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INTEGRAÇÃO ensino⇔pesquisa⇔extensão Fevereiro/99114 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PSICÓLOGO E AS PRÁTICAS ALTERNATIVAS — UM ESTUDO COM ALUNOS DE FACULDADE DE PSICOLOGIA * Zenaide Caciare Pereira ** Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão sobre a construção da identidade de futuros psicólogos que se envolvem com práticas alternativas. Baseando-se em teóricos como Ciampa, Scholem e Habermas, investiga a formação dos psicólogos, entrevistando alunos que pretendem atuar, ou que já atuam em práticas alternativas. Visando a esclarecer o que está ocorrendo hoje na psicologia, conclui que a formação da identidade coletiva do psicólogo como metamorfose só poderá se dar de forma pós convencional se a comunidade científica se abrir a discussões nas universidades e conselhos profissionais para refletir criticamente sobre a proposta, o que faria com que a psicologia continuasse cumprindo seu papel de ciência preocupada com o pleno desenvolvimento humano. Palavras-chave: Identidade profissional, Metamorfose, Práticas alternativas, Religiosidade e Psicólogo. Abstract: This paper proposes a reflection on the construction of the identity of future psychologists involved with alternative practices. Based on the work of Ciampa, Scholem and Habermas, it investigates the preparation of psychologists, by interviewing students who intend to work or are already working with alternative practices. Aiming at clarifying what is occurring in psychology today, it concludes that the building of the psychologist’s collective identity as a metamorphosis can only occur in a post-conventional way, provided that the scientific community starts debates, at Universities and Professional Councils, to think critically about the proposal. This will lead psychology to continue to fulfill its role as a science concerned about the full development of man. Key Words: Professional identity, Metamorphosis, Alternative practices, Religiosity, Psychologist. 1 INTRODUÇÃO Como professora do curso de psicologia, tenho observado com preocupação os projetos profissionais dos alunos que, cada vez mais, se interessam por algumas práticas, não aceitas oficialmente como científicas, denominadas práticas alternativas. Interessada pela identidade desses futuros psicólogos comecei uma observação mais constante e uma busca nas publicações dos Conselhos Profissionais dos Psicólogos. Nas publicações dos últimos dez anos não foram encontradas menções a esta realidade. Em 1994, no V Encontro Regional da Abrapso - São Paulo, o assunto foi ventilado por um grupo multi-disciplinar e então um representante do CRP - SP declarou a preocupação com o tema. Nesta época os Conselhos de Psicologia já mostravam um trabalho mais efetivo no sentido de discutir a respeito. No II Congresso Nacional da Psicologia, em 1996, as deliberações do I CNP foram ratificadas e resolviam que não é o Conselho, mas sim a comunidade científica que tem a responsabilidade de validar técnicas. O Conselho tem a função de normatizar o exercício profissional, porém quais devem ser as técnicas usadas ou não pelos psicólogos cabem às Agências Formadoras resolver. O conselho Federal de Psicologia estipulou, então, o prazo até o final do primeiro semestre de 1997 para que o tópico relativo às Práticas Alternativas fosse solucionado. Em junho de 1997, o Fórum de Práticas Alternativas realizado em Brasília resolveu: * Data de recebimento para publicação: 03/09/98. ** Universidade São Judas Tadeu e Universidade São Marcos Mestre em Psicologia Social. As técnicas e Práticas ainda não reconhecidas pela Psicologia poderão ser utilizadas no exercício profissional enquanto recursos complementares desde que: I) estejam em processo de pesquisa conforme critérios dispostos na Resolução n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde; II) respeitem os princípios éticos fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo; III) profissional possa comprovar junto ao CRP a habilitação adequada para desenvolver aquela técnica; e IV) cliente declare expressamente ter conhecimento do caráter experimental da técnica e da prática utilizadas. Artigo 3° A não observância desta Resolução constituir-se-á em infração ao Código de Ética Profissional do Psicólogo. Artigo 4° Caberá aos Conselhos Regionais orientar, disciplinar e fiscalizar, junto à categoria, a observância do disposto nesta Resolução. Artigo 5° Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial Ano V, nº 17 CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PSICÓLOGO — PEREIRA 115 as Resoluções CFP n° 29/95 de 16/12/95 e 16/94 de 03/12/94. Mesmo que os Conselhos Regionais e Federal estejam mostrando esta preocupação com as Práticas Alternativas, os professores envolvidos preferem ficar fora destas áreas. Esta afirmação está baseada na experiência constante com meus colegas que, na maioria, ainda não concordam com a abertura, mesmo pequena, dos Conselhos Profissionais e preferem a proposta da Psicologia científica. Os professores envolvidos na formação do psicólogo não aceitam o uso dessas práticas por não pertencerem à ciência psicológica oficial, alegando que não se pode comprovar os resultados. Paralelamente há um movimento que cresce a cada dia entre os estudantes de psicologia, (não posso declarar o que ocorre entre os psicólogos atuantes, pois não pesquisei este segmento) divulgando as próprias práticas alternativas, enfrentando mais a psicologia oficial. Quando nos aprofundamos no assunto, descobrimos que os limites entre a psicologia e algumas práticas alternativas são nebulosas e, por isso, passíveis de uso quase indiscriminado. Por outro lado, a religiosidade, a crença no espírito e a própria história da nossa cultura, deixam uma interrogação difícil de ser respondida pela psicologia brasileira, pois as teorias usadas foram adaptadas à nossa realidade e nem sempre se questiona se as mesmas são capazes de abranger a diversidade de nossa sociedade. Revendo os sérios problemas criados pelo capitalismo que inverteu totalmente os valores e transformou o homem em um objeto descartável e tão segmentado que já não se reconhece como um todo, encontramos toda a sorte de profissionais e de religiões competindo para conquistar novamente a confiança deste homem. O aluno de psicologia foi socializado no meio de todas essas mudanças e está buscando talvez uma psicologia que responda a questões atuais. Embora esse aluno não saiba explicar por que relaciona as práticas alternativas à psicologia, consegue justificar, na prática, por exemplo, que as práticas alternativas abreviam o processo terapêutico e ajudam no diagnóstico. Como professora no curso de psicologia, faço parte deste processo e interessando-me pela construção da identidade profissional de alunos que se envolvem com práticas alternativas, tentei aprofundar este tema em uma pesquisa, procurando esclarecer pontos obscuros que poderão contribuir para mostrar aspectos significativos da psicologia que está sendo praticada em nosso meio, no momento atual. Na coleta de dados de minha pesquisa entrevistei dez alunos, sendo que três foram apresentados como sujeitos principais, cujas entrevistas foram analisadas detalhadamente, considerando as personagens que contribuíram para a metamorfose na construção da identidade dos mesmos. Além destes três sujeitos, os resultados foram complementados com a análise das crenças cosmológicas de mais sete sujeitos. 