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TEMA: PSICANÁLISE E BRINCAR O BRINCAR O BRINCAR Todos os direitos reservados à Editora Grupo UNIASSELVI - Uma empresa do Grupo UNIASSELVI Fone/Fax: (47) 3281-9000/ 3281-9090 Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2011. Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a Lei 9.610/98. Rodovia BR 470, km 71, n° 1.040, Bairro Benedito Caixa postal n° 191 - CEP: 89.130-000. lndaial-SC Fone: (0xx47) 3281-9000/3281-9090 Home page: www.uniasselvi.com.br O Brincar Centro Universitário Leonardo da Vinci Organização Carlos Alberto Medrano e Fernanda Germani de Oliveira Conteudista Reitor da UNIASSELVI Prof. Hermínio Kloch Pró-Reitor de Ensino de Graduação a Distância Prof.ª Francieli Stano Torres Pró-Reitor Operacional de Ensino de Graduação a Distância Prof. Hermínio Kloch Diagramação e Capa Júlia Carolina Moser Revisão: José Roberto Rodrigues Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 1O Brincar 1 INTRODUÇÃO As relações entre brincar e psicanálise são muito estreitas e estão presentes desde o início da teoria psicanalítica. De fato, o brincar e os jogos fazem parte de uma técnica muito apurada utilizada para o diagnóstico e o tratamento de bebês, crianças, adolescentes e pessoas com sofrimento psíquico intenso. Antes do brincar e os jogos serem utilizados como técnica, Freud (1900; 1908; 1909) interessou-se no brincar como forma de compreender os processos inconscientes. Nesta etapa vamos trabalhar a concepção que a psicanálise tem do brincar e dos jogos, a utilização do brincar como método de compreensão da subjetividade e os campos de aplicabilidade destes conhecimentos. Faremos, em um primeiro momento, uma breve introdução de alguns poucos conceitos necessários para poder contextualizar o brincar na teoria psicanalítica para depois aprofundar nas questões mais específi cas ligadas ao lúdico tal como é abordado por esta teoria. 2 A PSICANÁLISE NOS PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XX Psicanálise é o nome escolhido por Sigmund Freud para designar um particular método psicoterapêutico criado por ele com o objetivo de tratar e curar doenças de origem psíquica por meio da palavra. Esta técnica psicoterápica deu origem, no intuito de tentar explicar o porquê das doenças e sofrimento psíquico, a uma teoria geral do funcionamento do ser humano. FIGURA 1 – FREUD FONTE: Disponível em: <http:// www.biografi asyvidas.com/ biografi a/f/freud.htm>. Acesso em: 20 maio 2012. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 2 Psicanálise e Brincar 3 ALGUNS CONCEITOS BÁSICOS Trata-se de uma teoria que surge da prática, da observação minuciosa da vida psíquica desde o nascimento até a morte. Nunca pretendeu ser meramente um saber descritivo e, sim, um saber explicativo voltado para a resolução de confl itos e sofrimento mental. Para poder entender a origem dos processos patológicos, Freud (1900; 1908; 1909) mergulhou no mais profundo da alma humana e o fez por caminhos que facilitassem o acesso ao Inconsciente. O Inconsciente é o objeto de estudo da psicanálise. Ou seja, que toda a teoria psicanalítica se organiza a partir da compreensão e explicação do que são os processos inconscientes. No ano de 1900, Freud publica o livro “A interpretação dos sonhos”. Neste livro ele descreve a primeira teoria do aparelho psíquico. Ele descreve três instâncias: Inconsciente (Inc), Consciente (Cc) e Pré-consciente (Pre-cc). A popularização da psicanálise na sociedade e cultura contemporânea fez com que o uso de certos conceitos perdesse o sentido original dado pelos psicanalistas. É comum as pessoas falarem de inconsciente, atos falhos, sexualidade, superego e muitos outros termos, sem saber qual o signifi cado desses termos. Cada um desses conceitos tem uma especifi cidade dentro do campo do saber e atuação da psicanálise, e para compreender como se articulam em redor das concepções sobre o brincar e, em particular, as consequências que na prática têm na vida das crianças e adultos, é que vamos defi nir e entender cada um deles. 