Prévia do material em texto
Autoras: Profa. Ana Lúcia Machado da Silva Profa. Janaína Arruda da Silva Colaboradores: Profa. Cielo Festino Profa. Joana Ormundo Prof. Adilson Silva Oliveira Literatura Portuguesa: Poesia Professora conteudista: Ana Lúcia Machado da Silva / Janaína Arruda da Silva Ana Lúcia Machado da Silva é mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Foi professora do ensino básico em rede pública e privada da disciplina Língua Portuguesa durante quase vinte anos. Ministra aulas de Análise do Discurso, Semântica e Pragmática, Literatura em língua portuguesa, entre outras, no curso de graduação em Letras pela Universidade Paulista UNIP). Ministra também aulas em módulos para cursos de lato sensu pela UNIP e Faculdade Atibaia (Faat). Janaína Arruda da Silva é bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e licenciada em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa. É doutoranda em Literatura Brasileira na FFLCH. Leciona no ensino superior desde o ano 2000 e é professora de Literatura na UNIP, no curso presencial, desde 2003. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S586l Silva, Ana Lúcia Machado da Literatura portuguesa: poesia / Ana Lúcia Machado da Silva; Janaína Arruda da Silva - São Paulo: Editora Sol, 2012. 192 p., il Notas: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-028/12 , ISSN 1517-9230. 1. Literatura portuguesa. 2. Poesia portuguesa. 3. Língua Portuguesa I.Título. CDU 869.0 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Michel Kahan Apt Amanda Casale Sumário Literatura Portuguesa: Poesia APRESENTAçãO ......................................................................................................................................................7 INTRODUçãO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 TROVADORISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO............................................................................11 1.1 Cantigas de amor ................................................................................................................................. 21 1.2 Cantigas de amigo ............................................................................................................................... 25 1.3 Cantigas satíricas: cantigas de escárnio e maldizer ............................................................... 28 2 HUMANISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO ................................................................................. 45 2.1 Poesia palaciana .................................................................................................................................... 49 2.2 O teatro de Gil Vicente ....................................................................................................................... 51 2.3 Comicidade ............................................................................................................................................. 54 2.4 Auto da barca: inferno e crítica social ......................................................................................... 55 3 CLASSICISMO: CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO DO RENASCIMENTO....................................... 57 3.1 Produção literária e características ............................................................................................... 61 3.2 Sá de Miranda ........................................................................................................................................ 61 3.3 Luís Vaz de Camões épico ................................................................................................................. 66 3.4 Luís Vaz de Camões lírico ...................................................................................................................71 4 BARROCO E ARCADISMO ............................................................................................................................. 84 4.1 Barroco: contexto social e histórico ............................................................................................ 84 4.2 Produção e características ................................................................................................................ 86 4.3 Arcadismo: contexto social e histórico ....................................................................................... 88 4.4 Produção e característica .................................................................................................................. 88 4.5 Manuel Maria Barbosa de Bocage ............................................................................................... 89 Unidade II 5 ROMANTISMO .................................................................................................................................................. 97 5.1. Produção e características ............................................................................................................... 98 5.2 Almeida Garrett ..................................................................................................................................... 99 5.3 João de Deus ........................................................................................................................................101 6 REALISMO E SIMBOLISMO .........................................................................................................................103 6.1 Realismo: produção e características .........................................................................................104 6.2 Autores: Antero de Quental, Cesário Verde, Guerra Junqueiro .......................................107 6.3 Simbolismo: produção e características ................................................................................... 113 6.4 Autores: Eugênio de Castro e Almeida, Florbela Espanca, Camilo Pessanha ............. 114 Unidade III 7 MODERNISMO ................................................................................................................................................122 7.1 Vanguardas europeias ......................................................................................................................122 7.2 Fernando Pessoa: ortônimo e heterônimo ............................................................................128 7.3 Mário de Sá-Carneiro ......................................................................................................................1577.4 Presencismo e neorrealismo ..........................................................................................................157 8 TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS ..........................................................................................................160 8.1 José Gomes Ferreira ...........................................................................................................................164 8.2 Sophia de Melo Breyner Andresen ..............................................................................................168 8.3 Herberto Helder ..................................................................................................................................169 7 APreSentAção Seja bem-vindo ao ambiente virtual da disciplina Literatura Portuguesa: Poesia. Dois são os motivos para maior aprofundamento em nossos conhecimentos sobre a literatura portuguesa: um deles é óbvio, pois se relaciona à língua portuguesa, compartilhada entre portugueses e brasileiros. A matéria- prima da literatura – seja qual for sua nacionalidade – é a língua, assim, a literatura portuguesa é uma manifestação artística em língua: as combinações possíveis e imagináveis fonéticas, figuras verbais e concepções de ideias. Conhecer mais a literatura de nossos irmãos de língua é conhecer mais um lado da nossa língua e, por meio desta, a cultura e o pensamento de um povo. Outro motivo – mais sutil – refere-se ao processo diferenciador verificado a partir da metade do século passado: o início da europeização e universalização da literatura portuguesa. Não podemos deixar de considerar a situação de Portugal em relação ao mundo, porque, como bem resume o sociólogo e português Boaventura dos Santos (2006, p. 53): “Apesar de ser um país europeu e de os portugueses serem tidos por um povo afável, aberto e sociável, é Portugal considerado um país relativamente desconhecido”. Tal desconhecimento abrange, também, a produção literária. Assim, a partir de 1950, as linhas filosóficas, ensaísticas