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Construtivismo de Piaget a Ferreiro

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Prévia do material em texto

I ISBN 85 08 04475
A alfabetização inicial de crianças quase
sempre esteve associada à idéia de "prontidão"
para ler e escrever. O componente principal
desta idéia é o de que há pré-requisitos
perceptivo-motores - orientação es-pacial,
lateralidade, discriminação visual e auditiva,
coordenação motora, etc. - sem cujo domínio
não é possível aprender a ler e a escrever.
Inspiradas na epistemologia genética de
Piaget, Emilia Ferreiro e Ana Teberosky
questionam o processo tradicional de
alfabetizacão e mostram a existência de um
percurso comum feito por todas as crianças
para sua compreensão. Esta obra apresenta
ao leitor as contribuicões das duas autoras,
permitindo repensar o ensino da língua escrita
e fornecendo elementos para a elaboração
de uma nova proposta pedagógica.
Maria da Graça é mestra em Educação,
professora dos cursos de pós-graduação em
Psicopedagogia AO Instituto Sedes Sapientiae
e técnica em alfabetizacão na Prefeitura
Municipal da cidade de' São Paulo.
~cfe,~ck-~
Educação Pedagogia
{!)UÓYl& arcas.da-~
• Administração Antropologia· Artes
Ciências Comunicações Direito
Economia Filosofia. Geografia História
Lingüística. Literatura. Política· Psicologia
Sociologia,
RtNCiPloS
aria da Graça Azenha
CONSTRUTIVISMO
e Piaget a
milia Ferreiro
4
.•
35
A alfabetização
denava grupos de pesquisa. O seu primeiro livro traduzido
no Brasil, Psicogênese da língua escrita, representou uma
grande revolução conceitual nas referências teóricas com
que se tratava a alfabetização até então, iniciando a instau-
ração de um novo paradigma para a interpretação da forma
pela qual a criança aprende a ler e a escrever.
Ao lado da consistência teórica que tais investigações
exibiam, a participação freqüente da própria Emilia Ferreiro
em eventos de apresentação e difusão de suas concepções
trouxe uma outra dimensão à divulgação de suas idéias. O
carisma pessoal exibido pela investigadora tem como um
dos elementos que o explicam o caráter de inserção no real
testemunhado por ela. Nas pesquisas que coordenou existe
uma clara integração de objetivos científicos a um compro-
misso com a realidade social e educacional da América Latina.
Analisando essa realidade educacional, a Autora
demonstra que o fracasso nas sénies iniciais da vida escolar
atinge de modo perverso apenas os setores marginalizados
da população. Dificilmente a retenção -ou deserção escolar
faz parte da expectativa de uma criança de classe média
que ingressa na escola. Para outros segmentos sociais mar-
ginalizados, no entanto, os índices de fracasso chegam a
níveis alarmantes, constituindo-se num verdadeiro problema
social. Se fosse a única, essa já seria justificativa suficiente
para dar relevância a novas investigações que ajudassem a
descrever e explicar os processos pelos quais as crianças che-
gam a aprender a ler e escrever. No entanto, não é a única.
Também do ponto de vista teórico, as pesquisas de
Ferreiro & Teberosky trazem uma contribuição original.
Tomam como objeto de estudo um conteúdo ao qual Pia-
get não se dedicava - resgatam os pressupostos episternoló-
gicos centrais de sua teoria, para aplicá-l os à análise do
aprendizado da língua escrita.
Na contramão de outros estudos teóricos, o objetivo
de suas investigações não é a prescrição de novos métodos
para o ensino da leitura e da escrita.
Psicogênese da língua escrita
Os anos 80 assistiram, no Brasil e na América Latina,
, a um crescente interesse pelo tema da alfabetização inicial.
A constituição e o aprofundamento dos debates sobre este
tema específico podem ser testemunhados pelo grande
número de seminários, mesas-redondas; artigos e textos
publicados durante o período. A difusão rápida das idéias
de Emilia Ferreiro dirigiu grande parte da reflexão teórica
e da discussão sobre a alfabetização, não só entre pesquisa-
dores, mas também entre um grande número de professores
atingidos pela divulgação dos postulados desta pesquisadora.
Emilia Ferreiro é argentina de nascimento e psicopeda-
goga de formação. Doutorou-se pela Universidade de Gene-
bra, orientada por Jean Piaget, de quem posteriormente
tornou-sej colaboradora. Iniciou suas pesquisas empíricas
na Argentina, em trabalho conjunto com Ana Teberosky,
e os resultados foram publicados na obra Los sistemas de
escritura en el desarrollo deI nino, em 1979. Posteriormente,
transferiu-se para a Cidade do México, passando a dar aulas
no Instituto Politécnico Nacional - ao mesmo tempo coor-
I
I.
\
36
Muito menos a proposta de novas formas de classificar
dificuldades do aprendizado. Ao estudar a gênese psicoló-
gica da compreensão' da língua escrita na criança,' Ferreiro
desvenda a "caixa-preta" desta aprendizagem, demonstrando
como são os processos existentes nos sujeitos desta aquisição.
Isso porque, até que uma proposta empírica desta natureza
fosse feita, o' tema da aprendizagem da escrita era conside-
rado apenas uma técnica dependente dos métodos de ensino.
Coerente com a sua filiação epistemológica, Ferreiro
demonstra que a abordagem da alfabetização como ~uestão
meramente meto do lógica fora sustentada por teorias psico-
lógicas vinculadas ao associacionismoou empirismo. Ou
seja, avaliar que a melhor ou pior aprendizagem dá língua
escrita estaria em correspondência com melhores ou piores
métodos de ensino implica interpretar essa aprendizagem
como decorrente da apropriação de elementos externos fei-
tos por um sujeito passivo. Ora, isto nada mais é que apli-
car à linguagem escrita os pressupostos mais gerais do asso-
ciacionismo, que explicam a constituição da inteligência
como resultante da interação entre estímulos e respostas,
como já comentamos anteriormente.
Ao contrário desta tendência, as investigações de Fer-
reiro articulam-se para demonstrar a existência de mecanis-
mos do sujeito do conhecimento (sujeito epistêmico), que,
na interação com a linguagem escrita (objeto de conheci-
mento), explicam a emergência de formas idiossincráticas
de compreender-o objeto. Em outras palavras, as crianças
interpretam o ensino que recebem, transformando a escrita-'
convencional dos adultos. Sendo assim, produzem escritas
diferentes e estranhas. Essas transformaçõeSCIescritas por
Ferreiro são brilhantes exemplos dos esquemas de assimila-
ção piagetianos. O professor ensina, por exemplo, a pala-
vra G~ TO e alguns de seus alunos escrevem GO ou AO
ou GT. O que Ferreiro desvenda é a razão destas transfor-
mações e a lógica empregada pela criança, ou os processos
psicológicos~rõauzem tais condutas. A escrita produ-
37
zida é fruto da aplicação de esquemas de assimilação ao
objeto de aprendizagem (a escrita), formas utilizadas pelo
sujeito para interpretar e compreender o objeto.
Vale ainda acentuar que a consideração destas escritas
desviantes - como GO, AO, GT para GATO - é uma
forma nova de olhar para o desempenho escrito infantil.
Assim como fizera Piaget com as respostas erradas, torna-
das centrais na interpretação dos testes de Burt, também
Ferreiro & Teberosky interpretam os erros cometidos pela
criança em fases precoces de aquisição. Isso constitui uma
forma nova de olhar para a escrita infantil, muito diferente
daquela que longa tradição escolar nos ensinou. Qs erros
sistemáticos, regulares e recorrentes chamam a atenção das
pesquisadoras e levam-nas a perguntar se não seriam indí-
cios de uma certa forma de compreender a linguagem
escrita. Existiria uma lógica que os sustenta e que explica sua
regularidade 'e persistência? '
. As investigações empreendidas propõem respostas a
essas questões, partindo do pressuposto de que as crianças
adquirem o conhecimento da linguagem escrita porque, em
interação com este objeto, aplicam a ele esquemas sucessiva-
mente mais complexos, decorrentes do seu desenvolvimento
cognitivo. O desdobramento que se segue é o estabelecimento
de diferentes momentos de aquisição,articulados sistemati-
camente, constituindo um modelo de aquisição em níveis,
fases ou períodos. Estes sucedem-se em graus crescentes de
complexidade e aproximação da escrita convencional.
A interpretação do acesso ao conhecimento da escrita
acentua a existência de um processo evolutivo ao longo do
desenvolvimento infantil, cuja gênese é preciso descrever e
explicar.
Em nota preliminar à primeira edição da Psicogênese
da língua escrita, as autoras declaram a perspectiva sob a
qual a investigação se realizará:
[",] Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da
leitura, entendida como questionamento a respeito da natu-
reza, função e valor desse objeto cultural que é a escrita, ini-
'.38
ela-se muito antes do que a escola imagina, transcorrendo
por insuspeitados caminhos. Que, além dos métodos, dos
manuais, dos recursos didáticos, existe um sujeito que busca
a aquisiRão de conhecimento, q;:;e se ~õe problêmas e
trata de solucioná-Ios, segundo sua própria metodologia ...
Insistiremos sobre o que "e segue: trata-se de um sujeito
que procura adquirir conhecimento, e não si~plesmente de
umsujei o disP"õstoou mal disposto ã adquirir u-má)écnica
particúlar. Um sujeito que a psicologia da lecto-escrita
esqueceu [...] (Ferreiro & Teberosky, 1986, p. 11) ~ -
Esses breves comentários iniciais são suficientes para
demonstrar a ruptura que os trabalhos agora examinados
representam em relação ao conhecimento científico ante-
riormente acumulado sobre o tema.
Veremos, a seguir, a forma como foram coletados os
dados que sustentam a interpretação teórica ..
I,
I
Coleta de dados: princípios e metodologia
•
Toda investigação científica pressupõe alguns pontos
de partida. O recurso aos fatos, isto é, a busca empreen-
dida pelo pesquisador de evidências da realidade, é prece-
dido de algumas alternativas para a resolução de proble-
mas. Não são os fatos "puros" que falam ao pesquisador.