4 INCONSCIENTE Para Freud (1900; 1908; 1909), a maior parte da vida psíquica do ser humano acontece no Inconsciente. É o inconsciente quem domina nossos atos, nossas escolhas, nossa forma de pensar e de agir. Freud (1900; 1908; 1909) descreve que na história da humanidade o ser humano sofreu uma série do que ele chamou de feridas no narcisismo. Isto signifi ca ter passado pela dor de saber que já não se é o que se imaginava ser. As feridas a que Freud (1900; 1908; 1909) fez referência aconteceram quando primeiramente a humanidade se deparou com a novidade de que a Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 3O Brincar Terra não era o centro do universo. Que na verdade a Terra é um planeta — bem menor, por sinal — que gira em torno de uma estrela que faz parte de uma de milhões de galáxias. Imagine a sensação de desamparo que signifi cou imaginar- se o centro e medida de todas as coisas para passar a saber que vivemos em um mundo que é um pequeno, um muito pequeno grão de areia perdido na imensidão do universo. Isto aconteceu quando Galileu Galilei, a partir das suas observações, confi rma este lugar do planeta Terra em relação aos outros corpos celestes. A segunda ferida aparece quando Darwin levanta a teoria de que o ser humano surge a partir da evolução dos primatas. Já não mais é possível pensar a espécie humana como tendo sido criada do nada, senão como o produto de um lento e prolongado processo evolutivo. A terceira corresponde, segundo Freud (1900; 1908; 1909), à psicanálise. Mais especifi camente no que se refere ao conceito de inconsciente. No sentido “tópico”, inconsciente designa um dos sistemas defi nidos por Freud no quadro da sua primeira teoria do aparelho psíquico. É constituído por conteúdos recalcados aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente- consciente pela ação do recalque (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 235). Conforme Laplanche e Pontalis (2001), o inconsciente está formado por representações que são regidas pelo que Freud chamou de processo primário, isto é, mecanismos de condensação e deslocamento. As representações estão investidas por energias pulsionais que procuram retornar à consciência em forma de pensamento ou como ação. As representações recalcadas só conseguem aceder à consciência por meio de formações de compromisso após terem sido submetidas às deformações por parte da censura. As representações recalcadas estão relacionadas direta ou indiretamente com desejos infantis organizados em forma de complexos. 5 RECALQUE O recalque consiste no ato de repelir ou de manter representações no inconsciente (imagens, recordações, pensamentos) vinculadas a algum desejo, cuja satisfação poderia ameaçar provocando desprazer no Eu (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Uma das consequências do recalque e do funcionamento do Inconsciente é a existência de dois tipos de conteúdos, ou de duas cenas diferentes na vida psíquica de um sujeito. Os conteúdos são chamados de latentes ou manifestos. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 4 Psicanálise e Brincar Os conteúdos manifestos ou cena consciente são aqueles a que temos acesso e formam parte dos relatos com os quais nos representamos e organizamos nossa vida. Por sua parte, o conteúdo latente ou cena Inconsciente são todas aquelas representações, pensamentos e imagens que controlam nossa vida, mas aos quais não temos acesso por se encontrarem recalcados. No caso do brincar também temos duas cenas: um brincar manifesto, que é o que aparece durante o desenvolvimento da brincadeira, e um brincar latente, que representa o sentido e signifi cado dessa cena. A forma que se tem de entender o que aconteceno sujeito que brinca é através da interpretação e tradução do conteúdo manifesto, para chegar ao latente e com isso a compreensão das motivações inconscientes do comportamento. 6 CONDENSAÇÃO E DESLOCAMENTO São dois dos principais modos de funcionamento dos processos inconscientes. As representações, pensamentos, imagens recalcadas se organizam conforme a lógica da condensação e a do deslocamento. No caso da condensação, se organizam de forma tal que uma representação consciente ou do conteúdo manifesto está representando várias signifi cações inconscientes. No deslocamento, o signifi cado inconsciente pode aparecer no conteúdo manifesto em representações aparentemente pouco importantes. Podemos dizer que o importante se esconde por trás do sutil ou falsamente insignifi cante. Por isso que no brincar, quando se analisa uma brincadeira, todos os detalhes, até os mínimos, podem ser a chave que abre o entendimento das vivências psíquicas de um