e estéticas adotadas informaram e influíram na literatura portuguesa, marcando intensamente o processo de conquista de leitores além da língua portuguesa. Várias obras passaram a ser traduzidas para o espanhol e francês, por exemplo, além do tratamento às ideias que ultrapassam o homem português, atingindo questionamentos que são transcendentais e de todos os homens. Assim, a disciplina Literatura Portuguesa: Poesia estuda – dentro de uma abordagem diacrônica e com base em leituras – autores e obras decisivas para a formação da cultura literária em Portugal, desde a Idade Média até a contemporaneidade, além de propor um panorama geral da cultura portuguesa. No decorrer desse estudo, analisaremos e exercitaremos textos e práticas do ensino poético literário, a fim de estabelecer correlações entre produções literárias de diferentes épocas e regiões, considerando o contexto histórico e cultural, assim como as outras artes em geral. Este livro-texto tem a finalidade de proporcionar-lhe o reconhecimento do desenvolvimento e das características específicas da literatura portuguesa, por meio do estudo de autores e de algumas obras, considerando o contexto histórico, cultural e social de cada período, e as características específicas dos escritores pesquisados. Também possui a intenção de proporcionar ao aluno a capacidade de reconhecer a estrutura e a operação estética realizada nos textos literários considerados canônicos para a formação e constituição da literatura portuguesa, bem como nos textos contemporâneos e, a partir disso, criar possibilidades para que se possa debater o ainda amorfo conceito de literatura pós-moderna no país, além do modo de articulação desse juízo estético com a sociedade contemporânea. Enfim, o que buscamos é mostrar a cultura portuguesa, suas obras e seus autores, como um processo cultural contínuo e consolidado da consciência nacional e cultural do país — dentro e fora das culturas de massa. Proporcionando uma boa reflexão sobre a relação entre a literatura e a sociedade local e a situação destas no contexto em que se inserem os movimentos literários, podemos fornecer-lhe, caro aluno, subsídios específicos para que, posteriormente, possa lecionar literatura no ensino médio. 8 Para formar um quadro sintético, este livro-texto se constitui de três unidades. Na unidade I é apresentado o início da formação da literatura portuguesa desde o século XIII. Esse período ainda é marcado pela fase da história chamada Idade Média, que influencia a arte. Assim, a literatura reflete, por exemplo, a grande distinção entre as classes sociais e preceitos religiosos católicos. Enfim, nessa unidade do livro-texto constam os dois primeiros movimentos literários portugueses: Trovadorismo e Humanismo. Há a apresentação de três estilos literários, sendo eles: Classicismo, marcado pelo mais escritor do país, Luís Vaz de Camões; Barroco, movimento constituído do sofrimento humano, dividido entre a fé e a razão, conhecimento; e, por fim, o Arcadismo, cuja característica maior é a valorização de uma vida mais integrada à simplicidade. Na unidade II, apresentam-se mais três estilos literários: Romantismo, Realismo e Simbolismo. Sabemos muito sobre o Romantismo, cuja característica marcante é o subjetivismo, ou seja, a voz que fala nos poemas centra-se no texto. Em contrapartida, o Realismo volta-se mais para a coletividade e seus problemas sociais. O Simbolismo, em reação contrária à intenção mimética da arte, preocupa-se com a arte em si e sua estética. Finalmente, na unidade III há a apresentação da literatura portuguesa no século XX, marcada pelo Modernismo e influenciada pelas estéticas mais radicais, tais como futurismo, cubismo, entre outras da vanguarda europeia. O Pós-Modernismo segue variada tendência, não podendo ainda ser nomeado um estilo único. Por isso, temos obras consideradas como tendências contemporâneas. Introdução Se alguém lhe perguntar, caro aluno, o motivo da existência da literatura na história passada e atual da humanidade, o que você responderia? Ficaria indignado com a cegueira alheia quanto à importância da literatura e daria exaltadas explanações? Ficaria minutos, dias, meses pensando em uma resposta realmente viável? Afinal, é um questionamento que você próprio faz? Recorreria a uma dessas explicações que muitos escritores/poetas dão em entrevista? Ou simplesmente lançaria outra pergunta: Você gosta de música? Isso mesmo! Quem não entende a literatura, entende música. Raramente encontramos uma pessoa indiferente ou que odeia música, mas encontramos inúmeras pessoas, incluindo jovens alunos na escola básica, que declaram explicitamente seu desgosto em relação à literatura. Logo, se a música é tão fundamental às nossas vidas, chegando a ser visceral, por que não comparar literatura a ela? Retomando a pergunta: por que existe literatura? ou: para que aprender literatura?, existe uma resposta possível: a literatura é como a música: essencial a nós; não vivemos sem. Afinal, a literatura e a música têm muito em comum. Vejamos: 9 • ambas têm história; • são inúmeros autores/compositores; • variam no decorrer do tempo e espaço, ou seja, elas têm estilo; • há estilo que agrada uns e desagrada outros; • causam preferências; • emocionam, levando ao choro ou ao riso; • levam a determinadas atitudes; • são benfeitas, mas podem também ser malfeitas; • são arte. Não podemos nos esquecer da maior característica em comum entre elas: uma se relaciona com a outra. No caso em especial da literatura portuguesa, as primeiras manifestações literárias foram em forma de... música! No decorrer da história da literatura portuguesa, muitos autores relacionaram sua obra à música. Por exemplo, Camões produziu, além de sonetos e redondilhas, as canções, as quais são poemas destinados ao canto. Alémdisso, muitos poemas portugueses foram transformados em música. Temos o famoso poema camoniano Amor é fogo que arde sem se ver, transformado em música pelo grupo brasileiro Legião Urbana (2010), na canção Monte Castelo. Mais recentemente, a cantora Maria Bethania (2006) lançou o CD Mar de Sophia, baseado em poemas da portuguesa contemporânea Sophia de Mello Breyner, em um trabalho musical esplêndido. Com base nessa relação lítero-musical, lanço-lhe, caro aluno, uma situação-problema. A letra de música a seguir foi lançada em 1981 no disco Traduzir-se, pelo cantor brasileiro Fagner (1999): Fanatismo Minh’ alma, de sonhar-te, anda perdida Meus olhos andam cegos de te ver Não és sequer a razão do meu viver pois que tu és já toda minha vida Não vejo nada assim enlouquecida... Passo no mundo, meu amor, a ler No misterioso livro do teu ser A mesma história, tantas vezes lida! “Tudo no mundo é frágil, tudo passa...” Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina, fala em mim! E, olhos postos em ti, digo de rastros: “Ah! podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como um deus: princípio e fim!... Eu já te falei de tudo, mas tudo isso é pouco, diante do que sinto. 10 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Dada a relação literatura-música, a proposta é você descobrir, no decorrer da leitura deste livro-texto, a fonte literária que foi transformada em música por Fagner. Aproveite para aprofundar seus conhecimentos e discutir a importância dessa fonte para a história da literatura portuguesa. 11 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Unidade I 1 troVAdorISMo: ConteXto SoCIAL e HIStÓrICo Quando pensamos no início da literatura no Brasil, recorremos à história a partir de 1500 e às manifestações literárias escritas em língua portuguesa. Quando pensamos no início da literatura em Portugal, seu marco é no século XII, data da formação de Portugal como país. A história de Portugal antes de sua unificação como nação remete-nos ao notório Era uma vez em um reino muito distante..., entretanto as terras hoje chamadas de Portugal não possuíam apenas um reino, mas contavam com a presença de quatro reinos. Na Idade Média, a Península Ibérica, região onde atualmente localizam-se Portugal e Espanha, era formada por diferentes reinos cristãos: Leão, Castela, Aragão e Navarra, que disputavam incessantemente a hegemonia daquele território. Ao final do século XI, o rei de Leão, Afonso VI, havia conseguido certa harmonia entre esses reinos. Doou à sua filha Tareja (ou Teresa) o Condado Portucalense, uma pequena faixa de terra entre o Rio Tejo e o Rio Minho, como presente de seu casamento com o príncipe D. Henrique de Borgonha, em 1094. Após a morte de Afonso VI, diversas disputas voltaram a ocorrer e o pequeno Condado Portucalense corria o risco de ser incorporado a outros reinos. Com a morte de D. Henrique, Dona Tareja assume o poder e estabelece estreitas relações com os galegos. O infante, Afonso Henriques, rebelou-se contra a mãe e iniciou uma revolução que eclodiu em 24 de junho de 1128, quando foi declarado pelo povo como seu soberano. Contudo, somente em 1143, na Conferência de Samora, Afonso VII, novo rei de Leão e Castela, reconhece Afonso Henriques como o primeiro rei de Portugal. O país tornou-se autônomo, mas demorou ainda muitos anos até consolidar seu território. Somente em 1249 o novo rei, Afonso III, conseguiu expulsar os últimos mouros e estabelecer as fronteiras atuais do país. O mapa a seguir configura sintética e progressivamente as conquistas de território – do norte para o sul – para a formação de Portugal como nação autônoma. 