2 A QUESTÃO DA RELIGIOSIDADE A história da humanidade tem sido, desde seus primórdios, pontuada pela religião. Na maior parte da história ocidental, a definição da realidade não pode fugir do ponto de vista religioso. Atualmente, porém, com o progresso da ciência, a religião vem perdendo terreno, cedendo à razão toda e qualquer interpretaçãoda verdade. A ciência predominantemente relega a religião ao plano do irracional, e, em alguns casos, do patológico. Nestes casos o deus que sobrevive só se manifesta através das carências dos indivíduos imaturos (Freud 1978). Entretanto, nos últimos anos, observamos um retorno ao misticismo e à religião, surgindo outras formas de pensamento como meios úteis que auxiliam a ciência na difícil tarefa de explicar os fenômenos. Esse retorno tem levantado inúmeras questões e discordância por parte dos cientistas e muitas explicações (nem sempre aceitáveis), por parte dos adeptos das práticas não consideradas científicas. De qualquer forma, estas questões merecem ser investigadas. As discordâncias referidas já partem de filósofos e cientistas, e, como exemplo, Freud e Habermas discordam sobre a relação entre natureza e cultura. O que para Freud é antagonismo insuperável, para Habermas é condição de constituição e evolução da espécie humana. A ciência moderna afasta-se totalmente do sagrado. A vida cotidiana fica privada da legitimação do sagrado e do tipo de inteligibilidade teórica que se ligaria ao universo simbólico. É a religião que restabelece essa ligação. Por isso, Berger e Luckmann (1985) equipararam a religião a um universo simbólico que produz sentidos e significados. O universo simbólico serve para transcender a finitude da existência individual, conferindo um significado à morte, e assim o homem ameniza seu terror diante do caos. De forma geral, a experiência mística é definida como a experiência do homem de sentir a presença de Deus. Para Scholem (1972) não existe algo como o misticismo no abstrato, ou seja, a percepção mística depende de outros fenômenos religiosos. Para Scholem (1972) o misticismo é um dos estágios da história, a terceira fase, que vem após o mítico e o religioso. O misticismo começa a investigar caminhos para transpor o abismo criado pela religião entre o homem e Deus. Tenta recuperar a antiga unidade, sem abandonar a racionalidade que a religião desenvolveu a partir do mítico. Enquanto Scholem (1972), sem negar a ciência, defende a evolução humana, considerando o misticismo um estágio superior e, portanto, emancipador do homem para além da razão gestada pela religião, Freud (1978) negando a religião, atribui esse papel exclusivamente à ciência, mais especificamente à psicologia, com todas as condições de libertar o homem, tornando-o controlador da natureza. INTEGRAÇÃO ensino⇔pesquisa⇔extensão Fevereiro/99116 Segundo Freud (1978), a ciência foi desenvolvida a partir das necessidades humanas de defesa e de proteção contra as forças que o ameaçam. Porém, a ciência não consegue controlar totalmente a natureza e, dentre outras ameaças, a morte continua um mistério que faz com que o homem busque um consolo. Assim encontramos em Deus o pai protetor que nos socorre em nossas angústias. As doutrinas religiosas seriam então ilusões, insuscetíveis de provas e da mesma forma irrefutáveis. Para Freud (1978), as doutrinas religiosas, todas elas, são ilusões; sobre a ciência considera que, embora existam muitos campos ainda não superados, em muitos outros campos há um conhecimento seguro e quase inalterável. Para William James (1995) a religião, seja qual for, é a reação total de um homem à vida. O mundo visível é parte de um universo mais espiritual do qual ele tira sua principal significação. A união ou a relação harmoniosa com este universo é a nossa verdadeira finalidade. A comunhão interior com o espírito deste universo mais elevado - seja ele “Deus” ou a “lei” - é um processo em que a energia espiritual flui e produz efeitos, psicológicos ou materiais, dentro do mundo fenomênico. A religião inclui diversas características psicológicas, tais como, uma certeza de segurança e uma mistura de paz e de afeições em relação aos outros. A ciência repudia totalmente o ponto de vista pessoal. Ela cataloga seus elementos e registra suas leis, indiferente às ansiedades que provoca no homem. Ao contrário, o eixo, em que gira a vida religiosa, é o interesse do indivíduo pelo seu destino singular. Os deuses, em que as pessoas acreditam, quase sempre atendem a seus chamados. O fato fundamental na religião é o interesse pessoal do indivíduo. Portanto, a religião, ocupando-se de destinos pessoais e mantendo-se assim em contato com essas realidades que conhecemos, como as únicas absolutas, deverá necessariamente desempenhar uma parte eterna na história humana. Quando examinamos todo o campo da religião, verificamos que, independente de teorias diferentes, há dois aspectos invariáveis nas vidas dos santos: o sentimento e a conduta. O sentimento pertence a uma certa ordem psicológica, que resulta em afeição, alegria, excitação, que, semelhante a um tônico, restaura as forças vitais, produz um encantamento para cada objeto comum da vida. É a força pela qual os homens vivem. É essa fé que, juntamente com um credo, forma uma dada religião, que podemos classificar como uma das mais importantes funções biológicas do homem. Para Wilber (1993), a comparação entre a evolução ontogenética e a filogenética, que reduz a religião a regressões, a formas infantis de encarar a vida, não pode explicar todas as reações humanas. Acredita que um indivíduo possa evoluir até estágios além da capacidade mental superior atual - o nível transpessoal. Este nível transpessoal ou superconsciente está acima de todos os níveis conhecidos pela psicologia contemporânea. Talvez possamos dizer que, nessa linha, Wilber e James falam de religiosidade num sentido muito próximo do sentido de misticismo de Scholem (1972). A mística, para este autor, seria uma superação dialética da religião (no sentido institucional), sendo esta uma etapa mais avançada e racional que o mito - este sim, primitivo, mágico, supersticioso. Esta concepção é interessante, na medida em que não menospreza estas questões tratando-as como ilusões, mas reconhece a necessidade de entendê-las no seu desenvolvimento social e histórico - seja pessoal, seja coletivo. 