sujeito. O inconsciente se manifesta por meio do que Freud (1900; 1908; 1909) chamou de “Formações do Inconsciente”. Uma das que mais interessa para compreender o fenômeno lúdico são as fantasias e devaneios que estão intimamente relacionados com o ato criativo. Estes conceitos ajudarão mais adiante para a compreensão do papel do brincar na constituição da subjetividade e como meio de expressão na vida da criança e do adulto. Por enquanto, necessitamos entender como a Psicanálise Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 5O Brincar pensa o processo de subjetivação, isto é, o processo pelo qual vamos nos tornando humanos. Alguns dos caminhos que Freud descobriu sobre como construímos nossas escolhas e decisões foram os sonhos, os atos falhos e os diferentes tipos de produções criativas. Em 1908, Freud escreve o artigo “Escritores Criativos e Devaneios”. Neste artigo o brincar é relacionado com a capacidade criativa do ser humano. Brincar e criar estão estreitamente ligados. E isto não se refere a uma etapa da vida em particular, infância, adolescência ou vida adulta, senão que está presente durante a experiência histórica que cada sujeito vai construindo em torno de si mesmo. Neste sentido, podemos afi rmar que o adulto jamais deixa de brincar (MEDRANO, 2004). No artigo a que fazíamos referência, Freud (1908) relaciona o brincar da criança com a fantasia do adulto e com a produção de vivências prazerosas. Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e despende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza o seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’. O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. Segundo Olga de Sá (2012), para Freud era imprescindível utilizar a psicanálise para compreender uma obra de arte e, com isto, interpretá-la, descobrir-lhe o signifi cado e o conteúdo latente. Interessa-lhe saber de que fontes o artista - esse estranho ser - retira seu material e desperta em nós emoções que desconhecíamos. Somos também incapazes, por mais explicações que encontremos, de tornar-nos poetas ou escritores. Freud levanta a hipótese de procurar, na infância, os traços da atividade imaginativa do artista. Encontra-os na Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 6 Psicanálise e Brincar atividade favorita e mais intensa da criança, que são os jogos e o brinquedo. Ao brincar, toda criança comporta-se como um artista, cria um mundo novo, ajustando em forma nova os elementos de seu próprio mundo. A antítese do brincar é o real. O poeta faz o mesmo que a criança ao brincar: cria um mundo de fantasia, leva-o a sério, investe nele grande quantidade de emoção - catexia - e distingue-o muito bem da realidade. Ao crescerem, diz Freud, as pessoas param de brincar e perdem o prazer da infância. Mas não renunciam a ele. Trocam-no por outro, pelo fantasiar. Criam devaneios, difíceis de observar, porque os adultos se envergonham de suas fantasias e as ocultam, por serem infantis e, muitas vezes, por serem proibidas. 7 COMO NOS TORNAMOS HUMANOS? Para responder a esta questão necessitamos aceitar a hipótese de que para a psicanálise não nascemos humanos. Nascemos com a potencialidade de ser humanos. A bagagem genética que nos diferencia dos outros seres vivos é uma condição necessária, mas não sufi ciente. Para que essa potencialidade se concretize será necessária uma serie de intervenções vindas do exterior ao indivíduo. Esta primeira condição para o desenvolvimento é compartilhada com a psicologia de Vygotzky. O simples ato de nascer não pode desencadear o longo processo de humanização. O ser humano se torna um sujeito cultural e social a partir da intervenção de alguém. A presença de outro se torna imprescindível para inserir a cria humana no mundo da cultura e, consequentemente, começar a fazer parte de uma determinada ordem histórica. Não se trata de uma presença meramente física, deve vir acompanhada de signifi cados. A cria humana nasce indefesa, imatura o sufi ciente para não conseguir sobreviver sem o auxílio de um adulto. Este adulto (na verdade, os adultos que intervêm das mais diferentes maneiras na criação do bebê), além de oferecer os cuidados corporais (alimentação, proteção contra o frio ou calor excessivo), deve se tornar alguém capaz de signifi car cada um dos atos de cuidado. O que chamamos de Pai e Mãe, a diferença de genitor e genitora, são os que, estabelecendo vínculos signifi cativos e fazendo investimentos libidinais, inserem essa cria no mundo da cultura. Esta inserção supõe a adjudicação de sentidos e signifi cados a cada uma das experiências de interação entre adulto e bebê. Também é o ato pelo qual se cria um espaço e universo simbólico ao qual nunca mais poderá renunciar. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 7O Brincar Essa inscrição simbólica nos condena a sermos humanos. Como cada um lida com essa condenação, fará parte da forma como a história de cada sujeito será construída e contada. As experiências que o bebê vai vivendo são o produto do que é chamado de maternagem. Estas experiências vão acompanhadas de sentidos e signifi cados atribuídos pelas pessoas que exercem a função materna. 8 A MATERNAGEM Mas por que é imprescindível maternar? Tal como explicávamos anteriormente, o grau de indefeso defi ne o tipo de relação que é estabelecida entre a criança quando nasce e o/os adulto/s que farão o trabalho de maternagem. Para Sachetti (2007, p. 25): O bebê possui um alto grau de dependência e imaturidade ao nascer, e o que poderia ser considerado um indicador de fragilidade é também um fator que impulsiona sua inserção em uma rede de interações sociais necessárias para sua sobrevivência. Assim, a imaturidade ao nascer leva à interação com o outro, o que constitui a base sobre a qual odesenvolvimento irá ocorrer. Essa imaturidade e incapacidade para sobreviver, por si só, cria um estado de dependência em relação a quem cumpre a função materna. Note-se que falamos aqui de função materna independentemente de quem seja esse adulto, independentemente do sexo ou do tipo de relacionamento familiar ou não que tenha com relação a essa criança. O tipo de vínculo estabelecido, os signifi cados dados por todos aqueles que cumpriram de alguma ou outra forma a função materna e paterna, vão confi gurar o núcleo a partir do qual vai se constituir o inconsciente. Os determinantes culturais, familiares, históricos e políticos também serão elementos signifi cantes constituintes do Inconsciente. Antes de continuar com esta linha explicativa sobre como alguém vai construindo sua subjetividade, queremos reforçar a importância que o estabelecimento do vínculo tem na vida futura do sujeito humano. Lembre que uma das aproximações em relação a tentar defi nir o brincar nos levou a resgatar na etimologia aquele termo latim “vinculum”. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 8 Psicanálise e Brincar 9 O VÍNCULO Rene Spitz (1887-1974) descreveu um particular estado de depressão infantil decorrente de hospitalizações ou longas internações em diferentes tipos de instituições que podem provocar atraso no desenvolvimento mental e físico ou até a morte. Ainda que nessas instituições são fornecidos os cuidados básicos, a falta de afeto e a impossibilidade de estabelecer vínculos e apegos necessários para aferrar-se à vida desencadeiam tais fenômenos de depressão e mudanças fi siológicas. Você pode estar se perguntando: por que inserimos estes conceitos neste curso? Pois bem, quem se encarrega de dar início e de acompanhar o processo de subjetivação (familiares, professores, babás, etc.) inaugura um espaço relacional muito particular e singular com essa criança. A este espaço chamamos de “espaço de brincar”. 10 O PAPEL DO BRINCAR NA TEORIA PSICANALÍTICA O método psicanalítico inicialmente foi construído para atender pacientes adultos. A técnica priorizava a palavra como meio de acesso ao inconsciente e, consequentemente, aos conteúdos recalcados. Esse método é conhecido como “associação livre”. Devido ao êxito obtido na cura de pacientes adultos, alguns psicanalistas começaram a se perguntar se era possível aplicar este método ao trabalho com crianças. O primeiro tratamento de que se tem registro foi publicado por Freud em 1909: “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”. Alguns anos mais tarde, durante a década de 1910 a 1920, alguns psicanalistas começam a propor técnicas específi cas para o tratamento de crianças portadoras de algum tipo de sofrimento psíquico. As vivências prazerosas podem ser originadas tanto por situações de gozo quanto de angústia (MILLER, 1988). Você pode estar se perguntando: como é possível, partindo de uma situação de mal-estar, de desconforto, de angústia, transformar