12 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Figura 1 - Área primitiva do galego-português e da Reconquista. O novo reino independente de Portugal, ao mesmo tempo em que se separava ao norte da Galícia, estendia-se para o sul ao anexar as regiões reconquistadas aos mouros. Com a tomada de Faro, a nova nação atingiu os limites que correspondem às fronteiras de hoje (TEYSSIER, 2004). Saiba mais O site Portal do Governo oferece várias páginas para você conhecer mais a história e a cultura de Portugal. Há um antigo lema da escola de Sagres: “navegar é preciso”. Então, boa viagem! O site oficial de Portugal é <http://www.portugal.gov.pt>. Nessa efervescência política, firmou-se a língua portuguesa, ou melhor, o galego-português, nos séculos IX a XII. Segundo Teyssier (2004), ressaltam-se três inovações dessa língua em relação ao latim: 1. Grupos iniciais pl-, cl-, e fi- > ch ([tš]). Houve palatização do l, uma vez que a consoante inicial seguida de l palatal originou a africada [tš], transcrita em português por ch. Em decorrência, como se vê na tabela a seguir: 13 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Tabela 1 - Palatalização latim/galego-português. Latim Galego-português PL plenu cheo~ planu chão plicare chegar CL clamare chamar FL flagrare cheirar 2. Queda de - l- intervocálico, contribuindo para criar em galego-português vários grupos hiatos. Exemplo: salire > sair; calente > caente (hoje quente); dolore > door (hoje dor); colore > coor (hoje cor) etc. A queda não apareceu nem ao leste da Península Ibérica, porque o leonês e o castelhano ignoraram tal mudança, nem ao sul, nos falares moçárabes. 3. Queda de n intervocálico e consequente nasalização da vogal precedente. Assim, vinu > v i~o; manu > mão; luna > lu~a; bonu > bõo etc. O galego-português constituía-se, entre outras, das seguintes características: a) Alfabeto: • confusão entre i/u, j/v, nh/nn, uso arbitrário de y. • origem do til: bõa, grãde. • aglutinação de palavras: nona (non a), sabel (sabe ele). • trocava-se: c/ç, q/qu, ch/x, s, ss, ç/z. b) Fonética: • hiato: maa, leer, door, bêe. • pronúncia de –or fechado: piôr, melhôr, mêôr, maiôr. c) Morfologia: • a partir do século XIII, houve muito estrangeirismo (galicismo, provençalismo, grecismo). • artigos: o, a, lo, la, ilo, ila(s), ûu, îra(s). • substantivos femininos: fim, mar, planeta, cometa. • substantivos uniformes: terminados em –dor, -tor, -or, -nt, -ês. Ex: pastor, senhor. • pronomes: eu, mego ou migo; tego ou tigo; lhi(s), sego ou sigo, lo(a), o(a). • numerais: ûu, dous, cinque; primeiro, segundo, tercer, quarteiro; dois tanto, três tanto, cem dobro; meo, melãde. 14 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 • conjunção: et, ed (e), vel (ou pelo menos), mas porém, porém. • advérbios; davante, dante (lugar), toste (cedo), cras (amanhã) • interjeição: bofé, par Deus, guai. d) Sintaxe: • home/homem para indeterminar o sujeito. Quanto ao vocabulário, a língua era constituída de vários arcaísmos, tais como: mi (mim), imigo (inimigo), soidão, arruído, nado (nascido), ofeso (ofendido), trigança (pressa), asinha (depressa), grão (grande), mor, peitar (subornar), garção (rapaz), comborço(a) (amante), coita (mágoa), solaz (consolo), domaar (semana), trebelho (jogo, diversão). Assim, a língua portuguesa passou por épocas ou fases, as quais são: 1. época pré-histórica: origens até o século IX. 2. época proto-histórica: século IX até XII. 3. época histórica: século XII em diante. 3.1. arcaica: século XII até XVI. 3.2. moderna: século XVI. O galego-português é, portanto, a fase arcaica da língua portuguesa, bem como a língua da primitiva poesia lírica peninsular. Após tantas disputase guerras, o novo clima de paz fez com que a literatura portuguesa se firmasse, ou seja, com que a poesia medieval portuguesa encontrasse seu auge no século XIII. Em síntese, a estruturação da língua portuguesa, o nascimento do reino português e a formação da literatura do país em questão estão extremamente interligados. Conhecer a literatura portuguesa é conhecer, também, as raízes literárias, sociais e históricas. Aqui é Portugal1 O Tejo que molha Toledo Mas não fica ali à toa Cedo foge para Lisboa Em Algarve uma prece No azul e branco azulejo São Lorenzo ora em solfejo 1 Poema disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/poesias/>. Acesso em: 24/01/2012. 15 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Nordeste, o interior pudico De altas rochas em montanhas Esconde o mar que a terra banha Poetas escritos na Arcádia Botaram em versos nuas lusas Sumo Almanaque das Musas Viajantes em noites sem insônia De perto de onde deságua o Tejo Saíram a cravar colônias Portus Cale já viveu em Roma Mas quem o fez e o toma É lusitano, lídimo português Exemplo de aplicação 1) Esse poema de Roberto Chaim é contemporâneo. Que elementos poéticos recuperam a história inicial de Portugal como nação autônoma? ___________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ 2) Indique uma característica cultural e outra religiosa portuguesa com base no poema. ___________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Comentário: O poema é atual e brasileiro, mas uma homenagem a Portugal. Sobre esse país, o leitor pode recuperar a história, como a Península Ibérica não ter a divisão atual Portugal/Espanha, devido à presença do famoso rio Tejo, que começa em Toledo (Espanha) e passa pela capital portuguesa. A expressão “Portus Cale” é referência a Portucalense. Sobre a cultura, há, por exemplo, a referência aos famosos azulejos, nas cores azul e branca. O aspecto religioso conta com a presença de São Lorenzo. II. Até que ponto você consegue entender o conteúdo do texto a seguir, escrito em galego-português (a fase arcaica da língua portuguesa)? Pode-se fazer um resumo ou reescrever o texto segundo a língua atual. “Como el-rey manda aos seus almuxarifes que nom leuem nenhuma cousa d’aqueles a que acaeçe prigoo no mar. Stabeleçemos que nenhum nom leue aaqueles que acaeçer perigoo no mar, assy dos da terra come dos das outras, se acaeçer por britamento de naue ou de nauio, alguma cousa que andasse na naue ou no nauio que aportase na rribeyra ou en alguum porto, mais os ssenhores d’essas cousas ajam-nas 16 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 todas em pax, assy que os nossos almuxarifes nom leuem d’eles cousa, nem aquelles que de nos as terras teuerem, nem nenhuum outro. Ca ssem rrazom pareçe que aquel que he atromentaado dar-lhi homem outro tormento. Se per uentura alguum contra esta nossa constetiçom quizer hir, reteendo-lhi o sseu auer, leuando dos dauamdictos alguma cousa, fecta primeiramente entrega das cousas que lhi filharom ou perderom, perça quanto ouver” (Lei dos almoxárifes de D. Afonso II, datada de 1211). ______________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Comentários: Hoje seríamos motivo de brincadeira se escrevêssemos uma palavra iniciada com rr ou ss, tal como ocorre na grafia de determinadas palavras na lei citada. Outra situação é o uso da letra u para representar o fonema /v/. Esse uso ocorria porque o latim, língua que deu origem ao português, não tinha a letra v. Constam também arcaísmos no texto, tais como: acaeçer (acontecer); britamento (naufrágio), filhar (tomar). O início de Portugal como nação autônoma aconteceu no período histórico nomeado como Idade Média, sendo o sistema socioeconômico o feudalismo. Predominavam grupos sociais fechados, impossibilitando mobilidade entre as classes. Havia também profunda ligação de dependência entre os senhores feudais e seus vassalos, à qual se denominava vassalagem. Os senhores feudais eram nobres de alta linhagem, os fidalgos (cavaleiros e escudeiros) e o clero, mas também havia na sociedade os servos e escravos. Os