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Cultura Religiosa Cultura Religiosa Organizado por Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2017 Douglas Moacir Flor Paulo Augusto Seifert Ronaldo Steffen Thomas Heimann Paulo Gerhard Pietzsch Bruno Ronaldo Muller Rafael Juliano Nerbas Conselho Editorial EAD Andréa de Azevedo Eick Ângela da Rocha Rolla Astomiro Romais Claudiane Ramos Furtado Dóris Gedrat Honor de Almeida Neto Maria Cleidia Klein Oliveira Maria Lizete Schneider Luiz Carlos Specht Filho Vinicius Martins Flores Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Dados técnicos do livro Diagramação: Jonatan Souza Revisão: Geórgia Píppi Prezado leitor, A experiência de mais de 26 anos de docência tem mostrado o fascínio dessa disciplina. O começo sempre é difícil. Existe uma resistência natural do aluno em estudar os conteúdos. O pré-conceito fica claro quan- do se define a disciplina como aula de religião. Outros ainda pensam em catequese. Mas não será esse o nosso objetivo. Vamos caminhar com cada um de vocês no sentido de construir uma reflexão madura sobre a vivência e o comportamento religioso das pessoas e a influência que a religião exerce sobre o nosso cotidiano. Você irá encontrar neste livro um panorama das maiores religiões do mundo. Notará a pluralidade religiosa e terá uma ideia da riqueza de pen- samento e valores das religiões estudadas. Também iremos estudar mais detalhadamente o cristianismo e a Reforma luterana, pois são movimentos que influenciaram diretamente a confessionalidade da Universidade Lutera- na do Brasil. Por fim, sempre é hora de estudar ética. Particularmente a éti- ca cristã e os valores que ela pode acrescentar na vida de cada um de nós. A construção da disciplina é coletiva. Os textos têm a participação de professores de Cultura Religiosa. Nas aulas presenciais a troca é maior com uma interação entre alunos, mestres e doutores. Na Educação a Distância, o aprendizado depende muito da dedicação e do interesse do aluno em ler este livro e fazer as atividades propostas na net aula. O que esperamos é que você entenda que na vida profissional vai interagir com praticantes de muitas religiões aqui citadas. Entendê-los é sempre um primeiro passo para o sucesso na carreira. Prof. Douglas Moacir Flor Apresentação 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa ....................................1 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade: um Encontro Possível? .........................................................23 3 As Religiões Orientais .........................................................48 4 Judaísmo e Islamismo .........................................................74 5 Culpa e Perdão: Uma Questão Existencial .........................105 6 Cristianismo – História e Expansão ....................................127 7 A Mensagem Cristã – A Bíblia e Atualidade .......................151 8 Lutero e as Reformas Religiosas do Sec. XVI.......................171 9 A Diversidade Religiosa do Brasil ......................................197 10 O Mundo dos Valores e a Ética Cristã ................................231 Sumário Fenômeno e a Experiência Religiosa1 2 3 1 Mestre em Educação pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Seminário Concórdia (RS) e em Jornalismo pela Universidade Do Vale do Rio do Sinos (UNISINOS). Professor da Disciplina de Cultura Religiosa na ULBRA. 2 Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Seminário Concórdia (RS) e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS). 3 Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Seminário Concórdia (RS). Douglas Moacir Flor1 Paulo Augusto Seifert2 Ronaldo Steffen3 Capítulo 1 2 Cultura Religiosa Introdução O título do capítulo nos traz duas afirmativas: Religião é um Fenômeno e está repleta de experiências, dos mais variados tipos. Vamos entrar em um mundo fascinante, apesar da con- testação de alguns. É que a história da humanidade se funde com a história da religião. Tínhamos em um dos livros um título com “a experiência do sagrado”. Sagrado vem do latim sacratu, referindo-se a algo que merece veneração ou respei- to religioso por ter associação com uma divindade ou com objetos considerados divinos. Mostra que mesmo não sendo religiosos, precisamos respeitar o que para outros grupos é importante, essencial. Religião aqui é o nosso objeto de estudo, mesmo que al- guns não consigam fazer as devidas associações. Mas a ver- dade é que a nossa vida profissional vai se fundir com seres humanos carregados de “sentimentos” religiosos e será útil se entendermos como pensam, o que sentem e como agem essas pessoas. Vamos fazer uma análise com a devida isenção. Nós, que escrevemos este livro, somos professores e pesquisadores, mas também somos religiosos, pertencemos a uma denomina- ção cristã. Isso não impede que passemos um conteúdo livre dos nossos próprios sentimentos. Lembro o que disse Jostein Gaarder quando escreveu “O livro das Religiões”: Isto não quer dizer que um estudioso das religiões não possa ser religioso. O escritor italiano Umberto Eco, fa- lando das relações entre os estudos de literatura compa- rada e a própria literatura, faz a seguinte observação: “ Até os ginecologistas podem se apaixonar”. O impor- Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 3 tante é não deixar que durante a pesquisa as crenças e os sentimentos pessoais influenciem o material que está sendo estudado. Este distanciamento permite ao pes- quisador divulgar informações sobre a religião que são valiosas tanto para o indivíduo com para a sociedade. (2004, p. 13) Você já deve ter passado por alguma experiência Religiosa. Se não passou, alguém ao seu lado já deve ter contado algo que o levou a refletir sobre o assun to. Neste capítulo vamos ver que a experiência religiosa é mais rica do que se imagina e é universal. Assim, vamos fazer uma análise de alguns argu- mentos que podem nos motivar a pesquisar o tema religião. O fato é que devemos nos despojar de qualquer preconceito que possa fazer parte da nossa bagagem de conhecimento, já que entendemos o que lemos a partir do que já sabemos e já vivenciamos. 1.1 A Experiência Religiosa A religião tem estado presente no cotidia no através de diferen- tes manifestações. Pode-se, sem entrar em detalhes por ora, mencionar algumas áreas, alguns eventos e algumas práti- cas pessoais e sociais marcadas por ideias, ritos e símbolos consagrados ao campo religioso. Vamos utilizar aqui alguns pontos trabalha dos pelo colega Ronaldo Steffen, estudioso do assunto, professor de Cultura Religiosa, publica do no site da Universidade. 4 Cultura Religiosa De uma forma bem simples, podemos repor tar o leitor a algumas práticas familiares ligadas à tradição religiosa como o casamento, batismo, morte e velamento. São cerimônias re- ligiosas tão tradicionais, que muitas pessoas, sem que se deem conta, se envolvem. O que dizer de pessoas doentes ou com problemas mais sérios que bus cam ajuda divina como alterna- tiva para a cura? No esporte estamos acostumados, marcada mente no fu- tebol, com a cena de uma oração con junta antes da entrada no campo. Numa decisão por pênalti, por exemplo, é comum a imagem de jogadores ajoelhados, rezandoou beijando sua santinha. No campo musical não são raras as menções que se faz a personagens religiosos e até mesmo a sentimentos de ordem religiosa; no campo das artes somos conduzidos a milhares de imagens notadamente carregadas de simbolismo religioso dos mais diversos matizes. A literatura não tem deixado por menos e tem sido o mercado que mais cresce em termos de editoria nos últimos anos. O cinema tem sido pródigo nas temáticas de ordem religiosa. As novelas, fenômeno bra sileiro que ga- nha o mundo, jamais têm deixado de lado alguma alusão, personagem e até mesmo a temática central ligados a fatos eminentemente religiosos. A nossa alimentação está em grande parte determinada por elementos de ordem religiosa; o modo de expressar nossas ideias através da lin guagem é, igualmente, em grande parte determi nada por formas religiosas. O turismo religioso é hoje um grande vilão na arrecadação de divi sas para um municí- Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 5 pio. Na Europa, em cada cidade que visitamos, encontramos várias igrejas ou templos religiosos de rara beleza. A educação é fortemente marcada pelos valores que ela prega, quase sem pre idênticos aos valores de ordem religiosa. A área da saúde, o trato com a dor, a vida e a morte foi e ainda é construída com suporte religioso. Nosso calendário, suas datas festivas e grandes eventos têm sua origem no meio eclesiástico. As diversas áreas do conhecimento humano, de uma ou de outra maneira, têm-se ocupado com a te mática religiosa, como a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia, a An- tropologia, a História, a Medi cina, a Física, a Arqueologia, a Geografia e assim por diante. Apesar das diferentes atitudes de repulsa que caracterizam a negação dos elementos religiosos, as menções apontam para o fato do ser humano buscar ligar-se ao Transcendente como se mantivesse uma ligação umbilical da qual retira os elementos vitais para a sua existência. A questão que se coloca é a de como compreender essas ligações. Qual é o fundamento capaz de sustentar uma ava- liação compreensiva da junção ser humano - Transcendente? Há muitas possibilidades viáveis, tanto a partir das diferentes perspectivas e entendimentos religiosos quanto de escolas de reflexão filosófica. Além disso, importa considerar a relação que há, ou pode haver, entre a religião e as manifestações importantes do es- pírito humano. A título de introdução, consideremos como se relacionam religião e filosofia, religião e ciência, religião e moral, religião e teologia. 