tudo isso em uma vivência de prazer? É por todos conhecido o valor em termos de prazer que é sentido no ato de falar, de “botar para fora”, de desabafar, em suma, quando colocamos em palavras situações de angústia, de dor, de constrangimento. A palavra técnica que a psicanálise utiliza para esta situação é catarse. Catarse é uma descarga, uma purifi cação que produz alívio em relação a sentimentos ou ideias contidos. A catarse foi uma técnica psicoterapêutica Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 9O Brincar utilizada junto com a hipnose nos primórdios da psicanálise. Este “por em palavras” é o que produz a sensação de prazer, a sensação de ter se desfeito de um peso. Falar nos deixa mais leves. As ideias, representações, sentimentos e sensações podem ser tanto conscientes quanto inconscientes. É dizer que o sujeito pode até nem saber antes do ato catártico quais os motivos do seu mal-estar. Mas isto é possível ser afi rmado para quem tem construído a capacidade de expressão por meio da fala. No caso das crianças, foi necessário encontrar, descobrir, qual era a principal, quando não a exclusiva, forma de comunicação capaz de produzir os efeitos decorrentes do ato catártico. Uma vez estabelecida por Pfeifer, em 1919, a relação entre o que Freud chamou de formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, piadas, sintomas) e o brincar, foi possível entender que esta atividade própria da vida infantil se estrutura também a partir de um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. Sendo que o conteúdo manifesto corresponde ao que é desenvolvido em cada brincadeira, e o conteúdo latente o signifi cado desse brincar. Retomaremos esta ideia mais adiante. É Sophie Morgenstern quem começa o estudo dos jogos e dos desenhos infantis tentando descobrir esse signifi cado oculto no conteúdo manifesto. O resultado deste trabalho acabou constituindo a base do método de todos os psicanalistas que se dedicam à psicanálise com crianças e o utilizam até o presente (MEDRANO, 2004). Rambert começa a utilizar jogo de fantoches, onde cada um deles vem representar personagens signifi cativos na infância, tais como pai, mãe, professores, médicos, entre outros. Percebe que a criança consegue fazer falar a esses fantoches coisas que, quando perguntadas de forma direta, fi ca inibida para comunicar. Esta técnica abre a possibilidade de uma maior disponibilidade para colocar em palavras situações traumáticas e, com isso, poder elaborá-las e resolvê-las (SANTA ROSA, 1993). A sistematização da técnica psicanalítica com crianças se deu a partir dos trabalhos de Melanie Klein, que começou a utilizar o brincar e sua interpretação como recurso para o tratamento de crianças e adolescentes (MEDRANO, 2004). Melanie Klein (1882-1960) é considerada uma das mais importantes psicanalistas de crianças. Criadora da Escola Inglesa de Psicanálise, ampliou as fronteiras da psicanálise em relação ao trabalho psicoterapêutico com crianças e no que se refere às patologias que aparecem precocemente e comprometem seriamente a vida psíquica. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 10 Psicanálise e Brincar FIGURA 2 – MELANIE KLEIN FONTE: Disponível em: <http://www. larousse.fr/encyclopedie/personnage/ Klein/127633>. Acesso em: 20 jun. 2012. Suas construções teóricas ajudaram a compreender os estágios iniciais do desenvolvimento e da constituição da subjetividade, tais como autismo, diferentes tipos de psicoses e o que chamamos atualmente de “Transtornos Globais do Desenvolvimento”. A década de 1920 foi o momento em que se criam as condições teóricas e técnicas para avançar na institucionalização defi nitiva da psicanálise com crianças. É durante os anos 20 que aparece em cena outra das psicanalistas mais importantes que se dedicaram a impulsionar o campo de intervenção com crianças e adolescentes, tendo como principal recurso técnico o brincar. Anna Freud (1895-1982) publica uma série de trabalhos e comunicações e abre o primeiro seminário de estudos psicanalíticos sobre crianças e adolescentes. Também se ocupou de criar instituições com o objetivo de criar os primeiros intentos de articular psicanálise e educação. Anna Freud e Melanie Klein, embora tivessem posições divergentes sobre como conduzir os tratamentos psicanalíticos com crianças, reconhecem no brincar a principal via de acesso