trabalhadores eram vassalos dos senhores (nobres e eclesiásticos) e estes, por sua vez, eram vassalos do rei. Para entender melhor a terminologia dos estratos sociais presente na poesia medieval portuguesa, esboçamos a constituição social no noroeste da Península, no século XIII: • Nobreza: incluía os infanções, que são os representantes de linhagens antigas e conhecidas, e os fidalgos, descendentes de cavaleiros vilãos que haviam ascendido à nobreza por suas posses. Essa diferença aos poucos desaparece e todos os nobres são fidalgos. Entre os fidalgos, destacam- se os ricos-homens, distintos pelo patrimônio, linhagem e familiaridade com o rei. Seu poder é simbolizado pelo pendão (poder de recrutar e comandar homens) e caldeira (possibilidade de alimentá-los com os seus recursos). Aqueles fidalgos que não podiam cumprir suas obrigações de cavaleiro, pois não possuíam cavalo, eram considerados escudeiros, estrato inferior da nobreza. • Cavalaria vilã: era essencialmente urbana, pois os cavaleiros viviam na cidade, tinham propriedade rural, mas não um solar, como os nobres. • Vilãos: constituídos pelos comerciantes, mesteirais (artesãos), pequenos proprietários rurais, que formavam estrato superior. Lavradores, sejam servos, colonos, herdadores e malados (homens de criação, mancebos etc.), formavam, por sua vez, o estrato inferior. 17 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia • Funcionários, homens de lei e de pena: boticários, físicos (médicos), escrivães, tabeliães, juízes, corregedores, meirinhos etc. • Clero: incluía todos os estratos sociais. Tinha importância socioeconômica e atuava na conservação e difusão da cultura. Na época, a organização social era pautada por uma visão teocêntrica de mundo, ou seja, Deus era tido como o centro do universo, um ser absoluto. O homem nasceu para obedecer, ou mesmo para seguir um caminho predeterminado, sem opções, sem livre-arbítrio. Todos os atos humanos eram explicados por forças ocultas. Por conseguinte, a Igreja era uma rica senhora feudal, responsável por difundir e manter os preceitos do catolicismo, assim como divulgar a educação. Saiba mais Para entender mais sobre a Idade Média e vislumbrar um pouco a forma de vida das pessoas nessa época, veja alguns filmes que a retratam: • As brumas de Avalon (The mists of Avalon, 2001, EUA) – sobre o rei Artur e a formação do país inglês, bem como sobre a relação entre rei e vassalos. • Os contos de Canterbury (I racconti di Canterbury, 1972, Itália) – narra, além de fatos curiosos e pitorescos, a vida e os costumes do século XIV na Inglaterra. • O nome da rosa (The name of the rose, 1986, EUA) – trata da vida do monastério e das relações hierárquicas entre os membros. Quanto à educação formal, ela era restrita a um grupo pequeno, em geral o clero e poucos filhos dos feudos, que sabiam ler e escrever. Como consequência, primeiro, a sociedade era predominantemente oral e, segundo,a literatura da época era produzida por esses escassos indivíduos letrados. Na verdade, a literatura, que se restringia à poesia, era totalmente dependente da música e da coreografia, pois era feita para ter o acompanhamento musical de algum instrumento, sendo assim, as apresentações dos trovadores se pareciam mais com performances. As pessoas comumente envolvidas nas apresentações musicais e poéticas eram: • Trovador: geralmente da nobreza, compunha os poemas por prazer. • Jogral: que canta e recita composições dos outros, fazendo disso sua profissão. • Segrel: classe intermediária entre o trovador e o jogral, apenas no galego-português. Distingue- se do trovador, pois recebe pagamento pelo ofício, e do jogral, porque é fidalgo. 18 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 • Menestrel: designação que os músicos passam a assumir quando o termo jogral passa a ser pejorativo e designar somente o vagabundo ou jogral que faz graça, conhecido hoje pela figura do bobo da corte. Era poesia feita para ser cantada nas cortes do rei e de magnatas portugueses, e a compunham todos aqueles que se julgavam com talento para tal. Na verdade, essa poesia era produzida pelo pequeno grupo que sabia ler e escrever: desde o rei e os príncipes, os bastardos dos reis, os ricos- homens e cavaleiros, escudeiros, até a gente socialmente mais desqualificada, vilãos que viviam de cantar e tocar nas casas ricas. O acesso ao conhecimento e às letras era privilégio das classes dominantes: clero e nobreza, contudo, de um lado, a constituição social do clero, com a inclusão de indivíduo de condições e origens diversas, contribuía para diluir os limites rígidos da distribuição de cultura; de outro lado, o gosto pela vida social desenvolvida entre a nobreza atraía uma população talentosa, mas de condição inferior, para as quais o modelo da corte era estímulo e fator de ascensão social. Por isso, não causa estranheza o fato de a literatura inicial de Portugal ser produzida, inclusive, por rei. Em Portugal, Dom Dinis, rei de 1279 a 1325, foi autor de 72 cantigas de amor, 51 de amigo, 3 pastorelas e 11 cantigas de escárnio e maldizer. D. Afonso X, rei de Leão e Castela entre 1252 a 1284, escreveu Cantigas de Santa Maria e 44 cantigas profanas, sendo estas 2 de amor, 2 de amigo, 34 de escárnio e maldizer e 4 tenções com outros trovadores. Quanto à posição social dos outros trovadores, exemplificam-se alguns casos, com base em Vieira (1987): • Paai (Paio) Soares de Taveirós: pertenceu à linhagem dos Velhos, família de antiga nobreza da região do Lima. • Martim Soares: sua família não era nobre, mas tinha posses. Era de Riba de Lima, atual Ponte de Lima. • Pedr’Amigo de Sevilha: foi clérigo, provavelmente da região de Betanzos, e frequentou a corte de Afonso X. Essa poesia, hoje conhecida como trovadoresca, surgiu em Provença, região sul da França conhecida como Langue d´Oc ou Languedócio, no século XII (Baixa Idade Média), em torno de 1189/1198, e foi finalizada em 1434. A França desenvolveu primeiro uma literatura sentimental, cortês, elegante e refinada, que transforma a mulher no santuário da inspiração lírica. A intensa influência romana, o clima mais ameno e a prosperidade econômica deram azo a esse espírito mais lírico, já ao norte predominava o espírito guerreiro, por isso cultivou mais o heroísmo das novelas de cavalaria. A mensagem poética do trovador provençal é a de que o amor é fonte da poesia e é leal, inatingível e sem recompensa – é o fin amors, ou o amor cortês, que traçou uma temática comum para as cantigas de amor, a que conhecemos como convencionalismo amoroso, em que podemos ver: 19 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia • Submissão: vassalagem humilde e paciente. • Mesura: discrição e moderação na linguagem para não comprometer a reputação da dama. • Elogio impossível: impossibilidade de traduzir em palavras os atributos e a formosura da dama. • Erotismo/drama passional: perturbação dos sentidos e a impossibilidade de se declarar diante de mulher tão perturbadora. O amor cortês está claramente ligado à vida palaciana e emula a estrutura de classes do mundo medieval, que vemos reproduzida na poesia, como observaremos mais adiante. Mais tarde, esse culto à mulher é substituído pelo culto à Virgem Maria, que a partir de 1209 foi imposto como tema oficial, depois das sanguinárias cruzadas do Papa Inocêncio III. Por isso, a lírica amorosa das cantigas de amor chega para nós evidenciando uma postura maior de idealização da mulher amada, cujo erotismo é bastante sutil. É do século XII o mais antigo documento literário escrito na língua galego-portuguesa: a cantiga conhecida como A Ribeirinha (1198 ou 1189), escrita por Paio Soares de Taveirós para Maria Pais da Ribeira, amante de D. Sancho I. A literatura desse período a que nos referimos, o Trovadorismo, é predominantemente poética, feita sob a forma de cantigas, canções ou cantares. A literatura em prosa é posterior e aparece definitivamente no fim do século XIV. observação A poesia medieval portuguesa chegou ao seu apogeu primeiramente na corte de D. Afonso X, depois na de D. Afonso III, de Portugal, e na do neto português do Rei Sábio, D. Dinis. Em síntese, o primeiro momento literário de Portugal chama-se Trovadorismo, um termo que vem do verbo trouver (achar). O termo “trovadorismo” é originário de “trova”, que também deu origem à palavra trovador, que designa o criador dos textos literários. Trovador, troubadour em francês, é aquele que “acha sua cantiga”. Os poemas naquela época eram denominados de cantigas por serem acompanhados de música, canto e instrumentos musicais. Tais cantigas eram escritas e cantadas em