6 Cultura Religiosa 1.2 Religião e Filosofia O que tem a filosofia a ver com a religião? Essa é uma per- gunta importante e cuja resposta não é óbvia ou simples. Ao longo da história do pensamento humano, vemos cooperação e competição entre ambas. Em certo sentido, a cooperação e a competição pressupõem a mesma concepção: a de que compete à razão filosófica provar a veracidade das ideias reli- giosas. Ou, dito de outra maneira, que compete à razão filo- sófica determinar se religião e superstição são a mesma coisa ou se são coisas distintas e separáveis. Posta a questão dessa maneira, temos duas respostas pos- síveis: ou a filosofia apresenta provas de que a religião é ver- dadeira ou a filosofia apresenta provas de que a religião não é verdadeira. Se for o primeiro caso, dizemos que há, entre ambas, cooperação; se for o segundo, que há competição. Quando se fala em provas, significa que qualquer pessoa ra- cional deve concordar com o argumento, mesmo que não seja um argumento demonstrativo ao estilo da matemática, cujos cálculos, se bem feitos, dão um único resultado e o sujeito que não percebe ou não concorda com o resultado é incapaz (um exemplo simples: 3 x 3 = 9, não faria nenhum sentido alguém dizer: “Para você; para mim é 8”). O argumento deveria ser cognitivamente convincente. Aquele que não concorda com a conclusão, ou não compre- ende o argumento, ou está agindo de má-fé. Onde, porém, buscar tais provas? Historicamente, elas têm sido buscadas no raciocínio abstrato, na análise e comparação Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 7 de ideias, na experiência sensorial, no senso comum, nas ex- plicações científicas, no sentimento moral. Podemos partir de elementos geralmente aceitos e, se for o caso, de verdades evi- dentes ou necessárias (que não podem ser negadas). É possível aplicar as regras básicas do raciocínio lógico, seja dedutivo ou indutivo, alcançando-se uma conclusão. Tal como se faz nos raciocínios comuns ou nos científicos. Se o propósito é mostrar que a filosofia justifica a religião e prova a existência de Deus (ou da realidade última), temos os argumentos ontológicos, te- leológicos, cosmológicos, morais. Se o propósito é mostrar que a filosofia refuta a religião e prova que Deus não existe, temos os argumentos do mal, os argumentos evidencialistas etc. Exemplo do primeiro tipo: observamos que a natureza exibe ordem e finalidade como se fosse, por exemplo, uma grande máquina na qual as partes se ajustam umas às outras perfeita- mente, de forma a fazer o todo funcionar. Na nossa experiên- cia, sempre que há ordem e finalidade em algo, tal objeto foi pensado e realizado por uma mente inteligente. Logo, a ordem e finalidade que observamos no Universo indicam a existência de um criador inteligente. Esse se chama Deus. Logo, Deus existe. Exemplo do segundo tipo: observamos que há muitos e diversos males no Universo. Se Deus fosse bom, ele desejaria eliminar todo o mal; se fosse onipotente, ele o faria. Como o mal existe, Deus não é onipotente ou não é bom, ou ambos. Como a religião afirma que Deus é bom e onipotente, logo Deus não existe. Mesmo aceitando que essa é a tarefa da filosofia, isso não quer dizer que o filósofo acredita que é assim que as pessoas aceitam ou recusam uma religião, com base em argumentos. 8 Cultura Religiosa As religiões seguem seu caminho independentemente disso, e a preocupação com argumentos justificadores é, quando mui- to, secundária. Mas os argumentos mostrariam se as pessoas são racionais na sua crença. Por outro lado, pode ser que o pressuposto básico esteja errado e não compete à filosofia fundamentar ou provar a verdade das crenças religiosas bá- sicas. A tarefa da filosofia, em relação à religião, seria mais modesta. Atualmente, muitos filósofos, tendo em vista o de- senvolvimento histórico das explicações filosóficas, julgam que a filosofia pode ajudar a melhor compreender as ideias reli- giosas e auxiliar as religiões a se livrarem de alguns elemen- tos supersticiosos indevidamente acrescentados à fé básica, especialmente aqueles relacionados a confusões conceituais derivadas de um uso inadequado da linguagem ou à com- preensão equivocada das teorias e hipóteses científicas, ou a preconceitos de natureza não religiosa. Essa abordagem vem mostrando-se mais produtiva do que as outras duas opções. 1.3 Religião e Ciência E quanto à relação entre religião e ciência? Na maioria das vezes, quando isso é discutido, por ciência entendem-se as ciências naturais, como física, química, biologia. Há quem jul- gue que certas teorias científicas estão em direta contradição com a crença religiosa. Um exemplo contemporâneo pode ser encontrado na discussão entre evolucionismo e a teoria do desígnio inteligente, ou criacionismo. Se olharmos para o passado, este era o juízo feito por alguns acerca da relação entre heliocentrismo e o relato bíblico cristão sobre a criação Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 9 e o papel do ser humano nela. Críticos religiosos do heliocen- trismo, à época, julgavam que a teoria geocêntrica era, essa sim, compatível com a crença cristã, enquanto sua alternativa, incompatível. Hoje, nem mesmo grupos fundamentalistas per- cebemuma contradição, e muito menos as igrejas tradicionais ou os cientistas ateus ou agnósticos. A situação com o evolucionismo é, sem dúvida, um pouco mais complicada. Pode-se, no entanto, dizer que isso se deve em boa parte às consequências filosóficas, morais, teológicas extraídas por alguns de seus defensores. Se esse tipo de argu- mento for legítimo, há um conflito. Por outro lado, também pa- rece que esse conflito é alimentado por uma interpretação lite- ralista em demasia dos textos sagrados. Isso indica depender o conflito de certas concepções do alcance das teorias científicas (concepções essas que não são científicas no mesmo sentido em que o são as teorias) e de concepções hermenêuticas acer- ca de como deve ser entendida a revelação. Veremos um pouco mais dessa relação entre ciência e re- ligião no próximo capítulo. Passamos agora a analisar a rela- ção entre religião e moral. 1.4 Religião e Moral Algo que chama a atenção de quem participa ou observa as religiões é a íntima conexão dessas com a moral. Muitos pro- cedimentos e discursos religiosos (praticados no âmbito das religiões organizadas, especialmente) parecem consistir em 10 Cultura Religiosa admoestações para que as pessoas corrijam seu modo de vida e passem a agir de acordo com códigos morais mais estri- tos, que não se restringem a proibir determinados atos, mas também exigem do crente ações positivas de auxílio aos do- entes, aos necessitados, por exemplo. Mesmo que haja dife- rença (embora não tão acentuada) entre os códigos morais professados por diferentes religiões, não há como afirmar que essa relação seja meramente circunstancial, como parece ser o caso da relação entre ciência (especialmente as chamadas ciências naturais) e moral. Como podemos explicar essa co- nexão íntima? Uma proposta de explicação procura reduzir a religião à moral. Isso significa dizer que o significado essencial da re- ligião se encontra na moralidade. A religião consistiria em uma forma disfarçada ou mais eficiente de induzir as pessoas a um comportamento ético desejável. Alguns pensadores su- geriram que há uma similaridade entre o papel das religiões e o ensinamento moral de uma criança. Assim como se faz necessário, por vezes, ensinar bons modos a uma criança na base de punições ou estórias fantasiosas, há pessoas (e são elas muitas) que precisam receber as ideias morais acompa- nhadas de alguma estória cósmica ou divina. Caso contrário, não compreenderão e não se submeterão à norma moral. Mas uma vez que se tornam maduras e autônomas, percebem que a moral se mantém por si mesma. Podem, então, abandonar a religião. Esse tipo de explicação pressupõe a falsidade das estórias e/ou ideias religiosas. Se aceita por alguém, essa pessoa dei- xa de ser, em um sentido mais forte, religiosa. Esse resultado Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 11 não quer dizer que a explicação esteja equivocada. Contudo, podem ser mencionadas outras objeções que mostrariam a inadequação de tal hipótese. Primeiro, não faz jus ao fenô- meno religioso. Mesmo que a moral seja parte integrante das religiões, não é tida como única, nem como a principal. Ou- tros elementos importantes são a estética, os ritos, os mistérios, a ação de Deus na história (no caso das religiões teístas). E, prestando atenção ao discurso religioso como tal, o que pare- ce ser o mais importante está naquilo que se poderia chamar de “realidade última”, o verdadeiro por trás das aparências, o efetivamente real, o fundamento de tudo que existe (vamos chamar isso de “o elemento metafísico”). Por exemplo, no cris- tianismo considera-se como o mais