ao inconsciente das crianças. O brincar é a expressão simbólica de ansiedades, fantasias e representações recalcadas ou inibidas de serem colocadas em palavras. O brincar equivale, para estas autoras, à associação livre do adulto. A comunicação infantil tem no jogar e no brincar as formas pelas quais o mundo Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 11O Brincar pode ser reinventado,construído e, o que é mais relevante, a possibilidade de elaborar situações internas e externas. Desta forma, brincar é o motor e causa da cura. E isto não se restringe ao tratamento psicanalítico nem a algum outro método psicoterapêutico. A importância do jogar e brincar como forma de expressão e comunicação foi apontada por autores como Piaget e Vygotzky. É o brincar o principal meio para aproximarmos e compreender o mundo da criança. Assim como uma mãe necessita se adaptar às capacidades e possibilidades comunicacionais do seu bebê (olhar, tônus postural, sons, etc.), os adultos, quando necessário, deverão apreender a “linguagem” particular com que as crianças se comunicam. Os adultos são os responsáveis por desenvolver sua própria capacidade para brincar. É no próprio brincar do adulto que este se relaciona com a criança que brinca. Ao encontro desta ideia surge um importante pediatra e psicanalista que, no nosso entender, revoluciona a concepção do brincar e cria um dos conceitos que deixou marca na educação, especialmente na educação infantil. Trata-se de Donald Winnicott (1896-1971). FIGURA 3 – DONALD WINNICOTT FONTE: Disponível em: <https://raspas.com.br/ pensadores/273>. Acesso em: 20 jun. 2012. Winnicott (1975) é o psicanalista que deu ao brincar um lugar de destaque no corpo teórico. O livro “O brincar e a realidade” (WINNICOTT, 1975) é obra de consulta obrigatória para todo aquele que pretenda se aprofundar na temática do brincar. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 12 Psicanálise e Brincar 11 HOLDING Como não temos um termo na língua portuguesa que consiga reproduzir o sentido que o conceito de holding tem para Winnicott (1975), ainda usamos o termo em inglês. Uma ideia aproximada do signifi cado é o ato de suster o bebê por quem cumpre a função materna. Este é, talvez, o principal ato que defi ne a função materna e deve se fazer presente com cada uma das pessoas que vierem a cumprir este papel. Aqui o brincar da mãe se torna condição para estabelecer os vínculos necessários para o processo de subjetivação. Dizemos aproximada porque, para Winnicott (1975), não se trata de um ato isolado. O holding é tanto a capacidade da figura materna de sustentar o bebê no tempo. Esta condição do holding se dar no tempo é a que vai proporcionar a sensação de segurança e previsibilidade à criança. O sufixo ing é justamente o que dá a ideia de continuidade, de um estar acontecendo. A utilização, por parte de Winnicott (1975), de gerúndios tais como holding (sustentar), playing (brincar), pretende introduzir a importância da continuidade no tempo dessas ações. Se aplicadas isoladamente, sem que façam parte da cotidianidade, perdem os efeitos de constituição, construção e manutenção dos efeitos sobre a subjetividade. O holding é muito mais do que segurar fi sicamente. Trata-se fundamentalmente de um sustentar também no plano fi gurativo. A mãe (e quem cumpra essa função) é quem deve se oferecer para o bebê poder construir as imagens e representações com as quais começará a desenvolver os primeiros vínculos. Neste holding estão incluídos os olhares, a comunicação silenciosa, o toque, a voz, os cheiros, que aos poucos começam a se tornar familiares, os ritmos e todos aqueles tipos de trocas entre a fi gura materna e a criança. Antes de desenvolver o conceito de brincar para Winnicott (1975), vamos conhecer algumas das ideias e trabalhos mais signifi cativos da sua obra. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 13O Brincar FIGURA 4 – Detalhe do quadro As três idades da mulher, de Gustav Klint. FONTE: Disponível em: <http://girodeideias. blogspot.com.br/2008_12_28_archive.html>. Acesso em: 20 jun. 2012. Winnicott (1975) afi rma que entre o brincar do adulto e o da criança não existem diferenças signifi cativas. No caso do adulto é necessário estar atento, em particular, à comunicação verbal, na escolha de palavras, no sentido de humor e nas infl exões de voz. Fora isso, o brincar para uns e para outros tem a mesma função e as mesmas características. O brincar está relacionado com a saúde. É muito importante estar atentos à ausência de brincar em um sujeito. Em particular com as crianças. Uma das primeiras atividades que fi ca inibida durante um processo patológico (seja de origem física ou mental) é o brincar. Podemos afirmar que a ausência de brincar em uma criança é um sinal de estarmos nos deparando com uma situação que merece ser investigada. O problema, muitas vezes, é colocado sobre a criança que brinca em demasia, com a criança que “só pensa em brincar”, com o aluno que não acata a indicação de acabar com suas brincadeiras. O que deveria preocupar é a situação contrária: a criança (ou o adulto) que não brinca, que se sente inibida para brincar e jogar. O brincar como recurso técnico é muito utilizado pela psicopedagogia clínica e a pedagogia tal como foi desenvolvida pela psicopedagoga Alicia Fernandez. Vejamos o que esta autora desenvolveu com relação ao brincar e os processos educativos. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 14 Psicanálise e Brincar 12 O BRINCAR NAS PRÁTICAS DA PEDAGOGIA Caro acadêmico, vejamos como a psicopedagoga Alicia Fernandez (1991; 2001) articula muitos dos conceitos desenvolvidos nas etapas anteriores deste curso e os aplica mais especifi camente na relação ensinar/aprender. FIGURA 5 – ALICIA FERNANDEZ FONTE: Disponível em: <http://educarparacrescer.abril.com.br/ comportamento/entrevista-alicia-fernandez-402342.shtml>. Acesso em: 20 jun. 2012. Alicia Fernandez nasceu em Buenos Aires em 1944. Estudou psicopedagogia na Universidade de El Salvador. Estudou psicologia na Universidade de Buenos Aires, onde teve contato com a psicanálise através de Pichon Rivière e Bleger, professores que lecionavam naquela faculdade, pouco antes de 1966. Após seus estudos, começa a trabalhar como orientadora educacional (desde 1962 a 1974), trabalhando com a população carente. Atualmente é supervisora das atividades psicopedagógicas em numerosos hospitais públicos e privados da cidade de Buenos Aires. Assessora de atividades psicopedagógicas em diferentes instituições educativas e de saúde no Brasil (São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Fortaleza e Goiânia) e na Argentina (Buenos Aires, Córdoba, San Juan e Rio Negro). Coordenadora de "Grupos de Tratamento Psicopedagógico Didático para Psicopedagogos" em Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre (Experiência grupal com base psicanalítica de revisão da modalidade de aprendizagem e ensino do psicopedagogo e do professor). Diretora da “Escuela Psicopedagogica de Buenos Aires” em nível de pós-graduação (Escola de Formação em Psicopedagogia Clínica para psicólogos, médicos, pedagogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos). Autora dos livros “A Inteligência Aprisionada”, “A mulher Escondida na Professora” (CEPAI, 2012). Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 15O Brincar Para Alicia Fernandez (2001), entre ensinante e aprendente se situa um espaço muito particular, que é o espaço onde é possível vivenciar a experiência de alegria e prazer. Esta experiência pode ser facilitada ou inibida por parte de quem ensina. Mais do que mostrar conteúdos e conhecimentos, ser ensinante supõe inaugurar espaços de aprender. Ensinante não se limita ao professor. Para Fernandez (2001, p. 29), “ensinantes são os pais, os irmãos, os tios, os avós e demais integrantes da família, como também os professores e professoras e os companheiros na escola”. Caro acadêmico, veja como vai aparecendo a importância que tem o adulto no brincar da criança. Ainda mais quando se considera o espaço de aprender como sendo o mesmoque o espaço de brincar. Mas, se o espaço de aprender é um espaço que pertence tanto aos professores quanto aos alunos, devemos estar atentos não somente ao que acontece durante as brincadeiras e jogos dos alunos. É muito importante que o professor se pergunte sobre seus espaços de brincar, como ele vive suas fantasias, sobre como escreve e inscreve suas experiências criativas. Nesse sentido, convidamos você, acadêmico, a refl etir com relação a estas belas palavras sobre o brincar: Brincar é descobrir as bondades da linguagem; é inventar novas histórias, é assistir à possibilidade humana de criar novos pulsares, e isso é maravilhosamente