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Universidade Federal do Rio de Janeiro RUMO AO PALÁCIO: AS ESTRATÉGIAS DE DOMINAÇÃO DOS ESPAÇOS POLÍTICOS NA BAHIA DURANTE A DITADURA (1966 – 1982) José Alves Dias 2009 RUMO AO PALÁCIO: AS ESTRATÉGIAS DE DOMINAÇÃO DOS ESPAÇOS POLÍTICOS NA BAHIA DURANTE A DITADURA (1966 – 1982) José Alves Dias Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social. Linha de pesquisa: Sociedade e Política Orientador: Carlos Fico RIO DE JANEIRO 2009 Confecção da Ficha Catalográfica: Elinei Carvalho Santana – CRB 5/1026 D532r Dias, José Alves. Rumo ao palácio: as estratégias de dominação dos espaços políticos na Bahia durante a ditadura (1966-1982) / José Alves Dias, 2009. Vi, 218 f.: il.; 30 cm. Orientador: Carlos Fico. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2009. Referências: f. 206-210. 1. Bahia – política e governo (1966-1982). 2. Carlismo (Bahia) – Ditadura Militar. 3. Sociedade e política – tese. I. Fico, Carlos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em História Social. III. T. CDD: 320.8142 AGRADECIMENTOS A dívida que contraímos ao concluir um trabalho como este é enorme, como também são as possibilidades de cometer injustiças, esquecendo-se de pessoas que colaboraram para que ele se tornasse viável. Ainda assim, é preciso correr o risco, esperando que as pessoas não mencionadas compreendam que a omissão é fruto de uma memória depauperada e não da ignorância de sua contribuição. Deste modo, gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa na Bahia – FAPESB – pela bolsa de estudos; ao pessoal do CEDIG da UFBA, especialmente, Fábio e Luís, facilitadores do meu acesso aos microfilmes do jornal A Tarde; aos funcionários do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, do Arquivo Público Nacional, da biblioteca do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ e do Arquivo Público da Bahia, pela gentileza e auxílio na consulta aos respectivos acervos. Às funcionárias do Programa de Pós- graduação em História da UFRJ, Gleides e Sandra, pelo cuidado constante com os detalhes e a rotina acadêmica. Um agradecimento especial à banca de qualificação, professoras Marieta de Moraes Ferreira e Ângela de Castro Gomes que corrigiram os rumos da teses e deram indicações preciosas. Particularmente, agradeço ao meu orientador, Carlos Fico, pela paciência diante de minhas indefinições e limitações que foram resolvidas com sua precisão cirúrgica nos encontros de orientação. Tenho nítidos os momentos agradáveis de conversa com Renato Lemos, que entre um café amargo e outro, me emprestou alguns livros e os ouvidos para que eu resolvesse um rosário de questionamentos. Minha família, conquanto tenha se resignado, jamais aceitou passivamente a saudade nos longos dias de afastamento. Ainda assim, foi solidária nas incontáveis horas de distanciamento e reclusão para concluir a tese. Aos meus pares, no Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, que se sobrecarregaram com as minhas disciplinas para que eu fosse liberado integralmente durante esse período, o meu reconhecimento e gratidão. No mesmo patamar estão os que colaboraram para revisão, formatação e finalização da tese e aos professores que, gentilmente, aceitaram compor a banca final de defesa. INTRODUÇÃO Durante mais de trinta anos o carlismo controlou a política baiana, manteve uma base parlamentar sólida, influenciou em quase todas as decisões presidenciais e acumulou cargos importantes na estrutura organizacional do Estado brasileiro. Tudo isso despertou um grande interesse pelas razões de seu vigor e de sua longevidade. 1 Dentre as explicações existentes para esse fato, a do “autoritarismo congênito”, embora bastante simplificadora, é a mais difundida. Segundo essa interpretação, a dominação carlista resultou da identificação autoritária entre Antônio Carlos Magalhães e os governos militares e em decorrência disso, as administrações carlistas foram favorecidas com grandes somas de recursos federais que permitiram a expansão de suas bases. 2 O carisma e a popularidade foram os traços marcantes da imagem pessoal de Antônio Carlos Magalhães que explicariam seu sucesso político, derivado, exclusivamente, dessas características individuais. Esse ponto de vista, igualmente simplista, ignora a existência dos mesmos predicados em líderes de outras correntes como o lomantismo, o vianismo, o juracisismo e tantos outros grupos que disputaram, ainda que sem êxito, o poder com o carlismo. 3 Quando o registro dos fatos é feito a partir dessa percepção, descarta-se, sumária ou parcialmente, a maior parte destas frações e lideranças que compunham a elite política da Bahia no período, absolvendo-as, assim, de suas responsabilidades ou punindo-as com o ostracismo histórico. Contrariando essa interpretação, este estudo se propõe a encontrar as razões para o predomínio do carlismo no conjunto de idéias propostas e sistematizadas pela elite conservadora do país durante a ditadura. O viés autoritário, naquela situação excepcional, compunha a estrutura ideológica, entretanto, não definia os critérios de organização das políticas públicas ou as relações estabelecidas entre o governo central e seus representantes nos estados da federação. Durante a pesquisa, ao aprofundar a análise e ampliar o foco da questão para o cenário político nacional foi possível perceber que há uma infinidade de razões para o crescimento e 1 Considera-se aqui apenas o período de atuação conjunta e sistemática do grupo político de Antônio Carlos Magalhães que se inicia com a campanha para o seu primeiro governo estadual em 1970 e recrudesce com a derrota de seu candidato para o mesmo cargo em 2006. 2 A síntese desse entendimento encontra-se em João Carlos Teixeira Gomes. Memórias das trevas: uma devassa na vida de Antônio Carlos Magalhães. São Paulo: Geração Editorial, 2001. 3 A popularidade e o carisma de Antônio Carlos Magalhães estão bem destacados em José Batista Freitas Mattos. ACM: o mito. Rio de Janeiro: RGB, 2001. 10 afirmação do carlismo na Bahia. Entre elas, destacam-se a sincronia com o ritmo político dos governos militares, a disposição para a coesão ideológica em torno de temas convergentes do pensamento conservador e o controle efetivo dos espaços decisivos do poder estadual. A hegemonia carlista, vista por esse ângulo, ocorreu como resultado das mudanças conjunturais e da cadência imposta pelos atores históricos naquele processo político em mutação. A percepção do movimento sincrônico entre o carlismo e a ditadura é mais evidente nos períodos de crise acentuada e nos processos eleitorais. Um desses momentos destacadosno texto é a participação de Antônio Carlos Magalhães na época precedente ao golpe de 1964. Na condição de deputado federal, ele atuou como uma espécie de âncora parlamentar da bancada baiana semeando as idéias anticomunistas e conspirando contra o governo de João Goulart. Esgotada essa etapa do processo, ele se concentrou na formação do diretório regional da ARENA para atender aos reclamos da reforma partidária imposta no ano seguinte - essa é a fase embrionária do carlismo e a ocasião de afirmação da liderança política de ACM. Mais adiante, quando ocupou a prefeitura da capital baiana e o governo estadual direcionou suas ações para a urbanização e a industrialização, em consonância com os objetivos de construção e transformação do Brasil em uma grande potência. Durante todo o seu percurso como político da ditadura preocupou-se com o sincronismo das idéias. Moderou o discurso repressivo e continuísta nas primeiras e últimas sucessões presidenciais – momentos de afirmação e refluxo da ditadura – mas firmou posição autoritária e conservadora nas eleições intermediárias quando “a linha dura” ocupava o poder. Em tais condições a sincronia com a ditadura gerou resultados bastante satisfatórios para o carlismo. O contexto político da ditadura também foi favorável ao carlismo. A inexistência de simetria e continuidade nas propostas políticas dos governos militares afetaram a hegemonia habitual de antigos chefes políticos da Bahia, de modo que estes não conseguiram se manter no poder estadual por um longo período, após o golpe de 1964. Políticos como Luiz Viana, Lomanto Júnior e Juracy Magalhães integravam correntes políticas estaduais que subsistiam desde a década de 1930, mantiveram-se com o golpe e lideraram até o início da década de 1970. Não desapareceram depois disto, porém, após esse período, a sua permanência na política nacional não se converteu em vigor político para superar as demais etapas da ditadura. O apelo do carlismo à unidade ideológica da elite, após a reforma partidária e a imposição do bipartidarismo, foi um recurso para minimizar os efeitos da desagregação destes 11 grupos tradicionais, especialmente nos pequenos municípios da Bahia. Esses desafios, impostos por uma conjuntura dinâmica e complexa, exigiram unidade da elite brasileira e de seus representantes nos estados. Essa integração, todavia, só seria possível com a formação de uma coligação entre as correntes tradicionais, o predomínio de uma delas com extinção das demais ou o surgimento de um outro grupo que absorvesse todas as diferenças. Prevaleceu a última hipótese. Com o carlismo em ascensão, o período compreendido entre 1970 e 