3 CRISE CONTEMPORÂNEA E IDENTIDADE A definição das práticas alternativas, para ser analisada com o referencial teórico da identidade, exige uma compreensão do movimento histórico da sociedade. Quaisquer que sejam as práticas, quaisquer que sejam as identidades, ambas só existem concretamente em momentos históricos determinados. No caso desta pesquisa, queremos captar o significado das práticas alternativas na atualidade, a despeito de, no passado, esse significado poder ter sido diferente. Uma prática antiquíssima, milenar até, como a consulta a um oráculo, que parece ter surgido quando a cultura era predominantemente mítica, deve ser entendida dentro da cultura atual como regressiva? Obviamente, recuperar a história das práticas é um trabalho enorme, que foge aos propósitos deste estudo. Importante aqui é considerar a atual fase histórica, genericamente chamada de modernidade e/ou pós-modernidade, buscando parâmetros e nexos para relacionar a apontada difusão das práticas alternativas com as mudanças na construção da identidade. Para Santos (1995), encontramo-nos no terceiro período do capitalismo - capitalismo desorganizado. Estamos constatando que as promessas da modernidade não cumpridas pelo capitalismo se tornam cada vez mais difíceis de serem concretizadas, tornando nossos dias atuais extremamente inquietantes. A expansão provocada pelo capitalismo tomou rumos incontroláveis. A agressividade contra a natureza e contra a própria liberdade do homem hoje é fator que requer bastante atenção da sociedade. O paradigma da modernidade capitalista se caracteriza pela conversão das energias emancipatórias em energias regulatórias, pelo êxito da individualidade sobre a coletividade e pelo predomínio da subjetividade abstrata sobre a contextual. Essas questões, as tensões da subjetividade e as relações entreenergias regulatórias e emancipatórias, são centrais para analisar o que ele aponta a propósito da mobilização social, a preocupação com o homem em si e com um sentido de vida. Na tensão entre a identidade coletiva - profundamente marcada pelos aspectos regulatórios - e a identidade individual - bastante influenciada por aspirações emancipatórias, talvez se torne possível entender o que ocorre com estudantes de psicologia que, Ano V, nº 17 CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PSICÓLOGO — PEREIRA 117 no seu projeto profissional, se envolvem com práticas alternativas. Talvez possamos supor que, como diz Santos (1995), a preocupação com o sentido da vida se reflete como um problema de identidade - em decorrência da evolução do capitalismo - um dos problemas centrais da modernidade. Se as prévias considerações sobre o misticismo forem cabíveis, não é absurdo pensar que a busca de práticas alternativas - ainda que, algumas vezes, com conotação mítica ou religiosa institucional - pode ser vista como busca de sentido da vida. Se essa preocupação não for reconhecida e corretamente analisada, apenas restará esperar que elas sejam incorporadas pela lógica do mercado, fazendo de tais práticas cada vez mais mera mercadoria. Para analisar esta hipótese, antes vamos discutir a noção de identidade dentro da literatura científica utilizada. Habermas (1983) trata da evolução do homem que é autor e ator da sua história, e pretende converter a energia regulatória em energia emancipatória, ampliando sua identidade. Para Habermas (1983), o que foi caracterizado como Razão Instrumental por Marx e tinha como verdade o valor econômico, tecnológico e instrumental, deve ser articulado com a Razão Comunicativa, cuja preocupação principal é a Ética, envolvendo por isso a identidade. Para Habermas (1983), a psicologia e a teoria marxiana hoje estão sendo ampliadas pelo conceito de identidade do EU. Esse conceito de Identidade do EU indica uma organização simbólica do EU, que forma suas estruturas a partir das diversas culturas, portanto universal, como um princípio norteador da história. Por outro lado, é uma organização autônoma do EU, que não se instaura como processo natural de amadurecimento, mas, na maioria das vezes, como um processo inacabado. Habermas (1983) afirma que a evolução do homem se dá numa direção emancipatória que tem início na criança, que maximiza o prazer, e vai se transformando, tendo como ponto máximo a busca da emancipação do adulto no nível pós convencional, como nível autônomo em que os princípios morais têm validade e aplicação, independentemente da autoridade dos grupos que os sustentam. A evolução ontogenética da sociedade ocorre, então, como emancipação do ser natural em direção ao homem eticamente orientado para a humanidade como um todo. Ao mesmo tempo, Habermas (1983) demonstra a evolução filogenética. Para ele, as identidades coletivas evoluíram através de quatro estágios assim resumidos: sociedades arcaicas, cuja estrutura se baseava na relação de parentesco, as compreendiam o mundo através de imagens míticas estabelecendo relações entre os fenômenos naturais e culturais. As entidades são consideradas homogêneas - tanto os homens, como os animais e os deuses. A identidade nesse estágio não oferece problemas, pois o homem está relacionado com o seu mundo. A sociedade foi evoluindo, e as primeiras civilizações dispõem de uma organização política, englobadas nas interpretações religiosas. Os deuses assumem figuras humanas, agem arbitrariamente e, também, estão submetidos a um destino e as necessidades. Assim, começa a dessacralização do ambiente natural e o início da autonomia das instituições políticas em relação à ordem cósmica, fazendo que o indivíduo se submeta à acidentalidade. Ainda é possível uma identidade de grupo. A ordem cósmica, a comunidade e o indivíduo são distintos, porém não causam danos à unidade do mundo que está centrado no político.O terceiro estágio apresenta, pela primeira vez, uma pretensão de unidade do universo, através das religiões mundiais, entre as quais o Cristianismo ganhou destaque. A idéia cristã de que há um Deus uno-transcendente abre as possibilidades para o homem de liberdade infinita, sendo ele a imagem e semelhança de Deus. Para conciliar o Estado e a Religião encontrando um equilíbrio entre a identidade coletiva e a identidade do EU, desenvolvem-se as ideologias nas modernas sociedades classistas. O problema da identidade só se torna consciente com o ingresso na época moderna, embora pertença a todas as civilizações.Com o ingresso na era moderna, todos os mecanismos criados para conciliar o Estado e a Religião se tornaram ineficazes, e a totalidade ética necessária para que cada indivíduo veja sua unidade através do outro, cinde-se totalmente. A partir do momento em que a religião entra em confronto com a ciência, seu sistema de fé passa a ser atacado até o ponto