo) A gente observa um fenômeno muito da homossexuali- dade aqui. (...) muitas aqui, elas se apaixonam, mesmo sem elas se declararem homossexuais. Às vezes, mes- mo que não tenha tido nenhuma relação homoafetiva, consegue se apaixonar por outra. (Vanessa) Nem todas as mulheres que gostam de mulheres que- rem se parecer com homem. Algumas querem continuar parecendo com o estereótipo de mulher, mas gostam de mulheres. Mas não necessariamente precisam parecer com homens para dizer que gostam de mulheres. (...) In- dependente que a gente tenha aquela coisa de que o ho- mem nasceu para a mulher e a mulher nasceu para o ho- mem, hoje em dia isso não existe mais. (...) Hoje em dia, a gente tem pessoas que gostam de tudo. Ora gosta de mulher, ora gosta de homem, ora gosta dos dois. (...) a coisa ‘tá muito mais (...) misturada. Não tem mais aquela coisa de ou é homossexual ou é heterossexual. (Cristiane) Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 193 O sistema binário estabelece linhas causais de ligação entre o sexo biológico, o gênero e a “expressão” de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual. Essa linearidade obedece às leis da heterossexualidade com- pulsória, que está na base do sistema binário de gênero, ditan- do que os desejos e as práticas sexuais devem ser destinados a pessoas do sexo “oposto” (Butler, 2010a). Entretanto, as descrições das experiências subjetivas das usuárias, efetuadas nos fragmentos de entrevistas acima, evi- denciam que o “fato” de uma pessoa ter nascido com anatomia feminina não repercute no direcionamento do desejo afetivo e/ ou sexual para os homens, tampouco que as práticas sexuais sejam com homens. Assim, ratificamos que o sistema binário não pode ser adotado como matriz universal de compreensão das subjetividades. A partir dessa discussão, fica claro que, para compreen- derem a diversidade de subjetividades das usuárias, as/os pro- fissionais precisam submeter à crítica as concepções naturali- zadas de sexo, gênero, desejo e prática sexual que compõem o sistema binário. Em consonância com esse movimento, no recorte de entrevista abaixo, a profissional submete à crítica as concepções naturalizadas de feminino, adotando aparente- mente uma postura de abertura para conferir novos sentidos ao termo: Já me vem, assim, a questão do que é ser mulher, de comportamento, de estereótipo, da questão da delicade- za. Porém, como a gente tem uma coisa muito forte do trabalho, aí, a coisa já se dilui um pouco disso. Então, não é exatamente isso. Não é exatamente a delicadeza, não é exatamente só o ser mais, vamos dizer, mais o que a gente tem mesmo aquela noção de antigamente do que é mulher. Mas, é da questão do gênero mesmo. Do que é ser feminino e do que é ser masculino. Que, hoje em dia, ‘tá muito misturado mesmo. (Cristiane) 194 | Dispositivos do SUS Percebemos que existe no Espaço Lóri um movimento de desconstrução das concepções naturalizadas de feminino, que compõem o sistema binário, ao se tentar compreender as subjetividades das usuárias atendidas. Entretanto, esse movi- mento pode ser notado com mais clareza, quando analisamos as concepções de feminino que norteiam as intervenções das/ dos profissionais junto às usuárias. É sobre essa temática que debateremos no próximo tópico. 5 • Concepções de Feminino e Intervenções no Espaço Lóri Formulamos um eixo de análise denominado “Concep- ções de Feminino e Intervenções”, no qual agrupamos todos os fragmentos de entrevista que nos informassem sobre as con- cepções de feminino que norteiam as intervenções que as/os profissionais realizam junto às usuárias do Espaço Lóri. Nesse eixo de análise, identificamos dois tipos de intervenções. O primeiro deles consiste em intervenções dirigidas às usuárias que são mães e gestantes, e o segundo em interven- ções direcionadas ao cuidado com a aparência das usuárias. Assim, dividiremos essa discussão em dois subtópicos: “Con- cepções de feminino que norteiam as intervenções dirigidas às usuárias que são mães e gestantes” e “Concepções de femini- no que norteiam as intervenções direcionadas ao cuidado com a aparência das usuárias”. 