1982 pode ser definido como de acomodação das forças políticas remanescentes ou originárias do golpe de 1964. Ainda que cada um, ao seu modo, buscasse intervenção decisiva no diretório regional da ARENA e na Assembléia Legislativa da Bahia, o que prevaleceu foi a coesão do bloco conservador liderado por Antônio Carlos Magalhães. Isso porque, a certa altura, os grupos tradicionais, impossibilitados de dominarem individualmente os espaços de decisão, aceitaram a investidura de Antônio Carlos Magalhães como intermediador. O carlismo, então, surgiu como alternativa conciliadora dos interesses conservadores e autoritários. Desse modo, a inserção política estadual no movimento que desestabilizou o governo Goulart e implantou a ditadura no país foi resultado de uma articulação carlista entre os diversos setores da elite na Bahia e os temas convergentes que compunham a base teórica do pensamento conservador brasileiro. Assim, o carlismo além de estar em sincronia com o poder central nos momentos cruciais da política nacional, também manteve a integração da elite política na Bahia. Para tanto, foi fundamental a manutenção de um relacionamento no qual se garantissem o respeito à hierarquia e o funcionamento orgânico. A cooptação de indivíduos com potencialidades políticas e eleitorais para integrar-se ou associar-se ao carlismo não deveriam representar risco à liderança de Antônio Carlos Magalhães e isso explica atitudes refratárias com aqueles que ameaçaram a unidade do grupo ou sua hierarquia interna. Essa articulação foi essencial para a sobrevivência do carlismo em tempos de ditadura, nos quais a harmonia era um atributo raro, mas essencial para manutenção do status quo e preservação da proposta política conservadora da elite. Sem dúvida, Antônio Carlos Magalhães utilizou artifícios de intimidação, constrangimento e violência para articular essa integração. Entretanto, não foi o método, e sim o resultado, que diferenciou o carlismo das demais correntes políticas da Bahia. A escolha de uma plataforma ideal, composta de temas centrais como o anticomunismo e o desenvolvimento, além de manterem-se acima dos interesses locais e pessoais, causou boa impressão nas diferentes dissidências militares ocupantes do poder 12 durante a ditadura. Naturalmente que a convergência da elite para esses interesses não se efetivou automaticamente. Ela forjou-se mediante o convencimento constante de sua necessidade e pela ameaça crescente que o carlismo passou a representar para todos quantos estivessem à margem de sua influência. O carlismo também estabeleceu uma relação de interdependência com os governos da ditadura. Ao tempo em que buscava sua afirmação e apoio político federal, os mandatários desse período desejavam a normalidade institucional, dado ao caráter instável do regime, que sofria pressões internacionais e constante oposição interna, inclusive armada. Nesse contexto, a estabilidade das instituições e a segurança de seus dirigentes dependiam, em grande parte, do equilíbrio entre os diversos setores de apoio ao governo. A aparência de democracia que os militares tentaram transmitir em sua propaganda oficial forçosamente induzia a essa necessidade, sendo a unidade da elite uma medida prioritária. Entretanto, somente a intervenção dos militares na política dos estados não garantiu a unidade, ao contrário, rompeu com a hegemonia anterior a 1964 criando um movimento rotatório das forças políticas e, consequentemente, a sua renovação. Na Bahia, isso ocorreu precisamente nas eleições de 1970, quando Antônio Carlos Magalhães tornou-se governador. Como ocorria tradicionalmente, era imprescindível que o presidente da República avalizasse a indicação do diretório regional da ARENA para que o nome do eleito fosse resultado de um consenso. Desta forma, Castelo Branco aprovou a escolha da elite baiana, mas, ainda que o aval fosse um sinal importante, a construção do carlismo não dependeu apenas disto. Foi protegido por uma teia de relações meticulosamente construída, sustentado por uma engenhosa articulação política e sincronizado com os princípios ideológicos da elite dominante brasileira que Antônio Carlos Magalhães conseguiu ocupar o palácio do governo. Esse passo foi fundamental para a estruturação do carlismo como grupo aspirante à hegemonia política estadual, uma vez que, no comando do poder, foi possível a ele atuar decisivamente para cumprir a agenda da elite brasileira, credenciando-se para galgar posições superiores. A ocupação do referido cargo possibilitou a ACM o controle do diretório regional da ARENA e de sua bancada na Assembléia Legislativa. Não era suficiente ser governo e ter maioria parlamentar formal se não houvesse consenso nas decisões. As diferentes sublegendas com suas infinitas disputas locais podiam colocar em risco os interesses do governo e facilitar a intervenção da oposição. Com isso é importante notar que não havia um alinhamento 13 automático com as propostas governistas e nem se confirmao caráter submisso e dependente do Legislativo. Sendo assim, recusamos a interpretação do “autoritarismo congênito” encontrada também nos meios acadêmicos, onde se espera uma apreciação moderada e exaustiva dos temas. Porque se despreza com isso a ligação de Antônio Carlos Magalhães com uma elite ideologizada e ciente de suas funções na sociedade que pretende dominar. Ignora-se, por outro lado, o papel das oposições que, por esse viés, pareciam lutar contra o destino indócil e não por uma causa democrática. Para que o essencial não seja abandonado, a materialização dos fatos que compõem a trajetória da elite política na Bahia deve ser vista dentro de um contexto social, econômico e político e as instituições que direcionam, acolhem e legitimam o poder devem ser dissecadas juntamente com os agentes sociais que lhes atribuem essas funções. Deste modo, não se pode ignorar que a estratégia carlista foi vitoriosa porque Antônio Carlos Magalhães, consciente das contradições inerentes às conjunturas ao longo de sua trajetória política, atuou com desenvoltura no trato dessas diferenças. Sem a pretensão de fundir, aparar ou superar essas desigualdades, impôs, no curso dos acontecimentos, alguns ajustes que lhe garantiram apoio para materialização do controle dos espaços de poder ou execução pragmática de seus objetivos. Também se buscará demonstrar aqui que a hegemonia carlista na Bahia foi a combinação de uma mudança na conjuntura política e da adoção de estratégias eficazes e ideologicamente referenciadas no pensamento elitista da época. Por esse motivo, adiante se busca rever a atuação das elites políticas da Bahia nos partidos políticos e no parlamento, espaços importantes para definir quem ocupou os cargos eletivos e em que condições elas definiram suas estratégias de conquista e manutenção do poder. Aqui se explicitará a dinâmica da relação entre os elementos enunciados na problemática, no diretório regional da ARENA e na Assembléia Legislativa da Bahia durante o referido período, salientando, especialmente, aqueles que se relacionam com a disputa entre os vianistas, os juracisistas e os carlistas pelo poder estadual. Pretende-se com isso relativizar as atitudes passivas do “partido do governo” e a “submissão” do legislativo estadual chamando a atenção para as ações ativas e, por vezes, conflitantes da elite política na Bahia no processo de consolidação de suas bases nesse cenário excepcional. Por isso, ao longo dos sete capítulos que compõe este texto, iremos caracterizar essas correntes políticas que atuavam entre 1966 - ano das primeiras eleições indiretas para 14 governadores no bipartidarismo - e 1982 - quando o carlismo se consolida, em eleições diretas e pluripartidárias, como grupo. Verificar-se-á, concomitantemente, o grau de importância do partido e do legislativo estadual como espaços decisivos de cooptação e controle desses grupos políticos e de apoio às políticas dos governos estaduais. O mesmo período abrange desde a criação do sistema bipartidário e as primeiras eleições dentro dessa configuração partidária, até as primeiras eleições após o retorno ao pluripartidarismo. Pela ordem, foram eleitos governadores da Bahia nesse período: Luiz Viana Filho (1966), Antônio Carlos Magalhães (1970), Roberto Figueira Santos (1974), Antônio Carlos Magalhães - pela segunda vez - (1978) e, finalmente, João Durval Carneiro (1982). As articulações, conflitos e composições entre Juracy Magalhães, Luiz Viana Filho e Antônio Carlos Magalhães e seus aliados políticos, aspirando à dominação dos espaços decisivos do poder político, ou seja, o governo, o partido e o parlamento, são o foco principal deste estudo. No plano secundário, porém não menos importante, está o governo federal, num regime ditatorial dirigido por militares de alta patente e suas estratégias de controle político e social, incluindo a imposição do bipartidarismo e do pluripartidarismo em momentos estratégicos. Observar como essas lideranças e seus aliados se movimentaram para ocupação desses espaços, quais são suas estratégias, qual foi a manobra vitoriosa e que razões motivaram esse sucesso são finalidades primordiais. Tudo isso foi analisado a partir do conhecimento da trajetória política dos envolvidos, pela interseção de suas trajetórias individuais naquela conjuntura, através da percepção da rede de relações estabelecidas, com a análise dos discursos oficiais e das correspondências, pelo estudo da estrutura orgânica e inorgânica das instituições em apreço e com o exame dos depoimentos e entrevistas. Para conhecer a trajetória política, foi imprescindível a leitura da produção biográfica das referidas lideranças da elite política baiana, além dos verbetes do Dicionário Histórico- Biográfico Brasileiro. Uma revisão da literatura permitiu o conhecimento dos partidos políticos, do parlamento e do governo estadual no lapso de tempo coberto pela pesquisa. Os discursos oficiais, compreendendo principalmente mensagens governamentais e pronunciamentos parlamentares, foram consultados no Diário Oficial da Assembléia Legislativa no arquivo dessa instituição e no Arquivo Público da Bahia, como também em jornais de grande circulação dentro e fora do estado, particularmente, A Tarde e o Jornal da Bahia. Subsidiariamente, os Anais e Diários da Câmara dos Deputados, do Senado e do Congresso Nacional, disponíveis “on line”, também foram consultados. 