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JORGE MIRANDA CIENCIA POLITICA FORMAS DE GOVERNO Lisboa 1996 Título: Ciência Política - Formas de Governo Autor: Jorge Miranda Reservados todos os direitos para Jorge Miranda composição e Impressão: Pedro Ferreira - Artes Gráficas Rua Jorge Castilho, 14 Telefone 916 17 08 2735 RIO DE MOURO Edição: Pedro Ferreira - Editor 2735 RIO DE MOURO Tiragem: 1000 exemplares Depósito Legal n.Q 104815/96 Lisboa - 1996 NOTA PRÉVIA A parte IV do programa da disciplina de Ciência Política e Direito Constitucional, do 1.2 ano (segundo o plano curricular de 1983), na turma a meu cargo, versa sobre formas e sistemas de Governo, englobando também sistemas eleitorais e sistemas de partidos. Embora há muito deseje retomar, aprofundar e desenvolver o estudo destas matérias, tal não tem sido possível por causa de outros trabalhos acadêmicos, designadamente os derivados das sucessivas edições dos diversos volumes do Manual de Direito Constitucional e da presidência do Conselho Directivo. Em 1992, procedi a uma remodelação relativamente extensa das lições policopiadas anterionnente. Agora nem isso: apenas aqui e ali algumas actualizações. Tal vem a ser o alcance destes apontamentos. Lisboa, 15 de Outubro de 1996 TITULO 1 FORMAS DE GOVERNO EM GERAL CAPITULO 1 CONCEITOS E TIPOLOGIAS FUNDAMENTAIS I.PRELIMINARES Ao considerar-se a problemática dos sistemas político-constitucionais, é mister tomar em conta: a) A relativa confusão de conceitos e a multiplicidade de termos - formas de Estado, tipos de Estado, regimes, formas de governo, sistema de governo, sistemas Políticos, estruturas govemamentais, formas políticas, etc.; b) A pesada carga doutrinal, derivada de a matéria dos sistemas políticos (ou, noutra perspectiva, das formas políticas) ser das mais estudadas e discutidas desde os primórdios da reflexão política; c) A localização histórica dos sistemas políticos e, portanto, a localização histórica das suas tiPologias - há classificações próprias de certas épocas e mesmo as classificações aparente- 11 mente mais constantes e universais têm de ser entendidas em função de cada época e, porventura, de cada continente; d) 0 carácter eminentemente interdisciplinar (o que não quer dizer de puro sincretismo) de qualquer investigação ou exposição a empreender. 2. AS TIPOLOGIAS DE FORMAS POLíTICAS EM GERAL 1 - Num relance geral pelas tipologias de formas políticas’ dir-se-á antes de mais: a) Que nelas se encontram (como salienta, por exemplo, BOBBIO) quase sempre elementos de duas ordens: não só descritivos mas também prescritivos - donde, classificações, umas sistemáticas e outras axiológicas; 1. Cfr., entre tantos, BLUNTSCHLI, Théorie Générale de l’Etat, trad., 3.’ ed., Paris, 1891, págs. 294 e segs.; G. JELLINEK, Allgemeine Staatslehre, 1900, trad. cast. Teoria General del Estado, Buenos Aires, 1954, págs. 501 e segs.; NLÁRNOCO E SOUSA, Direito Político -Poderes do Estado, Coimbra, 19 10, págs. 83 e segs.; C. SCMITT, Verfassungslehre, 1927, trad. cast. Teoria de la Constitucián, Madrid-México, 1934-1966, págs. 259 e segs.; EMILIO CROSSA, ”Sulla teoria delle forme di Stato”, in Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 193 1, págs. 18 e segs.; H. KELSEN, Teoria General del Estado, trad. cast., Barcelona-Madrid, 1934, págs. 408 e segs.; SANTI ROMANO, Principii di Diritto Costituzionale Generale, 2. ed., Milão, 1947, 12 b) Que as classificações axiológicas, enquanto exprimem juizos sobre a sociedade política e contêm indicações de preferências vêm a ser instrumentos de intervenção com vista a determinados modelos ou soluções - sejam esses modelos pensados a págs. 142 e segs.; CHARLES EISEN1~ Cours de Droit Constitutionnel Comparé, policopiado, Paris, 1950-195 1; CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito e do Estado, I, 2. ed., Coimbra, 1955; QUEIROZ LIMA, Teoria do Estado, 8.2 ed., Rio de Janeiro, 1957, págs. 218 e