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[TRECHO DE TESE DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEFENDIDA EM 2009] 4 QUAL É O MELHOR MÉTODO DE INTERPRETAÇÃO? Apesar do que o seu título sugere, o propósito deste capítulo é desaconselhar o teórico da interpretação jurídica a investir em tentativas de mostrar que um método de interpretação – gramatical, sistemático, teleológico objetivo ou subjetivo – é simplesmente melhor do que os demais. Mais precisamente, o propósito do capítulo é desaconselhar o teórico a oferecer uma defesa universal e abstrata da superioridade de qualquer um dos referidos métodos. Uma teoria normativa universal e abstrata da interpretação jurídica assume, em primeiro lugar, que os diferentes sistemas jurídicos (brasileiro, francês, inglês etc.) e os diferentes subsistemas (penal, civil, administrativo etc.) que compõem cada sistema jurídico devem todos funcionar sob o governo de um mesmo método interpretativo. Em segundo lugar, uma tal teoria assume que nenhum problema grave resulta da sua falta de sensibilidade em relação às peculiaridades do ambiente histórico, cultural e institucional em que o seu método preferido de interpretação será empregado. Pretendo mostrar que uma teoria da interpretação que procede com base nessas premissas dificilmente será bem sucedida. Uma das teses desta dissertação consistia na afirmação de que os métodos de interpretação distinguem-se, sobretudo, em virtude do seu (maior ou menor) caráter “institucional”. Métodos menos institucionais geram um maior número de ocasiões em que o intérprete pode deliberar de maneira substantiva (moral, política, social, econômica etc.). Os métodos mais institucionais, por outro lado, tendem a limitar a deliberação substantiva, atribuindo maior autoridade aos atos formais dos criadores das normas. Os filósofos do direito, conscientes da importância dessa distinção, costumam formular suas teses normativas sobre a interpretação jurídica em termos da legitimidade política de cada método. É o que mostro a seguir. Aos métodos mais institucionais costumam-se associar as seguintes virtudes políticas. Em primeiro lugar, como métodos que atribuem autoridade ao parlamento (em detrimento das cortes judiciais) 1 , eles respeitam o princípio da democracia formal. De acordo com esse princípio, as 1 Está claro que o criador da norma nem sempre é o parlamentar -- agentes administrativos e até mesmo os juízes podem eventualmente ser responsáveis por criar normas jurídicas. E também é importante notar que o juiz não é o único a quem cabe interpretar normas jurídicas -- legisladores e agentes administrativos (desde o Presidente da República até o guarda de trânsito municipal) também têm jurisdição. Mas como as posições de criador e intérprete são paradigmaticamente decisões de interesse público devem ser tomadas por órgãos democráticos, isto é, órgãos capazes de representar a opinião popular. Os próximos passos do argumento são previsíveis. Ao contrário das cortes, o parlamento é composto por autoridades eleitas pelo voto popular e sujeitas a mandatos de curta duração. Disso se segue que a transferência de poder (em alguma medida autorizada por métodos menos institucionais) do parlamentar para o juiz está em contradição com o princípio da democracia formal e, portanto, é ilegítima. Outra virtude comumente associada aos métodos mais institucionais pode ser descrita como a sua capacidade de promover valores associados ao ideal do estado de direito, como previsibilidade, coordenação e eficiência. A ideia é que os atos formais do parlamento são públicos e prospectivos, enquanto a decisão judicial, embora pública, é emitida ex post facto. Teme-se que uma sociedade cuja legislação pode ser flexibilizada pelas cortes é uma sociedade onde reinarão a insegurança e a ineficiência. Embora os defensores da interpretação institucional concordem quanto à validade geral desses argumentos, eles eventualmente divergem sobre o tipo exato de método que melhor expressa os valores associados à democracia formal e ao estado de direito. É comum, por exemplo, que os defensores da teleologia subjetiva se jactem do fato de que as intenções dos legisladores são mais representativas da vontade popular do que o texto normativo. Enquanto isso, os textualistas se concentram no argumento de que os estados mentais dos legisladores são menos acessíveis e transparentes (e seus efeitos, portanto, menos previsíveis) do que o texto legal. Pelo lado dos defensores dos métodos menos institucionais, os argumentos mais comuns fazem referência ao ideal de justiça. O argumento da democracia formal é rebatido com a tese de que democracia