15 No arquivo pessoal de Juracy Magalhães, no CPDOC/FGV, consultamos a correspondência pessoal rica em detalhes sobre a política baiana. Ela narra especificamente os desentendimentos entre o titular e Antônio Carlos Magalhães, mas também realça a participação de deputados estaduais e federais ligados ao ex-interventor de Vargas. Do mesmo modo, exploramos as agendas, anotações, correspondências, memoriais do arquivo de Luiz Viana Filho no Arquivo Nacional com atenção especial ao relacionamento do autor com outros políticos. Essas fontes foram copiadas, catalogadas e organizadas por tema e permitiram conhecer as origens da elite da Bahia e sua trajetória política. De posse dessas informações, foi possível situar alguns dos atores preferenciais deste estudo, avaliar suas relações, analisar as suas estratégias e a emergência de um dos segmentos no plano político local e nacional. Para proceder a uma consulta objetiva e sistemática utilizamos alguns instrumentos como os resumos de documentos e publicações, fichas de catalogação por tema, tipo de documento ou ordem cronológica. Em suas caminhadas rumo ao palácio do governo, as elites deixaram rastros de suas estratégias de dominação basilares para o esclarecimento dos fatos que envolveram o período político mais intenso da ditadura. ABSTRATC This work presents a research on the association between the political elite in Bahia and the military, during the dictatorship, and how this stimulated many questions, especially with regard to the rise of carlism as a hegemonic power. Generally, the carlist domination is interpreted as a result of the authoritarian identification between Antônio Carlos Magalhães and the military governments. However, the complexity of the relationships formed in that situation requires a broader assessment. It is a context permeated with conflicts, doubts and contradictions also involving juracisists, vianists and lomantists. The established links were not limited to the personnel convenience, the political pragmatism or the authoritarian identification. The driving questioning was the success of the carlist strategy in the hegemonization process of Bahia’s politics during dictatorship. The timeframe comprised the period between 1966 and 1982 andis justified because it was a time marked by the change in the correlation of political forces in Bahia. Thus, this study aims to find the reasons for the predominance of carlism within the set of ideas proposed and systematized by the conservative elite of the country during the mentioned period. The research was based on documentary analysis in biographies, statistics and letters, as well as literature on the main concepts addressed in the work. Therefore, even recognizing that this study is not conclusive and does not end in this research, one can infer that the carlist strategy was to integrate Bahia’s political elite around relevant political themes and of common interest. Anticommunism and the development stand out as unifying the conservative thought and this unit allowed the consolidation of this group and the dominion of decisive spaces in Bahia’s politics for several decades. Key-words: Bahia. Politics. Elites. Dictatorship. RESUMO Este trabalho apresenta uma pesquisa sobre a associação entre a elite política na Bahia e os militares, no período da ditadura, e como essa estimulou diversos questionamentos, especialmente, no que tange à ascensão do carlismo como força hegemônica. Geralmente, a dominação carlista é interpretada como resultado da identificação autoritária entre Antônio Carlos Magalhães e os governos militares. Entretanto, a complexidade das relações constituídas nessa conjuntura impõe uma apreciação mais alargada. Trata-se de um contexto permeado de conflitos, dúvidas e contradições envolvendo, também, juracisistas, vianistas e lomantistas. Os vínculos estabelecidos não se limitaram à conveniência pessoal, ao pragmatismo político ou à identificação autoritária. O questionamento impulsionador foi o sucesso da estratégia carlista no processo de hegemonização da política baiana durante a ditadura. O recorte temporal compreendeu o período entre 1966 e 1982 e justifica-se por ter sido uma época marcada pela alteração na correlação de forças políticas na Bahia. Desta forma, este estudo se propõe a encontrar as razões para o predomínio do carlismo no conjunto de idéias propostas e sistematizadas pela elite conservadora do país no período citado. A pesquisa baseou-se na análise documental em biografias, estatísticas e correspondências, como também bibliográfica sobre os principais conceitos abordados no trabalho. Portanto, mesmo reconhecendo que esse estudo não é conclusivo e também não se esgota nesta investigação, pode-se inferir que a estratégia do carlismo foi integrar a elite política baiana em torno de temas políticos relevantes e de interesse comum. O anticomunismo e o desenvolvimento destacam-se como unificadores do pensamento conservador e essa unidade permitiu a consolidação desse grupo e o domínio dos espaços decisivos da política baiana por várias décadas. Palavras-chave: Bahia. Política. Elites. Ditadura. SUMÁRIO Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09 Capítulo I - O golpe e a ditadura: formação da elite dirigente e ampliação das bases de sustentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 Capítulo II - Os referenciais de integração na Bahia: caminhos e descaminhos da elite política renovada em busca do poder. . . . . . . . . . . . . . . 36 Capítulo III - A criação do bipartidarismo em 1966 e a formação da ARENA na Bahia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Capítulo IV - A atuação dos partidos e das sublegendas no bipartidarismo e do legislativo estadual numa ditadura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Capítulo V - O predomínio do consenso: a defesa do desenvolvimento baiano nas estratégias da elite política. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Capítulo VI - A ferro e a fogo: o conflito como estratégia equivocada do carlismo para as eleições de 1974. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 Capítulo VII - O retorno ao consenso: as bases nacionais do carlismo e os despojos regionais do vianismo e do juracisismo nas eleições de 1978. . . . . . 179 Considerações finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202 Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 Anexos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 CAPÍTULO I O golpe e a ditadura: formação da elite dirigente e ampliação das bases de sustentação Perspectivas iniciais Há versões variadas para a conspiração e o golpe ocorrido em 1964 que originaram um universo considerável de interpretações sobre os agentes provocadores, os instrumentos e os desdobramentos desses fatos nas décadas seguintes. Os principais pontos de divergência referem-se às motivações do golpe e à extensão política e social alcançada nos anos seguintes. A conspiração realizada pelos setores militares e civis para a intervenção militar que depôs o presidente João Goulart foi impulsionada pela infiltração comunista nas instituições políticas e militares e pelo insatisfatório desenvolvimento econômico do país. Desta forma, essa intervenção se caracterizou como uma missão de tutela à democracia cumprida no tempo determinado e necessário. 1 Evidentemente a extensa bibliografia produzida durante as últimas décadas sobre o assunto não ratificam essas alegações, como também os fatos revelados pela própria documentação oriunda dos arquivos particulares e institucionais atualmente conhecidos. Parece mais coerente argumentar a existência de um pretexto conservador para o golpe, movido pelo temor das reformas de base e o crescimento da participação trabalhista. 2 De qualquer modo, ainda interessa continuar investigando em que momento, após 1945, se iniciam os preparativos para a desestabilização da democracia e quão diversa é a amplitude de suas conseqüências. 