em que se coloca em questão a própria criação da natureza. A abordagem intuitiva da vida e da essência da natureza é lançada ao domínio do irracional. A religião perde, então, seu poder unificador. Em seu lugar, para que as relações não sejam independentes, a filosofia seria capaz de fazer esse papel. É o início da modernidade, a partir do iluminismo. É para esse problema da identidade que Habermas (1983) propõe o que chama de utopia da comunicação. A racionalidade da sociedade moderna deve deixar de ser predominantemente instrumental, para ser também comunicativa. Dessa forma, seria possível construir significados que permitissem dar sentido à vida. Se o misticismo de Scholem (1972) e a religiosidade de James (1995) e Wilber (1993) podem constituir parâmetros para essa produção de sentido, cabe perguntar se não podem ser vistos como alternativa a ser considerada para a emancipação humana, submetendo-os ao crivo da crítica e da reflexão, evitando uma postura regressiva que leve ao mítico, mas sim progressiva como superação da religiosidade institucional. 4 IDENTIDADE E SOCIALIZAÇÃO A identidade pós-convencional explicada por Habermas (1983) pode ser entendida como possibilidade histórica atual de concretizar o que Ciampa (1987) denomina Identidade Metamorfose. Os termos “vida- INTEGRAÇÃO ensino⇔pesquisa⇔extensão Fevereiro/99118 morte-vida” sintetizam, para Ciampa (1987), o movimento humano e desvelam a identidade metamorfose. A identidade se faz num processo contínuo. As personagens, que surgem de repente como se viessem do nada, foram, com certeza, engendrando-se durante muito tempo. Aparecem e, muitas vezes, permanecem até que nova personagem tome seu lugar. “A identidade aparece como a articulação de várias personagens, articulação de igualdades e diferenças, constituindo, e constituída por uma história pessoal” (Ciampa, 1987, pág. 157). É a personagem que liga a pessoa à objetividade, ao mundo cotidiano Sem possibilidade de constituir personagens, a identidade não se desenvolve. O indivíduo como que morre, pois, em vez da morte biológica, pode enlouquecer ou ir para a marginalidade, que, de qualquer forma, é uma morte simbólica. As personagens interagem e fazem a história, através da qual o homem se constrói e se hominiza produzindo-se e produzindo o mundo. De um lado, a história tem uma autoria coletiva em que somos co- autores; história constituída em reciprocidade pelos autores que também são personagens. De outro lado, a história é constituída pelo autor individual como narrativa. O autor narrador é autor em obra. “Assim podemos analisar como o produto é produzido, ou seja, o próprio processo de produção” (Ciampa, 1987, pág. 159). A identidade é vista como representação e, ao mesmo tempo, como processo de produção; sendo assim, a identidade é o próprio processo de identificação. A representação, para ser verdadeira, requer um conjunto de relações e comportamentos que reforcem a condutados envolvidos. Desta forma, a identidade do filho, por exemplo, é conseqüência das relações e, ao mesmo tempo, é condição dessas relações. Enquanto existir a família e as relações que a definem, a identidade pressuposta do filho será re-posta a cada momento (Ciampa, 1987). Como ser social o homem é um ser posto. É esta posição que identifica o homem como diferente dos outros, dotado de uma identidade vista equivocadamente como atemporal, e não como re-posição temporal. O homem passa a ser considerado idêntico a si mesmo na sua aparente estabilidade. Para compreendermos a questão da identidade, não podemos perder de vista a relação constante entre o homem e a sociedade como dois lados de um mesmo processo inseparável, e também levarmos em conta o caráter de processo do desenvolvimento saudável em que, através da superação, cada um vai transformando-se, e sempre se auto-determinando como si mesmo. Este é o processo permanente e infindável, que permite definir identidade como metamorfose (Ciampa, 1987). A identidade é um elemento chave da realidade formada por processos sociais. As identidades produzidas pela atividade e pela consciência dentro da estrutura social reagem sobre esta, mantendo-a ou modificando-a. Cada membro individual da sociedade exterioriza seu próprio ser no mundo e interioriza o mundo como realidade objetiva. Assim, a sociedade é entendida em três momentos que ocorrem simultaneamente e a caracterizam: exteriorização, objetivação e interiorização (Beger e Luckman, 1985). A partir da socialização primária, o indivíduo será introduzido em novos setores de sua sociedade. Inicia-se, assim, a socialização secundária. A socialização primária interioriza as normas do grupo, os papéis e as atitudes dos outros particulares e faz a criança generaliza para toda a sociedade. A formação na consciência do outro generalizado marca uma fase decisiva na socialização. A consciência do outro generalizado estabelecida no indivíduo é sinal de que a socialização primária pode ceder lugar à socialização secundária, porém este processo não se finaliza. A socialização jamais acaba. A socialização secundária encontra um indivíduo pronto a compreender as regras institucionais. O trabalho e a distribuição social do conhecimento interferem decisivamente nesta fase da socialização secundária. Neste sentido, o ingresso ao curso superior pode ser considerado um movimento muito importante na vida do jovem. O curso superior é uma transição para a profissão, para a independência e, portanto, um espaço de descobertas provocadoras de ansiedades. O papel do professor de terceiro grau é propiciar um clima permissivo em sala de aula, estimulando a criatividade e a produção do conhecimento, e não a mera reprodução. A criatividade deve partir da realidade, porém só ocorre em ambiente pouco ansiógeno. Em síntese, a interpenetração da existência subjetiva com o meio ambiente é que possibilita ao indivíduo as trocas necessárias à aprendizagem, não apenas de conteúdos, mas de relacionamentos interpessoais, necessários à profissão do psicólogo. Estas reflexões sobre a experiência do aluno de terceiro grau, como momento significativo da socialização secundária para sua profissionalização, pontuam, de um lado a importância da criatividade e, de outro, a necessidade do apego à realidade. Sem antecipar a discussão sobre as práticas alternativas, vale mencionar aqui uma noção apresentada por Scheibe (1970) a propósito de crenças que interferem na identidade. Baseando-se em Sarbin, afirma que vivemos em subsistemas ecológicos que definem nossas relações com o restante do mundo. A grande maioria das crenças relacionadas com esses diversos subsistemas ecológicos permitem a verificação de correspondência entre crença e realidade. Contudo, há um subsistema que Sarbin chama de “ecologia cosmológica” (Scheibe, 1970, pág. 132), que envolve crenças que não podem ser nem confirmadas, nem