não é só uma questão de promover a vontade popular por meio de órgãos majoritários como o parlamento. Estados democráticos também devem preocupar-se com a justa distribuição de liberdades e recursos entre os cidadãos. Mas a justa distribuição de liberdades e recursos pode ser ameaçada, quando, por exemplo, o parlamento é dominado por maiorias discriminatórias que menosprezam os interesses de minorias. Métodos menos deferentes em relação aos atos formais do parlamento serviriam justamente como um instrumento para que o juiz pudesse frear, quando necessário, os excessos majoritários do governo. O argumento institucional do estado de direito, por outro lado, é rebatido com o argumento de que os mesmos fatores que garantem previsibilidade, coordenação e eficiência são ocupadas pelo parlamentar e pelo juiz (respectivamente), vou limitar a discussão do capítulo 4 à análise do desempenho desses agentes específicos. frequentemente responsáveis pela produção de graves injustiças. As leis de modo geral são formuladas em termos gerais e abstratos que muitas vezes não dão conta das peculiaridades de casos particulares. Lembre-se da regra que (por proibir qualquer quantidade de álcool no trânsito) poderia resultar na punição do motorista que comeu um bombom de rum. A interpretação literal da linguagem dessa regra resulta numa punição exagerada sob o ponto de vista da justiça retributiva. Considere, ainda, que a mesma regra (ao referir-se apenas à ingestão de “álcool”) mantém impune o motorista que fuma uma pedra de crack. “Democracia”, “estado de direito”, “justiça” são, portanto, os termos que costumam adornar os debates normativos sobre interpretação jurídica. Por duas razões, esse tipo de debate me parece bastante suspeito. Uma primeira suspeita diz respeito à pretensão de se extraírem conclusões sobre um tema tão prático e concreto como a interpretação jurídica a partir de conceitos tão abstratos e vagos como democracia, estado de direito e justiça. Parece-me que os argumentos mencionados há pouco deveriam ser complementados por considerações (menos abstratas) relativas às características circunstanciais dos sistemas jurídicos específicos que os argumentos contemplam. Além disso, os valores atribuídos a cada método são, em alguns casos, de natureza tão distinta (e.g. previsibilidade versus justiça) que é difícil afastar a suspeita de incomensurabilidade. Vamos considerar essas duas suspeitas, uma de cada vez. Cass Sunstein e Adrian Vermeule (2002) mostram que as considerações circunstanciais que devem complementar os argumentos políticos abstratos às vezes excedem esse propósito e minam as próprias bases dos argumentos, inutilizando-os por completo. Considere um exemplo provinciano. Há pouco tempo, circulou pela internet um vídeo que mostrava uma sessão da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. 2 As imagens são perturbadoras.O deputado que preside a sessão narra o conteúdo dos projetos de lei em pauta com murmúrios ininteligíveis. Em seguida, ele convoca os representantes de algumas comissões parlamentares a darem seus pareceres, mas antes os orienta, por meio de sussurros, sobre como votar. Dessa forma, obscura e sumária, os projetos são rejeitados ou aprovados. Suponha, para fins de argumentação, que o vídeo é um retrato fiel do cotidiano do parlamento fluminense. Como é que isso afetaria, por exemplo, o argumento da democracia formal (aplicado a normas emanadas da Assembléia Legislativa)? É razoável insistir que o parlamento é um órgão mais representativo da vontade 2 Disponível em: <http://kibeloco.com.br/kibeloco/?s=alerj>. popular do que as cortes judiciais mesmo sabendo-se que os parlamentares votam projetos de lei daquela maneira? Alguém poderia objetar, naturalmente, que o caso da Assembléia Legislativa é uma aberração – e talvez isso seja verdade. Mas não só as aberrações são capazes de ameaçar a plausibilidade de argumentos políticos abstratos. Considere um exemplo relativo a uma peculiaridade do sistema jurídico brasileiro, algo que está longe de ser uma aberração, e que pode ser visto até mesmo como uma característica positiva do nosso sistema. No Brasil, o ingresso na magistratura se dá normalmente por meio de um concurso público muito competitivo e altamente técnico. O rigor do concurso é tal que só alcançam sucesso as pessoas que podem dedicar-se ao estudo do direito em tempo integral -- normalmente jovens há pouco egressos da faculdade e ainda não plenamente inseridos no mercado de trabalho. O juiz brasileiro, portanto, tende a ser cada vez mais jovem e especializado; ele nunca teve outra profissão e tem conhecimentos escassos em outras áreas, fora do que