galego-português, idioma formador de uma unidade linguística entre Portugal e a Galiza. As cantigas trovadorescas dividiam-se em dois tipos principais: cantigas lírico-amorosas e cantigas satíricas. O Trovadorismo é anterior à invenção da prensa, as cantigas eram destinadas à transmissão oral, por isso muitas se perderam e o que chegou até nós são aquelas que foram compiladas em 20 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 cancioneiros, cujos copistas registravam à mão as cantigas por ordem de reis, que faziam a vez de um mecenas. Os cancioneiros mais conhecidos das compilações peninsulares escritas em língua galego portuguesa são: • Cancioneiro d´Ajuda: século XIII, portanto o único que remonta à época trovadoresca. • Cancioneiro da Vaticana: na biblioteca do Vaticano. • Cancioneiro da Biblioteca Nacional: inclui um tratado da poética trovadoresca. Esses três cancioneiros contêm tudo que nos resta da lírica trovadoresca, desde os fins do século XII até meados do XIV. A cópia do Cancioneiro d’Ajuda não foi completada em todos os seus detalhes e não temos, por conseguinte, a pauta musical das cantigas. Foi achado pelo antiquário de Madri Pedro Vindel apenas em 1914, de um cancioneirinho de Martim Codax, contendo sete cantigas de amigo, das quais seis acompanhadas de notação musical. No ano seguinte, de acordo com Vieira (1987), Vindel publicou pouquíssimos exemplares com reprodução fotográfica do manuscrito, propiciando edições futuras, críticas e estudos das cantigas. A leitura dos cancioneiros no seu estado original é difícil tanto para leigos quanto para especialistas, devido aos estragos naturais causados pelo tempo e outros fatores, como uso indevido, causando páginas arrancadas e margens cortadas. Além disso, dois dos cancioneiros foram copiados por amanuenses italianos e ibéricos de origem e cultura diversas, em diferentesmomentos da evolução da língua. Ainda segundo Vieira: O primeiro resultado verdadeiramente significativo, em termos de leitura e quantidade de informação posta ao dispor dos leitores, como fruto de pesquisas que lhe consumiram pelo menos 25 anos de vida, foi oferecido por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, ao publicar em 1904 a edição do Cancioneiro da Ajuda, em dois volumes (VIEIRA, 1987, p. 13). Figura 2 - Fotocópia de uma página do Cancioneiro d’Ajuda. 21 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia No que se refere aos gêneros, os poemas contidos nos cancioneiros são agrupados em: 1. Cantigas de amor 2. Cantigas de amigo 3. Cantigas de escárnio e maldizer. O critério para distinguir as cantigas de amor das cantigas de amigo é o emissor em cada caso: se a voz do texto é masculina, é de amor; se é feminina, então é de amigo. As cantigas de escárnio e maldizer distinguem-se pela intenção ofensiva: se as palavras são encobertas, temos as cantigas de escárnio; se ofendem abertamente, são cantigas de maldizer. 1.1 Cantigas de amor Cara aluna, imagine receber uma mensagem escrita ou cantada com os seguintes versos: Como morreu quem nunca bem Houve da rem que mais amou, E quem viu quanto receou D’ela, e foi morto por en: Ai, mia senhor, assi moir’eu! Apesar de a língua ser arcaica, nós – leitoras – com certeza suspiraríamos ao ler ou ouvir de um homem que declara “morrer de amor” por nós. Trata-se da primeira estrofe de uma cantiga de amor, criada por Paai Soares de Taveirós (apud VIEIRA, 1987, p. 41), completa a seguir: Como morreu quem nunca bem Houve da rem que mais amou, E quem viu quanto receou D’ela, e foi morto por en: Ai, mia senhor, assi moir’eu! Como morreu quem foi amar Quem lhe nunca quis bem fazer, E de que lhe fez Deus veer De que foi morto com pesar: Ai, mia senhor, assi moir’eu! Com’home que ensandeceu, Senhor, com gram pesar que viu E nom foi ledo nem dormiu Depois, mia senhor, e morreu: Ai, mia senhor, assi moir’eu! 22 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Como morreu quem amou tal Dona que lhe nunca fez bem, E quen’a viu levar a quem A nom valia, nen’a val: Ai, mia senhor, assi moir’eu! Segundo o crítico literário Moisés (2008), o mais provável é que essa cantiga tenha suas raízes na Provença, uma região da França que possuía intensa atividade cultural. Muitos jograis franceses (uma espécie de artista saltimbanco) passavam por Lisboa trazendo a nova moda poética. As cantigas de amor se caracterizam por apresentarem uma voz lírica masculina que, como um vassalo, portanto subserviente, confessa seu amor a uma mulher inacessível, geralmente pela sua classe social, muito diferente daquele, ou insensível aos apelos amorosos. O tom é sempre de lamúria e queixa, e se submete a formalidades e convenções, obedecendo às regras de convivência na corte e do amor convencional da poesia provençal, como o referir-se à senhora como mia senhor (minha senhora) ou mia dona (minha dona), expressões do galego- português. Reflete, portanto, uma forma platônica de amor, posto que a amada é idealizada, tida como inatingível, forçando assim o impulso erótico a sublimar-se; é a chamada coita de amor, que reproduz as relações da sociedade feudal de suserania e vassalagem. Possui linguagem mais elaborada em relação às cantigas de amigo e faz menos uso do recurso facilitador do refrão. Didaticamente, utilizamos o ano de 1198 (ou 1189) para marcar o início da literatura portuguesa, uma vez que é desta data o primeiro documento literário encontrado, A Ribeirinha ou Cantiga de Garvaia, escrita por Paio Soares de Taveirós, endereçada a Maria Pais Ribeiro, a favorita de D. Sancho I, filho de Afonso Henriques. Vejamos a seguir a cantiga Ribeirinha ou Cantiga de Garvaia (Taveirós apud MOISÉS, 2006, pp. 16- 17). Cantiga de Garvaia No mundo non me sei parelha, mentre me for como me vai, ca já moiro por vós – e ai! mia senhor branca e vermelha, queredes que vos retraia quando vos eu vi em saia! Mau dia me levantei que vos enton non vi fea! 23 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia E, mia senhor, dês aquel dia´, ai! me foi a mi mui mal, e vós, filha de don Paai Moniz, e bem vos semelha d´haver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d´alfaia nunca de vós houve nen hei valia d´ua correa. Vocabulário: non me sei parelha: não conheço quem se compare a mim mentre: enquanto branca e vermelha: alva e de faces rosadas retraia: retrate, represente en saia: sem manto que: pois ben vos semelha: bem vos parece d´haver eu por vós guarvaia: que eu deva receber, por vosso intermédio, um luxuoso vestuário de côrte correa: qualquer coisa de ínfimo valor Como podemos observar, há entre eles a “vassalagem amorosa”. Ele se coloca em uma posição inferior, como um vassalo, e a mulher em uma posição superior, como sua senhora. O eu lírico se mostra muito respeitoso, seu amor é cortês e convencional, ou seja, não há uma proximidade física. Lembrete O trovador chamava sua amada de “mia senhor” ou “mia dona”. Não havia o feminino “senhora”. Vejamos outra cantiga de amor no exemplo a seguir (Dinis apud MOISÉS, 2006, p. 19): Cantiga Hun tal home sei eu, ai ben talhada, que por vós tem a sa morte chegada; vede quem é e seed’em nenbrada; eu, mia dona. Hun tal home sei eu que preto sente de si morte chegada certamente; 24 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 vede quem é e venha-vos em mente; eu, mia dona. Hun tal home sei eu, aquest’oide: que por vós morr’ e vo-lo em partide, vede quem é e non xe vos obride; eu, mia dona. Vocabulário: hun tal home, sei eu: eu conheço um tal homem ben talhada: formosa seed’em nembrada: lembrai-vos disso preto: perto venha-vos em mente: tende em mente aquest’oide: ouvi isso vo-lo em partide: afastai-o disso (em – da morte) non xe vos obride: não vos olvideis (esqueçais) Note como o eu lírico dessa cantiga, cujo autor é D. Dinis, sofre por sua amada, a ponto de declarar que irá morrer de amor. Agora, observe como a música Meu bem querer, de Djavan (1980), revela os mesmos moldes das cantigas trovadorescas. Meu bem-querer É segredo, é sagrado Está sacramentado Em meu coração Meu bem-querer Tem um quê de pecado Acariciado pela emoção Meu bem-querer, meu encanto Tô sofrendo tanto Amor E o que é o sofrer Para mim que estou Jurado pra morrer de amor? De forma geral, com base em Spina (1956), as cantigas de amor seguem estes temas: 25 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia • submissão absoluta à sua dama; • vassalagem humilde e paciente; • promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade; • uso do senhal (imagem ou pseudônimo poético com que o trovador oculta o nome da mulher amada); • mesura, prudência, moderação, a fim de não abalar a reputação da dama, pois a inobservância desse preceito acarreta a sanha da mulher; • a mulher excede a todas no mundo em formosura (de que resulta o tema do elogio impossível); • por ela, o trovador despreza todos os títulos, as riquezas e a posse de todos os impérios; • desprezo dos intrigantes da vida amorosa; • invocação de mensageiros da paixão do amante (pássaros); • presença de confidentes da tragédia amorosa. Entre os sintomas mais comuns do amor cortês estão: • a perturbação dos sentidos (que atinge às vezes a loucura);• a impossibilidade de declarar-se, quando em presença da mulher; então embarga-lhe a voz; • a perda do apetite, a insônia, o tormento doloroso, a doença e a morte como solução do seu drama passional; • às vezes, certo masoquismo, certo prazer na humilhação e no sofrimento amoroso. 