5.1. Concepções de feminino que norteiam as intervenções dirigidas às usuárias que são mães e gestantes Inicialmente, discutiremos acerca das concepções de fe- minino que norteiam as intervenções com as usuárias que são mães e as que estão grávidas. O trabalho no Espaço Lóri, co- mumente, coloca as/os profissionais diante de mulheres cujas posturas e comportamentos não condizem com aquilo que se Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 195 espera de uma mãe em nossa sociedade. Tais usuárias cos- tumam se apresentar com os vínculos maternos fragilizados, negligenciando o cuidado com os filhos e estando, muitas ve- zes, sob o risco de perderem a guarda deles. Ainda é comum expressarem ambivalência quanto ao desejo de cuidar das crianças e, quando estão grávidas, demonstrarem descuido da saúde, o que inclui o comportamento de abuso de drogas. Sabemos que a ligação entre a mulher e a maternidade é uma construção social iniciada no século XVIII. Nesta épo- ca, a sociedade estava procurando solucionar o alto índice de mortalidade infantil que vinha se abatendo sobre ela. Destinar as mulheres à maternidade funcionou, neste contexto, como uma estratégia de enfrentamento dessa problemática social, uma vez que elas foram incentivadas a cuidar da saúde das crianças (Nunes, 2000). Esperava-se que, ao assumir esta função, estivessem não só combatendo a mortalidade infantil, mas também colabo- rando para o fortalecimento da classe burguesa, ao se respon- sabilizarem pela garantia da perpetuação dos membros, por meio do cuidado com a saúde das crianças. A fim de convencer as mulheres a se implicar nesse propósito, uma série de discur- sos filosóficos, médicos, políticos, religiosos e moralistas intro- duziu e respaldou a ideia de que a maternidade era inerente à natureza feminina (Nunes, 2000). Concluímos, com base neste breve histórico, que as mu- lheres não têm uma vocação natural para a maternidade, mas foram e são incentivadas, culturalmente, a assumir essa fun- ção. O amor materno, por exemplo, conforme defende Badinter (1985), não consiste em um sentimento natural da mulher, mas foi por ela adquirido ao longo das transformações sociais que explicitamos. Subjacente ao recorte histórico que efetuamos fica claro que procuramos entender o fenômeno da materni- dade dentro da rede de interesses políticos, econômicos e so- ciais supostamente a ela atrelado, conforme defende Scavone (1985). 196 | Dispositivos do SUSVemos nos relatos abaixo que as/os profissionais desna- turalizam a ligação entre a mulher e a maternidade, ao reco- nhecerem que as usuárias que têm filhos possuem o direito de não exercer a função materna e seguir trajetórias alternativas de vida. Neste sentido, está incutida nos relatos dessas/desses profissionais a ideia de que a biologia das mulheres não as destina ao exercício da maternidade, sendo a ligação entre as mulheres e a maternidade uma construção social. A gente tem vários casos de usuárias que estão (...) lu- tando na Justiça pela guarda dos filhos. (...) A gente vai tentar estimular pra que essa mãe garanta que esse filho possa estar sendo bem cuidado. Se ele está com o pai, com a tia, com a avó, (...) o que importa é ele estar sendo bem cuidado. Se ela tem o desejo de cuidar ou não, é uma escolha dela. A gente respeita isso. E não fica sendo uma instituição que tem esse preceito moralista: “Você teve filho? Você tem que cuidar.” (Vanessa) (...) praticamente todas as usuárias chegam encami- nhadas pelo conselho ou ‘tão com os filhos em abrigo. Elas chegam com o vínculo fragilizado e outras chegam com o vínculo rompido, sem nenhum desejo de voltar a ter esse vínculo. E não é a gente que vai forçar: por- que você é mãe, você tem obrigação de amar seus filhos (...) Muitas vezes elas chegam na dúvida, e a gente, como vai trabalhando a sensibilização e não traba- lha com culpabilização… “Não, veja, é uma escolha. Você não quer? Você quer se dedicar a outras coi- sas? A que você quer se dedicar?” Porque, aí, elas chegam como se fossem obrigadas, culturalmente, a amar, a cuidar, a morar com aquelas crianças, e a gente desconstrói isso com elas e com a família por- que (...) às vezes é muito melhor pra criança. (...) é uma violência uma instituição dizer que você tem a obrigação de amar seus filhos. Ninguém tem a obrigação de amar ninguém! (...) Se ela tem o desejo, a gente vai ajudar na