A seleção dos eventos na realidade, a forma de olhá-los,
ou os "recortes" do real são decisões tomadas pelo cientista
tendo como ponto de partida o compromisso com uma con-
cepção teórica sobre o sujeito da aprendizagem, assim
como sobre o objeto a conhecer. Não existe "~_l!.tr~lida-
de" científica, no sentido de que o olhar do pesquisador
está informado de concepções prévias que permitem a
observação de alguns fatos em detrimento de outros. Algo
só se torna observável, pois, em função de informações pré-
vias. Sobretudo na pesquisa psicológica, as evidências são
fragmentárias, nem sempre contínuas, e a observação está
fi
\
, .
39
restrita às condutas que apenas indicam processos mentais
não observáveis diretamente. Fazer a conexão entre esses
fatos, e dar coerência e articulação a eles, exige uma cons-
trução de caráter teórico por parte do pesquisador.
As publicações de Ferreiro refletem em muitos momen-
tos essas questões referentes à natureza do trabalho cientí-
fico em psicologia e às questões metodológicas que o cer-
cam. Dessa forma, a pesquisadora procura deixar claro o
conjunto de postulados que informa o seu olhar sobre os
dados. Tendo claro que o edifício teórico piagetiano acumu-
lava poucas pesquisas sobre a linguagem, reservando a esta
um papel marginal na constituição das competências cogni-
tivas, Ferreiro busca na Psicolingüística as ferramentas dis-
poníveis para enfrentar seus objetvos.
A partir da década de 60, a contribuição desta ciência
passa a incorporar mudanças importantes na forma de com-
»reender a aquisição da língua oral. Os estudos anteriores
a este períolo focalizavam predominantemente a aquisição
do léxico - classificado segundo as categorias da linguagem
adulta (verbos, substantivos, adjetivos, etc.) -, sem, no
entanto, explicar ou descrever a aquisição das regras sintáti-
cas. O modelo associacionista de interpretação da aquisição
da linguagem não dera conta de explicar de que' forma a
criança chega a combinar palavras em frases aceitáveis. .
Enfatizando a contribuição de Noam Chomsky, Fer-
reiro indica que a ênfase do trabalho deste pesquisador no
estudo da aquisição das regras sintáticas da linguagem
demonstrou a existência de uma distinção entre a competên-
cia e o desempenho exibidos pelos sujeitos, Do ponto de
vista de Ferreiro, esta distinção também se encontra na
base da teoria piagetiana da inteligência (cf. Ferreiro &
Teberosky, 1986).
Tal distinção acentua que a existência de um conjunto
de conhecimentos sobre um domínio particular, inconsciente
para o próprio sujeito, não pode ser confundida como que
este mesmo sujeito é capaz de fazer numa situação particular.
,.
\
41
, ,
40
li
';
o fato, por exemplo, de uma criança não ser capaz
de repetir oralmente palavras conhecidas da língua oral
não pode ser interpretado como uma incapacidade para
compreender e produzir distinções no uso da língua materna.
Ora, itens desse tipo estão presentes em grande parte dos
testes para verificar a existência dos pré-requisitos para a
alfabetização.
Ao ingressar na série onde começa a ocorrer o ensino
sistemático das letras, a criança já detém uma grande com-
petência lingüística que não é considerada. Essa ação equi-
vocada da escola tem origem em dois desvios. O primeiro
deles é tratar a aquisição da escrita como se esta fosse idên-
tica à apropriação da fala. O segundo é que o modelo de
aprendizagem da língua oral que a maioria dos métodos
de alfabetização reproduz sustenta-se num conhecimento
já ultrapassado. Esses conhecimentos, anteriores ao traba-
lho de Chomsky, são assim sintetizados por Emilia Ferreiro:
[o.,] a progressão clássica que consiste em começar
pelas vogais, seguidas da combinação de consoantes labiais
com vogais, e a partir daí chegar à formação das primeiras
palavras por duplicação dessas sílabas, e, quando se trata
de orações, começar pelas orações declarativas simples, é
uma série que reproduz bastante bem a série de aquisições
da língua oral, tal como ela se apresenta vista "do lado de
fora" (isto é, vista desde as condutas observáveis, e não)
desde o processo que engendra essas condutas observáveis).
Implicitamente, julgava-se ser necessário passar por essas
mesmas etapas quando se trata de aprender a língua escrita,
cômo se essa aprendizagem fosse uma aprendizagem da
fala (Ferreiro e Teberosky, 1985, p. 24).'
Como conseqüência, quando o modelo de aquisição
da língua oral é utilizado para a escrita, o critério "falar
bem" ou ter "boa articulação" é considerado importante
para aprender a escrever; Reaprender a produzir sons da
fala, como condição necessária para escrever, baseia-se,
assim, em dois-falsos pressupostos. Oprimeiro deles é que
uma criança aos 6 ou 7 anos nãdé capaz de distinguir_
<;
r
-
,
fonemas de sua língua, hipótese negada pelo gosto que as
crianças desta idade têm pelos jogos verbais. A segunda falá-
cia é a concepção da escrita como uma forma precisa de
transcrição da fala. Nenhuma escrita, examinada nas rela-
ções que tem com o código oral, realiza a transcrição foné-
tica da língua oral.
Na verdade, Ferreiro apóia-se na concepção de que a
linguagem atua como uma representação, ao invés de ser
apenas a transcrição gráfica dos sons falados.
O mundo verbal,' incluindo fala e escrita, é ao mesmo
tempo um sistema com relações internas entre ambos os
códigos (fala e escrita), onde não há estrita correspondên-
cia entre ambos. Além disso, a escrita é também um sis-
tema que se relaciona com o real.
Do ponto de vista interno, isto é, no contexto lingüís-
tico, as relações entre os dois códigos não são homogêneas,
porque a escrita hão é o espelho da fala e as relações entre
letras e sons são muito complexas. Não há uma regra única
que defina esta relação.
Do ponto de vista da relação entre mundo verbal e rea-
lidade, a escrita é um sistema simbólico de representação
da realidade. Sendo assim, ela substitui e indica algo, per-
mitindo que como seu uso seja possível operar sobre a rea-
lidade através da palavra.
. As escritas alfabéticas, como é o caso do português,
podem ser caracterizadas como representações que se
baseiam nas diferenças entre significantes (palavras escritas
ou faladas). Óutras escritas, como as -ideogrÍifica (basea-~-' ..•. ~
das em ideogramas), privilegiam a distinção dos signi.ficados.
Apesar dessa distinção, nenhum sistema é inteiramente
puro e a escrita alfabética em português também se utiliza
de recursos ideográficos, principalmente na ortografia.
Um dos primeiros problemas enfrentados pela criança,
para desvendar a escrita, é compreender o que as marcas so- j
bre o papel representa!I1-ecomo se realiza esta representação.
"
I.'
r:
Partindo então desses princípios teóricos, uma concep-
ção de ling~ag~m escrita como um sistema de representação
e uma 'c'oncepção de sujeito da aprendizàgerri'(sujeito epis-
têmico) baseado na teoria piagetiirÍ}, Ferreiro faz uma sín-
tese geradora de suas hipóteses.
Para observar e coletar os dados das crianças, seria
necessário fazer uma distinção 1-' irnordial: entre a técnica
de ensino e os processos de aprendizagem. As condutaSêSê:ri-
tas de um aprendiz não são o meio resultado daquilo que
o professor ensina. Existe um processo de construção deste
,conhecimento que nem sempre coincide com o que está sendo
ensinado. Como flagrar esses processos de construção?
, Os testes e formas tradicionais de medir o conheci-
mento das crianças, os chamados "testes de prontidão",
não, poderiam ser utilizados. Seus objetivos são muito dife-
rentes, já que pretendem avaliar as capacidades relaciona-
das à percepção e à motricidade. Algumas habilidades espe-
cíficas ligadas à percepção (como a discriminação visual
entre formas, a discriminação de sons, a coordenação entre
a visão e os movimentos da rnão, etc.) e outras ligadas à
motricidade (coordenação motora, esquema corporal, orien-
tação espacial, etc.) medem aspectos não conceituais da
escrita. A aplicação destes instrumentos pode indicar a pre-
sença maior ou menor de capacidades importantes para a
realização gráfica de traços sobre o papel.
Reproduzir letras sobre uma folha em branco é tam-
bém parte da tarefa de escrever, mas não é este o seu aspecto
mais importante. Essa realização relaciona-se com QS aspec-
tos figurativos, externos da escrita, por fazer parte de seu
, resultado material e indica a maior ou menor habilidade
- da criança para desenhar letras. '
Tradicionalmente, a presença dessa habilidade é consi-
derada um indício de que a criança estaria pronta para ini-
ciar a aprendizagem da escrita. É a famosa maturação ou
prontidão para a alfabetização. Mas o desenho das letras não
abrange todos os problemas cognitivos a serem enfrentados.
Resta a questão fundamental: compreender a nat,:reza da
escrita e sua organização.
, Ora, o resultado da aplicação destes testes não .traz
indicações do grau de' compreensão da criança quanto ~o.
aspecto interior da' escrita, isto é, quanto ao seu caráter'
simbólico. Se a escrita representa parte da linguagem fala-
da, ela o faz através de uma convenção que' é. arbitrada
socialmente. Esse é um obstáculo importante a ser supe- I
rado e não é tarefa simples, do ponto de vista intelectual.
Nenhuma característica da escrita tem semelhança com à ':
objeto representado. As letras, que para um iniciante são./ f'
apenas traços go papel, 'simbolizam sons da fala e compreen- '.
der este conteúdo implica ser capaz de estabelecer relações
simbólicas com as coisas, isto é, relações que são mediadas
por um objeto que as substitui ou representa.
Uma vez compreendido este aspecto, há um outro obs-
. táculo a superar: compreender de que forma s~ dá a organi-
zação da escrita.