prazeroso. Brincar é pôr a galopar as palavras, as mãos e os sonhos. Brincar é sonhar acordado; ainda mais: é arriscar-se a fazer do sonho um texto visível. Um grande obstáculo para instrumentalizar um programa educativo em que a criança e seus jogos estejam no centro é a difi culdade que têm os professores para jogar. (MORALES apud FERNANDEZ, 2001, p. 36). Uma das interseções entre o brincar e o aprender se dá quando alguém consegue fazer próprio o conhecimento do outro. Esta apropriação, segundo Fernandez (1991, p. 165), só pode se dar jogando e brincando. Não pode haver construção do saber, se não se joga com o conhecimento. Ao falar de jogo, não estou fazendo referência a um ato, nem a um produto, mas a um processo. Estou me referindo a esse lugar e tempo que Winnicott chama de espaço transicional, de confi ança, de criatividade. Transicional entre o crer e o não crer, entre o dentro e o fora. Neste sentido é que o espaço transicional e o espaço de aprendizagem coincidem, já que é em um espaço transicional onde é possível aprender. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 16 Psicanálise e Brincar Isto nos obriga a refl etir sobre uma das ideias lançadas por Winnicott (1975), quando afi rma que é na interseção dos espaços de brincar entre duas pessoas que se permite estabelecer o vínculo necessário para, por exemplo, os processos terapêuticos. Alicia Fernandez utiliza esta ideia e a aplica ao fenômeno do aprender. O aprender vai se dar na intersecção de dois espaços de brincar, o do ensinante e o do aprendente. É condição para que esse aprender possa acontecer que os dois habilitem, disponham de espaço de brincar. Este espaço se refere ao espaço subjetivo, que é como cada um se relaciona com seu brincar, como se abre a experiência de brincar e da criatividade. Se o aprendente não consegue ou está inibido para brincar, a primeira tarefa que compete ao ensinante é ajudar o aprendente a inaugurar ou desenvolver o espaço da ludicidade. FIGURA 6 – Maurito Cornelio Escher “Drawing Hands” Litografi a de 1948. FONTE: Disponível em: <http://www.wikipaintings.org/ en/m-c-escher/drawing-hands>. Acesso em: 20 jun. 2012. Se, pelo contrário, é o ensinante quem não sabe ou não consegue brincar, então não tem a menor condição de ocupar esse lugar de ensinante. Lembre, caro acadêmico, que, tal como foi colocado anteriormente, o papel de ensinante e aprendente excede o papel de professor e aluno, e que esta fórmula se aplica além do espaço particular da escola. Como no desenho, um faz o outro. Desenvolver sua capacidade para brincar, para jogar, para a criatividade, é condição para fazer do seu trabalho um fazer que mereça a pena ser vivido de forma criativa e prazerosa. Fazendo dele um brincar. Copyright © Editora GRUPO UNIASSELVI 2012. Todos os direitos reservados. 17O Brincar REFERÊNCIAS CEPAI. Personalidades. Disponível em: <http://www.cepai.com.br/sobre_ personalidades.php, 2012>. Acesso em: 2 ago. 2012. FERNANDEZ, A. A inteligência aprisionada. Abordagem psicopedagógica clínica da criança e sua família. Porto Alegre: Artmed, 1991. ______. O saber em jogo. A psicopedagogia propiciando autorias de pensamento. Porto Alegre: Artmed, 2001. FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1900. CD-ROM. ______. Escritores criativos e devaneios. Rio de Janeiro: Imago, 1908. CD-ROM. ______. Análises de uma fobia em um menino de cinco anos. Rio de Janeiro: Imago, 1909. CD-ROM. LAPLANCHE; PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MEDRANO, C. Do silêncio ao brincar. São Paulo: Vetor Editora, 2004. MILLER, J. Percurso de Lacan: Uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. SÁ, Olga de. O de Psicanálise e Literatura: a interpretação. Disponível em: <http://www.pucsp.br/pos/cos/face/psicanal.htm>. Acesso em: 2 ago. 2012. SACHETTI, Azevedo Reis. Um estudo das crenças maternas sobre cuidados com crianças em dois contextos culturais do Estado de Santa Catarina. (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~ppgp/Virginia%20Azevedo%20 Reis%20Sachetti.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2012. SANTA ROZA, Eliza. Quando o Brincar é Dizer. A experiência psicanalítica na infância. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993. WINNICOTT, D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.
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