importante saber quem é Deus, quais seus atributos, qual sua relação conosco. Se o Deus cristão fosse apenas um princípio moral, ou o princípio do bem, o cristianismo perderia muito de seu sentido. Mesmo que alguém julgue ser o cristianismo, em última análise, falso, dizer que sua essência é a moralidade constitui uma simpli- ficação grosseira; além disso, para dizer que o cristianismo é falso, é preciso supor a seriedade do elemento metafísico. Acrescente-se ainda que uma crítica feita constantemente por pessoas que consideram os relatos religiosos como fantasia, refere-se à crueldade e violência que as religiões exibem, ao terror mental que exercem sobre os crentes, a sua intolerância. Se tal crítica faz sentido, é justamente porque a conexão en- tre moral e religião não pode ser adequadamente explicada como se a essência da religião fosse a moral. Outra explicação, e favorecida pelos religiosos, está em que o elemento metafísico provê o fundamento da moral. A moral depende da religião e lhe dá o suporte real de que ela 12 Cultura Religiosa necessita. Como a moral não é descritiva, mas normativa, diz como devemos agir ou que hábitos virtuosos devemos cultivar, não seria ela capaz de responder à questão sobre sua pró- pria validade. Se alguém pergunta por que deve ser moral, é preciso apontar para algo fora da moral, para a realidade, para as coisas como elas realmente são. Devemos ser morais porque assim é o mundo. Por exemplo, o cristão deve observar o decálogo porque Deus assim o quer, ou porque Deus criou o mundo de tal forma que a inobservância dos princípios e regras morais afeta e perverte toda a natureza. Mas há outra alternativa para compreender a relação en- tre moral e religião pela qual nenhuma delas serve de razão ou fundamento da outra, embora permaneçam intimamente ligadas. A religião não é uma forma mítica de impor regras morais, nem necessita a moral de um fundamento religioso; ambas são autônomas, sem que isso implique qualquer moral ser compatível com qualquer religião. 1.5 Religião e Teologia Muitas vezes, os termos teologia e religião são considerados como sinônimos. Contudo, convém distingui-los para melhor compreender o fenômeno religioso. Teologia é um termo gre- go e significa “conhecimento sobre Deus”. Hoje em dia é co- mum a distinção entre teologia natural e teologia revelada. Teologia natural refere-se àquele conhecimento sobre Deus que se baseia na experiência comum quando, por exemplo, observamos o mundo ou quando consideramos nossos senti- Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 13 mentos internos e na racionalidade, enquanto teologia revela- da, refere-se àquele conhecimento sobre Deus que se baseia em alguma manifestação direta da divindade. E no que isso difere de religião? A diferenciação pode ser especialmente útil para aquelas religiões que têm um texto sagrado e/ou uma tradição consi- derada normativa. Assim, religião consistiria no conjunto de verdades reveladas (p. ex., no cristianismo, que Deus é triúno, que Jesus é Deus encarnado) de forma clara e não simbólica, enquanto teologia significaria a reflexão organizada e sistema- tizada da revelação. Além disso, haveria os ritos e modos de vida eclesial (de igreja, ou religião organizada). Assim, poder- -se-ia manter um núcleo fixo e uma concepção progressiva da experiência e reflexão religiosas consideradas, então, como te- ologia. A religião não muda, mas a teologia sim, especialmen- te no que se refere a suas relações com a ciência e a cultura. 1.6 A Palavra Religião Etimologicamente, o termo Religião surge na história da hu- manidade através dos autores clássicos como Cícero, Lactân- cio e Agostinho, respectivamente, nas palavras re-legere, que sig nifica reler; re-ligare, que significa religar e re-eligere, que significa reeleger. Todos os conceitos nos dão a ideia de voltar a uma situação anterior, ou seja, ligar novamente a criatura com o criador. É exatamente esta tentativa de religar com o Ser Superior, através de um conjunto de crenças, nor mas, ritos 14 Cultura Religiosa ou costumes, que dá origem às diver sas religiões o fenômeno religioso propriamentedito. (KUCHENBECKER, 2000) Apesar de seguidamente ouvir-se que reli gião é coisa do passado, as menções acima indi cam uma direção contrária. Estão apontando para o fato de que o ser humano preocupa- -se com o di vino, aqui entendido no sentido daquilo que ocu- pa lugar de destaque ou o primeiro lugar na vida. 1.7 Conhecimento Religioso Ainda tentando responder o que é religião, podemos dizer que religião é um batismo numa igreja cristã; é um ritual sagrado nas águas do Rio Ganges; é a adoração num templo budista; pode ser um muçulmano ajoelhado e orando para o Alá, ou os mesmos devotos do Islã peregrinan do a Meca. Pode ser um Judeu diante do Muro das lamentações em Jerusalém. São tantas as menções que seria impossível citar todas. O que pretendemos fazer é ligar os fatos. As ciências da religião procuram responder o que as atividades citadas aci- ma têm em comum. Nós procuramos, como pesquisadores, investigar os rituais de uma perspectiva externa. Buscamos se- melhanças e diferenças. Queremos entender como se dá o processo historicamente e o que isso representa para socieda- de hoje. Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 15 1.8 Por Que Estudar Religião? Dependendo da experiência de cada um, as respostas serão diferentes. Talvez você seja um religioso e não precise de tan- tas explicações, mas, com certeza, muitas pessoas não se liga- ram para a importância do assunto. Jostein Gaarder, em O Livro das Re ligiões, nos ajuda a responder a pergunta acima: Um rápido olhar para o mundo ao redor mostra que a reli- gião desempenha um papel bastante significativo na vida so cial e política de todas as partes do globo. Ouvimos falar de católicos e protestantes em conflito na Irlanda do Norte, cristão contra muçulmanos nos Balcãs, atrito entre muçulmanos e hinduístas na Índia, guerra entre hinduístas e budistas no Sri Lanka. Nos Estados Unidos e no Japão há seitas religiosas extremistas que já prati caram atos de terrorismo. Ao mesmo tem po, representantes de diver- sas religiões promovem ajuda humanitária aos pobres e destituídos do terceiro mundo. É difícil adquirir uma com- preensão adequada da política internacional sem que se esteja consciente do fator religião. (2004, p. 14) Além disso, explica Gaarder, um conheci mento religioso também pode ser útil num mun do que se torna cada vez mais multicultural. Ain da mais quando falamos em globalização, apesar de que o termo deve ser usado com cuidado. Muitos de nós viajamos pelo Brasil ou mesmo ao exterior, entrando em contato com as diver sas culturas religiosas. Estes povos têm costumes diferentes que devem ser respeitados pelos seus 16 Cultura Religiosa visitantes. Se uma mulher estiver num país mu çulmano, por exemplo, terá que observar o tipo de roupa que usará nas ruas. É claro que não pre cisará andar com uma Burca, mas terá que cobrir seu corpo com roupas decentes. Finalmente, acreditamos que o estudo das religiões pode ser importante para o desenvolvi mento pessoal do indivíduo. As religiões podem responder várias das perguntas existenciais que fazemos como: de onde viemos, o que somos e para onde iremos. 1.9 Tolerância Religiosa Entramos em um debate chave do nosso estudo e para uma solução dos conflitos religiosos no mundo. Vivemos em um país onde a escolha religiosa é livre. Cada um tem o direito a escolher uma fé, uma crença, uma comunidade religiosa. Para compreender melhor o conceito de tolerância, usamos um texto de Gaarder: Este é um dos pontos mais importantes na nossa cami- nhada. Tolerância é o respeito pelas pessoas que pos- suem diferentes pontos de vista em relação à religião. Não significa que precisa mos concordar com tudo o que as outras religiões praticam e seguir os mesmos rituais. Cada um tem o direito de seguir aquilo que é melhor para si, pode ter uma fé sólida. Mas a tolerância não é compatível com atitudes como zombar das opi niões alheias ou se utilizar da força e de ameaças. A Tolerân- Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 17 cia não limita o direito de fazer propa ganda, mas exige que esta seja feita com respeito pela opinião dos outros. (2004, p. 14) O respeito pela vida religiosa dos outros, pelas suas opiniões e pontos de vista é um pré-requisito para a nossa aula de Cultura Religiosa. Sem isso, é impossível começar, pois: Com frequência, a intolerância é re sultado do conheci- mento insuficiente de um assunto. Quem vê de fora uma religião, enxerga apenas as suas manifestações, e não o que elas significam para o indivíduo que a professa. (2004, p. 15) 1.10 Sincretismo Religioso No Brasil é muito interessante falar sobre religião. Isso por- que temos aqui uma pluralidade religiosa muito vasta. Além disso, encontra mos o que chamamos de Sincretismo Religio- so. Isso acontece quando misturamos elementos de várias re- ligiões numa só. Sincretismo é o ter mo que os historiadores denominam de fusão ou interpenetrações de religiões, ritos, crenças e personagens cultuais. Os cultos afro-brasileiros são um exemplo comprovado de sincretismo re ligioso. Queremos mostrar como isso acontece através da fala de um persona- gem sertanejo do passado: Riobaldo Tatarana do Grande Ser- tão: Veredas: “Hem? Hem? O que mais penso, texto e explico: todo- -o-mundo é louco. O senhor, eu, as pessoas todas. Por 18 Cultura Religiosa isso é que se carece principalmente de re ligião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita reli- gião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, ca tólico, embrenho a certo; aceito as preces de compa- dre meu Que lemém, doutrina dele, de Car déque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acu sa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quie- ta, me suspende. Qualquer sombrinha me refres ca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Mui ta gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, in variável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? – o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu? – não tres malho! Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita vir tude de poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Que ro punhado dessas, me defendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! (1994) JOÃO GUIMARÃES ROSA Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 19 Quem sabe você conhece alguém que se identifica com esta personagem. É comum a gente encontrar situações como essa. Nas aulas de Cultura Religiosa, quando perguntamos se nossos alunos têm alguma religião, muitos respondem: Sou Católico Apostólico Romano, não praticante. Isso significa que eles são católicos por tradição, mas não vão à igreja aos do- mingos. Muitos são católicos, mas não deixam de ir ao terreiro ou ao Centro Espírita. Recapitulando Não vamos escrever um texto para convencer o nosso aluno que é importante ter uma religião. Nossa intenção é motivar a reflexão de cada um num assunto que irá frequentemente fazer parte das nossas conversas e relações. Todo profissional vai lidar com os mais variados tipos de pessoas. Muitas dessas agem pelos seus valores religiosos, por suas crenças. Portan- to, é importante conhecer esses comportamentos e, acima de tudo, respeitara maneira como cada pessoa pensa. Conhecer as religiões nos ajuda a ampliar nossos próprios horizontes. Podemos tirar muitas coisas boas do comportamento alheio e aprender com essa diversidade religiosa. Sem dúvida essas grandes religiões do mundo são de uma riqueza impressionante. Todas elas estão fundamentadas num período predominante de guerras e violência. Essas religiões surgem com a capacidade de grandes homens em buscar o caminho para a paz. Portanto, os valores de cada uma são interessantes para pensarmos o nosso mundo hoje. Existem ca- 20 Cultura Religiosa minhos possíveis para um mundo melhor. Essas religiões mos- tram isto. É claro que alguns povos ainda continuam na sua miséria, mas também movidos por alguns conceitos difíceis de serem mudados. Referências CATÃO, Francisco. O fenômeno religioso. São Paulo: Ed. Letras e Letras, 1995. GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. KUCHENBECKER, Walter (org.). O Homem e o Sagra- do. 5. ed. Canoas: Ed. da ULBRA, 1999. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. Atividades 1) A presente questão diz respeito ao Fenômeno Religioso. Sendo assim, assinale a única alternativa que é FALSA. a) A Religião tem estado presente no cotidiano através de diferentes manifestações, como na música, por exem- plo. Capítulo 1 Fenômeno e a Experiência Religiosa 21 b) A nossa alimentação está, em grande parte, determi- nada por elementos de ordem religiosa. c) O turismo no mundo não tem nenhuma relação com a religião. Não existem cidades com referência religio- sas para movimentar este mercado. d) Na área da saúde, o trato com a dor, a vida e a morte foi e ainda é construído com o suporte religioso. e) Nosso calendário, suas datas festivas e grandes even- tos, tem sua origem no meio eclesiástico. 2) A presente questão diz respeito à Religião e Filosofia. Leia com atenção os enunciados abaixo e assinale as alternati- vas cujas afirmativas sejam VERDADEIRAS no seu conteú- do. a) A Filosofia pode ajudar a religião a melhor compreen- der as ideias religiosas e auxiliar a religião a se livrar de alguns elementos supersticiosos. b) Não existe nenhuma relação entre religião e filosofia. As matérias são totalmente desconexas e vão de en- contro uma com a outra. c) A religião isola a filosofia de suas discussões, pois a razão inviabiliza a fé. Seria impossível ser filósofo e religioso ao mesmo tempo. d) Argumentos filosóficos são importantes para a reli- gião, pois mostram se as pessoas são racionais na sua crença. 22 Cultura Religiosa e) Em nenhum momento da história do pensamento hu- mano houve qualquer tipo de competição entre reli- gião e filosofia. 3) O tema da presente questão trata de Tolerância Religiosa. Apenas uma das alternativas abaixo possui um enunciado VERDADEIRO. a) Tolerância é o respeito pelas pessoas que possuem di- ferentes pontos de vista em relação à religião. b) Em um mundo com tanta diversidade religiosa é im- possível ter tolerância, pois todas as religiões concor- rem entre si. c) Tolerância não é interessante às religiões porque limita o direito de fazer propaganda, ponto crucial para o crescimento de uma comunidade. d) Nos tornamos intolerantes à medida que vamos co- nhecendo mais a história das grandes religiões e a for- ma como elas se constituem. e) No Brasil, nossa constituição diz que todos devem ser católicos. Por isso, é impossível ser tolerante àqueles que não respeitam as leis. 4) A tolerância religiosa é um dos pontos cruciais para esta- belecer a paz entre as religiões. Justifique essa afirmativa. 5) Defina Sincretismo Religioso com alguns exemplos do seu dia a dia. ???????? Capítulo ? Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade: um Encontro Possível?1 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 1 Doutor em Teologia. Coordenador do Curso de Teologia da ULBRA. Professor de Teologia na área da Psicologia e Aconselhamento Pastoral. Professor do Curso de Pós-Graduação em Gestão de Pessoas. Membro do Grupo de Pesquisa em Acon- selhamento e Psicologia Pastoral da Faculdade EST. Pastor da Igreja Evangélica Luterana do Brasil – IELB. Psicólogo clínico. Thomas Heimann1 Capítulo 2 24 Cultura Religiosa Introdução Uma das áreas mais frutíferas em termos de pesquisas na atu- alidade tem sido a relação interdisciplinar entre fé e saúde, medicina e espiritualidade, que colocam lado a lado o campo da religião e o campo da ciência. Mesmo que essa relação entre saúde e espiritualidade seja muito antiga – em inúmeras culturas a doença e a cura eram experiências que ficavam ao encargo dos sacerdotes, dos pajés e dos xamãs –, nos dias de hoje muito se tem discutido acerca das interfaces e também limites de cada uma das duas áreas. Apesar de haver inúmeras correntes que veem aí oposição total, uma tensão constante ou uma crítica mútua, outras correntes procuram caminhar no sentido de propor uma perspectiva convergente, dialógica e até integralista de ambas as áreas, sem desrespeitar as especi- ficidades de cada uma delas. Neste capítulo vamos tentar demonstrar que há um cami- nho possível de entendimento e diálogo, que só tem a contri- buir para uma compreensão mais profunda e profícua desse tema, que pode conduzir a um melhor cuidado dos indivíduos, numa perspectiva integral e holística do ser humano. 2.1 Ciência e religião: palco histórico de batalhas Conforme afirma Harrison, os conceitos “ciência e “religião” são ambos produtos da modernidade. O termo Religião re- cebeu seu sentido atual no século XVII, ao passo que o termo Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 25 ciência apenas durante o século XIX. Um entendimento dos processos históricos e sociais que levaram à formação das ca- tegorias duais de “ciência” e religião” é vital para qualquer avaliação de suas relações contemporâneas. Harrison quer di- zer com isso que a relação que havia entre “ciência e religião” antes do século XIX não deve ser vista na perspectiva das atuais categorias da ciência moderna, tal como afirma: Tão inextricavelmente conectados eram os conceitos duais de Deus e natureza que é enganoso tentar identi- ficar vários tipos de relacionamentos entre ciência e re- ligião no século XVII e XVIII. “Ciência” e “religião” não eram entidades independentes que podiam sustentar alguma relação positiva ou negativa entre si, e tentar identificar tais conexões é projetar para o passado um conjunto de preocupações que são tipicamente de nossa própria época. (2007) Mesmo que houvesse uma certa indiferenciação entre ciên- cia e religião, o que pode ser afirmado é que a Religião, por um longo período da história, deteve o controle quase total e absoluto de toda a produção de conhecimento. Ao longo dos séculos a Igreja abrigou em seus mosteiros e conventos inúme- ros cientistas e pesquisadores. Não que a igreja fosse a única fomentadora ou guardiã do conhecimento, mas era normal- mente através dela que o conhecimento produzido era filtrado e transmitido à sociedade. Havia, assim, um claro cerceamen- to de tudo aquilo que pudesse colocar em risco as convicções, crenças e dogmas da religião dominante. 