segs.; K. LOWENSTEIN, Verfassungslehre, trad. cats. Teoria de la Constitución, Barcelona, 1964, págs. 41 e segs.; GEORGE CATLIN, Systematic Politics, Toronto, 1962, trud. port. Tratado de Política, Rio de Janeiro, 1964, págs. 193 e segs.; ROBERT MAC IVER, The Web of Government, 1965, trad. cast. Teoria del Gobierno, Madrid, 1966, págs. 139 e segs.; G. BURDEAU, Traité de Science Polítique, V, 2. ed., Paris, 1970; C. MORTATI, Lezione sulle forme de governo, Pádua, 1973, maxime págs. 73 e segs.; MANUEL JI21ENEZ DE PARGA, Los Regimenes Políticos Contemporaneos, 5.2 ed., Madrid, 1974, maxime págs. 120 e segs.; REINHOLD ZIPPELIUS, Allgemeinstaatslehre, trad. port. Teoria Geral do Estado, Lisboa, 1974, págs. 72 e segs.; KLAUS VON BEY1VIE, ”Formas de dominación”, in Marxismo y Democracia - Enciclopedia de Conceptos Básicos. Política 3, trad. cast., Madrid, 1975, págs. 70 e segs.; NORBERTO BOBBIO, La Teoria delle Fórme di Governo, Turim, 1976; MARCELLO CAETANO, Direito Constitucional, 1, Rio de Janeiro, 1977, págs. 409 e segs.; JOSÉ ALFREDO OLIVEIRA BARACHO, Regimes Políticos, São Paulo, 1977; ADRIANO MOREIRA, Ciência Política, Lisboa, 1979, págs. 137 e segs.; PAULO BONAVIDES, Ciência Política, 6.L’ ed., Rio de Janeiro, 1986, págs. 223 e segs.; JEAN-LOUIS QUERMONNE, Les Régimes Politiques Occidentaux, Paris, 1986; CONSTATIN L. GEORCOPOULOS, Contribution à la elassification des régimes politiques, Paris, 1987; VITALINO CANAS, Preliminares de Estudo da Ciência Política, Macau, 1992, págs. 37 e segs.; GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Diritto Costituzionale Comparato, 4.2 ed., Pádua, 1993, págs. 95 e segs.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6.-1 ed., Coimbra, 1993, págs. 707 e segs. 13 partir da idealização de uma forma concreta verificada (como Atenas ou Esparta na Antiguidade, a Inglaterra ou a Suíça na Idade Moderna), sejam pensados a partir de uma síntese de elementos bons de várias formas de governo (dando origem aos chamados governos mistos), ou sejam pensados em termos de pura construção ideal ou utopia’; c) Que as tipologias aparecem em ligação directa ou indirecta com as situações vividas pelos seus autores - e daí as suas variações e constantes desactualizações; d) Que, ao mesmo tempo, elas se projectam sobre a própria prática política, pelo menos, a nível de legitimidade e de apreciação dos actos dos governantes (o que mostra como os factores culturais e ideológicos agem sobre a realidade social e política); 1. À letra, utopia significa porém (ou por isso mesmo) não lugar, lugar inexistente, nenhures. Têm sido muitos os livros com construções de Cidades ideais, mais felizes ou mais justas. Entre todos, lembre-se o de TOMÁS MORUS (Utopia, 1516), sendo ”Utopia”, uma república insular descrita por um viajante português, Rafael Hifiodeu. Para um relance panorâmico sobre o assunto, v. MANUEL ANTUNES, ”Utopia”, in Pólis, V, págs. 1465 e segs.; JEAN SERVIER, L’Utopie, Paris, 1979; PAULO FERREIRA DA CUNHA, Constituição, Direito e Utopia, Coimbra, 1996. Mas igualmente se conhecem anti-utopias ou descrições de organizações políticas negadoras de liberdade e de felicidade das pessoas: v., por exemplo, no nosso tempo, 1984, de GEORGE ORWELL. 14 e) Que, apesar de essencialmente voltadas para o poder, não ignoram, muitas vezes, os elementos sociais ou os condicionamentos sócio-económicos do poder’. 11 - Importa discernir tipologias clássicas (antigas e modernas) e tipologias actuais (tipologias surgidas no século XX, frente aos problemas da nossa época). As tipologias clássicas possuem de comum: a) São tipologias simples - cada uma delas, ao procurar a suma divisio, adopta, de regra, um só critério de base; b) Conferem todo o relevo à titularidade e ao exercício do poder, numa postura tanto de observação de factos quanto de formulação de juízos de valor; c) 0 elemento prescritivo entra, por um lado, através da distinçãoentre formas puras e formas degeneradas e, por outro lado, através do apontar de formas mistas (desde Políbio e Cícero a Harrington, Locke e Montesquieu, mas não Bodin, Hobbes ou Rousseau). Por seu turno, as tipologias propostas no século XX ostentam COMO características gerais: 1. V. já o cap. III do livro VI da Política de Aristóteles. 