São exatamente estes os aspectos conceituais ou cons-
trutivos, domínio que a psicogênese da escrita pretendia
desvendar.
Seria necessário, então, criar uma situação experimen-
tal nova, que não implicasse apenas. tarefas de cópia. Isto
porque a reprodução' de um modelo gráfico presente ou
memorizado não coloca problemas a serem resolvidos e não
cria oportunidades para que se observem as concepções infan-
tis sobre a escrita. Para flagr:ar as eventuais hipóteses da
criança, elaboradas para compreender as funções e a organi-
zação do sistema, seria necessário observar a conduta espon-
tânea no registro gráfico.
Uma outra suposição prévia, que funciona como hipó-v ,
tese auxiliar da pesquisa de Ferreiro, é a de que a exposição
da criança a atos de leitura e escrita, existentes no ambiente
social em que vive, cria oportunidades para que ela reflita
sobre esse objeto. Assim, antes mesmo do ensino sistemá-
tico e escolar, seria bastante provável que as crianças já
43
4S
tivessem algum conhecimento sobre este objeto. É evidente
que este conhecimento prévio à escola exige uma condição
crucial: a existência de oportunidades de interação com a
, escrita em situações informais, próprias dos ambientes com
alto grau de letramento.
Assim, num contexto onde a escrita e a leitura fazem
,parte das práticas eotidianas, a criança tem a oportunidade
de observar adultos utilizando a leitura de jornais, bulas,
instruções, guias PJia consulta e busca de informações espe-
cíficas ou gerais; o uso da escrita para confecção de listas,
preenchimento de cheques e documentos, pequenas comuni-
cações e atos de leitura dirigidos a ela (ouvir histórias lidas).
A participação nessas atividades ou a observação de como
'os adultos interagem com a escrita e a leitura gera oportu-
nidades para que a criança reflita sobre o .seu significado
para os adultos. ,
Uma'conseqüência do uso deste pressuposto é a de que
se pode prever a existência de diferenças entre as crianças,
relacionadas ao grau de exposição à escrita, presentes nos
ambientes em que vivem. Sabemos que existem fortes dife-
renças ent~s grupos sociais, de uma determinadàpopula-
ção, e a menor presença e valOrIzação da-esCr'ita e de outros
alfabetizados costuma ser uma das vertentes presente em
grupos sociais margInãT~dos. Seria necessário, então, com-
parar o desempenho de crianças de níveis sociais diferentes.
Voltando agora à situação experimental, para superar
as restrições já apontadas nos testes tradicionais de matura-
ção para a aprendizagem, as tarefas eram realizadas -ern
entrevistas individuais, feitas com as crianças em vários
momentos ao longo de um ano. O "método da indagação"
utilizado fora inspirádo no método clínico de Piaget.
Uma das tarefas de -leitura implicava a classificação
de cartões, separando-os em dois grupos: os que se podem
e os que não se podem ler. Alguns continham números iso-
lados, mais de um número, números e letras num 'mesmo
conjunto, letras isoladas ou várias lct:ra's juntas. Quanto.,
44
»
"I,
I,
t
~.
11'
',I
• ~ 1
ao tipo de letras, foram utilizados cartões escritos com letra
cursiva, assim como letra script ou de imprensa. O objetivo
era pesquisar a existência de critérios particulares da' crian-
ça, utilizados para aceitar ou rejeitar algo como adequado
para ler. Uma outra situação de leitura consistia na apresen-
tação de pranchas com figuras acompanhadas de textos a
serem interpretados. "
Nas situações de escrita, a tarefa da criança era escre-
ver palavras ditadas 'pelo experimentador. O conteúdo deve-
ria fazer parte do repertório de palavras 'conhecidas pela
criança, às quais, portanto, ela fosse capa? de atribuir sig-
nificado. Evitou-se o emprego de palavras constantes dos
mariuais de alfabetização para que a criança não reprodu-
zisse conteúdos previamente memorizados. Escrever pala-
vras ainda não ensinadas representava um problema a ser
resolvido pela criança. Também foram introduzidas situa-
ções de conflito ou potencialmente conflitivas, e a interação
entre o sujeito e o experimentador pretendia aclarar o racio-
cínio usado pela criança parachegar à solução gráfica.
A série de palavras propostas para a escrita mantinha
entre si uma relação semântica, fazendo parte de um mesmo
conjunto de significados ou um mesmo tema, como, por
exemplo, nomes de animais, brinquedos, objetos escolares,
etc. Após cada palavra a criança deveria ler a própria pro-
dução, indicando onde a leitura estava sendo processada.
Durante a primeira investigação realizada na Argentina,
foram acompanhadas 30 crianças de classe social baixa. A '
escolha.justificava-se por estar concentrado neste setor socio-
econômico o maior índice de fracasso nas séries iniciais e a
maior produção dos chamados transtornos ou dificuldades
de aprendizagem. Filhos de pais moradores das regiões peri-
féricas da cidade, com ocupações não qualificadas ou vivendo
de trabalho temporário, metade das crianças freqüentava a '
escola pela primeira vez, não sendo egressas da pré-escola.
Como na Argentina a alfabetização é iniciada aos 6 anos,
a idade oscilava entre 5 e 6 anos, ao final do ano utilizado
I
I((
46 ~ ,
para as olíservações. Estas ocorreram durante o primeiro
'mês de aulas, no meio e no final do ano escolar.
- Os resultados iniciais revelaram que mesmo crianças
de classe social baixa não iniciam a escolaridade com nível
,,', : zero de conhecimento da escrita. Já aos 6 anos, a maioria
das crianças possui conhecimentos, cuja gênese deveria ser
procurada em idades mais precoces.
Um estudo do tipo transversal foi utilizado para bus-
car essas observações com crianças entre 4 e 6 anos, escola-
rizadas, de classe social baixa e média (filhos de pais com
ocupação liberal). Os alunos da classe média eram consti-
tuídos de crianças que freqüentavam a escola pública e a
particular.
Os resultados das pesquisas, tornados disponíveis pela
publicação da Psicogênese da lingua escrita, referem-se a
um total de 108 sujeitos e, tanto no estudo longitudinal
como no transversal, foram aplicados o mesmo método e
as mesmas tarefas. .
Analisaremos os principais resultados das pesquisas,
reorganizando a apresentação feita por Ferreiro & Tebe-
rosky. Iniciando com os critérios infantis para a interpreta-
ção do texto escrito, passaremos, em seguida, aos níveis
de aquisição da escrita. Consideramos que esta ordem de
apresentação facilita a compreensão do leitor. Também,
ao contrário do que ocorrera no original, os dados referen-
tes aos níveis de menor conhecimento antecederão os níveis
de maior conhecimento, facilitando a compreensão dos
avanços qualitativos empreendidos pela criança ao longo
do percurso de aproximação da escrita convencional.
Critérios de legibilidade
As observações que resumiremos na seqüência são o
resultado da aplicação da tarefa de classificação de cartões
com informações escritas. O conjunto oferecido a cada
.l
criança continha de 15 a 20 cartões, dos quais constavam
inclusive palavras longas, sílabas e algumas que fazem parte
do repertório constante dos manuais utilizados na escrita,
A interpretação dos resultados 'levou Ferreiro & Tebe-
rosky a concluir que, mesmo antes de ler, as crianças têm
idéias precisas sobre critérios que distinguem textos que ser-
vem para ler dos outros que não permitem a leitura. Estes
critérios são muito diferentes dos utilizados pelo adulto.
Seria previsível, num adulto que se submetesse à mesma
tarefa, o agrupamento dos cartões em dois subgrupos, dis-
tinguindo os que registram números dos outros contendo
letras.
47
Hipótese da quantidade mínima de letras
No entanto, o critério mais freqüentemente apresen-
tado na solução das crianças foi a distinção entre cartões
com poucos caracteres (sejam estes caracteres letras ou
números) sob a justificativa de que "com poucas letras não
se pode ler", Na maioria das vezes, este critério quantita-
tivo utilizado tinha como limite mínimo a presença de três
letras. Cartões com um número menor de caracteres "não
servem para ler" e algumas crianças explicitam com clareza
suas idéias, dizendo, por exemplo, a respeito de grafismos
menores: não servem para ler porque ','são muito curti-
nhas", "tem uma palavra ou duas", ou ainda "onde há
umas pouquinhas não é para ler; aqui tem mais pouqui-
nhas letras, tem duas (cartões AS e SO)". Para os cartões
legíveis, dizem que "tem muitas, como quatro", tem que
ter "muitas coisas, um montão", ou serve para ler "por-
que tem uns quatro números" (cartão escrito PELO) (Fer-
reiro & Teberosky, 1985, p. 41-3),
A regularidade deste mínimo em torno de três letras
foi posteriormente reiterada em outras pesquisas com crian-
ças de língua espanhola (no México, na Espanha), francesa,
portuguesa (no Brasil) e italiana,
48
A maneira como as crianças contam os caracteres tam-
bém é importante. Em geral, quando a letra é a de imprensa
maiúscula, não há ambigüidade na distinção entre uma letra
e outra e a contagem é precisa. O mesmo não ocorre com
a letra manuscrita. Neste caso, fica difícil, para a criança
que não conhece os traços distintivos entre uma letra e
outra, efetuar a contagem precisa das unidades que.com-
põem um conjunto.