26 Cultura Religiosa Com relação a esse assunto Azevedo (2013), numa con- cepção um pouco diferenciada de Harrison, afirma: Foi no grosso caldo da cultura hebraico-cristã, preva- lente nos séculos XVI e XVII, que a ciência moderna foi concebida. Descartes (1596-1650), um dos promotores do pensamento científico moderno, permitia que sua fé se fizesse presente em seus escritos científicos, declaran- do sua crença em Deus e na inspiração divina para seu trabalho (DESCARTES, 2009). Soberana em seupoder, a igreja católica romana incluía sob seu domínio os ensinamentos de ciência. Pressentindo o poder prediti- vo das hipóteses científicas, a igreja relutou em acatar “profecias científicas”. Embora viesse mais tarde a reco- nhecer-se equivocada, tanto na condenação de Galileu (1564-1642) como na resistência à teoria darwiniana da evolução (HESS, 2003; HEWLETT, 2003), esses fa- tos tornaram-se de conhecimento geral e profundamente estudados. Todavia, no caso Galileu, mais importante que a troca de lugar da terra com o sol foi a mudança de paradigma na forma de produção do conhecimento. Para estudiosos do tema, Galileu passou da observação à elaboração de modelos teóricos. Explicar com modelos era privativo da igreja, e não dos pesquisadores. Assim, não foi a “mudança da teoria da natureza” que gerou o conflito com Galileu, mas a mudança “na natureza da teoria” (BARBOUR, 2004). Atualmente, os próprios teó- logos trabalham com a elaboração de modelos teóricos na interface ciência e religião. (MURPHY, 2003) Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 27 Um elemento importante apontado por Harrison é de que nessa análise da relação normativa entre ciência e religião precisa-se admitir a pluralidade das ciências, ou seja, há di- ferentes ciências e cada uma possui sua própria história, mé- todos e hipóteses, sendo que cada uma estabeleceu um rela- cionamento diferente com a religião dominante. Um exemplo disso seriam as ciências biológicas, que marcaram um movi- mento de rompimento entre as duas áreas, tal como afirma o autor: A transformação da história natural na “biologia” cien- tífica foi uma parte vital desse processo. Uma vez que a história natural tinha sido tradicionalmente dominada pelo clero, as novas disciplinas científicas de biologia e geologia gradualmente alcançaram independência da influência clerical enquanto, ao mesmo tempo, legitima- ram um novo conjunto de autoridades não eclesiásticas. (HARRISON, 2007) Nesse sentido, como continua o autor, o século XIX viu o bastão de autoridade passar daqueles que possuíam cargos religiosos para a nova geração de cientistas. Ao citar uma fra- se do historiador A. W. Benn, Harisson (2007) diz que “uma grande parte da reverência uma vez dada aos padres e às suas histórias de um universo não visível, foi transferida ao astrôno- mo, ao geólogo, ao físico, ao engenheiro”. Saltando para os tempos modernos, verificamos que há, atualmente, várias tipologias que procuram estabelecer mode- los de interação entre ciência e religião. Uma das mais utili- zadas é a do físico Ian Barbour (2003), que estabelece quatro 28 Cultura Religiosa modelos de relação. O primeiro é de conflito, marcada pela discordância explícita entre literalistas bíblicos e ateus, que agem como se fossem inimigos, atacando-se mutuamente. O segundo é a de independência, que admite a existência e ação mútua de cada área, desde que cada uma mantenha a devida distância da outra. Cada uma deve saber que cum- pre papeis diferentes para o ser humano, não devendo uma interferir na outra. Alguns chamam esse modelo de interação de magistérios não interferentes. O terceiro modelo de intera- ção é de diálogo. Esse diálogo pode ocorrer nos interstícios, brechas ou lacunas de cada uma das áreas (p. ex., qual é o sentido da vida ou da morte) ou por conceitos que podem ser comuns a ambas (questões como a saúde e bem-estar existencial). O quarto modelo é o da integração, que busca uma parceria entre as duas áreas, uma admitindo que a outra pode contribuir na compreensão do universo e do ser humano. Aprofundaremos esses modelos em nossa aula virtual. Já Augustus Nicodemus Lopes, teólogo e ex-chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, estabelece uma outra tipologia relacional entre ciência e religião, propondo cinco modelos, a saber: a) conflito: ligado ao cientificismo, afirma que a ciência moderna destruiu os pressupostos da teologia tradicional; pelo lado da religião esse modelo está associado a um anti-intelectualismo, que enxerga na ciência uma alter- nativa inferior de explicação do mundo; b) adaptação: nesse modelo a razão é a única que pode determinar a realidade; os elementos transcendentes da Bíblia são reduzidos a mitos e lendas para se encaixar nas mudanças do pensamento cien- tífico; c) a nova síntese: implica uma transformação radical da ciência e teologia, numa síntese em que ambas se fundem Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 29 num só objeto (p. ex., Nova Era); pode gerar uma pseudociên- cia e uma heterodoxia pseudoteológica; d) compartimenta- lismo: ciência e religião são vistas como dois campos total- mente distintos, que não possuem nada em comum, por isso o conflito entre eles é desnecessário e até impossível, sendo um erro de análise interpretativo; e) complementarismo: mode- lo que entende que as diferentes percepções da ciência e da religião aplicam-se ao mesmo mundo e aos mesmos eventos, mas cada uma em um nível de compreensão distinto, que são complementares e não excludentes. Independente de qual seja o modelo mais vigente, o que podemos perceber das atuais relações entre Ciência e Religião, - como, por exemplo, o embate polêmico entre criacionismo e evolucionismo -, é que elas são duas “instituições” que pare- cem estar numa constante disputa de força e poder, na qual a escolha por uma atitude de oposição, antagonismo e exclusão mútuas não traz qualquer vencedor, levando os dois lados a perder. É preciso abrir espaço para um diálogo respeitoso que abandone prepotências, arrogâncias e fundamentalismos que só alimentam a intolerância entre as duas áreas. Partindo para a perspectiva de uma aproximação entre o campo científico da saúde e a dimensão da espiritualidade, ênfase deste capítulo, o artigo de Horta et al. (2016) sinaliza, porém, para um auspicioso caminho de reconciliação, ao afir- mar: A partir de Einstein, reduziram-se, um a um, os impedi- mentos de cercania para ciência e religião, a ponto de João Paulo II afirmar que religião sem ciência não é boa 30 Cultura Religiosa religião, bem como ciência sem religião não é boa ciên- cia. Uma posição convergente com a do sumo pontífice foi, recentemente, tomada pela Organização Mundial da Saúde (1998), ao ter acrescentado a dimensão de bem-estar espiritual ao seu conhecido conceito multidis- ciplinar de saúde, que, como se sabe, só entendia uma condição de saúde se existisse a presença de bem-estar nas dimensões físicas, psíquicas e sociais. A valorização acrescentada, considerando o lado espiritual/religioso, é, sem dúvida, o selo decisivo e universalizado do entre- laçamento de ciência e religião. Para os autores supracitados, defender o pensamento de que a religiosidade de uma pessoa influencia não apenas seu espírito, mas também seu corpo, sua mente e sua interação relacional com os outros, já causa bem menos estranheza nos dias de hoje, mesmo que tal concepção ainda permaneça ge- rando desconfiança e inquietação em alguns nichos acadêmi- cos. Eliane Azevedo (2013, p. 474) ainda traz um elemento a mais nessa perspectiva positiva da parceria entre ciência e religião ao afirmar: Mesmo equipada com os mais potentes meios de obser- vação, a ciência moderna não consegue responder a se- culares questionamentos da humanidade: qual o sentido dos fenômenos descritos pela ciência; qual o propósito da vida tão estudada pelos cientistas. A ciência descobre causas, controla efeitos e prevê eventos. Desvendou o código da vida e tornou-se capaz de manipula-lo. O mé- todo científico conferiu-lhe esse poder. Mas os propósitos para as coisas e o sentido para a vida persistem sem res- Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 31 postas cientificamente evidenciáveis. A secular sabedoriada humanidade continua afirmando que respostas dessa natureza somente são encontradas em outro tipo de co- nhecimento - o das religiões. Passamos agora a analisar um pouco mais uma das tan- tas faces da relação entre ciência e religião, que é a área da saúde, por ser este um fenômeno do qual todos nós podemos nos considerar inclusos e partícipes, por seu caráter existencial. 