1 O entendimento de que as Forças Armadas são instituições militares autônomas que tutelam a Constituição Federal e a democracia está presente em quase todos os discursos de apoio ao golpe de 1964. Alfred Stepan (1975) concluiu que os militares participam de um sistema e reagem a todos os estímulos que afetam o seu funcionamento. As evidências demonstram que há restrições ao papel “moderador” dos militares no episódio brasileiro e que sua atuação não se traduziu em tutela da democracia, e sim, numa intervenção conspiratória contra um governo legalmente constituído. 2 Em que pesem as diferenças analíticas entre marxistas, não-marxistas, militares, etc., o conjunto bibliográfico sobre esse período é praticamente unânime nessa conclusão. 17 Ressalta-se ainda que, mesmo quando se sustenta a idéia de uma conspiração conservadora cuja intervenção, por meio de um golpe de Estado, desencadeou uma ditadura, não se pode ignorar as profundas divergências entre seus executores. Apesar de esse tema ter sido objeto de diversas pesquisas no meio acadêmico, ainda permanece como uma incógnita a amplitude das consequências provocadas por essas fissuras na correlação de forças existentes no interior dos diferentes governos que atuaram durante esse período. Isso porque, possivelmente, a disputa entre as forças heterogêneas do sistema autoritário vigente no Brasil exigissem, dos segmentos em conflito, uma movimentação constanteem direção aos seus aliados para garantir uma ampla base de sustentação no governo. Provavelmente, a dinâmica dos acontecimentos implicou em rearticulação dessa base aliada, cooptando uns e descartando outros, de acordo com o momento e as motivações. Sendo assim, possivelmente essas cisões na estrutura governamental afetaram diretamente as elites políticas nos estados da federação e interferiram sobremaneira nas indicações para governador e nas eleições proporcionais. No caso particular da Bahia, encontraremos Juracy Magalhães, Luiz Viana Filho e Lomanto Júnior como pivôs dessa engrenagem política e, mais adiante, Antônio Carlos Magalhães, como um novo ator político surgido durante a ditadura, que superou antigas lideranças e colaborou para materializar o projeto político e econômico da elite brasileira na última metade do século XX. Este capítulo pretende propiciar uma visão geral da situação política e econômica do país, bem como permitir uma exata contextualização dos agentes e dos episódios narrados adiante. Essa conexão entre a política global e suas ramificações na Bahia amplia, sobremaneira, a compreensão do modus operandi dos agentes da política baiana e explica certos comportamentos aparentemente tidos como fruto do autoritarismo congênito, como é o caso de Antônio Carlos Magalhães nesse processo. O golpe de 1964 e seus antecedentes As tentativas malogradas de um golpe de estado que possibilitasse aos civis do Partido Social Democrático (PSD) e da União Democrática Nacional (UDN) - como também a certos setores militares - a oportunidade de controlar o poder e dirigir a nação retrocedem a 1955, no início do governo Juscelino Kubitscheck. Porém, se apresentaram de maneira mais consistente em 1961, com a escolha da chapa Jânio Quadros (UDN) e João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), para presidência e a posterior renúncia do primeiro alguns 18 meses depois da posse. A garantia constitucional da investidura do cargo vacante pelo vice- presidente eleito foi obstaculizada pelos referidos segmentos golpistas. 3 João Goulart, conhecido como Jango, era apoiado por Leonel Brizola e adepto de soluções reformistas para os problemas básicos que afetavam o país. Sua atuação ocorreu num período em que era evidente a polarização entre a direita e a esquerda, quando o comunismo e o liberalismo se expandiam e as contraposições entre as teorias sobre política e economia ocorriam na mesma proporção da polarização ideológica. Os políticos e economistas liberais compreendiam que o governo deveria ter menor intervenção em suas respectivas áreas, regulando-as quando necessário, mas, garantindo sua fluidez. Foram esses princípios que nortearam, em grande parte, o planejamento econômico desse período. Entretanto, ao longo desse estudo será possível perceber que, para a elite brasileira que dirigiu o país durante a ditadura, o liberalismo não era um conceito tão sólido quanto o anticomunismo que se tornou um grande elemento de coesão dos grupos reacionários. Em paralelo, o comunismo propunha um acirramento da luta de classes da qual originaria a revolução que inverteria as posições na sociedade garantindo igualdade para todos. Excepcionalmente, admitia-se a intermediação com fragmentos de classes distintas apenas como atalho para o objetivo final: possibilidade de fusão entre classes distintas, dentro de um mesmo país, para vencer o imperialismo. Essa solução intermediária permitiu a aproximação de Jango com grupos de esquerda causando inconformismo e desconfiança. O fato, porém, é que as posições de Jango, mesmo sendo apenas reformistas, atendiam às expectativas dos sindicalistas. Denis de Moraes percebeu na plataforma reformista de Jango uma resposta institucional aos anseios populares porque “as propostas nacionalistas, desenvolvimentistas, antiimperialistas e pelas reformas de base encontravam, nesses segmentos, uma audiência crescente”. 4 Nesse ponto Gorender foi ainda mais abrangente e percebeu que “apesar da imprecisão e de certa inclinação populista, a idéia de reformas de base correspondia às aspirações das massas trabalhadoras, de vastos setores das camadas médias e do setor nacionalista da burguesia”. 5 3 Houve uma tentativa de golpe, impedida pela ação do marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, que garantiu a eleição e a posterior posse de Juscelino Kubitschek. 4 MORAES, Denis de. A esquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. 5 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas; a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1990, p. 51. 19 Os conservadores acreditavam que as reformas de base seriam o estopim para o despertar da consciência social que, alimentada pelo comunismo, colocaria em risco o capitalismo e, consequentemente, suas posições no poder e seus negócios no Brasil. De imediato, parte do PSD se afastou da coligação de apoio ao governo João Goulart, principalmente após 1963, quando se tornou inevitável um posicionamento do presidente. A UDN, em bloco, fazia oposição sistemática ao governo, enquanto dentro do PTB e do movimento sindical não havia consenso no apoio a Goulart. O fato de não conseguir a conciliação das forças políticas na base governista facilitou a desestabilização pretendida pelos conspiradores e espalhou o medo de uma crise política e econômica generalizada. 6 As articulações para desestruturar o governo federal ocorriam desde 1961: nos quartéis os generais se movimentavam para intervir militarmente a qualquer momento. Enquanto isso, a grande maioria dos empresários favoráveis a uma linha política conservadora produziu e disseminou para a sociedade, por meio do IPES e do IBAD, uma intensa propaganda anticomunista e divulgou sua proposta desenvolvimentista para vencer a crise econômica, demonstrando a inviabilidade daquele governo. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) surgiu em 1959 com o objetivo de financiar candidatos opostos ao populismo e direcionar capital para a propaganda anticomunista. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) foi criado em 1962 por empresários brasileiros, especialmente do Sudeste, ansiosos por uma forma de organização capaz de enfrentar o crescimento qualitativo das organizações sindicais dos trabalhadores e intervir na base do governo – ou contra ele – para reverter os efeitos das reformas de base em seus empreendimentos. Quando o IBAD foi extinto por Goulart em 1963, o IPES manteve o financiamento de artigos e filmes anticomunistas. Somente no início dos anos 1970, cumpridos os seus objetivos, essa entidade foi dissolvida. Uma outra forma de conspiração contra o governo Goulart foi promovida por grupos femininos como a CAMDE, apoiados pelos IPES e o IBAD. As Marchas da Família com Deus Pela Liberdade foram mais que atos de reação da comunidade católica conservadora. Foi uma manifestação política, na tentativa de legitimar o anticomunismo como sentimento 6 Em depoimento ao autor, Ubirajara Pereira de Brito confirmou que João Goulart “tentou reunir todas as forças antiimperialistas para fazer as reformas de base”. Provavelmente, um movimento muito amplo, entretanto, sem a força política e militar necessária. Sua análise sobre o golpe de 1964 é muito bem fundamentada, visto que, sendo assessor muito próximo do gabinete de Jango presenciou vários dos acontecimentos que precederam ao golpe. Quando vários membros da equipe do governo deposto se exilou, Ubirajara Brito foi presença constante ao lado destes na articulação de estratégias para o retorno do país ao sistema democráticosendo, inclusive, assessor especial na candidatura de Trancredo Neves. 