Às vezes, o "11\.." cursivo é considerado como for-
mado por três caracteres, o "-P " contado como se fosse
dois ou três caracteres diferentes e uma sílaba como o
"~" é contada quase sempre como sendo composta por
três ou quatro caracteres, apenas para usar alguns exem-
plos. A esse critério infantil Ferreiro dá o nome de hipótese
da quantidade mínima de caracteres. É óbvio que, para
uma criança que desconhece o valor simbólico das letras,
não seria possível a emergência de distinções qualitativas
semelhantes àquelas feitas pelo adulto. O que surpreende
é que, para lidar com um objeto obscuro e resistente à com-
preensão, a criança construa uma hipótese deste tipo, exem-
plar de como se constitui um esquema de assimilação. A
aplicação deste esquema ao universo escrito permite prever
a recusa da criança em atribuir significado aos artigos, defi-
nidos ou indefinidos, preposições e outras palavras com'
um número menor de letras, costumeiramente presentes
em um texto escrito. Isso é um conteúdo importante a ser
. considerado na prática pedagógica, assunto que discutire-
mos no capítulo final, principalmente se considerarmos a
natureza da organização das cartilhas que apóiam as práti-
cas de iniciação da leitura e da escrita. Grande parte delas
oferece lições iniciais destinadas à aprendizagem das vogais
isoladas, seguida da combinação dessas letras em conjunto
de duas letras. Pode-se inferir que dificilmente crianças
em níveis iniciais de aquisição conseguirão interpretar este
material como sendo adequado à leitura, considerando os
critérios de legibilidade construídos por elas.
A natureza do traçado que se oferece à criança nos
primeiros materiais de leitura também deve ser conside-
rada. A leitura de textos em letra cursiva será potencial-
mente um obstáculo à interpretação, pela ambigüidade
para a distinção do número de caracteres constituintes dos
textos.
Embora a maioria das crianças da amostra tenha evi-
denciado o uso deste critério para distinguir o que é "legí-
vel" num texto, aparecem crianças com condutas que podem
ser consideradas "o nível zero" da tarefa. Algumas, mais
freqüentemente de classe social baixa, usam critérios aleató-
rios de separação de cartões, e a troca de lugar entre os sub-
grupos torna legível o que antes não o era.(ou o contrário).
Hipótese da variedade de caracteres
No extremo oposto, isto é, mais freqüentemente em
crianças de classe média, há a evidência da construção de
critérios qualitativos para definir a legibilidade. Isso não
significa que tais critérios não apareçam em crianças de
classe social baixa, mas que o predomínio é maior nas
outras. Esse critério qualitativo também não se refere à
compreensão do valor simbólico das letras. Raras vezes apa-
receram condutas que aceitavam cartões para ler porque
continham letrase nomes cuja forma escrita era conhecida,
e, quando isto ocorreu, aqui sim, foi exclusivo de criança
de classe média.
Isso indica como as práticas letradas do ambiente
social podem fazer avançar a reflexão da criança sobre a
escrita antes do início da escolarização.
O critério qualitativo a que se refere a pesquisa é a
análise feita pelas crianças das semelhanças entre as letras
que constituem um conjunto. Se as letras são iguais, mesmo
atendendo a um mínimo de três, elas também não servem
para ler. Cabe ainda aqui uma ressalva: este mínimo de
três letras foi aquele que predominou entre as crianças pes-
49
50
quisadas. Houve também crianças que apresentaram como
exigência mínima a presença de duas letras e outras, ainda;
cuja exigência superava os três c' vacteres.
Os cartões MMMMMM, AAAAAA e MANTEIGA,
por exemplo, ou com a mesma série em letra cursiva, tive-
ram recusa dos dois primeiros, com as justificativas de que
"não se pode, digo-lhe que são as mesmas", "essas são
para ler, com as outras letras", "porque tem tudo a mesma
coisa", "porque não é tudo juntinho, também tem outras
letras" ou "porque diz o tempo todo 'a"'(Ferreiro & Tebe-
rosky, 1985, p. 43-4). Já o cartão com a palavra MAN-
TEIGA é aceito "porque não tem tantas letras iguais", ou
"não sei o que diz, mas é de ler" (ibidem, p. 44).
As respostas das crianças indicam claramente a neces-
sidade de que as letras constantes de um texto devam exibir
variedade. A esse critério, Ferreiro categorizou como hipó-
tese de variedade de caracteres. Também é inevitável pen-
sarmos aqui na interação deste esquema assimilativo com
os manuais de iniciação à leitura, tornando difícil poster-
gar os comentários a respeito das implicações pedagógicas
para o capítulo final. Se bem que possamos adiar as infe-
rências decorrentes para a escolha dos melhores materiais
para início da alfabetização, é difícil deixar de fazer obser-
vações sobre o conteúdo que se segue às primeiras lições
com as vogais e suas combinações. Nas cartilhas mais utili-
zadas pela rede pública, por exemplo, as lições que se
seguem às que já nos referimos apresentam um grande
número de palavras compostas por sílabas repetidas. Isso
se justifica quando a escrita é analisada do ponto de vista
do adulto. Como deixar de pensar que a aprendizagem
pode ser facilitada com palavras simples, onde uma sílaba
já dominada aparece-mais de uma vez?
Olhado do ponto de vista da criança, em vez de facili-
tar, esse recurso gera um obstáculo. Palavras como papa,
bala, babá, coco, bebe, : ão freqüentes nas cartilhas brasilei-
~I
'1
ras, podem dificultar a interpretação destes textos como
legíveis, exatamente porque têm uma baixa variedade de
letras.
Superar ou ampliar este esquema de assimilação exigi-
ria a presença de outros conteúdos para a leitura, o que é
impedido pela prática, de longa tradição, de que primeiro
é necessário dominar certas palavras para depois seguir
em frente.
Voltemos agora aos resultados da pesquisa: além da
construção de critérios de legibilidade, outros problemas
conceituais simultâneos precisam ser resolvidos. Ao adulto,
a escrita parece homogênea porque temos critérios apura-
dos para enxergar o que é relevante à leitura. Para uma
criança iniciante, ao contrário, tudo parece igualmente
importante, até que haja a construção de diferenciações
entre os traços gráficos. Uma produção gráfica pode con-
ter grafismos de muitos tipos, possíveis de serem interpreta-
dos a partir da construção de diferenciações entre as letras,
os números, os sinais de pontuação, os desenhos, além do
nome das letras, para falar de apenas parte dos elementos
da convenção presentes no texto escrito. A observação
durante as tarefas permitiu definir alguns estágios específi-
cos da emergência destas distinções.
i' Diferenciação de elementos gráficos
/
O conjunto das observações que se seguem foi resul-
tado da análise dos cartões anteriormente comentados e
de interação do experimentador com a criança, folheando
um livro de histórias. Sobre os desenhos e os textos, a per-
gunta "O que é isto?", aplicada a ambos, dotava o experi-
mentador do nome atribuído pela criança ao segmento
apontado. Este passava, então, a ser utilizado para se refe-
rir aos diferentes contextos gráficos (icônico ou escrito). O
51
,--
5352
reconhecimento do seu próprio nome impresso e a escrita
deste conteúdo com letras móveis ou com lápis e papel tam-
bém foram situações utilizadas para a coleta de dados.
A relação entre letras e números
Ferreiro postula a existência de três momentos distin-
tos na construção da diferenciação entre letras e números.
No primeiro momento, haveria uma aparente confusão
entre ambos. Aparente, porque letras e números são colo-
cados juntos por oposição ao desenho. Compartilham, por-
tanto, o atributo de não serem grafismos figurativos, e
podem, deste ponto de vista, estar juntos.
A existência deste estágio indica que as crianças estão
resolvendo outro problema conceitual prévio onde não é
possível ainda a coordenação de diferenciações apenas des-
tes caracteres gráficos, uma vez que se consolida a distin-
ção entre o icônico e a notação alfabética.
Nos dados coletados por Ferreiro, não existem evidên-
cias de que a criança utilize apenas a imagem para a leitura,
ainda que indique a ambos como necessários para ler. Neste
caso, a criança sabe que se lê nas letras, mas não abre mão
da imagem para inferir o significado do texto, utilizando
ambos como universos complementares.
Saber que se lê nas letras, no entanto, não implica que
esteja colocada a distinção entre letras e números. Sobre-
tudo quanto a este aspecto, as crianças de classe baixa estão
em forte inferioridade em relação às de classe média. É
mais freqüente nas primeiras que letras sejam também cha-
madas de números, dependendo do contexto onde se encon-
tram. Quando isoladas, tendem a ser interpretadas como
números, o que é indicador de que a criança tem aguçada
compreensão das diferenças destes dois sistemas de registro.
A escrita de números não se baseia no sistema alfabético
usado para o registro de palavras. Ao contrário, a leitura
destes é muito mais ideográfica. A conduta contrária, no
entanto, não ocorre: as crianças não chamam os números
de letras. Além de poder indicar a existência de uma ante-
rioridade psicogenética dos números como forma gráfica,
existe o fato de que o universo de possibilidades para a
escrita dos números é muito mais reduzido do que o das
letras. Conseqüentemente, pode ser mais rápida a apropria-
ção das distinções próprias dos números.
Num segundo momento, a diferenciação letras/núme-
ros seria a construção da distinção entre as funções de
ambos: letras servem para ler e números para contar.
O terceiro momento pode ocorrer quando a criança,
tendo já superado a indistinção inicial, volta a ter conflitos
na diferenciação, por lidar com adultos que "lêem pala-
vras" e "lêem números", assim como "contam" elemen-
tos de um conjunto e "contam" também histórias.
Algumas crianças usam estratégias inusitadas para
fazer esta distinção. Empregam a palavra número para
designar o conjunto de letras e reservam para algumas em
particular a designação de letra (aquelas que compõem o
seu próprio nome). Essa distinção é peculiar às crianças
de classe média, indicando um comportamento decorrente
de certas práticas culturais onde a criança assiste freqüente-
mente à escrita de seu próprio nome e de outras pessoas
conhecidas. A inexistência desta prática para as crianças
de classe social baixa, ou, pelo menos, a sua menor freqüên-
cia, traz fortes contrastes na capacidade de diferenciar
números e letras, quando são comparados os dois grupos.