1.2 Cantigas de amigo As cantigas de amigo são originárias da própria Península Ibérica, não existiram na lírica provençal e têm, portanto, origem popular, o que explica o vocabulário escasso, os arcaísmos e as repetições tanto no recurso do refrão como nos paralelismos. Caracteriza-se pelo uso de eu lírico feminino, que dirige seu apelo amoroso à natureza e não raro é ambientada no meio rural ou marítimo. Assim, o eu lírico feminino, de camada social inferior, se apresenta como uma pastora ou camponesa, portanto distante da idealização da figura feminina das cantigas de amor. Essa moça, concebida de modo mais realista, está à espera de seu amigo, amado ou amante, e não raro queixa-se à mãe, às amigas ou à natureza o descaso de seu amigo, ou o fato de ele não chegar ao que combinaram. Apesar de serem escritas por homens, o trovador coloca-se no lugar de uma mulher simples, do povo, uma camponesa abandonada por seu amado. O motivo do abandono pode ser a guerra, as aventuras no mar ou outra mulher. Temos aqui um amor não convencional, que insinua um contato físico. 26 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 As cantigas de amigo são mais simples que as de amor. O paralelismo e os refrões são usados em abundância. A mulher nunca se dirige diretamente a seu amado, posto que este nunca se encontra, o que configura a coita amorosa. As cantigas de amigo recebem nomes específicos, dependendo da maneira como são ambientadas: • Cantiga de barcarola: no mar. • Cantiga de serranilha ou pastorela: no campo. • Cantiga de bailada: em ambientes de festa. • Cantiga de romaria: em ambiente religioso. Veja a seguir um exemplo de cantiga de serranilha (Dinis apud MOISÉS, 2006, p. 25): Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? ai, Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi á jurado? ai, Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss’amigo? E eu ben vos digo que é san’e vivo: ai, Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss’amado? E eu ben vos digo que é viv’e sano ai, Deus, e u é? E eu ben vos digo que é san’e vivo, E seerá vosc’ant’o prazo saído: ai, Deus, e u é? E eu ben vos digo que é viv’esano. E seerá vosc’ant’o prazo passado: ai, Deus, e u é? 27 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Vocabulário: pino: pinheiro u: onde pôs: combinou san’e vivo: são e vivo e será vosc’ant’ o prazo saído/passado: e estará convosco quando for a hora certa Note que, nas três primeiras estrofes, o eu lírico feminino se dirige à natureza, pedindo notícias de seu namorado. Nas últimas, a natureza lhe responde, tranquilizando-a. Como recurso estilístico, o trovador utiliza o paralelismo (repetição dos primeiros versos) e o refrão (repetição dos últimos versos). Esses recursos davam maior musicalidade e enfatizavam sua dor. Agora, veja a seguir uma música de Chico Buarque (1967) que retoma as características de uma cantiga de amigo: Com açúcar, com afeto Com açúcar, com afeto Fiz seu doce predileto Pra você parar em casa Qual o quê Com seu terno mais bonito Você sai, não acredito Quando diz que não se atrasa Você diz que é um operário Sai em busca de um salário Pra poder me sustentar Qual o quê [...] Diz pra eu não ficar sentida Diz que vai mudar de vida Pra agradar meu coração E ao lhe ver assim cansado Maltrapilho e maltratado Como vou me aborrecer Qual o quê Logo vou esquentar seu prato Dou um beijo em seu retrato E abro meus braços pra você 28 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 1.3 Cantigas satíricas: cantigas de escárnio e maldizer As cantigas satíricas possuem apelo popular por seu caráter cômico e transgressivo. Têm o intuito de satirizar os aspectos da vida feudal, sem poupar nenhuma camada social, atingindo nobreza, clero e povo. Muitas vezes podemos distinguir o alvo dos ataques dos trovadores, como outro poeta e algumas mulheres de moral duvidosa. Essas cantigas cultuam valores associados ao riso, como o carnavalesco, a sátira e o cômico, o grotesco e o obsceno. Apresentam pouco valor estético, mas são bons documentos históricos, pois registram costumes da época. A frequência com que foram cultivadas mostra que a produção dessas cantigas era muito comum e que elas não sofriam censuras. Hoje sabemos que, de 154 trovadores portugueses, 93 dedicaram-se à sátira. Nas cantigas de escárnio, há uma crítica indireta e nas de maldizer, direta, inclusive com a citação de nomes. Contudo, muitas vezes é difícil diferenciá-las. As cantigas de escárnio constroem, por meio do humor e da ironia, uma crítica indireta, valendo-se da ambiguidade e do sarcasmo. Comumente encobrem o nome da pessoa satirizada, a fim de que ela não seja identificada em uma leitura superficial. Veja o exemplo a seguir (Guilhade apud MOISÉS, 2006, pp. 29-30). Cantiga Ai dona fea! Foste-vos queixar porque vos nunca louv´en meu trobar mais ora quero fazer un cantar em que vos loarei toda via; e vedes como vos quero loar: dona fea, velha e sandia! Ai dona fea! Se Deus mi perdon! e pois havedes tan gran coraçon que vos eu loe en esta razon, vos quero já loar toda via; e vedes qual será a loaçon: dona fea, velha e sandia! Dona fea, nunca vos eu loei en meu trobar, pero muito trobei; mais ora já un bon cantar farei em que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia! 29 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Vocabulário: loar: louvar ora: agora toda via: sempre, completamente sandia: louca que vos eu loe en esta razon: mereceis a justiça de eu louvá-la loaçon: louvor pero: todavia Essa cantiga mostra o trovador fazendo troça com uma dama que lhe cobrou uma trova, então ele justifica sua falta dizendo que não fez nenhuma trova a ela, mas que fará agora chamando-a de feia, velha e louca. Assim, ele justifica o motivo por que nunca havia feito trova alguma para ela, dizendo que não é merecedora de seu cantar, já que sua beleza não está à altura de uma cantiga. Consideradas mais ofensivas que as de escárnio, as cantigas de maldizer satirizam de maneira direta, citando, muitas vezes, o nome do destinatário da cantiga. Aqui costumam-se empregar expressões grosseiras e palavras de baixo calão, veiculando, não raro, conteúdo obsceno. Veja a trova a seguir, dirigida a Maria Dominga (Ponte apud MOISÉS, 2006, p. 52): Quen a sa filha quiserdar mester, con que sábia guarir a Maria Doming’ á-d’ir, que a saberá bem mostrar; e direi-vos que lhi fará: ante dun mês lh’ amostrará como sábia mui ben ambrar. Ca me lhi vej’ eu ensinar ua sa filha e nodrir; e quen sas manhas ben cousir aquesto pode ben jurar: que, des Paris atees acá, molher de seus dias non á que tan ben s’acorde d’ ambrar. E quen d’aver ouver sabor non ponha sa filh’a tecer nen a cordas nen a coser, mentr’esta meestr’aqui for, que lhi mostrará tal mester, 30 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 por queseja rica molher, ergo si lhi minguar lavor. E será en mais sabedor, por estas artes aprender; de mais, quanto quiser saber sabê-lo pode muui melhor; e, pois tod’esto bem souber, guarrá assi como poder; de mais, guarrá per seu lavor. Vocabulário: Sa: sua Mester: profissão Sábia: saiba Guarir: prosperar Á-d’ir: há de ir Mostrar: ensinar Ambrar: andar com requebro e, por extensão, fornicar Ca me lhi vej’ei ensinar: porque já a vejo ensinar Nodrir: sustentar Manhas: artes, maneiras Cousir: considerar Aquesto pode ben jurar: isto pode dizer Atees: até E quen d’aver ouver sabor: e quem tem o desejo de enriquecer Mentr’esta meestr’aqui for: enquanto esta mestra aqui estiver Por que: para que Ergo se lhi minguar lavor: a não ser que lhe faltem homens En: disso De mais: além disso E, pois tod’esto bem souber: e depois que aprender tudo isso Guarrá: sustentar-se-á Lavor: trabalho Nesse texto o trovador, de maneira bastante grosseira, ataca essa mulher, Maria Dominga, dizendo que aquele que quiser dar um ofício lucrativo a sua filha deve deixar que ela a instrua, insinuando que Maria Dominga seja uma prostituta. 