reconstrução desse vínculo. Se ela não tem, a gente vai reconstruir o projeto dela de vida, sem essas crianças. (Luana) Nos relatos em discussão, defende-se que o trabalho te- rapêutico com estas usuárias busque estimular a reflexão so- bre o desejo de assumir (ou não) a função materna e as incen- Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 197 tivar a tomar uma decisão consciente a este respeito, pela qual se sintam responsáveis. Fomos informadas(os) de que, caso a usuária não deseje assumir a função materna, é possível traba- lhar com ela a designação de alguém que tenha condições de assumir a responsabilidade pelas(os) filhas(os). Assim, enfati- zamos que se procura não deixar de atender também ao direito que as crianças envolvidas têm de serem cuidadas. Dentro do contexto de tratamento das usuárias que são mães, surgem algumas intervenções, descritas nos discursos abaixo, com vistas a ajudá-las a desenvolver o vínculo com as(os) filhas(os). As/os profissionais esclareceram durante as entrevistas que essas intervenções têm como alvo aquelas mu- lheres que, tendo filhas(os), desejam resgatar o vínculo com elas/eles. Subtende-se dessa afirmação que nem todas as usu- árias que têm filhas(os) desejam exercer a maternidade. Assim, inferimos que o emprego dessas intervenções parte da consi- deração de que a ligação entre as mulheres e a maternidade não é da ordem da natureza, mas, sim, uma construção social. Daquele relacionamento mãe e filho que a gente pro- cura não contribuir pra que haja esse corte. O que a gente puder fazer pra aproximar, a gente faz. Então, não existiam visitas de crianças aqui dia de semana. Visita nenhuma. E já foi aberta essa exceção por conta dessa necessidade. (Regina) (...) “Vamos fazer um gibi pra tu contar a tua história à tua filha?” A gente tem caixas de brinquedo lá; a gente disponibiliza pra ajudar nessa relação, que muitas mu- lheres não brincam, muitas mães perderam o sentido de brincar.(...) Essas mulheres que têm filhos, elas podem utilizar aqueles brinquedos, inclusive, para reconstruir essa relação. (...) todas não têm que brin- car com seus filhos, é quem ‘tá afim! (Luana) No que concerne às usuárias gestantes, algumas(uns) profissionais colocam que não se deve tomar como foco do tratamento a criança que estão esperando: 198 | Dispositivos do SUS Quando tem uma gestante, a gente precisa focar no tra- tamento da usuária. Não é porque ela ‘tá grávida que ela tem que ter que cuidar da saúde. Não é por conta do filho, é por causa dela (Vanessa). [O trabalho da equipe objetiva] que ela se conheça me- lhor, que ela conheça seus desejos, suas vontades, que ela faça o tratamento por ela e não pelos filhos; os filhos vêm depois. (...) tem que fazer porque você quer mudar, porque, daí, as consequências vêm depois. (...) depois, você pensa nos seus filhos (...) A consequência positiva por ela conseguir os filhos, por ela conseguir a família novamente é depois; tem que fazer por ela pri- meiro, porque ela quer. (Roberta) No caso das gestantes, por mais que a gente saiba da (...) necessidade de cuidar do bebê, mas não adianta a gente focar nele. (...) a gente tem que focar o cuidado com ela e, aí, por tabela, vai pro bebê. (...) Porque a maioria desses bebês, eles não são desejados. Muitas vezes elas tentam o aborto e tal. E se a gente for focar no bebê, o tratamento não dá certo, vai por água abaixo. (...) Então, tem que focar nelas porque esse bebê pra elas ainda não é um objeto desejado, diferentemente de uma mãe que o sonho dela é ser mãe. Então, ela vai fazer tudo por ele, pela criança. (Deise) Quando se defende que é preciso ter como foco das in- tervenções as usuárias e não os bebês que elas estão espe- rando, desnaturaliza-se, em alguma medida, a ligação entre as mulheres e a maternidade, visto que a compreensão das subjetividades das usuárias não fica reduzida à condição de mãe. Os relatos acima apontam, a nosso ver, para a neces- sidade de se contemplar durante as intervenções as usuárias gestantes como portadoras de subjetividades que transcendem à condição materna na qual se encontram. Acreditamos que esse movimento prioriza o respeito à plasticidade das subjetivi- dades das usuárias, não procurando enquadrá-las em padrões preconcebidos de feminilidade, sobretudo aqueles que dizem respeito ao exercício da maternidade. Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 199 A possibilidade de descolar da subjetividade feminina a imagem materna foi sendo construída ao longo do século XX. Neste período, o maior acesso das mulheres à educação for- mal e à formação profissional permitiu que elas ocupassem, gradativamente, o espaço público. Tendo em vista que se en- contravam sobrecarregadas de tarefas, pois continuavam res- ponsáveis pela criação das(os) filhas(os), a decisão de ser ou não ser mãe passou a ter uma dimensão reflexiva, ou seja, a ser pensada de acordo com as condições subjetivas, econômi- cas e sociais delas (Scavone, 2001). Neste contexto, o avanço das conquistas tecnológicas no campo da contracepção e da concepção contribuiu para a criação do dilema de ser ou não ser mãe, pois trouxe para as mulheres uma maior possibilidade de controle decisório. É im- portante frisar, entretanto, que a escolha quanto ao exercício da maternidade é um fenômeno marcado pelas desigualdades sociais, tendendo ela a ser mais reflexiva, quanto maior for o acesso à informação e ao conhecimento especializado pelas pessoas envolvidas (Scavone, 2001). Em síntese, as intervenções e posturas profissionais dis- cutidas neste tópico até o momento parecem se basear em uma desnaturalização da ligação entre as mulheres e a mater- nidade. Tivemos notícia durante a realização da pesquisa que tal desnaturalização é trabalhada institucionalmente no Espaço Lóri, sobretudo duranteas discussões de casos clínicos nas reuniões de equipe. Entretanto, o relato da intervenção seguin- te parece ser indicativo de que persiste, no Espaço Lóri, em alguma medida, um entendimento de que o exercício da ma- ternidade é uma vocação natural da mulher: “Eu digo muito a elas: ‘Renuncia por esse filho que ‘tá na tua barriga, renuncia o uso [de drogas] por esse filho que ‘tá saindo de você.’ Ela [a usuária] faz: ‘Eu sei, eu amo muito ele, mas é devastadora a droga’” (Elisa). No relato acima, o apelo da profissional para que a usuá- ria renuncie ao uso de drogas, por conta do filho, parece partir da pressuposição de que as mulheres têm uma capacidade na- 200 | Dispositivos do SUS tural de se sacrificar pelo bem da prole. Entretanto, a aparente verdade dessa pressuposição é posta em xeque, quando con- sideramos que a associação entre maternidade e sacrifício é socialmente construída. A conexão entre maternidade e sacrifício, ainda muito presente no senso comum atualmente, começou a ser operada no século XIX. Objetivava estimular a mulher a continuar as- sumindo o lugar de mãe que lhe foi reservado pela sociedade a partir do século XVIII. Os sacrifícios consistiam, sobretudo, na renúncia, por parte da mulher, da realização de quaisquer desejos que não estivessem relacionados à esfera de atuação privada em favor de uma “adequada” dedicação à maternidade (Nunes, 2000). No relato acima, o sacrifício, em um contexto histórico bem diferente daquele do século XIX, assume outro sentido: acreditamos que corresponderia à decisão da usuária de deixar de usar a droga em prol de um “correto” exercício da materni- dade, que requer o cuidado com a saúde do bebê. A associação entre maternidade e sacrifício que inferimos ter sido feita no relato acima diz respeito a uma concepção es- sencialista de feminino. Este é um aspecto importante de ser pontuado, visto que o processo de essencialização da diferen- ça sexual implica na elaboração de afirmações universalistas que fixam e aprisionam a feminilidade em moldes estruturados. A dedução de uma diferença sexual essencial, a partir de su- postas diferenças de gênero empíricas, transforma a descrição em prescrição. Consequentemente, a essência feminina pres- crita se volta contra aquelas mulheres que não condizem com a norma fixada como universal, sendo utilizada para justificar a discriminação delas e as julgar negativamente (Yannoulas, 1994). Diante do exposto, problematizamos que o uso de um discurso, por parte das/dos profissionais, que situe a mulher como naturalmente mãe, poderia funcionar durante as inter- venções como uma prescrição de um modelo materno ideal a ser seguido pelas usuárias, acabando por discriminar aquelas cujas experiências subjetivas nele não se enquadram. Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 201 O emprego dessa prescrição poderia repercutir em um alto nível de discriminação no Espaço Lóri, visto que são muitos os casos de usuárias não enquadradas no modelo hegemôni- co de maternidade, aspecto mencionado por nós em momento anterior deste texto. Esta informação só reforça a importância de se desenvolver no Espaço Lóri intervenções que pressupo- nham uma desnaturalização da ligação entre mulher e materni- dade, como algumas das que foram discutidas. O relato abaixo sinaliza ter ocorrido no Espaço Lóri inter- venções guiadas pela pressuposição de que a mulher tem a obrigação de cuidar de suas(eus) filhas(os). A intervenção em questão, portanto, parece partir da consideração de que liga- ção entre a mulher e a maternidade é natural, o que consiste em uma concepção essencialista de feminino. Tendo em vista que as concepções essencialistas de feminino se transformam em normas de caráter universal (Yannoulas, 1994), acredita- mos que a intervenção discutida pode acabar por assumir um caráter prescritivo, discriminando aquelas mulheres que não se enquadram na norma utilizada. (...) A sociedade impõe que ela [a usuária] fique com o filho, mas ela não quer ficar (...) Aí, ela começa a falar de um dever (...) de ficar com o filho, de cuidar desse filho, que é algo (...) imposto. Um caso de uma ex-usuária que estava aqui, mas que, na prática, quando ela [saía do Espaço Acolher], a família na verdade é que acabava cuidando [dos filhos dela]. (...) É como se a gente [a equipe da instituição], na verdade, estivesse colocan- do que ela [a usuária] tivesse que ter esse cuidado [com os filhos] (...) que lá fora [do Espaço Acolher], na verdade, ela não tem (...). (Ricardo) Considerando que o processo de essencialização da diferença sexual pode ocasionar repercussões negativas nas vidas das mulheres, evidenciamos a importância de as/os pro- fissionais estarem atentas(os) às concepções de feminino que norteiam a respectiva atuação no Espaço Lóri, visto que elas correm o risco de, no próprio formato essencializado, funcionar como espécies de prescrições a serviço da legitimação de um quadro social de desigualdade de gênero. 202 | Dispositivos do SUS 5.2. Concepções de feminino que norteiam as intervenções direcionadas ao cuidado com a aparência das usuárias Debateremos, a partir de agora, sobre as concepções de feminino que norteiam as posturas terapêuticas e as interven- ções voltadas ao cuidado com a aparência das usuárias. Um desses casos é o Grupo Beleza, que tem a finalidade de for- necer orientações sobre estética às usuárias: ensina a pintar as unhas, a arrumar os cabelos, a hidratar a pele, entre outras atividades. Vejamos dois recortes de entrevista em que se fala sobre como este grupo é conduzido pelas(os) profissionais: Elas adoram [o Grupo Beleza]. (...) Elas conseguem se expressar melhor; elas conseguem expressar o desejo; querer ficar melhor, mais bonita, mais atraente. (...) ‘tô dando toda orientação em relação à beleza, como le- vantar a autoestima dela (...) e a gente vai ver, como mu- lher, de ficar mais bonita, enfim. (...) por exemplo, uma hidratação na pele. Então, eu explico e uma aplica na outra. É superagradável. (Samanta) E a gente cuida de um modo geral, dela como um todo. (...) até a questão da estética mesmo, do Grupo Beleza. Pra se cuidarem, pra passarem creme facial, pra verem o quanto elas são bonitas, o quanto elas podem retomar sua vida. (...) Às vezes, é trabalho com a unha, pintam a unha, fazer alguns detalhes de desenho. Às ve- zes, é só a questão do cabelo mesmo, de lavar, hidratar, secar. Outras vezes é o rosto, hidratar. (Roberta) Outra intervenção que tem como um dos objetivos tra- balhar a estética corporal, segundo a profissional responsável por esta facilitação, é o grupo de atividade física, denominado Grupo Garotas em Ação. Indagamo-nos se os discursos profe- ridos durante as entrevistas sobre o Grupo Beleza e o Grupo Garotas em Ação, que são intervenções voltadas, em alguma medida, para o cuidado com a estética das usuárias, reiteram a ideia de que o cuidado com a beleza é uma prática natural- mente feminina. Para refletir sobre este