20 pleno e deliberado de toda sociedade e, com isso, alavancar, a propósito de um pretenso apoio popular, o golpe que se consumaria no final daquele mês de março. Aos poucos, a pressão dos setores políticos, industriais, empresariais e eclesiásticos, bem como de parte das Forças Armadas, tornou imperativo o posicionamento do governo federal. Numa análise recente sobre a construção memorialista sobre o golpe de 1964, Adriano Codato define a oposição a João Goulart, da seguinte forma: Os limites políticos da democracia brasileira estão definidos, nessa conjuntura, por duas impossibilidades. Pela impossibilidade de origem anti- liberal para aceitar as "regras do jogo" (daí a campanha direitista pela renúncia de Vargas e a campanha militar para impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Janio Quadros). E pela impossibilidade de origem anti-republicana para aceitar a legitimidade do conflito político como constituinte da própria democracia. Por isso que, para as camadas médias tradicionais, para as cúpulas das Forças Armadas e para a burguesia brasileira, toda contestação aparecia como "desordem", todo movimento social conduzia à "instabilidade" e tudo isso junto instaurava o "caos". 7 Assim expressa, a opinião de Codato confirma a hipótese de que a crise desencadeada em 1964 foi a expressão-limite da luta de classes. Vejamos o complemento de suas idéias: O resultado do golpe de 1964 é muito menos a saída desastrada de mais uma crise do populismo conduzida pela inabilidade de um político – Jango – sem disposição para ativar o "dispositivo militar" e resistir a mais um golpe de Estado, e sim a reação política mais ou menos organizada de uma parte da sociedade brasileira à ameaça (ou melhor, à percepção subjetiva da ameaça) de uma "república sindical" ou, na pior das hipóteses, da instauração do "comunismo". Essa percepção estava ligada a três processos: o crescimento da pressão operária sobre o Estado em nome da «proteção social» diante de um capitalismo em rápida transformação. Daí o número crescente de greves e o reforço do movimento sindical urbano; a radicalização ideológica do movimento nacionalista, liderada pelo ISEB e pelo PCB; e o questionamento efetivo da estrutura agrária através das Ligas Camponesas no Nordeste. É justamente a perda de controle dos políticos populistas diante da ascensão do movimento de massas, e não a sua instrumentalização maquiavélica pelos "demagogos", que está no centro da ruptura dessa estrutura de poder. É ela que, no fim das contas, põe em xeque o compromisso assumido em 1930 e instiga o conjunto das classes dominantes a solicitar às Forças Armadas a restauração da "ordem social". 8 7 CODATO, Adriano Nervo. O golpe de 1964: luta de classes no Brasil - a propósito de 'Jango', de Silvio Tendler. In: Revista Espaço Acadêmico, Maringá (PR): v. 36, 6 maio de 2004. p. 1. 8 Ibidem, p.1. 21 O presidente João Goulart, impossibilitado de mediar a contento as tensões sociais e impedir as tentativas de desestabilização política ao seu governo, assistiu prevalecer a força da elite possuidora de meios para controlar subsidiariamente os preços e provocar a inflação descontrolada. A inconsistência da política e da economia provocada por todos esses fatores tornou o ambiente favorável aos golpistas de outrora que se mantinham a postos em busca de novas oportunidades. Em várias oportunidades Jango foi alertado para o perigo de golpe, inclusive pelos baianos Ubirajara Brito, Waldir Pires e Fernando Santana. Ubirajara presenciara reuniões de fazendeiros com o general Amaury Kruel e soubera do levantamento de recursos e da compra de armas para combater o comunismo e a reforma agrária. No dia 16 de fevereiro de 1964, o primeiro, assessor de Jango, reuniu os demais colegas e dirigiu-se ao presidente para relatar a manobra do general Kruel, presenciada no interior de Minas Gerais. O presidente ouviu o relato e estranhou o comportamento de seu compadre Kruel. Mesmo assim, mandou-nos conversar com o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar. Esse estranhou ainda mais do que o presidente, disse- nos que tudo estava sob controle e que poderia ser uma ação diversionista do general Kruel ou destinada a evitar que lideranças golpistas perigosas assumissem o controle da região. 9 Entretanto, a nova tentativa de golpe de estado se materializou e, por conseguinte, manteve o status quo da elite brasileira. Daí por diante, os objetivos desses setores foram reordenar e “sanear” os partidos e as instituições para executar os seus propósitos. Pretendiam ocupar todos os espaços de poder com a finalidade de acelerar o crescimento econômico industrializado para potencializar os negócios no mercado interno e no exterior. A reordenação e o saneamento foram estabelecidos com imposição de um estado de exceção, no qual a ruptura dos direitos legais e a restrição dos processos eleitorais foram fundamentais. O processo industrializador foi imposto a um custo social altíssimo, somente percebido nas décadas posteriores. Um dos primeiros e principais articuladores dessa proposta foi o general Castelo Branco e, juntamente com ele, um grupo de assessores muito próximos. Certamente, não houve unanimidade entre eles, contudo, as divergências concentravam-se na forma e nunca no conteúdo ideológico que impulsionava o grupo. Por isso, a visão doutrinária da ditadura será vista nesse estudo a partir de alguns pressupostos gerais que englobam todo o período. Essa 9 BRITO, Ubirajara. Kruel. Ou...adesão antecipada. In: Nosso Caminho: Revista de arquitetura, arte e cultura. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2008, p. 60. 22 caracterizou-se por estabelecer o anticomunismo e a confiança no desenvolvimento industrial do país como pontos de convergência entre todos os setores da elite durante a ditadura. Os “revolucionários” e o governo Castelo Branco Visto que essa apreciação contextual busca a correspondência entre a formação da elite dirigente brasileira durante a ditadura e ampliação de suas bases de sustentação na Bahia seria razoável ouvir a voz dos agentes centrais desse ciclo histórico. Desse modo, as visões que Luiz Viana Filho, Juracy Magalhães e Antônio Carlos Magalhães tiveram do governo Castelo Branco talvez sejam as mais indicadas como ponto de partida para a apreciação dessa matéria, visto que muito irão contribuir para validação das conclusões apresentadas. 10 Pela apreciação das obras legadas, tentaremos demonstrar que o “saneamento”, as reformas e as adaptações legais - providências tomadas durante o primeiro governo da ditadura - foram essenciais para a consolidação das propostas política e econômica da elite brasileira, dispersas num primeiro momento, embora bastante consistentes no início dos anos 1970. Evidentemente, não houve uma prévia articulação entre os golpistas no sentido de criar um projeto de gestão governamental sólido para o período em que ficaram no poder. A ação de grupos políticos e empresariais, como também as iniciativas militares antes do golpe, foram esparsas e, até certo ponto, desagregadas umas das outras. Somente no governo Castelo Branco, foram traçadas as primeiras metas e se constituíram, de fato, as diretrizes para atuação conjunta de todas as forças da elite, existentes nos campos político e econômico. Os depoimentos de Luiz Viana Filho, Juracy Magalhães e Antônio Carlos Magalhães também possibilitam a percepção da tentativa de unidade em torno dessas propostas que têm, prioritariamente, um caráter político com o anticomunismoe econômico, com o desenvolvimentismo. As reformas em todos os níveis pretendiam a conformação legal e institucional ao novo modelo e foram estratégicas para as ações seguintes. O anticomunismo foi, ao mesmo tempo, instrumento de pressão, propaganda e de força contra a oposição. O entusiasmo transparecia vividamente quando se expunha a idéia de desenvolvimento 10 São as seguintes as obras referidas: FILHO, Luiz Viana. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1975; ABREU, Alzira Alves de et. all Juracy Magalhães: Minhas memórias provisórias – depoimento prestado ao CPDOC/FGV. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972; GÓIS, Ancelmo & et. all. Política é paixão: quem é Antônio Carlos Magalhães. Rio de Janeiro: Revan, 1995. 23 industrializado - elemento impulsionador do crescimento capitalista que as elites desejavam para se adequar, atender às exigências e manter sua posição na dinâmica do mercado internacional. Convém fazer, todavia, uma apresentação preliminar do personagem e dos primeiros atos desse cenário histórico. O general Castelo Branco foi um dos articuladores do golpe que destituiu o presidente João Goulart e, eleito pelo Congresso Nacional, assumiu como primeiro presidente militar do Brasil em 15 de abril de 1964. Nascido em Fortaleza, Ceará, obteve sua formação no Colégio Militar de Porto Alegre, na Escola Militar de Realengo, na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais da Armada, na Escola de Estado-Maior e na Escola de Aviação Militar. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi à Itália acompanhando a Força Expedicionária Brasileira junto à Seção de Planejamento e Operações. Durante sua carreira foi subchefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), comandante da Escola de Estado-Maior e diretor do departamento de estudos da Escola Superior de Guerra (ESG). Em 1962, foi nomeado comandante do IV Exército, em Recife, após ser promovido a general-de- exército, cargo no qual ficou até o ano seguinte quando passou a chefe do Estado-Maior do Exército, onde conspirou contra o governo João Goulart. 