15 a) Adoptam critérios extremamente variados e, não raro, critérios múltiplos; b) Situam-se quase todas no âmbito da democracia (que é a legitimidade prevalecente hoje); c) Atendem, não raro, a considerações de índole económica e social (ou implicam- nas). 111 - As tipologias clássicas radicam em Platão e Aristóteles, e através de Cícero, S. Tomás de Aquino, Maquiavel, Bodin e outros, prolongam-se até ao século XX. E é usual contrapor tipologia tripartida e tipologia bipartida. Na tipologia tripartida distinguem-se monarquia, aristocracia, democracia (república, politeia, na expressão de Aristóteles). Na tipologia bipartida, ligada a Maquiavel, monarquia (principado) e república. IV - As tipologias propostas no século XX assentam, em grande parte, nas tipologias clássicas, revendo-as ou adaptando-as às novas condições. Mas encontram-se, igualmente, tipologias que apelam para outros critérios classificativos mais ou menos exigentes. ais coerente e a mais compreensível De entre as primeiras, a m pelo homem da rua é a dicotomia democracia-ditadura. Também 16 se fala em regimes de poder civil e regimes de poder militar. E no âmbito da democracia, em democracia directa, democracia representativa e democracia semidirecta (a que alguns aditam a democracia semi-representativa) e em democracia censitária (ou burguesa) e democracia de massas. Exemplos de tipologias para além da detenção do poder: pluralismo e monismo político ou, de outra perspectiva, regimes pluripartidários e regimes monopartidários; regimes liberais, autoritários e totalitários; e regimes capitalistas e socialistas. V - Ilustração da índole histórica das tipologias e a contraposição entre monarquia e república: a) Até ao século XVIII, a monarquia ou principado como governo de um só, independentemente do processo da sua designação’, e a república (praticamente quase sempre aristocrática) como governo de um colégio ou assembleia. b) Durante a Revolução francesa, a monarquia como governo de um só (ligado às características da monarquia absoluta) e a república como governo do povo (fundada no princípio democrático, portanto). 1. Houve, assim, monarquias hereditárias, por cooptação (de algum modo, o Império Romano) e por eleição (monarquia visigótica, Império Germânico, Polónia, etc.). 17 c) Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos (MADISON) e depois, durante a maior parte do século XIX, a república como governo representativo contraposto à democracia pura ou governo directo’. d) No século XIX conciliação entre monarquia (absoluta) e república (democrática) através de uma forma mista, a monarquia constitucional (nuns casos com prevalência do princípio monárquico - monarquia limitada - noutros com prevalência do princípio democrático - monarquia parlamentar - e noutros ainda com equilíbrio entre eles, embora com concentração de poderes no Rei - monarquia orleanista). e) No século XX o desaparecimento do princípio monárquico e redução das características da monarquia (agora só constitucional) à hereditariedade da chefia do Estado, mas, em contrapartida, podendo entender-se que a república exprime um princípio democrático qualificado (de onde, desde logo, a ausência de Chefe de Estado ou um Chefe de Estado colegial ou singular electivo)2. 1. The Federalist, 1787, n.Q 14. 