aspecto, observemos os discursos abaixo: Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 203 (...) a minha intervenção [durante o Grupo Beleza] (...) é bem mais fácil nas que têm o feminino mais aflorado, nas que são mais vaidosas, nas que gostam de se cuidar, de cuidar das outras. É bem mais fácil, puxando o gancho da vaidade, da beleza. (Deise) [Fala sobre a própria intervenção no Grupo Garotas em Ação] É mais fácil pra mim trabalhar com as que têm esse feminino mais exacerbado (...) Esse cuidado com o corpo, (...) essa vaidade. Então, pra mim, isso é um gancho. Isso pra mim facilita porque, aí, eu vou entrar: “Oh, vamos ficar com o corpo bonito? ‘Tá toda gostosa!” (...) Mas a minha preocupação primeira não é essa, a minha preocupação realmenteé a saúde. Mas, aí, eu aproveito esse gancho porque as duas coisas an- dam juntas. (...) Aí, a maioria delas gosta. As que nor- malmente têm mais resistência a esse tipo de preocu- pação são as que são homossexuais, daquelas que são mais masculinizadas. Tipo aquelas que só usam roupas masculinas, cabelos supercurtinhos. (Deise) Nos relatos acima, percebemos que, para a profissional, o termo feminino está associado à vaidade e ao cuidado com o corpo, enquanto que aponta ser o masculino geralmente não marcado por estes aspectos. Mais uma vez nos encontramos diante de uma visão essencialista da diferença de gênero que, neste caso específico, naturaliza o cuidado com a beleza como uma prática feminina. A partir da leitura de Yannoulas (1994), já problema- tizamos que concepções naturalizadas de gênero podem se manifestar nas intervenções como prescrições de modelos de feminilidade, que acabariam por discriminar as usuárias que neles não se enquadram. Pensando nisso, observemos abaixo a mesma profissional discorrendo sobre uma intervenção du- rante o Grupo Beleza junto a uma usuária que não se identifica com a realização de práticas prescritas pelos padrões hegemô- nicos femininos de beleza, como pintar as unhas, maquiar-se, entre outras. [Fala sobre a postura de uma usuária durante o Grupo Beleza] Tinha uma usuária que ela era declarada homossexual (...) se posicionava como homem. (...) E ela não queria esse negócio de “Vamos fazer a unha”. (...) “Então, você pode 204 | Dispositivos do SUS cortar sua unha, deixar sua unha limpa. Não precisa co- locar esmalte (...)” “E o cabelo?” “Ah, não! Não vou fazer nada no cabelo, não”. Mas, a gente trabalhava: “Você pode cortar seu cabelo pra que ele fique bonito. Você pode pas- sar um creme, uma hidratação, lavar bem o cabelo pra que ele fique limpo, cheiroso, tratado”. Mas nessas que têm a questão do masculino mais... (...) era mais difícil. Apesar que, às vezes, terminava entrando, olhava, não sei o quê, ajudava uma ou outra, mas pra elas mesmas se colocarem nesse lugar de “Ah, faz aí minha unha. Vamos pensar numa maquiagem”. Maquiar, então, de jeito nenhum, isso era ofensa (...). (Deise) Interpretamos, a partir da leitura desse relato, que a pro- fissional não impõe um modelo “ideal” de feminilidade para a usuária durante a intervenção, segundo o qual a mulher teria um interesse natural em cuidar da própria beleza, gostando, necessariamente, de pintar as unhas, maquiar-se, por exem- plo. Em vez disso, a profissional busca propor à usuária a re- alização de outras atividades dentro do Grupo Beleza, com as quais tenha identificação. Neste caso, apesar de notarmos a existência de concepções naturalizadas de gênero permean- do esse relato – pois o cuidado com a beleza aparece nele como uma prática naturalmente feminina –, elas não parecem se manifestar na intervenção em questão como prescrições de modelos “ideais” de feminilidade, que acarretem discriminação das usuárias que neles não se enquadram. Pelo contrário, no exemplo acima, a trabalhadora refere tentar incluir estas usuá- rias, com o intuito de tornar a atividade atrativa. Segundo Butler (2010a), a noção de feminino é tão er- rática quanto a de mulher. Com esta afirmação, a autora está nos alertando, entre outros aspectos, para a existência de uma multiplicidade de modos de ser mulher e de se experienciar a feminilidade. Diante disso, podemos considerar que algumas mulheres vivenciam a subjetividade em moldes não condizen- tes com as prescrições