11 Juracy Magalhães julgou que a escolha do nome de Castelo Branco, ainda general, em detrimento de outros - como o ex-presidente Eurico Dutra, preferido do governador da Guanabara, Carlos Lacerda; o general Amauri Kruel, potencial postulante à vaga na avaliação do governador de São Paulo, Ademar de Barros; o ministro da Guerra, general Costa e Silva, o mais graduado no Rio de Janeiro a aderir ao golpe de 1964 - adveio em função da articulação das “forças políticas de Brasília” que, seguramente, eram os deputados e senadores simpáticos ao movimento militar. A articulação no Congresso Nacional foi realizada por Juracy Magalhães, a pedido de Castelo Branco, por meio de três baianos: Rui Santos, Luiz Viana Filho e Antônio Carlos Magalhães. Ordem unida em torno do governo castelista, esses quatro, além de Manoel Novais e Lomanto Júnior, se rivalizaram nos anos seguintes, quando tiveram que garimpar espaço dentro da nova configuração de forças formada nos meios militares com as sucessões presidenciais. (Quadro 1) 11 ABREU, Alzira Alves de et. all. (Coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós – 30. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Ed.Fundação Getulio Vargas, 2001. 24 A unidade era o ponto de partida para a concretização e o sucesso das propostas da elite para a reorganização do país nos moldes do capitalismo industrializado, e o presidente Castelo Branco não ignorava isso: Naquele dédalo de problemas, o presidente não perdia de vista o Congresso, peça essencial dentro da legalidade. Ganhara o gosto ao diálogo político, o conhecimento dos homens e o tato às composições de cada hora. Tudo era difícil num Congresso em que militavam treze partidos, dos quais os mais numerosos, o PSD e o PTB, haviam sido virtualmente contrários à Revolução. A própria UDN estava longe de se apresentar como um bloco, dividindo-se ao sabor das ocasionais posições dos governadores da Guanabara e de Minas Gerais. 12 Havia razão nas considerações de Luiz Viana Filho, visto que a resistência imediata à indicação de Castelo Branco para a eleição indireta no Congresso Nacional procedeu de dois governadores de estados influentes da federação. A resistência não ocorreu apenas no campo político, com realce especial dado a Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. Houve críticas ao governo, também, nos quartéis, entre empresários, economistas. Os ataques mais intensos foram contra as medidas econômicas de controle da inflação e não partiram de opositores sistemáticos posicionados à esquerda. Os principais assessores do governo, entre eles Roberto Campos, insistiam na “contenção progressiva da inflação” através do controle monetário e cambial. Como disse Luiz Viana Filho, o presidente Castelo Branco tinha consciência de seu “governo de entressafra” e sabia que seu papel era preparar a economia e o país para um desenvolvimento ulterior que solidificasse a elite e evitasse novas tensões sociais como as que ocorreram entre Juscelino Kubitscheck e João Goulart. Um tratamento de choque na economia poderia aumentar seu prestígio entre os empresários e industriais ou mesmo com os trabalhadores assalariados, contudo não recuperaria o crédito internacional e inviabilizaria os investimentos em longo prazo na compra de bens de capital e insumos necessários ao desenvolvimento industrializado, em marcha desde os anos 1950, conquanto comprometido na década seguinte. Debelar a oposição dentro do próprio governo e controlar o poder legislativo exigiram medidas drásticas, dentre as quais a reforma do sistema político e partidário. O bipartidarismo pareceu a solução mais propícia para evidenciar situação e oposição, contudo a imensa 12 Viana Filho, Op. Cit, p. 144 e 145. 25 diversidade de posições e interesses não se diluiu a bico de pena. A ARENA, partido de sustentação do governo, era ambivalente, pois esteve coesa nos temas políticos amplos e relevantes, como o combate ao comunismo, o estímulo ao desenvolvimento e a sustentação da propaganda otimista, porém tropeçou na política de varejo e na definição dos interesses regionais. Para garantir a unidade, Castelo Branco combinou o controle político do Congresso com a cooptação de governadores aliados e capazes de manter a unidade dentro do diretório regional do partido governista. Já eleito, o presidente e seus assessores diretos acharam conveniente “sanear” a política com o enfraquecimento das oposições. Alguns, como Juscelino Kubitscheck, foram exilados do país, contudo, não pouparam os críticos internos com receio de “fogo amigo”. A opção para afastar Carlos Lacerda foi muito original, como ressaltou Juracy Magalhães: Julgando conveniente afastar Carlos do país, a fim de evitar que seu temperamento inquieto e suas posições extremadas lhe criassem problemas e ao próprio governo, amigos seus, entre os quais o presidente Castelo, conceberam a idéia de incumbi-lo de visitar vários países, com todo o apoio oficial, para explicar a revolução e compor uma boa imagem do novo governo. 13 Uma vez que a ditadura optou por manter o funcionamento de parte dos instrumentos e das instituições democráticas, era preciso continuar manipulando a rede de relações constituída como forma de controle e prevenção. Sem a coesão, também estavam em risco as questões macro políticas e econômicas - objeto de convergência na elite civil que sustentava o governo militar do general Castelo Branco. Todavia, uma vez estabelecidas as eleições indiretasnos estados, o presidente tinha o trunfo de opinar na indicação dos governadores e utilizou os seus critérios para escolha dos candidatos como instrumento a favor da unidade. Ao abrir o processo sucessório direto em 1965, o comando da ditadura percebeu os riscos de subestimar a participação popular quando alguns canais democráticos de manifestação estão abertos, mesmo em condições adversas. Em 1966, em outros onze estados do país, a disputa acirrada por uma indicação indireta das Assembléias Legislativas alertou o presidente Castelo Branco para o risco da dissidência nos diretórios regionais se a rivalidade 13 Alzira Abreu (coord.) Juracy Magalhães: minhas memórias provisórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 177. 26 se mantivesse naqueles níveis. Estabeleceram-se, pois, condições mínimas de acesso ao grupo dos elegíveis, bem como um ritual para o processo eleitoral, como transcrito adiante: Condições políticas: a) Dispor de bom trânsito nos meios políticos e revolucionários; b) Ser filiado à ARENA; c) Não ter antagonismos frontais com o presidente da República e o governador do estado nem, de modo geral, com a orientação política e administrativa de cada um deles; d) Não ser elemento de posições radicalizadas, nem ter comprometimento com erros e vícios do passado, notadamente com a corrupção e a subversão; e) Poder reunir em torno de seu nome a maioria dos representantes da ARENA na Assembléia Legislativa; f) Permitir, por sua formação moral, plena confiança quanto à manutenção dos compromissos com o atual esquema político da ARENA ou do partido em que ela se transformar e bem assim com o presidente da República a ser eleito pela ARENA. 14 Note-se que os requisitos foram tão restritivos quanto subjetivos e o processo de escolha, organizado pelos diretórios estaduais, pretendia a articulação convergente para facilitar o pronunciamento do presidente da República. Todos os candidatos que cumprissem os requisitos e aceitassem as condições acima expostas seriam submetidos a uma eleição prévia pelo governador do estado, senadores, deputados federais e estaduais, bem como os integrantes do diretório regional que não ocupassem cargo algum. Os votantes deveriam escolher três nomes dentre os destacados e os candidatos que alcançassem pelo menos 1/3 dos votos do universo eleitoral seriam submetidos à escolha final do chefe da nação. Finalmente, esse nome seria referendado na Assembléia Legislativa. 15 Portanto, a reforma eleitoral foi importante para discernir o posicionamento político dos parlamentares no Congresso Nacional, nas assembléias legislativas e nas câmaras municipais e as eleições indiretas foram fundamentais para garantir a unidade no partido e no governo. Por isso, “a palavra do presidente era sempre conciliadora, atenuando divergências, em alguns estados profundas, entre antigos partidários da UDN e do PSD, por ele convocados para se reunirem na mesma agremiação”, ressaltou Luiz Viana Filho. 16 Em muitos casos, a obstinação de Castelo Branco em promover o alinhamento de posições no governo e, notadamente, nos estados da federação para garantir uma safra 14 Ibidem, p. 410. 15 Esse processo não era obrigatório, porém, recomendado. Não havia legislação que amparasse esse processo de escolha, sendo ele, de iniciativa pessoal de Castelo Branco. A lista final deveria ser tríplice ou quíntupla e, caso um, dois ou nenhum dos candidatos obtivesse a votação mínima de 1/3 do total de eleitores arrolados nesses critérios, ela poderia ser completada com os melhores colocados. 16 Op. Cit. p. 419. 