se convencionou chamar “dogmática jurídica”. Se esses fatos não derrubam o argumento da justiça, eles devem pelo menos revelar a sua fragilidade (quando aplicado ao sistema jurídico brasileiro). Métodos menos institucionais exigem dos juízes o exame frequente de questões substantivas (políticas, sociais, econômicas etc.) que não são discutidas na faculdade de direito. O caso dos juízes brasileiros, na verdade, é apenas uma instância de uma tese mais geral: a capacidade dos agentes políticos reais para lidar com as exigências epistêmicas do método interpretativo cujo emprego se advoga é uma questão crucial. Esses dois exemplos – da Assembléia Legislativa e dos juízes brasileiros – têm um traço importante em comum. Ambos pretendem mostrar como a plausibilidade de argumentos políticos abstratos é afetada por considerações relativas ao comportamento e às habilidades dos agentes políticos, sejam eles os criadores ou os intérpretes das normas jurídicas. Mas há outra categoria de considerações que também desafiam o debate abstrato, embora nada tenham a ver com o elemento humano dos sistemas jurídicos. Os sistemas jurídicos são compostos por uma série de subsistemas que diferem em função do tema. Independentemente da capacitação dos agentes que operam tais subsistemas, a própria natureza do seu tema implica que certos métodos interpretativos são mais adequados do que outros. O direito penal, por exemplo, na medida em que é constituído de normas punitivas cuja aplicação tem efeitos graves sobre as liberdades básicas dos infratores, costuma ser um terreno pouco propício para o emprego de métodos pouco institucionais. O direito penal brasileiro, por exemplo, faz referência a cânones de interpretação como aquele que proíbe a analogia usada para prejudicar o réu. A ideia é que só puna o autor de uma ação que cai rigorosamente sob o alcance da categoria legal presente na regra penal pertinente. O mais importante é notar como o rigor legalista que costuma ser bem-vindo no terreno do direito penal não é recomendável em outros subsistemas, como o subsistema do direito do trabalho ou o subsistema do direito administrativo. 3 Além do comportamento dos agentes políticos e das peculiaridades dos subsistemas legais, há um terceiro fator relevante para o desenvolvimento de teorias normativas da interpretação: as circunstâncias históricas em que a teoria será aplicada. É bem conhecida, por exemplo, a crítica de Gustav Radbruch (2006) ao legalismo dos juízes alemães durante o regime nazista. 4 Pode haver alguma divergência quanto à tese empírica de que os juízes alemães sob o nazismo de fato julgavam de maneira legalista, mas isso não retira a plausibilidade do tipo de argumento que Radbruch tinha em mente. A sua ideia era orientar os juízes a flexibilizarem normas cujo conteúdo é grosseiramente imoral. A correção moral das normas com que os juízes trabalham, portanto, é um fator relevante para a determinação da postura interpretativa que eles devem assumir. Em síntese, métodos institucionais tendem a ser menos recomendáveis em sistemas ilegítimos do que em sistemas legítimos. Outro exemplo de como as circunstâncias históricas influenciam o debate normativo sobre interpretação diz respeito à maturidade e à estabilidade do regime político em questão. Períodos de instabilidade política, por exemplo, normalmente convidam posturas menos inovadoras e polêmicas por parte dos juízes do que períodos de segurança e estabilidade política. Compare democracias jovens, recém-instituídas depois de períodos autoritários, a democracias maduras e bem estabelecidas. No primeiro caso, previsibilidade, coordenação e eficiência -- valores associados aos métodos institucionais -- parecem muito mais urgentes do que no segundo. Afinal, 3 José Juan Moreso (2001) diria, talvez, que nem mesmo um subsistema particular do sistema jurídico é suficientemente homogêneo para funcionar adequadamente sob o domínio de um único método de interpretação. Moreso tem bons argumentos para mostrar, por exemplo, que as normas penais que definem crimes devem ser interpretadas estritamente, enquanto as normas penais que estabelecem causas de justificação devem ser interpretadas de maneira mais flexível. 