rejeitadas com base em dados disponíveis sobre o mundo real. Nem por isso são crenças que não sejam razoáveis e importantes. Exemplifica: Como me relaciono com o universo? Tenho eu um “destino”? Como evoluí como ser humano? O que controla meus pensamentos? Quais são os limites do espaço e do tempo? Aponta ele que, diante da dificuldade em lidar com essas e outras questões semelhantes, o cientista pode Ano V, nº 17 CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PSICÓLOGO — PEREIRA 119 sugerir uma atitude de “resignação”, dizendo que se trata de um dilema sem sentido; contudo, são indivíduos concretos que se perguntam por sua origem e seu destino; questionam sobre a existência da alma e como salvá-la, se decidem que têm uma; perguntam pelo bem e pelo mal; procuram Deus. Termina com um questionamento interessante: uma pessoa que se questiona assim se satisfaz com a exortação de que deve “limpar” seus pensamentos de tais questões? Pode se aceitar que não é problema da psicologia decidir sobre a verdade ou falsidade de crenças cosmológicas. Mas, certamente, é bastante relevante estudar como essas crenças cosmológicas, adquiridas ao longo do processo de socialização, interferem no funcionamento psicológico da pessoa. Se psicólogos também são pessoas, por que não estudar como constróem suas identidades influenciados por crenças cosmológicas? Retomando questões como estas, podemos compreender porque os estudantes de psicologia têm procurado caminhos, os mais diversos, para complementar sua profissionalização. Assistimos hoje, em todos os campos da sociedade, a uma profunda mudança nas ciências e nas instituições num geral. Esta revolução se caracteriza pela mudança de modelos de pensamento. Influenciados por estas mudanças, a nova geração de psicólogos e os estudantes vêem-se entre o desejo de transformar sua atuação profissional, tornando sua prática mais abrangente e eficaz, e o modelo de ciência convencional ainda hegemônico. Parece estar surgindo um novo profissional, um novo psicólogo, que procura investigar as possibilidades de integrar práticas julgadas, até agora, como não científicas à ciência psicológica. A identidade da psicologia está se metamorfoseando, acompanhando a identidade do novo psicólogo que, sensível às necessidades de sua época, muda o rumo de sua formação para atendê-las. Esta nova etapa da psicologia poderá frutificar, pois ao contrário dos movimentos anteriores, valoriza o lado crítico e criativo do ser humano, além da experiência subjetiva pessoal, o que poderá acontecer com a abertura da reflexão da psicologia à tentativa de novas práticas. 5 PROBLEMA O problema investigado pode ser definido como analisar o processo de construção da identidade profissional de futuros psicólogos que, participando ativamente de práticas alternativas, ou apenas aceitando-as como válidas, se envolvem com tais práticas, consideradas alternativas, pela psicologia oficial. 6 METODOLOGIA Após estudo preliminar em que usei uma técnica de desenho com alunos ingressantes para detectar o uso de práticas alternativas, passei a empregar entrevistas que permitiriam reconstruir histórias de vida. Nesta mudança, passei a ter como sujeitos alunos de segundo semestre, pois o vínculo com a professora pesquisadora se revelou extremamente importante para que os alunos se encorajassem a falar sobre o tema. Selecionei três alunos do segundo semestre letivo em 1994, através de um instrumento aplicado por todos os professores daquela turma, para detectar alunos considerados promissores ou não promissores pelos seus professores. Os três alunos - sujeitos principais da minha pesquisa - além de considerados promissores, estavam na época muito envolvidos com práticas alternativas. Além desses três sujeitos principais, mais sete sujeitos foram entrevistados, e os depoimentos dos mesmos foram utilizados como dados complementares da análise. 7 APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS Dostrês sujeitos considerados como principais, foram analisadas as histórias de vida. Carolina, envolvida principalmente com tarô; Marisa, praticante da astrologia; e Yeda, que se define como “metafísica”. Carolina começa a dizer quem é, localizando-se na família e caracterizando seus membros. Teve uma educação conflituosa. Critica a postura do pai, como autoritário, e da mãe, como passiva. Durante sua entrevista, vai deixando transparecer as mudanças ocorridas. A tendência ao misticismo (é budista) e ao tarô vem se delineando desde cedo. O contato com o tarô começou na adolescência, e, embora tenha atuado como pedagoga em RH e trabalhado como tradutora e professora de inglês, além de fazer um curso na Europa, o tarô foi a profissão mais assumida por Carolina, a qual é exercida até agora, tanto dando consultas como dando aulas. Acredita que o tarô não seja místico, mas que provoca o inconsciente tanto quanto outras técnicas psicoterápicas. É junguiana e relaciona o tarô a esta teoria. Paralelamente, Carolina gosta muito da psicologia e acha ter encontrado seu caminho, agora que já sabe que poderá juntar as duas áreas de conhecimento. Para Carolina, a prática alternativa (tarô) é menos importante que a psicologia, porém dá bons resultados. Quanto aos clientes, tem percebido que os mesmos valorizam mais o psicólogo que o tarólogo, e, embora o tarô possa oferecer um processo de busca do auto-conhecimento, a maioria das pessoas que o procuram, buscam uma mágica, uma resposta imediata. Para Carolina, o tarô não é mágico nem místico, mas uma técnica que pode ser interpretada como projetiva ou como uma busca interna. Marisa relata uma vida tranqüila de poucos conflitos familiares. Tendo estudado em colégio católico até a adolescência, foi educada nos moldes tradicionais. Na INTEGRAÇÃO ensino⇔pesquisa⇔extensão Fevereiro/99120 adolescência, provocou uma mudança radical em sua vida, e essa fase tumultuada teve a contribuição das mudanças na sociedade, dos hippies, dos Beatles, da busca por formas mais naturais e menos consumistas que os anos 60 demonstraram. Relata que sempre foi questionadora e, na adolescência, procurava leituras como as espiritualistas e, mais tarde, Jung, Yoga, Zen Budismo. O encontro com a astrologia parece ter acontecido, segundo ela, como algo sem muitas explicações objetivas. Foi “amor à primeira vista”. Fez opção por astrologia, estudou e trabalha até hoje como astróloga, mas, diz ela, não abandonou a psicologia. Acredita que fazer o curso de psicologia lhe possibilitará atuar melhor, juntando as duas áreas - astrologia e psicologia - pois sente que a astrologia não está sendo suficiente. Diz ela que, quando, através de um mapa, detecta sinais de conflitos no cliente, não se sente satisfeita, pois isso não será trabalhado, apenas apontado. Sendo psicóloga, terá essa possibilidade. O mapa ajudará muito no processo psicoterápico como técnica