2.2 Medicina e religião: as origens mítico- -religiosas da ciência médica Quando se trata da saúde humana é possível verificar que tan- to a religião/espiritualidade quanto a ciência só têm a ganhar quando se dispõem a dialogar a respeito do conhecimento oriundo de cada uma delas. Olhando para as origens dos povos e civilizações percebe- -se que há uma íntima associação entre a religião e a medi- cina. As duas áreas estavam simbioticamente ligadas na sua origem, sendo as funções de médico e religioso, curandeiro e sacerdote, desempenhadas invariavelmente pelo mesmo in- divíduo. Mais do que a tipologia da integração, poderíamos afirmar que havia um modelo de fusão entre as duas áreas. Para o médico Alex Botsaris (2001, p. 57), a medicina, antes de ser ciência, é um produto da cultura humana. Como a arte de curar, ela está presente desde as civilizações mais rudimentares, no momento em que surgiu a necessidade de 32 Cultura Religiosa alguém assumir a tarefa de curar as pessoas, auxiliando-as a lidar com a dor, com a incapacidade física, bem como fren- te à angústia, suscitadas pela doença e morte. Dessa forma criaram-se os primeiros “sistemas médicos” que, nas culturas mais antigas, estavam ligados aos sacerdotes e líderes religio- sos, como xamãs, pajés, druidas, feiticeiros e curandeiros, que exerciam tanto as funções de religioso como as de médico ou curandeiro. Maffei (1978), ao definir medicina, aponta para as mes- mas origens antropológico-culturais, afirmando: A medicina é considerada uma arte e uma ciência ao mesmo tempo, sendo considerada um ramo da Biologia. Se indagarmos: Como e quando apareceu a medicina?, verificaremos que a Medicina nasceu com o homem; de fato, desde o seu aparecimento sobre a Terra, o homem foi vítima ou testemunha do sofrimento e, por isso, sem- pre procurou observar as doenças que o afligiam e dar- -lhes os remédios. A partir destas duas afirmações, começamos a verificar como a relação entre a prática médica e a dimensão religio- sa-espiritual é marcada pela indiferenciação na sua origem. Landmann aponta para algumas destas relações fazendo re- ferência a um dos mais antigos deuses egípcios, Imhotept, o deus médico, bem como a Esculápio, o deus da medicina, um dos mais populares do panteão grego. No Antigo Testamen- to, texto sagrado tanto para judeus como para cristãos, Deus também assume o poder de curar, como diz o livro de Êxodo “Eu sou o Deus que te cura” (Êxodo 16.26). Portanto, para Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 33 Landmann (1984, p. 14-15), todo o carisma, a divindade e a santidade dos médicos têm seu nascedouro numa concepção religiosa ou mágica, independentemente de sua origem judai- ca, cristã, muçulmana ou mesmo pagã. Surge, então, uma pergunta de fundo histórico: a quem pertence o domínio dos processos que controlam a saúde e a doença? Ela é fruto de alguma área específica? Historicamen- te falando parece ser difícil estabelecer a quem pertencia a cura das doenças. O templo de Epidauro,1 por exemplo, ficou famoso na história por dedicar aos doentes tanto cuidados corporais quanto espirituais, inclusive com o que se pode cha- mar dos primeiros registros clínicos dos pacientes, isto é, notas sobre o histórico e a evolução do tratamento de cada doente. Ali, portanto, parece iniciar-se uma transição entre a simples teurgia2 - uma magia baseada na relação com os espíritos celestes - e a medicina com elementos um pouco mais obje- tivos e científicos. Como bem diz Alex Botsaris (2001, p. 57), a junção de líder religioso e médico vem da relação da morte com a saúde e da atribuição divina dos poderes de cura, como demonstram os relatos acima descritos. Outro passo importante que aponta para a relação entre ciência e religião, medicina e espiritualidade, está ligado ao 1 O templo de Epidauro, cidade da Grécia antiga do séc. V a.C., era dedicado a Asclépio (o Esculápio dos romanos), um herói homérico, filho do deus Apolo com uma mortal, que tornou-se o semideus da medicina. 2 O Termo “Teurgia” é derivado de duas palavras gregas, “Theou” e “ergon” que literalmente significam “trabalho de Deus”. Diferentes formas de Teurgia foram pra- ticadas na antiguidade, envolvendo cânticos, ritos, preces e outras formas de liga- ção com as forças divinas, sagradas e sobrenaturais que operavam diretamente na cura dos indivíduos. 34 Cultura Religiosa nascimento dos hospitais. Para Campos (1995, p. 16-7), a filosofia cristã de amor ao próximo contribuiu significativamen- te para a criação dos hospitais, sendo que o primeiro deles, uma entidade assistencial, foi criado em 360 da Era Cristã, em Óstia, Itália, com a finalidade básica de restaurar a saúde e prestar assistência aos doentes. Nomes importantes nesta nova etapa da criação de hospi- tais cristãos são os dos imperadores Constantino e Justiniano. Constantino por ter decretado, em 335 d.C., o fechamento de instituições médicas de origem pagã grega, estimulando a criação de hospitais cristãos. Justiniano, por sua vez, colabo- rou decisivamente para a construção do grande hospital de São Basílio, em Cesaréia, em 369 d.C. Por volta do ano 500 da Era Cristã, a maioria das grandes cidades do Império Ro- mano já possuía hospitais cristãos. A criação da enfermagem, inspirada pela religião, passou a ser constituída de pessoas carinhosas e dedicadas, porém os ensinamentos médicos de Hipócrates e outros estudiosos foram sendo abandonados por suas origens pagãs, fazendo retornar o misticismo e a teurgia.3 Já entre os séculos V e XI a Medicina estava sendo conduzi- da quase como um monopólio da Igreja Cristã e seus pratican- tes eram, de fato, os religiosos (FILHO, 1993, p. 99-100). Na Idade Média, a influência da Igreja permaneceu no estabeleci- mento e manutenção de hospitais, porém esses se mantinham, fundamentalmente, como instituições eclesiásticas e não mé- dicas. Com as Cruzadas um novo impulso de desenvolvimento 3 Enciclopédia Mirador Internacional. Volume IV, p. 5856. Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 35 atingiu os hospitais, motivadas também pelas doenças e pestes que dizimavam milhares de pessoas nessa época.4 Já no século XI, o Concílio de Clermont proibiu os cléri- gos de exercerem a Medicina e de participarem de cirurgias e intervenções médicas que envolvessem derramamento de sangue. Tal proibição se deu pelo receio de que os monges estivessem por demais afastados de seus votos religiosos por razão de seus deveres médicos. Colocou-se aí um ponto final à prática religiosa médica que se arrastara por mais de seis séculos. (FILHO, 1993, p. 101) Na época do Renascimento (séculos XV e XVI) a medicina teve um grande avanço, apesar da Igreja continuar condenan- do grande parte das pesquisas científicas que envolviam o ser humano, até mesmo cadáveres. Porém, na busca de compre- enderem melhor o funcionamento do corpo humano, os médi- cos da época começaram a tentar explicar as doenças através de estudos científicos e testes de laboratório. Segundo Paiva (2000, p. 13), há certo consenso de que a descoberta de técnicas experimentais de pesquisa no século XVII encaminhou uma aproximação aos fenômenos do mun- do físico, distinguindo-as definitivamente da visão religiosa e teológica. A descoberta de William Harvey, do sistema circu- latório do sangue, por exemplo, auxiliou muito no desenvolvi- mento da anatomia e fisiologiahumanas. Com essa e outras descobertas, aos poucos a desapropriação da religião como 4 Enciclopédia Mirador Internacional. Volume IV, p. 5856. 36 Cultura Religiosa lugar de cura e cuidado físico ficou mais clara, passando a ser quase uma exclusividade da ciência médica. 2.3 Mediações da saúde e religião na atualidade Mesmo na atualidade é possível arrolar diversos exemplos em que a medicina e religião estão intimamente associadas. Como aponta Botsaris (2001, p. 58), em grupos socialmente desassistidos, que não têm acesso ao sistema de saúde, indi- víduos oriundos de grupos religiosos assumem a função de doutores e curadores. Entre esses podem ser citados os raizei- ros, as rezadeiras ou benzedeiras, os médiuns no espiritismo e na umbanda, os pais e mães de santo do candomblé, além de podermos também inserir pastores pentecostais e neopen- tecostais, além de movimentos carismáticos católicos, que me- diam o tratamento de males e doenças em cultos de cura e libertação. De outro lado, para Botsaris, sempre que um médico está atendendo um paciente estabelece-se um contexto mágico que transcende a questão científica. O paciente despe-se, literal e emocionalmente, diante do médico, solicitando, mesmo que de forma inconsciente, o auxílio de uma força “sobrenatural” para vencer o obstáculo da doença. Diz ainda Botsaris acerca do ato médico sobre o paciente: Nesse momento, entra-se num universo paralelo extre- mamente amplo. É como se cada xamã, pajé ou druida, Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 37 enfim, todo o contexto simbólico da atividade médica, associado ao conhecimento científico e tecnológico, es- tivesse presente no instante da consulta, sintetizados na figura do médico. (...) A atuação do médico, e mesmo a própria evolução científica e tecnológica do sistema, depende deste arcabouço conceitual e simbólico. (2001, p. 58) Não há como deixar de ressaltar, porém, como bem apon- ta Gadamer (2006, p. 40), que o médico faz questão de se afastar da figura de curandeiro de tantas culturas, revestido pelo segredo das forças mágicas. Ele faz questão de dizer que é um homem da ciência, isto é, ele conhece o motivo pelo qual uma determinada técnica de cura tem êxito, bem como ele entende a relação de causa e efeito. Isso não significa que os seus pacientes se satisfaçam com essa explicação, ou seja, a esperança de cura quase mágica associada ao poder do conhecimento que o médico detém sempre poderá estar cir- culando na relação médico-paciente, mesmo que os médicos procurem evitá-la a qualquer custo. Finalmente, numa perspectiva dos benefícios da espiritu- alidade para a saúde integral do ser humano, Rossano Dal Farra (2010, p. 589) refere-se a um conjunto de estudos que tem demonstrado o impacto da espiritualidade sobre diver- sos parâmetros de saúde que podem ser inclusive mensurados de forma metodologicamente