27 opulenta aos seus sucessores, apresentou um alto custo. Ademar de Barros e Magalhães Pinto, por exemplo, em virtude de constantes atritos com o governo federal, foram lentamente repelidos do centro das decisões políticas até que o apoio recíproco se tornou penoso e escasso. Por outro, o apoio irrestrito ao governo Castelo Branco, como ocorreu com Luiz Viana Filho e Juracy Magalhães, dificultou o trânsito nas gestões posteriores pelo desgaste provocado pela defesa intransigente das posições castelistas. Enfim, ao falecer em acidente aéreo no Ceará, a 18 de julho de 1967, Castelo parecia ter as mesmas convicções de Luiz Viana Filho que defendia: Para o presidente, que assumira a responsabilidade das eleições, por muitos consideradas temerárias devido a impopularidade de medidas governamentais, e não admitira afastar-se do calendário estabelecido, a vitória da ARENA tinha particular significação, pois, além de traduzir o apoio do país à política revolucionária, permitia-lhe entregar a Costa e Silva um partido forte, com ampla margem de voto nas duas Casas do Congresso. Este não teria os mesmos percalços, para compor maiorias ocasionais, que havia variado frequentemente, e a Revolução, solidamente implantada no parlamento, poderia continuar confiante o seu trabalho de renovação. Vigilante, tenaz, hábil, Castelo soubera preparar bons ventos. Estes, agora, enfunavam as velas. 17 Resguardas as apologias que Luiz Viana Filho faz ao golpe e à ditadura, há em seu texto um raciocínio sensato, produzido poucos anos depois, sobre o papel desempenhado pela primeira equipe de governo após o golpe de 1964. O autor em tela demonstra que Castelo era cônscio de que, naquele momento político, o Congresso Nacional e a ARENA eram espaços de decisão importantes para a manutenção do regime. Evidentemente que o presidente possuía restrições aos políticos brasileiros, especialmente, em função da “crise moral” que supunha existir no país, contudo, acreditava na “assepsia” promovida pela ditadura. Ao mesmo tempo, o primeiro presidente militar construiu um projeto político e econômico sustentado em um nacionalismo híbrido, ou seja, extremamente otimista quanto às possibilidades de crescimento do país e, ao mesmo tempo, preocupado com o fluxo do mercado internacional e suas necessidades. Para atender tais expectativas, o projeto econômico definiu-se tendo o desenvolvimento industrial como meta principal. Concomitantemente, o anticomunismo predominou no campo político como medida de precaução às investidas estrangeiras de interferência na “democracia brasileira”. 17 Ibidem, p. 420 28 Na verdade, esses temas transversais ultrapassaram as barreiras da sucessão de Castelo e de Costa e Silva e chegaram intactos aos anos do “milagre econômico”. Pode-se afirmar que, nos anos 1970, a ditadura estava bastante consolidada e os setores de apoio da elite política nos estados também já haviam sido definidos. Por conseguinte, as ponderações de Luiz Viana Filho sobre o desempenho do governo Castelo Branco no processo de estabilização da ditadura fazem sentido. Entretanto, os resultados não prescindiram de um planejamento e de um ordenamento jurídico prévio. O planejamento e a legislação de amparo à nova ordem A equipe do governo Castelo Branco compunha-se de indivíduos comprometidos em preparar a economia brasileira para o desenvolvimento industrializado e manter, ao mesmo tempo, o controle social e político do país. 18 Como não havia um projeto sistematizado antes do golpe, os primeiros meses de trabalho foram dedicados à elaboração de propostas e ao estabelecimento de uma legislação capaz de viabilizar os projetos em gestação e legitimar os atos já consumados. O Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), ainda que criticado e adaptado nos governos posteriores, tornou-se um dos mais importantes referenciais teóricos para a condução da política econômica durante a ditadura. 19As divergências eram sempre em torno do método que, na visão de alguns, afetava o desenvolvimento. Magalhães Pinto criticou a “desnacionalização da indústria” e o deputado federal Herbert Levi, amigo de Lacerda, banqueiro e vinculado aos produtores industriais e rurais de São Paulo, ressentiu-se da falta de crédito e subsídios para as referidas categorias, bem como, da previsão de aumento dos impostos. 20 Mais contundentes, diz Luiz Viana Filho, foram as críticas de Delfim Neto e Dias Leite, relator e membro do Conselho Consultivo do Planejamento, respectivamente. O 18 Octávio Gouvêa de Bulhões e Roberto de Oliveira Campos foram, respectivamente, ministros da Fazenda e do Planejamento e Coordenação Econômica, durante todo o período do governo Castelo Branco. O baiano Edmar de Souza assumiu interinamente o ministério extraordinário ocupado por Roberto Campos. Outro baiano, Luiz Augusto Navarro de Brito assumiu o Gabinete Civil nos últimos meses em substituição a Luiz Viana Filho, indicado governador da Bahia. Além desses, Juracy Montenegro Magalhães respondeu pela pasta das Relações Exteriores entre janeiro de 1966 e março de 1967. 19 O PAEG foi escrito entre maio e julho de 1964 sob à coordenação do economista Roberto Campos. Viana Filho, Op. Cit, p. 208 e 209. 20 Viana Filho, Op. Cit, p. 216 a 224. 29 primeiro, além de temer a falta de controle sobre as transações internacionais e a dependência de recursos estrangeiros para concretizar o plano, preocupava-se com a incompatibilidade entre as medidas de combate à inflação e a possibilidade de retomada do desenvolvimento brasileiro. As reflexões do autor sobre o professor Dias Leite são da mesma natureza, entretanto, pela riqueza dos detalhes, merece a transcrição integral: Embora discutisse vários aspectos do plano, o âmago da crítica consistia na posição atribuída ao desenvolvimento, diante do qual a inflação era irrelevante, devendo ser absorvida através da poupança e da eficiência do sistema econômico. O desenvolvimento se incumbiria de devorar a inflação. 21 O desenvolvimento foi um dos aspectos principais de coesão da elite dirigente do país durante parte do período da ditadura. Centrados em torno de um tipo de liberalismo econômico e político adaptado às circunstâncias autoritárias e movimentando-se na órbita do capitalismo norte-americano, esses grupos superaram as demais divergências e mantiveram sua hegemonia no poder durante mais de duas décadas. A sobrevivência dos fragmentos dessa elite nos estados, também, só foi possível com a internalização desses princípios e a conformação de suas metas a esse modelo. Do ponto de vista político, as reformas do governo Castelo Branco exigiram um amplo lastro jurídico. Os primeiros atos institucionais foram promulgados, essencialmente, para reordenar as instituições de acordo com as novas diretrizes e com a finalidade de sanear, em todos os níveis da sociedade, as oposições ao novo governo. O Ato Institucional n.º 2, em 27 de outubro de 1965, instituiu eleições indiretas para a presidência e vice-presidência da República, a extinção dos partidos políticos e o julgamento de civis por tribunais militares; o Ato Complementar n.º 4 (AC-4), de 20 de novembro de 1965, impôs o bipartidarismo e estabeleceu novas regras para a reorganização partidária; o Ato Institucional n.º 3, de 5 de fevereiro de 1966, determinou eleições indiretas para o governo dos estados e a indicação dos prefeitos das capitais pelos governadores; e o Ato Institucional n.º 4, de 7 de dezembro de 1966, impôs ao Congresso Nacional reunir toda essa legislação dispersa em vários atos institucionais numa nova Constituição, promulgada em 24 de janeiro de 1967. 21 Ibidem, p. 218. 30 A Bahia dentro da nova ordem Em 1964, o governador da Bahia, Lomanto Júnior, apoiava-se numa base política de largo espectro que incluía tanto políticos da UDN como Juracy Magalhães e Antônio Carlos Magalhães, quanto do PTB de João Goulart, partido do governador. Em suas primeiras manifestações, diante da possibilidade de resistência de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul, Lomanto preferiu uma posição difusa lastreada no discurso da legalidade democrática. Nas primeiras semanas de abril, entretanto, quando a situação estava definida e a UDN fortalecida dentro do novo contexto, ele anunciou seu apoio irrestrito aos militares. (Documento 01) Por intervenção do cardeal dom Augusto Álvaro da Silva e do general Justino Alves Bastos, comandante do 4.º Exército, o governador manteve-se no cargo. Contornadas as dificuldades no governo estadual, o comando da 6.ª Região Militar focou suas ações em outros espaços políticos de decisão. Na Assembléia Legislativa da Bahia, a mesa diretora iniciou, sob vigilância do exército, o processo de cassação de vários deputados. Mesmo o prefeito de Salvador, Virgildásio Sena, eleito pela UDN em 1962, conquanto apoiador discreto das reformas de base, foi afastado do cargo, denunciado e cassado. O general Manoel Mendes Pereira enviou, ainda, tropas aos municípios do interior para cumprir a missão de “sanear” as prefeituras e câmaras municipais. O prefeito de Vitória da Conquista, José Fernandes Pedral Sampaio, submetido a este processo, relatou: Eu tive o direito político suspenso, o mandato cassado pela câmara de vereadores, numa sessão violenta, de metralhadoras, o quarteirão todo cercado. Prenderam os vereadores que podiam resistir, reagir. Convocaram os suplentes que não podiam ser convocados e uma reunião de cassação do mandato foi feita no mesmo dia da minha prisão. Posteriormente - eu estava preso ainda - li nos jornais que tinha tido os direitos políticos suspensos, por dez anos. 22 Esse prefeito, apesar de oriundo da elite conservadora no sertão baiano, se articulou à denominada “campanha da esperança” - composta por um grupo de jovens idealistas, com a finalidade projetar a cidade no cenário estadual - e, para isso, elegeu-se em 1962. Ele era muito próximo de Régis Pacheco (PSD) e postulou, juntamente com Goulart, as reformas de base. Desta forma, sua biografia de reformador determinou a sua prisão, assim referida: 22 Em depoimento ao autor entre os dias 15 e 20 de julho de 1999. 