31 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Saiba mais Indico dois materiais para conhecer mais cantigas medievais. Um deles é o site do Projecto Vercial. Outro é o livro de Yara Frateschi Vieira, que consegue tratar dos três tipos de cantiga e apresentar uma antologia de forma didática e gostosa. É um excelente livro de consulta, principalmente para quem trabalha em sala de aula, com aluno do ensino médio. Projecto Vercial. Disponível em: <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/ trovador.htm> VIEIRA, Y. F. Poesia medieval: literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987. Quanto à versificação, a grande maioria dos poemas trovadorescos possui três ou quatro estrofes – ou cobras, na terminologia da época, sendo a minoria constituída de duas estrofes e, menos ainda, de uma estrofe, podendo ser legitimamente levantada a hipótese de se tratarem de poemas incompletos (VIEIRA, 1987). O tipo de estrofe mais comum contém seis versos, unidos por três rimas, sendo elas ABBACC ou ABABCC. Outra formação é a estrofe de sete versos, sendo os seis primeiros unidos por três rimas e o último retomando uma das duas rimas iniciais. Um terceiro tipo compõe-se de dístico monorrimo mais um verso com rima nova, o qual se estende sempre como refrão AAB. O verso mais comum é o decassílabo; outra possibilidade são estrofes monométricas compostas de versos de 5 a 16 sílabas e estrofes polimétricas em 113 combinações diversas. Depois das três ou quatro estrofes, os trovadores podiam acrescentar alguns versos (de um a quatro) para completar o tema desenvolvido. Esses versos finais – fiindas – devem rimar com a última estrofe ou, no caso de a cantiga possuir um refrão, com este. As cantigas possuidoras de refrão chamam-se “de refrão” e se opõem às de “mestria”, que não têm refrão. A grande maioria das cantigas de amigo é de refrão, enquanto as de amor e de escárnio e maldizer equilibram-se, mais inclinadas para as de mestria. A característica formal da cantiga de amigo é, contudo, a estrutura de repetição, de retorno ou paralelismo. A estrutura básica paralelística, sujeita a variações, consiste em considerar cada verso como composta de duas partes, uma invariável e outra variável. A unidade não é o verso, mas a sequência constituída por dois pares de versos. O esquema seria o seguinte (VIEIRA, 1987, p. 19): 32 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Verso 1 A # B rima 2 C # D sinonímia 3 A # B’ sinonímia rima 4 C # D’ B e D, B’ e D’ relacionam-se por rima; B e B’, D e D’ por sinonímia. Vejamos como o esquema funciona na barcarola de Joam Zorro: A B Verso 1 Per ribeira # do rio C D 2 vi remar o navio Refrão e sabor hei da ribeira. A B’ 3 Per ribeira # do alto C D’ 4 vi remar # o barco e sabor hei da ribeira. Para continuar o poema, o recurso empregado é a repetição, mas de uma nova maneira, como vemos pelo esquema a seguir: Verso 5 C # D 6 E # F 7 C # D’ 8 E # F’ Portanto, em sequência de oito versos, dispostos em pares, apenas três versos apresentam novidade no poema. A cantiga anterior iniciada continua assim: 33 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia A D Verso 5 Vi remar # o navio: E F 6 i vai # o meu amigo, Refrão e sabor hei da ribeira. C D’ 7 Vi remar # o barco: E F’ 8 i vai # o meu amado, e sabor hei da ribeira. O processo pode parar nesse ponto ou continuar: E F Verso 9 I vai # o meu amigo, G H 10 quer-me levar # consigo, Refrão e sabor hei da ribeira. E F’ 11 I vai # o meu amado, G H’ 12 quer-me levar # de grado, e sabor hei da ribeira. A estrutura paralelística é característica das cantigas de amigo, mas não é exclusiva delas, uma vez que nem todas as cantigas de amigo têm tal estrutura, e algumas de amor e satíricas recorrem a ela. Para ajudá-lo em suas futuras leituras de cantigas medievais, encerro esse período literário dispondo um glossário (VIEIRA, 1987): 34 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 A Acoomiar – recusar Afam – trabalho, esforço Aficado – apertado, perseguido Aginha – depressa Al – outra coisa Alá – lá, então Alacram – escorpião Alfaia – presente, dom Alfaraz – cavalo árabe muito veloz Alhur – em outro lugar Aló – lá, ali Alto – ribeira, rio Antejo – aborrecimento, tédio Aqueste, a, o – este, esta, isto Ar – de novo, também Arçom – arção Avem – acontece BBafordar – praticar bafordo (exercício de armas como jogo ou esporte) Baroncinho – varãozinho Beeito – bento, bendito Bragas – cuecas C Ca – pois, porque; que; ca non – e Calheiro – cano de madeira Carreira – caminho Chanto – pranto Cochõa – mulher de baixa condição social Crerezia – clerezia, cultura D Delgada – blusa de tecido fino Delgado – esbelto, formoso Delho, a – dele,a Departir – dizer, contar Dõa – dom, presente Dormom – barco pequeno Drudo – amante E 35 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Eixerdado – deserdado Ementar – discorrer, falar Empero – porém En – ende Ende – disso, daí Enfenger – fingir Er – também, além disso, outra vez Escaecer – esquecer Espedir – despedir F Ferido – expedição militar Festinho – rápido Fezo – 3ª p.s. perf. ind. de fazer Filhar – tomar Fontana – fonte Frol – flor G Gaar ou gãar – ganhar Galeom – galeão Galiom – galo novo Garvaia – manto real Guarir – curar, curar-se Guisa – forma, maneira H Ham – haver Home – homem I I – aí, nisso L Lazerar – sofrer Ledo – alegre Ler – praia Levado – levantado, alto Lezer – consolação, prazer Loaçom – elogio, louvar 36 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 M Mãer – pousar, dormir Mais – mas Maleza – maldade Maninho – estéril Manselinho – doce, harmonioso Meezinha – remédio Mente – mente, pensamento Mentre – enquanto Meselo – miserável Miscrar – misturar Mixom – esforço, trabalho, canseira Moesteiro – mosteiro Monteiro – caçador de monte N Nado, a – nascido, a Nembrar – lembrar No – quem no Nulho, a – nenhum, a O Ogano – este ano Oimais – de hoje em diante Oir – ouvir Ora – agora Osmar – estimar, calcular a medida P Pagar-se – sentir prazer Parelha – par Pear – peidar Pero – mas, contudo Pois – depois Preçar – apreciar Preito – intenção, proposta Prender – tomar, receber Prez – dignidade, estima Prol – proveito Punhar – esforçar-se, procurar 37 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Q Quebranto – prejuízo Quedo – quieto Quige – 1ª p. s. perf. ind. de querer Quitar – tirar, livrar R Rafece – vil, ordinário Rapaz – lacaio, servente de escudeiro Razõar – falar Reedor – cortador de cabelo Rem – coisa Retraer – retratar, descrever Roussar – violar S Sabor – prazer Sandece – loucura Sanha – ira, raiva Sazom – estação, tempo, ocasião Sen – juízo, pensar Senlheiro – sozinho, único Sirgo – seda Só – sob, debaixo Soer – costumar Sol – 3ª p. s. pres. ind. de soer Sol – nem sequer Sol que – assim que; logo que Solaz – prazer, consolação T Talho – categoria Temudo – temido Tolher – tirar Torto – erro Trager – trazer Trá-lo – atrás do, além do Trobar – trovar, fazer trovas U U – onde, quando 38 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 V Varõa – de varom: barão, senhor; mulher nobre Veiro, a – de cores variadas Vel – pelo menos, sequer Velido, a – formoso Vençudo, a – vencido Verão – a primavera Vesso – verso Vigo – cidade da Galiza Viir – vir Virgo – donzela Volver – mexer, revolver No mundo non me sei parelha, mentre me for como me vai, ca já moiro por vós – e ai! mia senhor branca e vermelha, queredes que vos retraia quando vos eu vi em saia! Mau dia me levantei que vos enton non vi fea! E, mia senhor, dês aquel dia´, ai! me foi a mi mui mal, e vós, filha de don Paai Moniz, e bem vos semelha d´haver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d´alfaia nunca de vós houve nen hei valia d´ua correa. (Taveirós apud MOISÉS, 2006, pp. 16-17) Exemplo de aplicação Nessa cantiga, uma regra é rompida na relação entre o trovador e sua amada. Qual? __________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Comentários: A cantiga de amor é marcada pela relação de vassalagem e o amor entre o vassalo e a amada ou o amor do vassalo não correspondido é ocorrido em segredo. No entanto, na cantiga o nome da amada é revelado, quando o trovador declara: “e vós, filha de don Paai / Moniz, e bem vos semelha”. 