4 Radbruch critica, na verdade, o “positivismo” dos juízes alemães. Eu substituo esse termo por “legalismo” porque Radbruch atribuía ao primeiro um sentido muito diferente daquele que eu atribuo aqui. Positivismo, para mim, é uma teoria analítica do direito; para Radbruch, tratava-se de uma teoria normativa (ou pelo menos de uma postura judicial) sobre como decidir casos concretos. Na academia brasileira ainda prevalece o sentido preferido por Radbruch; mas entre os filósofos contemporâneos do direito, inclusive entre aqueles que se autodenominam “positivistas” (e.g. Coleman, Gardner, Leiter, Marmor, Moreso, Raz, Shapiro, Waluchow), prevalece o outro sentido. (Rodrigo Tavares (2008) oferece um artigo que ajuda a esclarecer essa confusão terminológica.) são justamente essas as características que faltam a democracias jovens, mas abundam nas maduras. De forma resumida, discussões abstratas sobre a legitimidade de um dado método de interpretação devem ser complementadas – quando não forem simplesmente solapadas – por considerações relativas às peculiaridades do sistema jurídico contemplado. As capacidades reais dos agentes políticos, a variabilidade temática do direito e as circunstâncias históricas em que o sistema jurídico está imerso são os exemplos mais claros (embora provavelmente não sejam os únicos exemplos) de fatores que precisam ser levados em consideração por teorias normativas da interpretação jurídica. Algumas páginas atrás, eu disse que discussões normativas abstratas sobre a interpretação são suspeitas por dois motivos principais. Em primeirolugar, elas são simplesmente muito abstratas. Qualquer inferência rápida sobre como os juízes devem decidir casos concretos a partir de teses gerais sobre a legitimidade política de certos procedimentos interpretativos corre grande risco de passar por cima de informações circunstanciais extremamente importantes. Em segundo lugar, os debates abstratos costumam fazer referência a valores cuja comensurabilidade não é certa. Acredito que o primeiro problema pode ser adequadamente resolvido desde que os teóricos do direito acatem as minhas admoestações (que, na verdade, não são minhas, pois autores como Sunstein e Vermeule já as divulgam há anos). Por outro lado, não creio que, até aqui, tenham sido fornecidos elementos suficientes para que o segundo problema seja inteiramente debelado. [Trecho excluído; o “segundo problema” não será discutido em IEDII.] Se o capítulo 4 acabasse aqui, alguns leitores poderiam ficar decepcionados. Os debates normativos costumam ser os debates filosóficos mais interessantes (talvez pelo fato de serem aqueles cujas implicações práticas são mais evidentes) e, no entanto, ofereci apenas contribuições indiretas para esses debates. Falei sobre como os teóricos interessados em questões normativas devem proceder, mas não desenvolvi a minha própria teoria sobre como os juízes devem proceder na prática. Insisto, pelas razões expostas anteriormente, em rejeitar afirmações universais sobre como os juízes devem interpretar normas jurídicas. Mas, para não frustrar totalmente os leitores ávidos por teses normativas, faço pelo menos uma advertência que parece aplicável à maioria dos sistemas jurídicos ocidentais onde existem democracias liberais estáveis. (O Brasil se inclui, naturalmente, dentro desse grupo.) Se, por um lado, não é possível dizer que os juízes devem (sempre) usar um método em vez de outro, por outro lado, certamente é possível dizer que, seja qual for o método que escolherem, os juízes devem aplicá-lo abertamente, honestamente. A deliberação substantiva permitida por certos métodos não é um mal em si; mas quando os juízes dissimulam o fato de que se envolvem nesse tipo de deliberação, agem de maneira potencialmente nociva à democracia. Analogamente, o emprego de métodos institucionais só é capaz de promover os valores a que visa quando não serve como instrumento para a implementação sub-reptícia de ideologias conservadoras (MARMOR, 2005a). A ideia básica é a de que, em sistema jurídicos democráticos, é difícil justificar a falta de sinceridade por parte dos juízes. Eles são, normalmente, agentes políticos imunes à remoção por meio do voto popular. A única forma de controle democrático sobre a sua atuação consiste na possibilidade de analisar suas sentenças e criticar publicamente sua argumentação. Quando os juízes ocultam a verdadeira natureza dos seus argumentos ou a verdadeira fonte das suas motivações, eles criam um obstáculo significativo ao controle democrático do seu trabalho. [Trecho excluído.] 