diagnóstica, e a psicologia ajudará o cliente da astróloga quanto à busca de solução para o conflito detectado. Yeda é a filha mais velha de uma família de quatro irmãos. Relata que era muito briguenta e também protetora dos irmãos. A família descendente de japoneses mostra poucos costumes dos antepassados. Os pais sempre brigaram muito por ciúmes. No início da vida escolar, Yeda não mostrou muitos problemas, porém logo começou a ser reprovada, e os conflitos trouxeram uma desorientação. Não gostou do colégio técnico; entrou na faculdade duas vezes e desistiu. A vida profissional não lhe satisfazia. O que procurava e não conseguia encontrar era algo que pudesse fazer por amor e não por dinheiro. Depois de várias tentativas, desistiu temporariamente. O casamento contribuiu para esta parada. Algum tempo depois, procurou terapia, mas não gostou. Numa destas tentativas de encontrar um caminho, uma orientação, descobriu o “Espaço Vida e Consciência”, e começou a fazer um “curso” lá. O curso, segundo Yeda, “faz você abrir os olhos para você mesmo. A partir destes encontros, comecei a encarar a vida de maneira diferente”. Através desta prática, Yeda recomeçou o curso de psicologia que havia abandonado há dez anos. Ela diz: “Eu só recomecei, porque conheci o Gaspareto, e freqüentava os encontros no “Espaço Vida e Consciência”. Hoje Yeda diz que “sabe que tem obstáculos e precisará vencê-los, se quiser atingir os objetivos”. A convicção de ter encontrado seu rumo, seu oriente, a faz persistente. É por essa persistência que Yeda vai procurando soluções para seus problemas, que vão além do cotidiano; ela busca algo mais; “meu problema sério é me encontrar como pessoa”. 8 AS CRENÇAS COSMOLÓGICAS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO FUTURO PSICÓLOGO Nos depoimentos dos dez entrevistados, pudemos observar diferentes crenças cosmológicas que interferem nas concepções sobre as práticas alternativas. Essas concepções variam desde aquelas, segundo as quais as práticas alternativas pressupõem um determinismo absoluto, sem nenhum grau de liberdade para o sujeito, até aquelas que atribuem a ele ampla liberdade. Estes aspectos foram observados em entrevistas diferentes e também em momentos diferentes do mesmo sujeito. Neste sentido, os sujeitos afirmam que, a cada momento da vida, pode ocorrer uma mudança, e, portanto, nada é para sempre. Para esses entrevistados, o auto-conhecimento é a base do crescimento e do encontro com ele mesmo. Esse auto-conhecimento implica capacidade de reflexão que o sujeito deve desenvolver. Assim, através do auto-conhecimento, da reflexão e do agir, o indivíduo terá uma atividade consciente que permitirá construir sua vida ativamente, com alguma autonomia. Essas crenças combinam-se com outras que pretendem oferecer explicações mais ou menos racionais. A pretensão de racionalidade, ora se apóia na crença em outras vidas baseando-se na reencarnação, ora dispensa essa noção; apoiada apenas nesta vida busca explicações a partir, de aspectos inatos, ou de aspectos adquiridos. De fato, concepções reencarnacionistas são encontradas em todas as entrevistas, mesmo naquelas cuja prática alternativa não é apoiada predominantemente na linha da reencarnação. Porém, o peso do determinismo da reencarnação depende da aceitação ou não da possibilidade de influência de fatores ligados a aspectos inatos, bem como de aspectos ligados à aprendizagem. Esta aceitação de fatores inatos, às vezes, parece mera substituição do “destino” ou do “carma” por outra noção aparentemente mais próxima da ciência, como “personalidade”. É como se já nascesse com uma personalidade que explicaria porque sua vida se desenvolveu de certa forma. Indo para o outro extremo do contínuo, encontramos a crença que atribui unicamente ao próprio sujeito a direção da sua vida. A importância da aprendizagem nessa concepção é decisiva. Parece uma abordagem extremada em relação ao homem e à sua vontade, pois aceita a alegação de que a pessoa poderá ser o que quiser, independentemente de qualquer coisa como reencarnação ou inatismo.Esse voluntarismo pode tornar-se, praticamente, uma crença na onipotência do sujeito, e ajuda a entender porque surge a idéia de magia associada às práticas alternativas. Os alunos, que se envolvem com práticas alternativas, nem sempre consideram suas práticas como mágicas. Explicitamente, todos negam essa característica, ainda que nas entrelinhas possamos observar pontos que sugerem desde pura magia, até afirmações sobre a necessidade de auto-conhecimento e reflexão como condição de solução das crises e de desenvolvimento pessoal. Nas entrevistas, quando os sujeitos afirmam que a solução de problemas vividos não foi mágica, parecem sugerir que não podemos esperar que ocorram soluções tão rápidas e eficientes com o uso de nenhuma prática convencional. Ano V, nº 17 CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PSICÓLOGO — PEREIRA 121 Em decorrência dessas concepções a propósito de determinismo,liberdade e racionalidade que envolvem crenças sobre reencarnação, magia etc., podemos identificar concepções dos alunos sobre o ser humano. Para todos os sujeitos, o homem é um ser bio-psico-sócio- espiritual. A função das práticas alternativas fica, então, dependente desse conceito de homem. Acreditando no homem como um ser dotado de espiritualidade quase sempre no sentido metafísico, os alunos pensam que a psicologia convencional não está sendo suficiente por desconsiderar este espírito. Esses futuros psicólogos não rejeitam a psicologia que consideram tradicional ou convencional, mas buscam uma psicologia mais abrangente. As crenças cosmológicas, evidenciadas nos depoimentos desses alunos, foram formadas em momentos diferentes da socialização. A maioria localiza o início de suas crenças em momentos específicos, outros acham que já nasceram com estas características. Os fatores determinantes, que desencadearam a busca em algum momento da vida, foram problemas de saúde, crises com familiares e até a própria reflexão sobre a vida. Quando falam em espiritualismo, estão falando da crença de que o homem é dotado de algo mais, que é pouco explorado pela psicologia, sendo este o motivo que os mobiliza para o curso e, conseqüentemente, para a perspectiva de um exercício profissional que inclua o que está aqui sendo chamado de prática alternativa. Para os sujeitos - os mais reflexivos - as pessoas estão confusas e procuram mudanças. Essas mudanças começariam pelo auto-conhecimento. A descoberta de respostas aos questionamentos é o início de um caminho de descobertas internas, o qual leva cada indivíduo à auto- consciência através da reflexão, e é essa a demanda da razão para a qual tudo deve ter significado. A re-organização do caos fornece um significado necessário à integração da identidade, pois a primeira pergunta que surge diante do caos é “Quem sou eu”? Quando alguém começa a se perguntar sobre sua identidade, é sinal de que já não está suportando a falta de sentido para sua vida, ou seja, não consegue localizar-se na realidade. Nossa existência precisa de significado, e, em muitos momentos, quer quando estamos desesperados, quer quando estamos insatisfeitos por qualquer motivo com nossa vida, as crenças cosmológicas, na forma de religião institucional, ou como crença mítica ou mística, poderão ser a grande fonte desse significado. Nesse sentido, para esses alunos, tudo tem explicação. A psicologia, dentro dos limites que estabelece para estudar o homem, tenta explicar todos os seus infortúnios através da subjetividade do psiquismo, da objetividade das relações sociais ou de ambos. As práticas alternativas, dentro dos campos de conhecimentos próprios e de suas especificidades, também tentam compreender os mesmos problemas, oferecendo explicações diferentes. Tudo, portanto, teria uma explicação, e os entrevistados vêem a união da psicologia com as práticas alternativas como a saída necessária. Para eles, o estudo das práticas alternativas, além de ter sido a resposta que procuravam para suas próprias vidas, hoje está se constituindo numa complementação indispensável em relação à Faculdade de Psicologia, que permitirá conhecer os dois campos como saída para uma psicologia mais completa. Assim, os entrevistados dizem que, a partir das práticas alternativas, passaram a encarar suas vidas de maneira diferente, enfatizando que houve uma mudança em seu modo de se relacionar com o mundo; esse modo novo pode ser entendido seja como “conversão”, seja como amadurecimento, através do auto-conhecimento e da reflexão. Na visão desses alunos, as práticas alternativas funcionam como um recurso para a evolução da humanidade na direção da emancipação. Contudo, a crítica que esses alunos fazem à psicologia sofre ressalvas quando eles próprios, por estarem no início do curso, afirmam que ainda não conhecem psicologia a ponto de emitir opiniões corretas a respeito. Por outro lado, a crítica não recai só sobre a psicologia, mas também sobre as práticas alternativas. A sugestão dos alunos não é usar somente práticas alternativas para ajudar o homem; se isso fosse suficiente, eles não estariam na faculdade de psicologia; a união dos dois ramos de conhecimento é que constitui para eles a saída para o momento atual. Essa sugestão, segundo eles, envolve, pelo menos, duas ordens de considerações. A primeira se refere à regulamentação das práticas alternativas dentro do exercício profissional do psicólogo. Não defendem uma ausência de normas e princípios, mas sim novas definições mais permissivas, claras e justificadas. Ao mesmo tempo, falam da necessidade de maior transparência e divulgação dessas normas, garantindo, tanto ao profissional quanto ao usuário, maior segurança e confiabilidade, já que se poderia saber o que esperar dessas práticas. A segunda refere-se à consideração de que essa regulamentação se apóie em princípios de ampla liberdade com responsabilidade, baseando-se sempre na crítica não preconceituosa à avaliação de tais práticas. De certa forma, esperam um amplo debate das questões envolvidas, especialmente das questões éticas. Com grande freqüência, reconhecem a possibilidade de charlatanismo, que desejam evitar a todo custo. Implícita nessa preocupação com o charlatanismo, surge a necessidade de estabelecer melhor as distinções do que é científico, do que é efetivo, do que é verdadeiro etc. A título de exemplo, há a questão do misticismo, que é muito mencionada em amplos setores da Psicologia. Nas entrevistas, essa noção aparece freqüentemente, porém é difícil captar qual seu significado para os entrevistados. Talvez a distinção feita por Scholem (1972) permita diferenciar as concepções míticas - que fortalecem a idéia de magia - daquelas místicas - que reforçam a preocupação com o auto-conhecimento, com a reflexão, com a autonomia e com a emancipação, superando a religiosidade institucionalizada. INTEGRAÇÃO ensino⇔pesquisa⇔extensão Fevereiro/99122 9 REFLEXÕES FINAIS À GUISA DE CONCLUSÃO Este estudo sobre a formação da identidade profissional do psicólogo, no atual momento histórico, está levando-nos a considerar dois enfoques: a identidade profissional pessoal e a identidade coletiva do psicólogo. A relação da psicologia com as práticas alternativas, com alguma freqüência, tem tornado o profissional que atua desta forma um solitário no seu trabalho e nos seus estudos. Durante a exposição, referimo-nos à identidade pessoal e, a partir da pesquisa e da nossa experiência profissional, podemos imaginar como os outros psicólogos, que também trabalham com práticas alternativas, se isolam do corpo profissional e teórico da psicologia, talvez por medo de represálias. De qualquer forma, não é possível separar a identidade profissional do indivíduo, daquela coletivamente definida. Esta é a que está a merecer a atenção dos órgãos e grupos profissionais, bem como dos centros de pesquisa universitária. Em função disso, poderíamos até pensar numa “tipologia”, a propósito de identidades pessoais: • aquela baseada em princípios míticos, supersticiosos e mágicos. • aquela baseada em princípios de uma religiosidade subordinada a uma instituição tipo igreja, dogmática e autoritária. • aquela baseada em princípios do mercado, que tudo transforma em mercadoria na busca do lucro. • aquela baseada em princípios de um misticismo apoiado principalmente na idéia da experiência pessoal, que busca a emancipação, • através do auto-conhecimento, da reflexão e da crítica. Sem um posicionamento em relação à identidade coletiva, como analisar uma identidade pessoal? Falta um consenso mínimo que nos permita como categoria profissional definir posições. Podemos pensar a identidade coletiva do psicólogo a partir dos relatos dos alunos que, em vários aspectos, convergem para o mesmo ponto. Tanto nas entrevistas quantonos depoimentos, pudemos constatar que a identidade do psicólogo está sendo construída com base não só na ciência que as pesquisas validaram, como também nas práticas alternativas que, até este momento, não foram aceitas como pertencentes à psicologia oficial. Considerando a tipologia mencionada acima, fomos descobrindo, durante as análises, que alguns alunos se colocam na posição de um misticismo apoiado na experiência pessoal, que busca a emancipação pelo auto- conhecimento e pela crítica. Esta não contraria a posição da ciência psicológica (embora a maioria dos autores não inclua o misticismo). Assim, esses alunos reconhecem as práticas alternativas como recurso que busca o mesmo objetivo que a psicologia, embora associem esta emancipação à mística. Os demais, cujas concepções podem ser consideradas míticas ou religiosas, bem como aquelas que tudo transforma em mercadoria, a rigor não teriam esta