39 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Se eu pudesse desamar a quem me sempre desamou, e podess’ algum mal buscar a quem me sempre mal buscou! Assi me vingaria eu, se eu pudesse coita dar a quem me sempre coita deu. Mais sol non posso eu enganar meu coraçom, que m’enganou, por quanto me faz desejar a quem me nunca desejou. E por esto nom dormio eu, porque non posso coita dar a quem me sempre coita deu. Mais rog’a Deus que desempar a quem m’assi desamparou, ou que podess’eu destorvar a quem me sempre destorvou. E logo dormiria eu, se eu pudesse coita dar a quem me sempre coita deu. Vel que ousass’em preguntar a quem me nunca preguntou, per que me fez em si cuidar, pois ela nunca em mim cuidou. E por estol azero eu: porque non poss’eu coita dar a quem mi sempre coita deu. Exemplo de aplicação A cantiga que acabou de ler é do segrel Pero da Ponte (apud MOISÉS, 2006): a) Primeiramente, identifique o tipo de cantiga, comprovando sua resposta por meio do tema. ______________________________________________________________________________ b) Existem recursos interessantes na cantiga. Identifique exemplo de versos em que ocorre dobre (repetição de palavras) e em que ocorre mordobre (repetição de formas verbais). ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ 40 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Comentários: O trovador, ao falar de seu sofrimento amoroso (coita) e desejar vingança, ou seja, causar sofrimento à pessoa amada, marca um exemplo de cantiga de amor. No fim da cantiga, temos outra prova no uso do pronome “ela”, indicando que a voz que fala no texto é masculina. Quanto ao recurso estético da cantiga, encontramos, além de rima cruzada (ABAB) e refrão, o dobre e mordobre em todas as estrofes. Aproximadamente de 1100 a 1280, seis gerações de trovadores cantam como o amor é um princípio vivificador [...]. O amante, totalmente submisso à sua dama, deve-lhe um longo e total serviço amoroso sem esperar recompensa (PASTOREAU, 1989, p. 144). Exemplo de aplicação O texto que acabou de ler é de Michel Pastoreau, professor de antropologia histórica na École des Etudes en Sciences Sociales, em Paris, e um dos principais pesquisadores das populações europeias medievais. De que modo as cantigas lírico-amorosas do Trovadorismo ilustram a estratificação da sociedade feudal? Reflita e comprove nas cantigas. __________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Comentários: Segundo estudiosos das cantigas de amor, a vassalagem amorosa, que consiste no fato de o homem pôr-se inferior à amada, trata-se de uma inferioridade moral. Ou seja, a amada é moralmente superior à voz masculina que declara seu amor. No entanto, verifica-se queo jogo superioridade x inferioridade deve-se mais à condição social. Na verdade, a mulher faz parte de uma classe acima da do homem. I Vi eu, mia madr’, andar as barcas no mar: e moiro-me d’amor. Foi eu, madre, veer as barcas eno ler: e moiro-me d’amor. As barcas eno mar a foi-las aguardar: e moiro-me d’amor 41 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia As barcas eno ler E foi-las atender e moiro-me d’amor E foi-las aguardar e non o pud’achar: e moiro-me d’amor. (Torneol apud VIEIRA, 1987) ler – praia atender – esperar não o pud’achar – não o pude achar II Que prazer tens, senhor, de me fazerdes mal por bem (eu) que vos quis e quero e por isso peç´eu tant´a Nosso Senhor que vos mud´êsse coração, que mi tem tão sem razão. Prazer tens do meu mal, mas (eu) vos amo mais que a mim, e por isso peç´a Deus assim, que sabe quanto é meu mal, que vos mud´êsse coração, que mi tem tão sem razão. Muito vos praz do mal que sofro, luz d´estes olhos meus, e por isto peç´eu a Deus, que sabe a coita que sofro, que vos mud´êsse coração, que mi tem tão sem razão. E, se o mudar, então Possa eu viver, se não, não. (Dinis apud MOISÉS, 2006, p. 52) peç´eu tant´ – peço eu tanto mud´êsse – mude esse 42 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Exemplo de aplicação Em relação às cantigas apresentadas: a) Classifique-as, extraindo delas elementos que permitam tal classificação. __________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ b) No texto II, o eu lírico afirma “pero vos amo mais que a mim”. O que essa afirmação revela a respeito da relação amorosa apresentada? Como essa relação pode ser ligada à sociedade da Idade Média? __________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Comentários: A cantiga de Torneol é de amigo, devido à voz feminina que se dirige à mãe, como ocorre logo no primeiro verso. É uma cantiga de barcarola por se tratar de um cenário em que o amado da voz feminina está no mar, talvez a trabalho. A cantiga de Dom Dinis, por sua vez, é de amor pelo fato de a voz dirigir-se a uma mulher, chamando de “mia senhor” e declarar seu sofrimento amoroso. Nesse amor declarado há um desequilíbrio, porque a voz masculina coloca-se em relação de inferioridade, representando a sociedade medieval. Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? ai, Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi á jurado? ai, Deus, e u é? 43 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Vós me preguntades polo voss’amigo? E eu ben vos digo que é san’e vivo: ai, Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss’amado? E eu ben vos digo que é viv’e sano ai, Deus, e u é? E eu ben vos digo que é san’e vivo, E seerá vosc’ant’o prazo saído: ai, Deus, e u é? E eu ben vos digo que é viv’esano. E seerá vosc’ant’o prazo passado: ai, Deus, e u é? (DINIS apud MOISÉS, 2006, p. 25) Exemplo de aplicação Retomamos a cantiga de amigo de Dom Dinis para uma leitura mais aprofundada: a) Comprove que a cantiga é de tenção, ou seja, é uma cantiga dialogada. __________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ b) Essa cantiga segue a estrutura paralelística. Como se estruturam os pares de estrofes a seguir? Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? ai, Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? ai, Deus, e u é? c) Como se estruturam os pares de estrofes a seguir? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? ai, Deus, e u é? 44 Unidade I Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi á jurado? ai, Deus, e u é? d) Agora, compare o paralelismo ocorrido entre o primeiro verso da terceira estrofe com a primeira estrofe. O que há em comum? Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? ai, Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? ai, Deus, e u é? e) Com a análise feita, conseguiu entender a estrutura paralelística? __________________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________ Comentários: Trata-se de uma cantiga de amigo, em que a voz é feminina e, geralmente, dirige- se à natureza. No caso dessa cantiga, a mulher fala nas quatro primeiras estrofes e obtém resposta da natureza, que assume o enunciado nas últimas estrofes. O mesmo refrão “ai, Deus, e u é?” é usado nas falas da natureza, tornando-se apenas um recurso estético, sem relação com o tema da fala da natureza. Essa cantiga segue o esquema paralelístico. Primeiro, as estrofes pares formam sinônimos, com apenas a última palavra trocada (por um sinônimo), tal como acontece nas estrofes seguintes: Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? ai, Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? ai, Deus, e u é? Nessas estrofes, os dois primeiros versos de cada estrofe são sinônimos, ocorrendo apenas a substituição da palavra “pino” por “ramo” e “amigo” por “amado”. No caso da estrofe ímpar, há paralelismo com a primeira estrofe par: 45 Re vi sã o: M ic he l - D ia gr am aç ão : F ab io - 0 6/ 02 /1 2 Literatura Portuguesa: Poesia Ai flores, ai, flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo? ai, Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado? ai, Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo? ai, Deus, e u é? Verificamos que o primeiro verso da terceira estrofe é idêntico ao segundo verso da primeira estrofe e assim por diante no decorrer da cantiga. Espero que você, caro aluno, tenha ampliado e entendido o recurso paralelístico das cantigas. 2 HuMAnISMo: ConteXto SoCIAL e HIStÓrICo Humanismo é a denominação ao movimento literário e filosófico divulgado pela Europa e surgido nos meados do século XIV na Itália, onde atingiu seu momento culminante no século XV, configurando- se como momento central da cultura do Renascimento. Caracteriza-se por um reflorescimento dos estudos da Antiguidade e um modo diverso de entender os escritores gregos e latinos, oferecendo instrumentos para aprofundar e reviver uma civilização muito diferente da medieval e que foi mal compreendida na Idade Média, segundo Samuel (1990). A palavra Humanismo deriva do latim humanae litterae, em especial da expressão do latino Cícero studia humanitatis, com que os humanistas batizaram