O mesmo se pode dizer do grau de conhecimento das
letras uma a uma e da capacidade para nomeá-Ias. É pre-
ciso enfatizar que este é um conhecimento típico da trans-
missão cultural.Não é um conteúdo que possa ser elabo-
rado através de níveis de conceitualização próprios da
criança, já que as letras e seus nomes são fruto de um conhe-
cimento que é arbitrado socialmente.
jil,
S4
Também aqui a disparidade entre crianças de classe
média e classe baixa é marcante. Quanto ao reconhecimento
de letras e à capacidade de nomeá-Ias, Ferreiro constata a
existência de níveis gradativos de aproximação com o conhe-
cimento socialmente válido.'
o conhecimento das letras
o nível mais elementar desta aproximação é composto
por condutas que demonstram o conhecimento de uma ou
duas letras, principalmente as iniciais do seu próprio nome,
sem atribuir nomes às letras. Dessa forma, uma letra é
reconhecida pelo seu possuidor, isto é, pela pertinência ao
nome de alguém conhecido. As crianças costumam referir-
se a elas como índices destes nomes: "o CA da Carolina",
P é "de papai", M é "de mamãe", A é "de Atílio", etc.
(Ferreiro & Teberosky, 1985, p. 50). _
, O próximo nível na evolução deste conhecimento
refere-se às crianças que reconhecem e nomeiam de maneira
estável as vogais, identificando as consoantes, às quais atri-
buem o valor da sílaba inicial do nome. Assim, por exem-
plo, Carlos (6 anos) diz que o C é o "ca" de Carlos; Gus-
tavo (6 anos) diz que o G é o "gu" de Gustavo; Marina
(5 anos) diz que o M é o "ma" de Marina. Em relação ao
desempenho do nível anterior, há um sutil aumento da com-
, plexidade do conhecimento: além de reconhecerem as letras
pelo seu possuidor, não as nomeiam, mas atribuem a elas
o valor sonoro da sílaba inicial da palavra. Convém enfati-
zar, ainda, que todas as crianças com estas condutas perten-
ciam à classe média.
O próximo passo no desenvolvimento é constituído
pelo domínio dos nomes corretos de todas as vogais e de
algumas consoantes. Laura, de 5 anos, demonstra este nível
de aquisição: "S é se de Silvia e de Sarita", o "esse" (cf.
Ferreiro & Teberosky, 1985, p. 51).
SS
O último nível de aquisiçao é o representado pelas
crianças que nomeiam todas as letras do alfabeto e são
capazes, em algumas delas, de indicar o valor sonoro além
do nome.
Um dado interessante a ser sublinhado nesta descrição
da aquisição do conhecimento das letras é que na progres-
são genética os nomes das letras precedem o conhecimento
do valor sonoro. Outra observação da pesquisa, reiterada
pela prática pedagógica de muitas professoras atentas aos
processos de aprendizagem das crianças, é a ativa explora-
ção infantil feita sobre as letras do alfabeto. Quando este
é objeto de trabalho nas salas de aula, as observações das
crianças demonstram que fazem interessantes assimilações
entre as letras, indicando, por exemplo, que o W é o M
invertido, que o A é o V cortado, que o I virado fica igual,
etc. Estes testemunhos das crianças são evidências de uma
extensa exploração ativa sobre as letras.
Como faz em outros momentos da interpretação dos
dados empíricos, Ferreiro recorre aqui à história da escrita
para indicar que a aparente confusão inicial entre letras e
números, demonstrada pelas crianças em momentos preco-
ces da gênese, não deveria ser encarada como tão estranha.
Certas diferenciações, hoje bem definidas na escrita alfabé-
tica que utilizamos, são na verdade aquisições tardias na
história do sistema. O uso de letras do alfabeto no lugar
de números era uma prática comum entre os romanos, fato
testemunhado, por exemplo, na datação de monumentos.
Na tradição grega e hebraica, também, as letras representa-
vam os números, e a diferenciação entre os dois usos do
mesmo sinal era feita pelo acréscimo de um acento (o ápex)
para indicar que a letra passava a ser um número.
Certas aquisições, das quais esta é apenas um exemplo,
embora pareçam óbvias, custaram à humanidade um grande
esforço intelectual, e o aparecimento tardio deste processo
de diferenciação na ontogênese não deve, pois, ser encarado
como tão estranho.
i
I, ,I
I, I
56
Letras e sinais de pontuação
Por último, para concluir a forma como se originam
essas primeiras diferenciações feitas pela criança entre os
muitos elementos gráficos que fazem parte da escrita, fare-
mos breves comentários sobre a distinção entre as letras e
os sinais de pontuação e a aprendizagem da orientação para
a leitura. Esses dois pontos merecem comentários entre os
muitos dados aqui não reproduzidos (do trabalho original),
porque, para o adulto, parecem ser conteúdos da aprendiza-
gem óbvia e simples. Na verdade, o que temos pouca possi-
bilidade de compreender ou recuperar, porque vemos a
escrita com o olhar do alfabetizado, é a impossibilidade ini-
cial da criança, estrangeira ao sistema, definir, como o
adulto o faz, essas distinções sutis. Para um estrangeiro da
notação alfabética tudo parece ser igualmente relevante.
Tanto os sinais de pontuação como a orientação da lei-
tura são conteúdos específicos do aspecto arbitrário da con-
venção escrita, que, portanto, não podem ser deduzidos pelo
raciocínio infantil. São, pois, conhecimentos socialmente
transmitidos, dependentes da existência de uma longa prá-
tica com textos escritos e com informantes desse sistema.
Pode-se inferir a partir destes comentários que o ensino esco-
lar não será o mesmo para as crianças de classe baixa e de
classe média, considerando-se as diferenças nas práticas pré-
vias à escolarização, no que se refere à escrita e à leitura ..
Em relação aos sinais de pontuação, passa-se de uma
inicial indiferenciação destes (que são nomeados com os
mesmos termos empregados para números e letras) para a
distinção do ponto, dois-pontos, hífen e reticências. Os
outros sinais continuam a ser assimilados às letras.
O estágio seguinte consolida esta distinção, sem que a
criança nomeie os sinais diferenciados, assimilando alguns
às letras, pelas semelhanças gráficas. O (;) é assimilado ao
i e o (?) ao 2, 5 ou S.
O próximo passo leva à distinção de todos, com exceção
do (;) que continua assimilado ao i. Quanto aos demais, em-
bora as crianças não os nomeiem, sabem que não são letras
nem números, indicando que "não é letra, é outra coisa".
No estágio final, há diferenciação nítida dos sinais de
pontuação não mais assimilados às letras ou números,
nomeados agora pela criança como "sinais" ou "marcas".
Orientação espacial da leitura
A respeito da orientação espacial para a leitura, é pre-
ciso ressaltar que este é um dos aspectos mais estritamente
arbitrários do sistema. Saber que se lê da esquerda para a
direita e de cima para baixo é um conteúdo cuja aprendiza-
gem só pode ser transmitida pela observação de um alfabe-
tizado que leia indicando ou que explique isto às crianças.
Os programas preparatórios para a aprendizagem da
leitura e da escrita insistem na importância da aprendizagem
de conceitos de orientação espacial prévios, como: acima,
abaixo, esquerda, direita. A intenção é que isso se aplique,
posteriormente, para o uso adequado da orientação durante
o ato da leitura e da escrita. No entanto, o ensino destes
conceitos, fora de situações da escrita e da leitura, não leva
à "transferência" desta aprendizagem ou à sua aplicação
frente a um texto escrito. A aprendizagem deste conteúdo
específico exige mais do que a exploração de textos escritos:
é necessário que a criança tenha uma ampla experiência e
observações de leitores de textos. Assistir a atos de leitura,
dirigidos ou não a ela, acompanhados de gestos indicado-
res de onde a leitura está sendo processada, é ocasião e
fonte para assimilar essa informação.
De toda forma, quando a criança ainda não se apro-
priou da orientação convencional, existem soluções interes-
santes que procuram garantir a continuidade do ato de lei-
tura, evitando os saltos e movimentos bruscos dos olhos. Fer-
57
58
reiro observa, principalmente em crianças menores (4 anos),
a leitura em ziguezague, começando na primeira linha, da
esquerda paraa direita, continuando na segunda, da direita
para a esquerda. Há alternância entre uma linha e outra
de forma a manter a continuidade do olhar. Também em
relação a páginas isto costuma acontecer. Se a primeira foi
lida de cima para baixo, a seguinte será de baixo para cima.
O recurso à história da escrita torna esse dado, obser-
vado nas crianças, mais curioso - esta orientação de lei-
tura já fora utilizada na Grécia antiga. Recebia o nome de
"bustrafedon"; por lembrar a maneira de sulcar a terra
com o arado puxado por bois.
Sintetizando as observações decorrentes desses dados
Ferreiro acentua que as crianças, muito antes de serem capa-
zes de ler, são capazes de aplicar ao texto escrito critérios
formais específicos, muitos dos quais não poderiam decor-
rer do ensino do adulto. São dependentes deste apenas aque-
les ligados à parte mais arbitrária da convenção escrita.
Sobretudo a exigência de um mínimo de letras para se
efetuar o ato de leitura, a variedade de caracteres dentro
deste mínimo e a conversão da letra isolada em número são
conteúdos que não poderiam ter sido ensinados por um alfa-
betizado, constituindo-se em evidências de uma elaboração
própria das crianças, por aplicação de seus esquemas inter-
pretativos a um objeto que oferece resistência à compreensão.
Encarar tais fatos como "confusão" é deixar de ver
que existe uma sistematização infantil que ocorre em bases
muito diferentes daquela feita pelo adulto. No capítulo
seguinte, veremos a forma como esta sistematização ocorre
durante as atividades produtivas de escrita.
5
A evolução da criança
Para fazer as explorações sobre a escrita infantil, Fer-
reiro & Teberosky criaram diferentes situações de produção.
As tarefas incluíam a escrita do próprio nome da criança,
do nome de algum amigo ou membro da família, a escrita
de palavras muito freqüentes no início da alfabetização, o
contraste de situações de desenhar e escrever e a escrita de
outras palavras ainda desconhecidas para a criança, incluindo
também uma frase. Em geral, a inclusão deste último item
costuma chamar muito a atenção, causando estranheza,
sobretudo aos professores. Por que pedir às crianças para
escreverem algo que ainda não aprenderam?