31 A minha prisão foi em circunstâncias assim muito de traição, como praticamente tudo que foi feito nesse golpe militar. [...] De manhãzinha, eu tive notícia de que tinha chegado uma companhia, vieram cem homens do exército, muitos armados, até carros, muitas metralhadoras, pra humilhar a cidade. A prisão foi da seguinte maneira: então eu soube que eles estavam aqui, [...] me aprontei pra ir ao quartel. Quando sai, - defronte da minha casa é o clube social - e o pessoal, a tropa [es]tava parada ali, o capitão Bendochi e outras pessoas, outros militares. Eu passei, cumprimentei e disse até que ia fazer uma visita lá no quartel. Ele disse: Ah! O senhor vai? Então ‘vum bora pra lá’. Na mesma hora entraram dois tenentes no meu carro e a gente seguiu até lá no quartel, que é a companhia, hoje, o batalhão militar, lá [...], mandaram eu me identificar, imediatamente disseram que eu [es]tava preso e me transferiram para uma cela onde eu fiquei incomunicável. Eles levaram pelo menos umas trinta e seis ou quarenta e oito horas sem fornecer, inclusive, alimentação. Nessa prisão aí, acho que cheguei a contar mais de sessenta companheiros que foram presos, ficaram detidos ou foram ouvidos e mandados embora. Depois então, [...] muitos deles foram transferidos pra Salvador e nós ficamos em prisões diferentes. 23Em Feira de Santana, outra cidade do interior do estado, muito próxima a Salvador, o seu prefeito, combinado com operários e estudantes, resolveu resistir ao bloqueio das tropas e retomar a capital, conforme afirmação do próprio Francisco Pinto: A cidade de Salvador encontrava-se cercada pelas tropas e centenas de prisões foram efetuadas. Vários líderes operários e estudantis que escapavam se deslocaram para o nosso município. Discutimos o que fazer e resolvemos resistir. Uma série de providências foram adotadas para enfrentar os golpistas. Não cabe aqui enumerá-las. A ausência de reação no resto do país nos levou à desmobilização. Providenciamos a fuga para a maioria dessas lideranças. 24 Francisco Pinto dos Santos originou-se de uma família politicamente diversificada. Sua mãe era getulista, seu pai udenista e ele um advogado socialista. Era, segundo ele mesmo definiu, “um produto do populismo, da rígida ética que a UDN pelo menos externava e, mais tarde, dos ideais socialistas absorvidos na universidade”. 25 Chico Pinto era respeitado pelos estudantes e sindicalistas passando a ser visto como opção de resistência por governar o segundo maior município do estado, com localização 23 Ibidem. 24 NADER, Ana Beatriz. Os autênticos do MDB: semeadores da democracia. História Oral de vida política. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 148 e 149. 25 Ana Beatriz Nader. Op Cit., p. 142. 32 próxima de Salvador. Como uma ação conjunta de resistência, os mais afoitos pretendiam convocar a guarda municipal de Feira de Santana, fazer comícios e armar barricadas, na tentativa de transformar a cidade no centro da resistência, de onde sairiam para libertar a capital. 26 Tendo em vista essas manifestações, alguns anos depois, a propaganda da ditadura insistia que a principal motivação do golpe foram as crises econômica, política e institucional provocadas pela associação de Goulart com os trabalhadores: Esteve instalado no Brasil um movimento geral de subversão e corrupção, inclusive da própria cúpula administrativa, que tinha por objetivo desmoralizar o regime democrático existente no país. O solapamento das instituições adrendemente preparado por profissionais agitadores conduziu todos à descrença. A guisa de defender o país de grupos econômicos, pregavam contra o regime, exaltando as qualidades de sistemas de governo que atentam contra a ordem político-social estabelecida na nossa constituição. Pregava-se o crime contra as instituições abertamente. Por isso, era indispensável a [sua] segregação do meio social, por suas atividades antidemocráticas. 27 Entretanto, o movimento de reação foi inócuo diante da inexpressiva manifestação dos demais grupos no restante do país, bem como em função dos resultados políticos e militares alcançados pelos conspiradores poucas horas após o golpe. Ao final, as principais lideranças estaduais do PCB, AP e POLOP estavam presas ou escondidas. As propostas reformistas haviam caído com João Goulart, do mesmo modo que sucumbiram as alianças, os sindicatos e as lideranças populistas municipais. Apesar de todos os tropeços, a oposição à ditadura na Bahia se reorganizou e recompôs suas lideranças rapidamente. No final de 1964, o governo Castelo Branco decretou a Lei Suplicy, que atingia diretamente os estudantes baianos e previa a transformação dos antigos centros em diretórios acadêmicos subordinados à direção das faculdades, forçava a realização de novas eleições e tornava obrigatório o voto dos estudantes, sob pena de não poderem se submeter a exame parcial ou final, imediatamente subseqüente à eleição. Esses 26 JÚNIOR, Franklin Oliveira. A Usina dos sonhos: sindicalismo petroleiro na Bahia 1954/1964. Salvador: EGBA, 1996, p. 188. 27 Arq. da 6.ª RM. Apud: Autos do IPM, fls. 301 a 310. 33 reagiram violentamente a essa intervenção na autonomia da atividade política estudantil, como será visto adiante. 28 Não restam dúvidas quanto à rearticulação dos grupos de oposição à ditadura, especialmente estudantes, após 1964. Entretanto, pouco se discute a necessidade de reordenação das forças políticas dentro da Bahia após o mesmo episódio. Essa percepção é essencial para se compreender as mudanças ocorridas no panorama político daquele momento. As rearticulações da elite e da oposição A Universidade Federal da Bahia e o Colégio da Bahia foram ambientes de profundos embates políticos nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao golpe de 1964. No primeiro período letivo de 1965, as lideranças estudantis universitárias reagiram à imposição autoritária da Lei Suplicy e recomendaram aos estudantes o voto nulo. Era uma recomendação, na prática, pouco eficaz numa conjuntura autoritária em que faltavam vagas para os cursos superiores na Universidade Federal da Bahia e os estudantes temiam a punição prevista na legislação educacional recentemente imposta. Entretanto, do ponto de vista simbólico, foi uma ação bastante representativa, especialmente porque, na Faculdade de Filosofia, do total de setecentos e dezoito votos válidos, quinhentos e setenta e nove foram nulos. 29 Entre 1967 e 1968, os estudantes realizaram grandes manifestações contra a Lei Orgânica de Ensino proposta no acordo entre o Ministério da Educação e a agência USAID. O assunto esteve em discussão por vários dias na Assembléia Legislativa e os estudantes se mantiveram mobilizados e atuantes, praticamente parando o centro de Salvador nesse período. A participação da Bahia como área de recuo para os grupos de luta armada, as panfletagens e até mesmo ações armadas foram intensas até o período de refluxo das organizações que davam suporte a essas manifestações. 30 Do ponto de vista da elite, também houve preocupação com a nova ordem. O governador Lomanto Júnior, como dito, estava numa posição incômoda e optou por um 28 Lei Federal n.º 4464 de 09/09/1964, regulamentada pelo Dec. 56241 de 04/05/1965. 29 A Tarde, 23/08/1965, p. 11. 30 Sobre o assunto consultar Sandra Regina Barbosa da Silva. Ousar lutar, ousar vencer: histórias da luta armada em Salvador (1969-1971). Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2003. 34 posicionamento difuso e prudente. A Assembléia Legislativa, enquanto importante espaço de decisão, deixou transparecer a força majoritária do grupo udenista apresentando a seguinte moção de apoio ao golpe: A Assembléia Legislativa do estado, fiel aos sentimentos democráticos do povo baiano, expressa sua solidariedade às forças democráticas, civis e militares, que, obedientes às lideranças dos governadores Magalhães Pinto e Adhemar de Barros, Carlos Lacerda, Ney Braga, Mauro Borges e Hugo Meneguetti e os generais Amaury Cruel, Mourão Filho, Humberto Castelo Branco, Justino Alves e outros ilustres militares, que estão lutando para restaurar no Brasil a legalidade democrática vítima da traição de um governo que se acumpliciava com os piores inimigos da liberdade, os comunistas. 31 Na 6ª Região Militar, sob o comando do general de Brigada Manoel Mendes Pereira, as visitas corteses de empresários e políticos passaram a ser constantes. Entre os estudantes, também havia apoio aos militares. Algumas entidades estudantis, como o Movimento Universitário Democrático (MUD), a Associação Soteropolitana de Estudantes Secundaristas (ASES) e o Movimento Estudantil Patriótico (MEP) firmaram nota pública contra a infiltração das idéias comunistas no movimento estudantil da Bahia e convocaram os voluntários para apoiar as Forças Armadas. 32 Todos esses acontecimentos
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