conotação emancipatória. Talvez o tipo que se baseia no mercado, usando as práticas como técnicas para obtenção de lucro, esteja mais próximo do verdadeiro “charlatanismo”, já que, deliberadamente, quer explorar o cliente. Os outros dois já permitem outras considerações: o mítico, supersticioso, ainda nem atingiu o grau de racionalidade do religioso; este, por sua vez, ainda não se libertou do autoritarismo e do dogmatismo da instituição; dizendo de outra forma, se aceitarmos a noção de misticismo aqui exposta (Scholem, 1972), como superação dialética da contradição entre o mítico e o religioso, estes ainda estão numa postura regressiva. Já o outro, que visa ao lucro - o charlatão - age segundo uma razão interesseira, contrária à possibilidade de emancipação. A crença de que o homem é dotado de espírito, aceita por todos os sujeitos, não contraria esta busca de emancipação, como preocupação do homem de pautar sua vida pela sua experiência submetida à reflexão crítica, não fazendo da ciência algo tão dogmático quanto qualquer religião institucionalizada. Nos três sujeitos principais da pesquisa encontramos concepções coincidentes. Além da crença no homem bio-psico-sócio-espiritual e na reencarnação, todos buscam um sentido emancipatório para suas vidas. Considerando os demais, todos os dez sujeitos afirmam que a ciência e a religião convencionais não estão sendo suficientes para fornecer ao homem de hoje respostas a todos seus questionamentos. Lembrando o que Santos (1995) aponta como necessidade atual do homem, no caso da classe trabalhadora impotente diante das classes dominantes; ela sente o poder de destruição do capitalismo; sem encontrar saídas concretas, sem uma reflexão crítica, tudo passa a ser visto supersticiosamente, como um destino inevitável - “um carma” talvez! Aparentemente, isso levaria necessariamente a uma religiosidade conformista e escapista. Porém, na óptica de um misticismo que envolva reflexão e busca de autonomia, pode ser também o caminho para uma saída revolucionária. Tanto pode ser assim, que nossos alunos de psicologia, ao demonstrar um certo desencanto com a vida baseada no consumismo, buscam transformações não só para eles mesmos, como também para pessoas que possam ajudar. Dessa forma, tentam formar uma opção profissional paralela, uma psicologia que, segundo eles, é mais completa e mais consistente. É lógico que isto pode ser feito de forma ingênua e simplista; daí a necessidade da crítica Por isso mesmo, se a questão da identidade coletiva em confronto com a identidade individual envolve Ano V, nº 17 CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PSICÓLOGO — PEREIRA 123 aspectos regulatórios, envolve, por outro lado, aspectos emancipatórios. Santos (1995) mostra que a preocupação com o sentido da vida se reflete como um problema de identidade, sendo este um dos problemas centrais da modernidade. Sendo corretas estas considerações, não é absurdo pensar que as práticas alternativas podem ser vistas como busca de sentido da vida, conseqüentemente, forças emancipatórias que possibilitam superações dialéticas, quando refletidas criticamente e não negadas autoritariamente por forças regulatórias. O poder destas forças regulatórias é tão grande que, paradoxalmente, os sujeitos propõem regulamentar as práticas alternativas para torná-las livremente exercidas. Fazem isso, pensando num homem superior, voltado a ideais mais nobres que os do capitalismo. Com isso, parecem cair na armadilha do próprio capitalismo que se apóia fundamentalmente no pilar regulatório, esquecendo que, na verdade, deve ser fortalecido o pilar emancipatório. De qualquer forma, regulamentar a profissão delimitando práticas aceitas como científicas e práticas não científicas, algo que parece tão óbvio, não é tão simples assim. Quando a psicologia convencional estabelece um rol de práticas aceitas, diferenciando de técnicas próximas não aceitas, é o momento em que encontramos as grandes dificuldades: os limites e os critérios para defini-los. A análise revelou a complexidade do problema, pois envolve várias ramificações e níveis difíceis de serem definidos. As concepções dos entrevistados fazem um caminho sinuoso que se inicia no determinismo absoluto de um lado, contrapondo a ampla liberdade do sujeito para conduzir sua vida, do outro. As crenças que envolvem conteúdos de reencarnação se confrontam com aspectos aprendidos, tendo o inatismo como intermediário. Outro ponto controverso se verifica entre magia e auto- conhecimento. Nesse sentido, simplesmente considerar algumas práticas alternativas como aptas e (outras não) a fazer parte da psicologia também parece impossível. Mesmo se a barreira for transponível, não estaremos avançando muito, pois regulamentar é tornar rígido. A questão, então, não deve ser posta de forma regulatória, mas sim emancipatória. A sugestão mais plausível para o momento é trazer o problema para a discussão de maneira não preconceituosa, mas crítica, incentivando a reflexão e a pesquisa. Essas discussões não deveriam aprioristicamente ter tempo determinado para terminar ou para dar lugar ao próximo passo; ao contrário, deveriam ser permanentes e constantes, considerando o caráter de metamorfose da identidade do psicólogo e também da psicologia. Esta forma de buscar a identidade como metamorfose (Ciampa, 1987) também permite realizar o que Habermas (1983) chamou de identidade pós-convencional. Apoiados numa comunicação aberta e não coercitiva, os psicólogos, de forma madura e responsável, teriam a oportunidade de se reconhecer reciprocamente, como agentes transformadores da sociedade, a despeito de suas diferenças. A identidade dos psicólogos seria constituída, não por conteúdos previamente definidos de forma dogmática e autoritária, mas sim pela identificação recíproca como agentes do processo democrático de que participam ativamente na construção da própria identidade, sempre em busca da emancipação humana. 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER, P. L. & LUCKMAN, T. A Construção Social da Realidade Petrópolis: Vozes, 1985. CIAMPA, A. C. A Estória do Severino e a História da Severina - Um ensaio de psicologia sociali. São Paulo: Brasiliense, 1987. FREUD, S. O Futuro de uma ilusão - in Freud: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. HABERMAS, J. Para Reconstrução do Materialismo Histórico. São Paulo: Brasiliense,, 1983.JAMES, W. As Variedades da Experiência Religiosa. São Paulo: Cultrix, 1995. SANTOS, B. S. Pela Mão de Alice - O Social e o Político na Pós Modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. SCHEIBE, K. “Beliefs and Values”. New York: Holt Rinehart and Winston Inc., 1970.SCHOLEM, G. A Mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1972. WILBER, K. Um Deus Social. São Paulo: Cultrix, 1993.* * * * *
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