Ferreiro justifica a proposta pela razão de que a escrita
espontânea, produzida antes do ensino sistemático, traz os
mais claros indicadores das explorações infantis para com-
preender a natureza do processo.
Quando uma criança escreve tal como acredita que
poderia ou deveria escrever certo conjunto de palavras, está
nos oferecendo um valiosíssimo documento que necessita
ser interpretado para poder ser avaliado [...] Aprender a lê·las
_ isto é, a interpretá- Ias - é um lonqo aprendizado que
requer uma atitude teórica definida (Ferreiro, 1985, p.16·7).
Uma criança, mesmo antes de entrar para a escola,
costuma rabiscar utilizando lápis e papel, se tiver oportuni-
60
dade para isso. Essas primeiras escritas nunca foram adequ
damente consideradas, sendo vistas apenas como rabisco
ou garatujas sem importância. Mas, se partirmos da teoria
piagetiana, sabemos que as crianças fazem explorações ati-
vas sobre os objetos de conhecimento. Ao escreverem uma
palavra ainda não aprendida, colocarão em jogo as concep-
ções que fazem sobre a escrita, em busca de uma resposta
para a solução do problema de registrar uma palavra de sig-
nificado conhecido, mas de forma gráfica ainda obscura.
Nem sempre a colaboração da criança é imediata,
sobretudo quando existe experiência escolar prévia com o
ensino da escrita. Isso porque uma das áreas mais ritualiza-
das da aprendizagem é ex~tamente a produção escrita. O
mesmo não ocorre com a leitura. Os adultos aceitam com
naturalidade a curiosidade infantil a respeito da interpreta-
ção da escrita no ambiente urbano, na publicidade, em rótu-
los, embalagens, etc. Há uma aceitação tranqüila das explo-
rações de um pré-escolar ao tentar decifrar escritas que lhe
chamem a atenção. No entanto, o adulto costuma agir de
forma diferente quando a criança tenta escrever. Há fre-
qüentes tentativas de controle sobre a produção infantil.
Ao contrário do que ocorre na leitura, a escrita da criança
é avaliada como errada quando não corresponde à forma
socialmente válida. O controle para evitar o erro é delibe-
rado e se apóia na crença de que este se consolida se não
é evitado. Mesmo durante a aprendizagem sistemática, a
criança só escreve a partir da cópia de um modelo e qual-
quer desvio do convencional é imediatamente apontado e
corrigido. A idéia de que a aprendizagem da escrita só se
inicia a partir da autorização do adulto, e o controle explí-
cito do que deve ser escrito, é suficientemente forte para
que a criança tenha a percepção de que para escrever deve
fazê-lo corretamente, a partir do ensino escolar. Daí a criança
se recusar a escrever antes de ter sido ensinada, reação tanto
nt n a quanto maior for seu grau de conhecimento
III ração com as práticas escolares.
uando esta recusa ocorreu durante a coleta de dados,
I II Inça era encorajada a Iazê-lo, sendo convidada a escre-
I "c mo lhe pareça melhor" ou "do jeito que você pen-
i". índice das crianças que se negaram a escrever foi
1IIIIIt baixo, mas, mesmo assim, também interpretado em
1111 s da evolução global. Os resultados que apresentamos
r rem-se a crianças de 4 a 6 anos, de classe média e baixa.
Antes de analisarmos os dados, é fundamental chamar
atenção do leitor mais uma vez para os conteúdos que
essenciais na interpretação de Ferreiro. Tradicional-
mente, a escrita infantil fora olhada apenas nos seus aspec-
tos figurativos, isto é, no seu aspecto gráfico, que tem a
ver com a qualidade do traço gráfico, com a distribuição
das formas, com a orientação da escrita ou a orientação
10 traçado das letras (inversões ou rotações).
O conteúdo que Ferreiro & Teberosky procuram
demonstrar é aquele referente ao que a criança quis repre-
sentar e às estratégias utilizadas para fazer diferenciações
e representações. Estas constituem os aspectos construtivos
da escrita, que sofrem uma evolução regular, já constata-
dos como semelhantes em crianças de diferentes línguas,
ambientes culturais e situações de produção.
Do ponto de vista dos aspectos construtivos desta evo-
lução, Ferreiro constata a existência de cinco níveis sucessi-
vos, que serão apresentados na seqüência.
61
Hipótese pré-silábica
Os dois primeiros níveis guardam entre si uma seme-
lhança fundamental. As crianças nestes dois estágios iniciais
de evolução não registram traços no papel com a intenção
62
de realizar o registro sonoro do que foi proposto para a
escrita. Na verdade, estas tentativas infantis de representa-
ção através da grafia demonstram que a criança não che-
gou ainda a compreender a relação entre o registro gráfico
e o aspecto sonoro da fala. Não são as diferenças ou seme-
lhanças sonoras dos significantes o objeto do registro.
Na verdade, estes dois níveis são mais facilmente defi-
nidos pelos seus aspectos de oposição à fase crucial da
aprendizagem da escrita, representada pelas conquistas do
nível 3, onde há a primeira tentativa rudimentar de estabele-
cer relação entre marcas gráficas e sons.
Neste nível, as crianças usarão o registro gráfico como
notação do conteúdo lingüístico, pela tentativa de realizar
a representação dos aspectos sonoros da linguagem. Este
momento é categorizado por Ferreiro como dominado pela
concepção silábica da língua escrita.
Os dois momentos que o antecedem são, então, catego- ; .
rizados como pré-silábicos para marcar a existência de está-
gios prévios onde a criança não' demonstra a intenção deli-
berada de registrar a pauta sonora da linguagem. A nomea-
ção destes estágios prévios à hipótese silábica como pré-silá-
bicos tem dado origem a muitos equívocos. O nome tem
sido assimilado pelos professores como se indicasse incapa-
cidade da criança em dominaras sílabas escritas das pala-
vras. De fato, nestes níveis precoces da aquisição, a frag-
mentação da palavra escrita em unidades menores é um con-
teúdo inassimilável. Mas não será a emergência da hipótese
silábica que representará a condição para que esta assimila-
ção seja possibilitada.
Portanto, o uso da hipótese pré-silábica indica apenas
a existência de uma concepção da criança quanto ao cará-
ter da representação realizado pela escrita, ainda distante
da indicação do evento sonoro da língua falada.
É possível inferir, a partir da análise dos dados apre-
sentados por Ferreiro, que a escrita assume neste momento
63
um caráter referencial onde a criança procura registrar
alguns atributos dos objetos de que se fala. Não é exata-
mente o nome aquilo que a escrita registrará, mas certas
propriedades do referente da palavra. Entre estes atributos,
o tamanho é freqüentemente privilegiado.
Os exemplos que apresentaremos para ilustrar as con-
cepções de cada nível de escrita são produção de crianças
brasileiras e, portanto, não reproduzem as ilustrações
publicadas na Psicogênese da lingua escrita. No entanto,
o critério de escolha dos exemplos procurou respeitar rigo-
rosamente as características semelhantes às produzidas
por crianças argentinas, de forma a ilustrar os mesmos
eventos.
Nível 1 - Escrita indiferenciada
Uma das principais características da escrita perten-
cente a este nível é a baixa diferenciação existente entre a
grafia de uma palavra e outra. Os traços são bastante seme-
lhantes entre si e, dependendo do tipo de escrita com a
qual a criança teve maior interação, os grafismos podem
ser constituídos de traços descontínuos (cujo modelo é o
traçado da letra de imprensa) ou com maior continuidade
(inspirados pelo traçado em letra cursiva).
Dada a semelhança que as escritas têm quando compa-
radas entre si, o que as diferencia é apenas a intenção do
produtor. A interpretação, portanto, só pode ser feita pelo
próprio autor. Ainda assim, a leitura que a criança faz
após a escrita de cada palavra é muito instável e, algum
tempo depois, se o próprio produtor voltar a fazer nova
interpretação, poderá atribuir aos grafismos novos signifi-
cados. A figura 1 é exemplo de escritas deste nível e per-
tence a criança de classe social baixa, freqüentando uma
pré-escola pública.
6564
De uma forma não sistemática, uma estratégia utilizada
pelas crianças para proceder a alguma diferenciação entre
os grafismos é reproduzir o tamanho do objeto referido,
fazendo corresponder a ele um traço maior ou menor, na
dependência do referente da palavra a ser escrita. Suzy, criança
de 4 anos, demonstra essa conduta na escrita da série de pala-
vras propostas a ela. Ao ser proposta a escrita da palavra
elefante, olha para o entrevistador e comenta: "Tem que ser
bem grande". Produz um grafismo sensivelmente maior que
os outros da série. A escrita de passarinho é também visivel-
mente menor que as outras. A conduta escrita de Suzy evi-
dencia a tentativa de refletir, na escrita, algum atributo do
objeto e não o seu nome. Não é o contexto lingüístico, isto
é, as características da palavra, o alvo do registro. A palavra
passarinho, por exemplo, da série a ser escrita, é a mais
extensa se considerarmos a emissão sonora. No entanto, o
grafismo correspondente a ela é o menor, indicando que a
criança está atenta ao referente da linguagem, ao objeto que
a palavra nomeia. É o que Ferreiro acentua, ao comentar
dados semelhantes:
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C\I t::O)~ li'> (1J::l
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~ ~~E ~QiO
. . ....~N(Y)"<tL{)<01'-
2
,c:r:
A escrita é uma escrita de nomes, mas os portadores
desses nomes têm, além disso, outras propriedades que a
escrita poderia refletir, já que a escrita do nome não é ainda
a escrita de uma determinada forma sonora (1985, p. 184).
. Algumas crianças usam de uma estratégia que parece
demonstrar essa dificuldade de interpretar a própria produ-
ção escrita, que objetivamente não distingue um conteúdo
de outro. A necessidade de encontrar apoio que garanta o
significado no momento da leitura as faz parear desenho e
escrita. O desenho é uma clara estratégia de remissão ao
conteúdo registrado.