comportamentais dos padrões femini- nos hegemônicos de beleza porque assim o desejam, o que denuncia não ser da ordem da natureza e sim da cultura a liga- ção entre feminino e beleza. Mulheres dependentes químicas - Marcia Gabriele Oscar de França | 205 O caráter cultural dessa ligação, a nosso ver, precisa ser levado em conta na elaboração e execução de intervenções destinadas ao cuidado com a aparência, no sentido de evitar o emprego de concepções de feminino naturalizadas, que ve- nham a assumir a função de prescrições universais de gênero, tendo em vista os efeitos discriminatórios que estas podem tra- zer às vidas das usuárias. Essa consideração nos leva a pontuar a importância de se procurar adequar as intervenções à multiplicidade de subje- tividades existentes no público da instituição, movimento que vislumbramos, por parte da trabalhadora, no último relato dis- cutido, ao tentar propor, dentro do Grupo Beleza, uma atividade com a qual a usuária se identificasse. Conforme afirma Moraes e Montenegro (2011), as cons- truções socioculturais de gênero se manifestam e atualizam nas práticas profissionais das instituições de saúde destinadas ao tratamento da dependência química. Neste sentido, vislum- bramos a valorização do cuidado com a aparência e a beleza das usuárias no Espaço Lóri, em parte como uma manifestação na atuação profissional das construções socioculturais hege- mônicas de gênero que associam o feminino à beleza. O recor- te de entrevista abaixo expressa essa valorização do cuidado com a aparência e a beleza das usuárias, a qual identificamos também nos relatos sobre o Grupo Beleza e o Grupo Garotas em Ação. Cabe à gente fazer com que elas voltem a valorizar es- sas coisas, a valorizar a pentear o cabelo, a cuidar da própria beleza, a passar um batom. Cabe à gente fazer elas verem isso. Lá fora, elas não ‘tavam vendo mesmo não. Então, a gente no dia a dia vai fazendo com que elas, de repente, elas se vê mulher, se vê bonita e faz tudo exageradamente. Aí, já quer tudo demais. Aí, como é que a gente vai fazer isso, também? Vai puxando um pouquinho o freio, tirando um pouquinho o foco: “Olha, não é só isso. Você também não tem que valorizar tam- bém demais seu corpo, sua beleza, seu cabelo. Vamos dosar isso aí. Seu foco aqui, seu tratamento aqui é a dro- ga. É a sua dependência química e não sua aparência física. De você estar bonita pra estar lá fora. Tem que ter as duas coisas”. (Regina) 206 | Dispositivos do SUS Esse é mais um relato que nos leva a pensar nos possí- veis efeitos que a manifestação das construções socioculturais de gênero na atuação profissional pode ocasionar na consti- tuição das subjetividades das usuárias. Dizemos isso porque, conforme a profissional coloca, diante do incentivo do cuidado com a beleza, algumas exageram na preocupação com a apa- rência, deixando de valorizar outros aspectos importantes do tratamento e, consequentemente, da reconstrução do projeto de vida. Butler (2010b) defende que devemos refletir sobre até que ponto os efeitos das normas de gênero na constituição das identidades maximizam as chances de se ter uma vida viável e minimizam as possibilidades de se ter uma vida insuportável. Segundo a autora, algumas vezes as normas funcionam nos dois sentidos ao mesmo tempo; outras vezes, elas funcionam de uma maneira específica para um grupo e em sentido inverso para outro grupo. Assim, advoga que a crítica acerca dos efeitos das nor- mas na constituição das identidades deve se situar no contexto das vidas tais como são vividas. Há de se distinguir entre “as normas e as convenções que permitem às pessoas respirar, desejar, amar e viver, e as normas e as convenções que res- tringem ou minam as condições da própria vida” (Butler, 2010b, p. 23). Essa compreensão sinaliza a necessidade de se refletir na atuação profissional do Espaço Lóri sobre como as normas de gênero que permeiam as intervenções estão atingindo cada usuária especificamente. Gostaríamos de considerar que o gênero não se faz so- zinho. Sempre se está fazendo com ou para o outro, ainda que o outro seja imaginário. O que se chama de gênero pode pare- cer um atributo, algo que se possui. Mas, os termos que confi- guram o gênero se encontram em uma sociabilidade que não tem um