5 CONCLUSÃO O artigo 2°, parágrafo único, da Lei n° 10.259 de 2001 diz o seguinte: “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os fins desta Lei, os crimes a que a Lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.” Em 2004, o Ministério Público de São Paulo levou ao Superior Tribunal de Justiça um recurso que discutia o significado dessa regra (Recurso Especial n° 623.617 - SP). Assim pensava o representante do Ministério Público: Da leitura do artigo supra, percebe-se que o legislador se valeu da conjunção alternativa ou e não da aditiva e quando estabeleceu o teto de incidência da nova lei. Por conseguinte, para que uma infração penal seja alcançada pela Lei 10.259/01, mister se faz que sua pena em abstrato não ultrapasse o máximo de dois anos ou multa. Ficam afastadas, portanto, todas as outras infrações cujas penas ultrapassem esse limite – dois anos ou multa -, como é o caso do crime previsto no art. 10 da Lei 9.437/97, visto que traz em seu preceito secundário a pena máxima de dois anos de detenção e multa. Não é preciso grande esforço para verificar que “dois anos e multa” são mais do que “dois anos ou multa”. Vê-se, destarte, que referido dispositivo da Lei de Armas ultrapassa o teto fixado pela Lei 10.259/01, razão por que não pode ser por ela alcançado. (Grifo no orginal.) Ao argumento do apelante, o Ministro Paulo Medina opôs o seguinte argumento: “O fato de, ao crime, ser cominada pena máxima não superior a dois anos E multa, não altera a competência para o julgamento, devendo o aplicador do direito ater-se a mens legis do caso, e não ao celeuma em torno das partículas ou ou e, irrelevantes.” (Grifo no original.) A divergência entre o apelante e o magistrado é uma instância do que vem sendo descrito como o conflito entre interpretações mais e menos institucionais de dispositivos jurídicos -- o apelante usa um argumento textualista, enquanto o magistrado usa um argumento (aparentemente) teleológico objetivo. 5 O dispositivo sob análise no caso da Lei de Armas determina que se trate como infração de menor potencial ofensivo o crime associado a “pena máxima não superior a dois anos, ou multa”. O significado desse dispositivo, gramaticalmente, não é indeterminado em relação a um crime associado a pena de dois anos e multa -- o crime está fora do alcance da norma. Também há motivo para crer que, interpretada à maneira da teleologia subjetiva, a norma não inclui crimes associados a pena de dois anos e multa. Um argumento interessante a favor dessa última afirmação dependeria de uma análise mais cuidadosa daqueles materiais que costumam fornecer evidências quanto aos estados mentais dos legisladores ao tempo da promulgação da norma (e.g. exposição de motivos da lei em questão, debates legislativos etc.). Mas o fato de que o legislador disse “ou” em vez de “e” nos dá pelo menos uma razão prima facie para crer que ele pensou ou em vez de e. Sob a ótica da teleologia objetiva, a história é outra. Não me parece plausível atribuir a essa norma um outro fim razoável que não o de tratar com menor rigor crimes menos graves. Acredito, ainda, que o propósito da norma, assim formulado, também não é indeterminado em relação ao caso da Lei de Armas. O fato de que um crime está associado a uma pena de dois anos e multa não o torna significativamente mais grave do que um crime associado apenas a uma pena de dois anos. Aliás, o rigor da sanção jurídica que se atribui a uma infração não é sequer um critério confiável para a aferição da gravidade moral dessa infração. A atribuição de uma sanção jurídica é resultado 5 Na verdade, Medina não deixa perfeitamente claro o que entende por mens legis. O magistrado eventualmente faz referência aos fins do legislador, mas essas referências parecerem vazias diante do que é dito noutros momentos. Por exemplo, citando Luiz Flávio Gomes, Medina diz que o“ jurista (e também o estudante) do terceiro milênio está muito mais preocupado com a justiça das soluções […] que com o cumprimento cego, irracional e asséptico da […] letra da lei”. de uma escolha de agentes políticos (e.g. dos autores de uma lei penal). O fato de que os referidos agentes escolheram sancionar um crime X com a pena P, e um crime Y com a pena P+ (sendo P+ mais rigorosa que P) não implica que Y é moralmente mais grave que X. (Os agentes políticos baseiam suas escolhas em juízos morais, é claro, mas não há razão para tratá-los como grandes autoridades no assunto.) Qual método deve ser utilizado? Essa não é uma pergunta trivial. Por um lado, há o argumento (aparentemente endossado por Medina) de que a interpretaçãoliteral gera um resultado inadmissível. De acordo com esse argumento, não há como justificar, à luz de considerações sobre a justiça, que se tratem de maneiras diferentes (no que diz respeito ao rigor punitivo) condutas ilegais que diferem apenas ligeiramente no que diz respeito às penas que as acompanham. Afinal, não há uma diferença moralmente relevante entre um réu sujeito a pena de 2 anos e um réu sujeito a pena de dois anos e multa. Além disso, para complementar o argumento de Medina, cabe dizer que a diferença quanto à pena diz respeito apenas ao rigor da pena máxima cominada para cada crime. É possível que, uma