Os dados constantes da Psicogênese da lingua escrita
também exemplificam esta conduta, indicando a existência
de alguma indecisão momentânea das crianças para definir
5-
_.3
(Y) "<t
N
I'-
<O
L{)
66
ou classificar os grafismos produzidos (desenho ou escrita).
Ferreiro interpreta essa indecisão como decorrente das difi-
culdades de compreender a função da escrita, fato que leva
algumas crianças a responder à proposta de escrita com
um desenho, classificado por elas como escrita. Parecem
estar indecisas quanto ao que a escrita representa: registro
do significado ou registro de palavras?
Não é o que acontece com a produção de determina-
das crianças, que distinguem perfeitamente desenho de
escrita, colocando-os um ao lado do outro, como uma clara
tentativa de garantir significação à escrita.
A partir da análise dessa produção é possível indicar
alguns pontos. Um dos aspectos da convenção escrita já se
evidencia: a ordem linear. Neste exemplo, fica clara também
a necessidade de um grande número de caracteres, ainda que
a exigência da variedade entre eles não seja muito acentuada.
Neste nível, a característica mais importante é a maneira
como as crianças procedem à interpretação: a leitura é glo-
bal, não se fazendo análise entre as partes componentes e
o todo, inexistindo, portanto, tentativas de fragmentação
do texto escrito durante o ato de leitura.
I
:'
l1
~
67
exigências a serem cumpridas acaba por criar a necessidade
de. gerar totalidades novas pela alteração da ordem linear
das letras. Em outras palavras, utilizando-se de um mesmo
repertório, a ordem das letras deve variar de uma escrita
para outra, de forma a garantir a criação de um conjunto
que se diferencie do outro.
Figura 2
Bárbara (5 anos)
2
~~~A~A
escrita do próprio nome
i E A E' ~.~~~~~~a\ L..- 3. classe
~ \ ~ ~ ~ Ã~nança foi na escola
Ft~~\~~\-
Nível 2 - Diferenciação da escrita
I·;
A característica principal das escritas categorizadas
como pertencentes a este nível é a tentativa sistemática de
criar diferenciações entre os grafismos produzidos. A neces-
sidade de diferenciar a intenção do produtor é objetivada
pela criação de totalidades gráficas distintas.
A hipótese da quantidade mínima de caracteres que
deve compor uma escrita e a necessidade de variá-Ios conti-
nuam como exigências presentes. No entanto, estas exigên-
cias são agora acrescidas da intenção de objetivar as dife-
renças do significado das palavras. Quando a disponibili-
dade de letras conhecidas é pequena, a confluência dessas
'. 3
I
4
5
üustração gentilmente cedida por "Regina Felloo.
A escrita de Bá;bara, constante da figura i, demons-
tra como a criação de totalidades diversas com o uso de
apenas seis letras, conhecidas, pode levá-Ia a explorar ao
máximo as combinações possíveis, o que significa uma
notável aquisição cognitiva.
68 69
Um exemplo dessa antecipação de uma combinatória
pode ser mais facilmente examinado pela seqüência escrita
por Larissa (figura 3), criança de 5 anos, de classe média.
A combinatória só não é completa porque Larissa não
tem recursos para comparar escritas que não estejam próxi-
mas do ponto de vista espacial. Entre o segundo e o quarto
registro, usa exaustivamente o recurso de alternância de
letras e, ainda que não esgote todas as possibilidades, rea-
liza uma impressionante exploração com uso de um número
de formas gráficas extremamente limitado (apenas três: O,
H e B). .
Analisando as característicasmais exuberantes desta
estratégia, constantes nos dados por ela coletados, Ferreiro
comenta:
Figura 3
09/09/92
Criança de 5 anos
] escrita do próprio nome
~<:) \Jl ] boneca
OQ H ] cabeça
\-\O 8 ] fantoche
o~ ~ ]joguinho
~ \\O ] peixe
O0\-\ ]dedo
I\O~~J9iZ
Parece-nos que casos como estes são particularmente
instrutivos para apreciar a eventual contribuição do desenvol-
vimento da escrita ao processo cognitivo. Tratando de resol-
ver os problemas que a escrita Ihes apresenta, as crianças
enfrentam, necessariamente, problemas gerais de classifica-
ção e ordenação. Descobrir que duas ordens diferentes dos
mesmos elementos possam dar lugar a duas totalidades dite-
rentes é uma descoberta que terá enormes conseqüências
para o desenvolvimento cognitivo nos mais variados domínios
em que se exerça a atividade de pensar (1985, p. 190).
É também freqüente que neste nível a criança, por
influência cultural, tenha se apropriado de algumas formas
fixas e estáveis, particularmente a escrita de seu próprio
nome. Este conteúdo, como já apontamos em outros
momentos; é mais freqüente em crianças de classe média
pelas maiores oportunidades de interagir com atos de leitura
e de escrita criados pelo contato mais intenso com leitores.
O efeito desta aquisição pode ter resultados inversos.
O primeiro pode ser um bloqueio momentâneo ou profundo
em realizar a escrita de outras palavras, sustentado pela
idéia de que se aprende a escrever copiando. O segundo, o
efeito positivo, é a capacidade de prever outras escritas, ser-
vindo estas primeiras palavras como modelos para produ-
ções futuras.
fantoche
70 71
Figura 4 Figura 5
1~ entrevista 03/09/92 31/08/92
Criança de 6 anos, 8 meses e 25 dias Criança de 5 anos
T \-\t,\ ,",O Cf.:\ R LOS] escrita do próprio nome
I I
escrita do próprio nome BAO UP ] mecânico~ \\Q\
I I
picareta OuLS ] oficinal..y(,\\
I R i UI' L .Ç 1 telhadoenxada
R \)\) ~ UR p51 ] paredeI Irastelo
f\A~~\ • P iS 1 motorBII Iarado
P RSjEF]canc
o
Tb~~\' ~ I".~ ~I o Üserra ~ cs OPi ~fF ] I", ~~~\ ~V z iE~ ~~ ~-oI I ~ ~pá ~ ~
c c
I P toiRPJocanOéP,eto ~EA fV\'pBr É!i iI IA enxada é do papai.
r( 1"1
"
=
72
As figuras 4 e 5 são outros exemplos de escritas deste
nível e, ainda que todas as produções agrupadas neste con-
junto evidenciem progressos gráficos e construtivos em rela-
ção ao nível precedente, compartilham com ele a qualidade
da interpretação feita pelo próprio produtor. Assim sendo,
a escrita continua não analisável em partes, sendo conside-
rada como uma totalidade única, não fragmentável, o que
leva a criança a interpretá-Ia globalmente.
Nível 3 - Hipótese silábica
I
~
J
I:
I1
Este nível de aquisição é caracterizado pela emergência
de um elemento crucial, ausente nos níveis anteriores: a crian-
ça inicia a tentativa de estabelecer relações entre o contexto
sonoro da linguagem e o contexto gráfico do registro. A consi-
deração dos aspectos sonoros da linguagem representa um divi-
sor de águas no processo evolutivo. A estratégia utilizada pela
criança é atribuir a cada letra ou marca escrita o registro de
uma sílaba falada. É este fato que constitui a hipótese silábica.
O saldo qualitativo representado por esta estratégia leva
a criança à superação global entre a forma escrita e a expres-
são oral, fazendo com que, pela primeira vez, se trabalhe com
a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala.
Um outro equívoco de interpretação deste construto teó-
rico, que com freqüência tem ocorrido entre os professores, é a
assimilação de que só se possa identificar a emergência da hi-
pótese silábica quando a criança demonstre conhecer e empre-
gar o valor sonoro convencional das letras. O emprego de letras
sem a consideração de seu valor sonoro convencional ou a
qualidade da grafia não é condição para identificação do
emprego da hipótese silábica. O fato crucial que evidencia a
sua utilização pela criança é atribuição de um valor silábico
a cada marca produzida como parte de uma totalidade regis-
trada. Seja esta marca letra, pseudoletra, número, letra com
valor sonoro convencional ou não, a fragmentação do texto
escrito para fazer corresponder um segmento oral a um seg-
mento escrito é o indicador da concepção silábica de escrita.
Figura 6
2~ entrevista 17/09/92
Criança de 6 anos, 8 meses e 28 dias
c 1\ I ~ ) ().o V E] escrita do\\" 'v ,\ ( 1\ ""' próprio nome
VAD~
I I I I
ma ri nhei ro
OFí
I I I
gi gan te
A 5Hz
I 11
LQvN\G
I
barco
Uz..L
I I I
pe xe
I feT
mar
(RLT-:Z:ÜV
I I
O barco era de jornal.
73
cw
'"%
j
74
'I
No exemplo da figura 6, Henrique, de 6 anos e 8 meses,
escreve marinheiro, gigante, navio e peixe fazendo corres-
ponder a cada sílaba oral uma das letras escritas. No
entanto, não utiliza as letras com o valor sonoro convencio-
nal. Sua escrita tem a deliberada intenção de registrar o
aspecto sonoro da fala, e a cada segmento emitido, oral-
mente, o texto é fragmentado para registrá-lo.
VADE - ma-ri-nhei-ro
OFT - gi-gan-te
ASHZ - na-vi-o (sem interpretação da última letra)
UZL - pe-i-xe
É interessante observar que, apesar da emergência
deste novo esquema assimilativo, a exigência já está pre-
sente nos níveis anteriores de aquisição - a variedade de
caracteres e a exigência de um mínimo de letras continuam
também presentes. Isso cria situações extremamente confli-
tivas para a criança, já que, pelo uso da hipótese silábica,
as palavras peixe, barco e mar deveriam corresponder a
duas marcas para peixe e barco e apenas uma para mar.
Conseqüentemente, a escrita silábica destas palavras levaria
à criação de um registro gráfico com um número de grafias
abaixo do mínimo de três letras exigido por Henrique para
que algo possa ser lido.