eficiente. Diversas publicações científicas têm mostrado evidências “de que o envolvimento religioso está favoravelmente associado a indicadores de bem- -estar psicológico, incluindo a satisfação na vida, a felicidade, menor frequência de depressão e de utilização de drogas de 38 Cultura Religiosa abuso” etc. Também relata que, na década de 1990, institui- ções como Association of American Medical Colleges, Natio- nal Institute for Healthcare Research e Robert Wood Johnson Foundation financiaram centenas de programas vinculados à relação entre fé e saúde. Nesse sentido elementos da fé e espiritualidade represen- tam um ponto importante a ser considerado nas questões de saúde coletiva, como podemos observar nos dados analisados por Jeff Levin, do National Institute for Healthcare Research, dos Estados Unidos, que resumem os resultados obtidos nas pesquisas sobre espiritualidade e fé em relação à saúde em um amplo conjunto de aspectos, conforme descreve Dal Farra (2010, p. 591-2): Princípio 1 — A afiliação religiosa e a participação como membro de uma congregação religiosa beneficiam a saúde ao promover comportamentos e estilos de vida saudáveis. Princípio 2 — A frequência regular a uma congregação religiosa beneficia a saúde ao oferecer um apoio que ameniza os efeitos do estresse e do isola- mento. Princípio 3 — A participação no culto e na pre- ce beneficia a saúde graças aos efeitos fisiológicos das emoções positivas. Princípio 4 — As crenças religiosas beneficiam a saúde pela sua semelhança com as crenças e com estilos de personalidade que promovem a saúde. Princípio 5 — A fé, pura e simples, beneficia a saúde ao inspirar pensamentos de esperança e de otimismo e expectativas positivas. Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 39 [...] Pesquisa realizada com pacientes terminais demons- trou que o conforto espiritual não apenas aumenta a es- perança de vida dos pacientes como diminui os índices de depressão, de ideias suicidas e de desejo de morte breve. Posto esse breve apanhado na relação entre religião e ci- ência, medicina e espiritualidade, poder-se-ia afirmar, como diz Paiva (2000, p. 91), que “religião e ciência podem, por- tanto, conviver, e se alguma vez houve empecilho religioso à ciência, isso ocorreu devido à falta de esclarecimento”. Para exemplificar essa temática, vamos passar agora a analisar um dos tantos fenômenos religiosos que podem ser interpretados de uma forma interdisciplinar apontando, justamente, para os diversos tipos de relações existentes entre religião e ciência, medicina e espiritualidade. 2.4 Doença mental ou possessão? Uma interpretação de práticas de libertação espiritual e exorcismo numa ótica multidisciplinar Quem de nós já não ouviu falar de filmes como O exorcis- ta (1973) ou, mais recentemente, O exorcismo de Emily Rose (2005)? Ou, ainda, quem de nós já não ouviu falar de cultos de libertação, sessões de descarrego ou então de pessoas que afirmaram estar “com um encosto” ou nas quais “baixou o santo”? Transe religioso, mundo dos espíritos ou apenas trans- tornos mentais? 40 Cultura Religiosa Todos esses exemplos apontam para um fenômeno que va- mos chamar aqui, genericamente, de possessão. Esse é um tema controverso e estamos cientes de que há diversas formas de nominar e significar o fenômeno, dependendo do viés reli- gioso ou científico de cada grupo, que constrói a sua própria nomenclatura e interpretação do fato. Desde o início da história humana há indícios de que so- frimento e doença eram considerados frutos de uma força ex- terna maligna, que atuava negativamente sobre os corpos e as mentes das pessoas. As curas eram ministradas por meio da expulsão dessa força maligna do corpo do indivíduo, em práticas que denominaríamos hoje de exorcismos, mas que já eram realizadas por inúmeras tribos ao longo da história. Portanto, a ideia do mal, de espíritos ruins ou de “pouca luz”, de demônios que atuam no plano físico e atormentam os seres humanos não é privilégio do mundo cristão, embora a sociedade ocidental seja muito influenciada pelo cristianismo e sua ideia do mal. De um modo geral, o que se entende por possessão? Va- mos analisar algumas das diferentes perspectivas interpretati- vas. Para o cristianismo, demônios são espíritos ou poderes es- pirituais contrários a Deus e cujas fileiras são compostas pelos chamados anjos caídos, que acompanharam Lúcifer na rebe- lião contra Deus. Há muitos textos bíblicos que mostram Jesus Cristo e também os seus discípulos expulsando demônios. Caracterizando de modo geral uma possessão, um ser hu- mano que está “possuído” por uma dessas entidades espiritu- ais maléficas parece perder sua identidade pessoal, bem como Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 41 sua liberdade de pensamento e até de ação, ficando aliena- do de si mesmo. Normalmente,uma possessão demoníaca é acompanhada de um comportamento violento e destrutivo contra os outros, contra o ambiente, contra Deus, assim como uma agressividade dirigida contra si mesmo. Uma segunda interpretação é chamada de desmitologi- zante, baseada na parapsicologia, que procura diferenciar fenômenos verdadeiros daqueles que podem ser fraudes e truques. Para essa linha, que ainda é vista como uma pseudo- ciência, os fenômenos verídicos podem ser produtos de uma mente perturbada, fruto de uma psicorragia, isto é, uma ener- gia mental que foge ao controle voluntário humano, gerando fenômenos paranormais que se fazem presentes no indivíduo e no ambiente em que ele se encontra, tais como tiptologia, telecinesia, xenoglosia, glossolalia, clarividência etc. Numa perspectiva da interpretação médica/psiquiátrica/ psicológica as possessões são consideradas, normalmente, como casos de transtornos mentais. A psiquiatria, ao descrever as psicoses e as esquizofrenias, elenca uma série de sintomas que se aproximam dos relatados nas possessões espirituais como delírios, alucinações visuais, auditivas, táteis, entre ou- tras. Podemos ainda citar crises histéricas, dissociações de per- sonalidade e até mesmo crises de epilepsia e convulsões que, muitas vezes, foram e ainda são confundidas e interpretadas por alguns religiosos como possessões. O psiquiatra Rogério Zimpel (2004, p. 79) afirma que os transtornos dissociativos talvez sejam o grupo de perturbações mentais que mais se con- fundam com os fenômenos espirituais, englobando o transtor- no de personalidade múltipla (ou dissociativo de identidade) e 42 Cultura Religiosa ainda o transtorno de despersonalização. É importante afirmar que ainda existe pouca literatura psiquiátrica e psicológica que trabalhe simultaneamente com os dois paradigmas, a saber, o psíquico/científico e o espiritual/religioso. Numa última interpretação desses fenômenos, dada pela sociologia e psicologia social, as possessões são vistas como comportamentos de protesto por parte de pessoas oprimidas que não têm condições de buscar ajuda de cunho profissional, como médicos psiquiatras, psicólogos e outros terapeutas. Tais indivíduos encontram em igrejas um lugar de livre expressão de sua condição de opressão. A igreja e o culto servem como espaço terapêutico para elas. Portanto, os sintomas da posses- são nada mais seriam do que uma descarga externa de muita opressão, violência e repressão, cuja expressão livre é favo- recida pelo ambiente sugestivo do culto. São os “demônios internos” de um indivíduo, o conjunto de muitas frustrações reprimidas que é colocado para fora, numa catarse individual ou coletiva. Tratar de temas como esse exige sempre prudência, sem abrir mão de um olhar crítico e interdisciplinar, respeitando-se sempre os diversos pontos de vista e interpretações trazidos pelos diferentes grupos científicos e/ou religiosos. Aqueles que têm interesse no assunto devem sempre levar em con- sideração que a verdade religiosa é uma questão subjetiva, que implica fé e que transcende uma análise lógica e racional dos fatos. Não há, portanto, nesse tema, espaço para dog- matizações ou fundamentalismos, mas sim a necessidade de um espírito sempre investigativo em busca da(s) verdade(s) subjacentes(s). Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 43 Recapitulando Buscamos, nesse capítulo, traçar um breve panorama histó- rico dos diferentes tipos de relação existentes entre religião e ciência, fé e saúde, medicina e espiritualidade. Vimos que, nas origens da humanidade, não havia distinção funcional entre as duas áreas, sendo que as funções médica e religiosa eram exercidas quase sempre pela mesma pessoa. Os conflitos entre religião e ciência, tal como conhecemos hoje, são produto da modernidade. Ian Barbour e Augustus Nicodemus são autores que propuseram tipologias com diferentes modelos de relação entre ciência e religião, que vão desde o conflito aberto até a integração. É possível perceber, porém, que há indícios de uma aproximação gradativa no campo da pesquisa médica no sentido de ver na fé, na espiritualidade e na religiosida- de elementos positivos para a saúde integral do ser humano. Também abordamos, mesmo que brevemente, o fenômeno da possessão, vendo-o como um dos exemplos para uma análise multi e interdisciplinar de um fenômeno que possui interfaces tanto na religião quanto na ciência. Referências AZEVEDO, Eliane S. Breves considerações na conver- gência ciência e religião. Cad. CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 469-476, Dez. 2013. Disponível em: <http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 44 Cultura Religiosa -49792013000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 31 ago. 2016. BOTSARIS, Alexandros Spyros. Sem anestesia: o desabafo de um médico/ Os bastidores de uma medicina cada vez mais distante e cruel. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CAMPOS, Terezinha Calil Padis. Psicologia Hospitalar: a atuação do psicólogo em hospitais. São Paulo: EPU, 1995. DAL FARRA, Rossano; GEREMIA, César. Educação em saú- de e espiritualidade: proposições metodológicas. Revista Brasileira de Educação Médica. 34 (4): 587-597; 2010. Enciclopédia Mirador Internacional. Volume IV. FILHO, Ernesto Xavier. O homem e a cura. Porto Alegre: Rí- gel, 1993. GADAMER, Hans-Georg. O caráter oculto da saúde. Petró- polis: Vozes, 2006. HARRISON, Peter. “Ciência” e “Religião”: Construindo os Limites. Revista de Estudos da Religião. 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( ) A criação dos hospitais no Ocidente teve forte influên- cia do Cristianismo. 2) Relacione as duas colunas com os modelos de relação entre ciência e religião e suas respectivas características: a) Conflito ( ) Ambas se tornam parceiras na interpretação do mundo. b) Independência ( ) Pode gerar uma pseudociên- cia e uma pseudoteologia. c) Integração ( ) Associado a visão dos magis- térios não interferentes. d) Nova síntese ( ) Ligado ao cientificismo e ao anti-intelectualismo. 3) Complete as lacunas com os conceitos corretos. Um dos mais conhecidos locais de cuidado e cura que já desenvolvia uma visão holísticae integral, desde a antiguida- de, era o ________________________. Para o cristianismo, ________ são espíritos ou poderes es- pirituais contrários a Deus e cujas fileiras são compostas pelos chamados anjos caídos, que acompanharam Lúcifer na rebe- lião contra Deus. Capítulo 2 Religião e Ciência, Saúde e Espiritualidade... 47 4) Identifique três benefícios da fé e espiritualidade na saúde e bem-estar do ser humano. 5) Por que o fenômeno da possessão não deve ser analisado apenas sob a ótica religiosa? ?????????? Capítulo ? As Religiões Orientais1 1 Mestre em Educação pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Seminário Concórdia (RS) e em Jornalismo pela Universidade Do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da Disciplina de Cultura Religiosa na ULBRA. Douglas Moacir Flor1 Capítulo 3 Capítulo 3 As Religiões Orientais 49 Introdução Escrever sobre religiões orientais sempre é um desafio. É uma cultura muito antiga, diferente da nossa, onde as tradições orais foram transmitidas por milhares de anos. Por outro lado, é uma cultura riquíssima em histórias de vida e que influencia- ram muito a nossa cultura ocidental. O que notamos é que estas religiões orientais nos trans- mitem um sentimento de paz, de tranquilidade, fruto da me- ditação, da concentração, da busca de paz interior. A História nos mostra que a origem de tudo isso está nas guerras, por mais contraditório que nos pareça. Cansados da violência da guerra, as pessoas começaram a buscar outro estilo de vida e apostaram na “não violência”. Vamos encontrar, neste capítulo, quatro grandes religiões: Hinduísmo, Budismo, Confucionismo e Taoísmo. De cada uma podemos tirar lições de vida, valores religiosos transmitidos por séculos e vividos com intensidade por seguidores que buscavam sentido para a vida entre as religiões e as filosofias de vida. 3.1 Hinduísmo 3.1.1 História Voltamos no tempo para o ano de 1500 a.C. e seguimos até o ano 200 a.C.1 Os Arianos (“nobres”) começaram a subjugar 1 a.C. Antes de Cristo. O tempo era contado em ordem decrescente. 50 Cultura Religiosa o vale do rio Indo. As crenças dessas pessoas tinham ligação com outras religiões indo-europeias, como a grega, romana e germânica. Sabemos disso pelos chamados hinos védicos (da palavra veda, que significa “conhecimento”), que eram re- citados por sacerdotes durante os sacrifícios aos seus muitos deuses. É o chamado período védico do hinduísmo. Achados arqueológicos no vale do rio Indo indicam que houve uma civilização avançada na Índia, anterior à chegada dos indo-europeus e é certo que essa civilização também con- tribuiu para o hinduísmo moderno. A época conhecida como período védico tardio, de 1000 a.C. até 500 a.C., marcou uma virada no desenvolvimento re- ligioso da Índia. Importância especial tiveram os Upanishads, que até hoje são os textos hinduístas mais lidos. Foram escritos sob a forma de conversas entre mestre e discípulo, e introdu- zem a noção de Brahman, a força espiritual essencial em que se baseia todo o Universo. Todos os seres vivos nascem do Brahman, vivem no Brahman e, ao morrerem, retornam ao Brahman. Hoje O hinduísmo é uma religião da Índia, mas tem muitos adeptos também no Nepal, em Bangladesh e no Sri Lanka. Depois de muitos anos de domínio colonial britânico, em 1947, a Índia tornou-se uma república independente: um Es- tado secular (não religioso), com uma constituição que garan- tia direitos para todas as denominações religiosas e proibia qualquer forma de discriminação baseada em religião, raça, casta ou sexo. Capítulo 3 As Religiões Orientais 51 Em 1947, a tensão entre hinduístas e muçulmanos, em ra- zão da independência da Índia, resultou na criação do Pa- quistão como um Estado muçulmano separado, dividido em duas partes distintas: o Paquistão do Leste e o Paquistão do Oeste. Depois da guerra de 1971 entre a Índia e o Paquistão, o Paquistão do Leste tornou-se um Estado independente com o nome de Bangladesh. Segundo Piazza (1991, p. 247): O Hinduísmo não pode ser considerado uma religião no sentido que tenha um fundador determinado, dogmas específicos e liturgias estruturadas. É, na verdade, uma atitude do povo Indiano perante os problemas existen- ciais, a qual, segundo as circunstâncias, pode assumir as mais diversas formas. 3.1.2 Ensinamentos Deuses O hinduísmo é conhecido como uma religião politeísta, com um número considerável de deuses, que também são chamados de deuses do lar. Quase todas as aldeias têm a sua própria divindade local. Entre as principais divindades encon- tramos três: Brahman – Conhecido como o Deus criador, Senhor da Sabedoria, cultuado pelos sacerdotes. Todos nascem dele. Vishnu – o Deus mantenedor da criação. 52 Cultura Religiosa Shiva – Cultuado pelos camponeses, é um deus renovador, senhor da vida e da morte, o deus da meditação e dos iogues, e em geral, é retratado como um asceta. É ele quem traz a doença e a morte, mas também o que cura. As deusas No Livro das Religiões encontramos a citação de uma série de deusas. Segundo Gaarder (1989, p. 48): Alguns adotam a teoria de que essa abundância de deu- sas não passa da expressão de uma grande e poderosa divindade feminina, a “Rainha do Universo” ou “Deusa- -Mãe”. Sua manifestação mais conhecida é Kali, a deusa negra, adorada sobretudo no Leste da Índia, e a quem se sacrificam animais. O alto status de Kali no mundo dos deuses é evidente pelas imagens que a mostram pisoteando o corpo de Shiva. A importância das deusas na religião indiana é visível pela escolha da “Mãe Índia” (Bhárata Mata ou Bharthamata) como a divindade nacional do moderno Estado da Índia. Na cidade de Varanasi há um templo especial que lhe é dedicado. Ali, em vez de uma representação da deusa, está exposto um mapa da Índia. 3.1.3 Carma e reencarnação Termos muito conhecidos hoje no Espiritismo, a doutrina do Carma e da reencarnação são tão antigas quanto o hinduís- mo. A crença é de que o ser humano tem uma alma imortal que não lhe pertence. Depois da morte, a alma volta a apare- Capítulo 3 As Religiões Orientais 53 cer (renasce) numa nova criatura vivente. Pode renascer numa casta mais alta ou mais baixa, ou pode passar a habitar um animal. Segundo Gaarder (1989, p. 48): Há uma ordem inexorável nesse ciclo que vai de uma existência a outra. O impulso por trás dela, e que a man- tém sempre em movimento, é o carma (“ato” ou “ação”) do ser humano. O ato ou ação não se refere apenas a ações físicas, mas inclui pensamentos, palavras e senti- mentos. A ideia de que todas as ações têm consequências, que podem surgir depois da morte, não é, de modo algum, peculiar do hinduísmo. A originalidade da ideia está no entendimento de que todas as ações de uma vida, e so- mente elas, podem formar a base para a próxima vida. Assim, o carma não é uma punição pelas más ações ou uma recompensa pelas boas. O carma é uma constante impessoal, como se fosse uma lei natural do ato de existir. O sistema de castas Desde os tempos antigos, a sociedade hinduísta está ali- cerçada sobre quatro classes sociais (a palavra empregada é varna, que significa “cor”):  sacerdotes (brâmanes);  guerreiros;  agricultores, comerciantes e artesãos; 54 Cultura Religiosa  servos. Assim, à medida que a sociedade indiana se desenvolveu, as pessoas foram sendo divididas em novas castas. No início do século XX havia em torno de 3 mil castas. Não se sabe ao certo como surgiu o sistema de castas. O certo é que as castas, em geral, se associam a profissões especiais. Uma aldeia indiana pode conter de 20 a 30 castas, e com frequência cada uma ocupa um agrupamento especial de casas.
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