vez condenados os réus, eles não recebam as penas máximas admitidas por lei. O réu processado por crime cuja pena máxima é de dois anos pode vir a ser condenado a cumprir pena de apenas um ano. Mas o réu processado por crime cuja pena máxima é de dois anos e multa também pode ser condenado a pena de um ano simplesmente. Considere, agora, uma possível réplica ao argumento de Medina. É claro que a diferença entre uma pena máxima de dois anos e uma pena máxima de dois anos e multa é, a princípio, moralmente irrelevante. Mas, à luz de certas considerações institucionais, uma distinção arbitrária como essa pode se mostrar moralmente justificada. Afinal, considerando um caso análogo, por que é que consideramos inimputáveis os menores de 18 anos? Há mesmo uma diferença moralmente relevante entre um jovem prestes a completar os 18 anos e outro que já os completou? Essa distinção parece arbitrária, e, no entanto, é pouco provável que Medina a questionasse. É claro que ele poderia dizer, como de fato muitos têm dito, que 18 não é o melhor número, pois, no mundo moderno, aos 16 anos já se tem consciência dos efeitos lesivos de certos atos. Mas o debate acerca do número exato não tem importância. O importante é notar que poucos negariam a necessidade de se fixar alguma idade (qualquer que seja ela) abaixo da qual não há imputabilidade. Isso não prova que o argumento de Medina está errado, mas mostra a plausibilidade da ideia contrária de que distinções moralmente arbitrárias são indispensáveis em qualquer sistema jurídico. Elas garantem previsibilidade e uniformidade decisória, e impedem que os juízes tenham discricionariedade para lidar com problemas cuja complexidade pode ultrapassar os limites das suas competências. E não se fala aqui apenas de distinções no campo do direito penal. É o mesmo tipo de preocupação institucional que motiva os legisladores a determinar que jovens com menos de 18 não podem dirigir; que jovens com menos de 16 não podem votar; que apenas os maiores de 60 são considerados idosos etc. Não sei dizer quem é que tem o melhor argumento nesse debate. Eu me inclino a pensar que a aplicação literal do “ou” de fato é injusta, mas não estou certo de que se trata de uma injustiça grave o suficiente para justificar a decisão de Medina. Apesar da incerteza, o caso é útil para ilustrar a tese de que, no Brasil, os debates judiciais sobre interpretação às vezes não fazem justiça à complexidade do tema. A tensão entre métodos interpretativos e a existência de argumentos plausíveis a favor do emprego de cada método são fatos simplesmente ignorados por Medina na sua decisão. Ele mesmo resume sua argumentação ao que está dito no seguinte parágrafo: Por todo o exposto, por não acreditar que a cumulatividade das penas gera agravamento do crime em apreço, deslocando, destarte, a competência do juizado para o juízo criminal, meu voto é no sentido de que os crimes de porte e disparo de arma de fogo, constantes do art. 10 da Lei 9.437/97, por apresentarem pena privativa de liberdade máxima não superior a 2 (dois) anos, subsumem-se ao disposto na legislação federal que trata dos juizados especiais criminais, sendo da competência destes, o julgamento. “Por todo o exposto” refere-se, na verdade, a uma longa citação da obra de Luiz Flávio Gomes, citação essa que sequer trata da questão crucial, isto é, a questão sobre como interpretar o artigo 2° da Lei n° 10.259. Seria, naturalmente, um exagero dizer que, a Medina, falta “sinceridade” (termo que usei no capítulo 4 quando fazia críticas a certos aspectos do comportamento judicial); mas não seria exagero dizer que ele apresenta uma questão complexa e controvertida como se fosse simples o suficiente para caber em um parágrafo. Os defeitos da decisão de Medina não são peculiares a esse magistrado, mas aparecem constantemente nas decisões das cortes brasileiras de forma geral. 6 Eu digo que são defeitos porque tratam como óbvia uma solução que, além de não ser óbvia, é objeto de controvérsia 6 Pode parecer que estou fazendo de Medina uma espécie de réu no meu tribunal filosófico particular, mas não é esse o meu objetivo. Escolhi analisar (e criticar) sua decisão apenas porque ela me pareceu bastante concisa e interessante. Os problemas que encontro na sua decisão são, na verdade, comuns a muitos outros magistrados. profunda, e porque não dão a devida ênfase à delibração substantiva ocasionada pela escolha de m determinado método de interpretação jurídica. Em síntese, são defeitos porque não estão de acordo com o ideal de transparência deliberativa que está na base do ideário democrático moderno.
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