Eis aqui, claramente exemplificado, o conflito cogni-
tivo gerado por esquemas de assimilação contraditórios. A
escrita de palavras dissílabas ou monossílabas costuma ser
particularmente perturbadora para a criança que ingressa
no emprego da concepção silábica da escrita. Em razão
deste desequilíbrio, e porque a contradição não pode ainda
ser superada, localmente, apenas na escrita das palavras
dissílabas e do monossílabo Henrique abre mão da hipótese
silábica para atender à exigência da quantidade mínima de
letras. Este é um exemplo de como contradições entre dois
75
esquemas de assimilação podem engendrar mecanismos de
ampliação da estrutura cognitiva por perturbações decorren-
tes de fatores endógenos ou de soluções de compromisso
momentâneo que evitem acomodações bruscas.
O conflito cognitivo gerado, e a consciência desta con-
tradição que a criança enfrenta quando realiza a leitura
de sua produção, costumeiramente produz um visível des-
conforto. A sobra de letras na escrita e a necessidade fre-
qüente de ter que se utilizar de um número menor de letras
do que aqueles definidos pela exigência de um número
mínimo de caracteres podem suscitar tentativas de com-
promisso entre os esquemas contraditórios. É freqüente a
criança utilizar-se de letras não interpretadas (no interior
da palavra), cuja função é apenas a de preencher a quanti-
dade considerada como mínima para a escrita. Uma outra
forma momentânea de negociar o conflito é deixar letras
sobrantes.
No entanto, essas contradições endógenas, isto é,
decorrentes das contradições entre esquemas interpretati-
vos, acabam por levar a criança a abrir mão da quantidade
mínima de letras, fazendo predominar apenas a lógica da
hipótese silábica. É o que ocorre com Henrique na entre-
vista seguinte, ocorrida apenas quatro dias depois. A aná-
lise da figura 7 evidencia uma escrita onde há uma quase
exclusiva monitoria da hipótese silábica sobre o registro
escrito. Henrique escreve burro e gato utilizando-se de
duas letras para cada palavra. No entanto, a escrita de rã
torna-se ainda mais conflitiva. Usar umaúnica letra é pro-
duzir uma escrita muito aversiva aos olhos de Henrique.
Além de prolongar a emissão sonora para registrá-Ia em
duas letras, a criança ainda acrescenta duas (provavelmente
para compensar a ansiedade gerada pela escrita com uma
única letra, como exigiria a hipótese silábica).
76
77
Figura 8
4~ entrevista 01/10/92
Criança de 6 anos, 9 meses e 12 dias
t\Etv~I&VE
[ I
escrita do próprio nome
M~' {@-If--t-F
I I I I
mai o ne se
~~ç'-?~
co ca co Ia
M~ I
I I IN'Git-M
I I
nes cau
fl\lE\\
I I I I
lei te mo ça
Figura 7
3~ entrevista 21/09/92
Criança de 6 anos, 9 meses e 2 dias
~\ E, N~; 6} IJ e:,
I I
escrita do próprio nome
Qj G J A s
I I I I I
hi po pó ta mo
Xo/z
I I I
ja ca réVM-r
I I I
ca cho rroT2
I I
bu rro
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I I
ga to
zV~)(
I I ~
;;'t~C~'FEDT::zr'A~
I I I I I I \ \ I I I I I I
O hi po pó ta mo es tá de bo ca a ber ta
ODD
I I
tod dy
f ~G NQ ó
I I I I I
A co ca co Ia é
E8f\
I I I
gos to sa
78
A figura 8 mostra a produção de Henrique aproxima-
damente dez dias depois, onde, durante a interpretação, o
excesso de letras é riscado. Permanece ainda o conflituoso
mínimo de duas letras, demonstrado pela escrita de Nescau
e Toddy. No entanto, a escrita silábica da criança é, desta
vez, realizada, em muitos pontos, pelo uso de letras empre-
gadas com valor sonoro preciso. Isso só foi possível porque
a proposta a ser escrita incluía o nome de produtos cujo
consumo freqüente, assim como a interação com a publici-
dade veiculada por anúncios impressos e pela mídia eletrô-
nica, permitiu a apropriação da forma aproximada da escrita
convencional. Outros exemplos constantes nas figuras de 9
a 11 demonstram o uso das letras em seus valores sonoros
convencionais. A criança emprega-as adequadamente,
sobretudo as vogais, para registrar parte do valor fonético
da sílaba oral. É curioso observar, em algumas produções,
como a letra H é utilizada para expressar o som "ca" ou
"ga". Este é um dado recorrente nas crianças em fase de
aquisição e pode ser interpretado como a assimilação do
nome da letra, AGA, ao registro fonético do "ga".
Ao acirramento do conflito entre hipótese silábica e
hipótese da quantidade mínima de caracteres, de caráter
endógeno, há ainda o acréscimo de outra fonte potencial
do conflito. A escrita convencional com a qual a criança
lida em seu meio será interpretada por ela em termos da
hipótese silábica. Sobretudo quando lê o próprio riome,
quase sempre parte do repertório de formas fixas destas
crianças, há muita dificuldade de ajustar a leitura. Sobram
letras que a criança não risca porque sabe que são compo-
nentes da escrita convencional da qual já se apropriou.
Desta vez, portanto, o conflito é gerado pela aplicação de
uma exigência interna do sujeito (suas concepções sobre o
objeto) a uma realidade exterior a ele (a escrita convencio-
nal da qual se apropriou). Também a existência de discor-
dância da leitura feita pela criança e pelo adulto, onde há
sempre letras a mais ou a menos, empurra a criança a reali-
zar uma nova acomodação. Ela descobre a necessidade de
fazer uma análise que vá "mais além" da hipótese silábica.
79
Figura 9
1~ entrevista
Criança de 6 anos
escrita do próprio nome
A HOAo-O
<c:> <c:> <.:»
papa ga ia
lOAO
I I I I
di no ssau ro
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Figura 11A r> I Ilustração gentilmente cedidaC L-- \f 55A por Eni da Silva Montelro. maio de 1992
L- I
escrita do próprio nome A G kT l Criança de 5 anos
'---~II I abaeateL \ I J elefante .
n J formiga A 8 \I f J .
Q ~ Á.. ] formiguinha 1(\B -, I abacaxi
r-' IA
\,A lme
1 M t\ J rnarnao I \ \
GO tto /\ R ]maçã \~ H /]mamãe
KOP ]caehono ldAL Jbanana OP ]vovó
fb JeãO MA) J mamão 00 ]vovó
82
Nível 4 - Hipótese silábico-alfabética
As alterações a que nos referimos vão sendo feitas pon-
tualmente, em alguns segmentos de escrita e não em outros,
dentro da mesma palavra. Esta seria a utilização das hipóte-
ses silábica e alfabética da escrita, que, por serem utiliza-
das ''10 mesmo tempo, caracterizam a escrita silábico-alfabé-
tica. É um momento de transição, em que a criança, sem
abandonar a hipótese anterior, ensaia em alguns segmentos
a análise da escrita em termos dos fonemas (escrita alfabéti-
ca). As figuras 12 e 13 são exemplos destes procedimentos,
com maior predomínio de segmentos da escrita alfabética
na produção de Juliana.
Essa observação é preciosa para o alfabetizador, pois
permite a interpretação deste tipo de escrita sob uma nova
ótica.
Comparadas com a escrita que respeita todas as normas
da convenção, estas produções podem ser caracterizadas
como falhas pela existência de muitas omissões no registro
de letras. É muito freqüente que esses fatos sejam classifica-
dos como patológicos, indicadores de que a criança estaria
com falhas de percepção - visual, auditiva ou articulatória.
No entanto, se compararmos tais escritas com aquelas
decorrentes da concepção silábica, poderemos enxergar a
existência de acréscimo de letras ao invés de omissão. A
criança agora agrega mais letras à escrita, tentando aproxi-
mar-se do princípio alfabético, onde os sons da fala são
registrados pelo uso de mais de uma letra.
A interpretação da escrita infantil numa perspectiva
evolutiva dota o alfabetizador de um aparato teórico que lhe
permite olhar de forma natural a existência destas produções.
Ao invés de enxergar uma criança que "come letras", o
conhecimento dos processos de aprendizagem conduz à
observação literalmente oposta. Há progresso na compreen-
são do sistema da escrita e não patologia.
83
Figura 12
1~ entrevista 25/02/92
Criança de 6 anos
AL E XN A D
!
escrita do próprio nome
E L F T
I I I I
e le fan te
GA Q E
I I <.>
ja ca ré
ES A
I <c:>
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M A R O ~e.~
I I ~ o;"ma ca co
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OE L r TE H D Io
I I I I I I I I Io e le fan te é gor do
------~-- -::::-_- -- --
•• - ••••••. - ","..i:::iIl ~
.
84
Ficam claras, aqui, que apenas as condições ligadas à
contradição interna são insuficientes para este avanço na
descoberta da organização da escrita convencional. Sem as
informações fornecidas pelo meio - (na forma da disponi-
bilidade de) formas fixas que permitam o refinamento da
aprendizagem do valor sonoro convencional das letras e
das oportunidades de comparar os diversos modos de inter-
pretação da mesma escrita - o avanço não pode ocorrer.
É muito mais freqüente que as crianças de classe média
tenham maiores oportunidades de coordenar esses dois
eventos e, em razão disso, possam avançar para este nível
e o seguinte antes mesmo do ingresso na escola.
Veremos, agora, o estágio final de aproximação da
escrita convencional, representado pela escrita alfabética.
Nível 5 - Hipótese alfabética
Neste estágio a criança já venceu todos os obstáculos
conceituais para a compreensão da escrita - cada um dos
caracteres da escrita correspondente a valores sonoros
menores que a sílaba - e realiza sistematicamente uma aná-
lise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever.
a que a criança terá alcançado aqui não significa a
superação de todos os problemas. Há o alcance da legibili-
dade da escrita produzida, já que esta poderá ser mais
facilmente compreendida pelos

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