2. Cfr., por exemplo, GIOVANNI CASSANDRO, ”Monarchia”, in Enciclopedia del Diritto, XX-VI, págs. 724 e segs.; ANTONIO PAPELL, La Monarquia espaflola y el Derecho constitucional europeo, Barcelona, 1980; NICOLA ~EUCCI, Republica, in Dizionario di Politica, 2.L’ ed., Turim, 1993, págs. 960 e segs.; NUNO ROGEIRO, República, in Polis, V, págs. 414 e segs. 18 3. AS GRANDES CLASSIFICAÇõES DOUTRINAIS 1 - A primeira grande classificação doutrinária a referir é a de PLATAO (A República, As Leis). Na linha do seu pensamento, para ele todas as formas de governo existentes são corruptas e Estado óptimo há um só. Reduz essas formas a quatro, segundo graus crescentes de imperfeição (ou decrescentes de perfeição): 1) a timocracia (governo da honra ou de homens honrados ou transição entre a Constituição ideal e a Constituição real, como seria o caso de Esparta); 2) a oligarquia ou fornia corrupta -de aristocracia; 3) a democracia; 4) a tirania. E indica duas formas ideais, indiferentemente: a monarquia e a aristocracia (de que é degenerescência a timocracia). Para Caracterizar estas formas de governo, PLATÃO examina as virtudes e os vícios das respectivas classes dirigentes e a legalidade ou a ilegalidade da actuação dos governos. A passagem de uma forma a outra dá-se com a mudança de gerações e com a corrupção dos seus princípios pelo excesso que conduz à discórdia. 19 11 - Mas a mais célebre das análises das formas de governo pertence a ARISTóTELES (Política, cap. V do livro 111), se bem que o critério fundamental em que assente remonte a HERóDOTO. É um critério quantitativo - quem governa (se é um homem só, se são poucos ou muitos) a que acresce um critério valorativo - como governa (qual o interesse ou o bem almejado pelos governantes, se o bem geral, se o bem apenas deles). Formas puras revelam-se a monarquia, a aristocracia e a ”politeia”. Formas degeneradas a tirania, a oligarquia e a democracia (a democracia aparece como governo em favor dos pobres, tal como a oligarquia se define como governo em favor dos ricos). Cada uma destas formas compreende subdistinções (por exemplo quanto à monarquia, a dos tempos heróicos, a de Esparta e a despótica, do Oriente). Como hierarquia das formas de governo, propõe ARISTóTELES uma muito semelhante à de PLATÃO (sendo a forma pior a degenerescência da melhor): monarquia - aristocracia ”politeia” - democracia - oligarquia - tirania. Entende, porém, que o melhor governo seria uma conjugaçao de governos diversos, numa preocupação de mediania ou equilíbrio. 111 - POLíBIO (livro VI da História), escrevendo no século II antes de Cristo e debruçando-se sobre a Constituição romana, procede a um estudo dos mais completos das formas de governo. 20 Segundo ele, existem seis fomias fundamentais de governo, três boas e três más; e há uma sétima forma, síntese das três formas boas (e de que seria exemplo a Constituição romana). É um tratamento simultaneamente sistemático, histórico e axiológico. As formas boas de governo fundam-se no consenso e vêm a ser o reino, a aristocracia e a democracia (esta, no sentido que perduraria). As formas más repousam na força e vêm a ser a tirania, a oligarquia e a oclocracia. As formas boas e más sucedem-se em ciclos, deste modo: a monarquia decai em tirania; daqui passa- se a aristocracia, que depois degenera em oligarquia; segue-se a democracia, que, por ser branda, cai em oclocracia (ou governo de multidão); volta-se à monarquia; etc. A grande contribuição de POLíBIO é a sua formulação da tese do governo misto, associada à teoria dos ciclos. Como os ciclos mostram a breve duração das formas puras, para haver estabilidade toma-se necessário recorrer a governos mistos (como em Roma, em que os consules traduziriam o elemento monárquico, o Senado o elemento aristocrático e o povo o elemento democrático. Mas os governos mistos também se modificariam; e haveria ciclos ainda no interior dos próprios governos mistos. IV - MAQUIÁVEL (0 Príncipe e Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio), muitos séculos mais tarde, avança com uma concepção bastante diversa, no âmbito já do Estado moderno. 21Propõe uma bipartição, correspondente à efectiva situação do seu tempo (ao passo que na Grécia havia uma grande variedade de formas de organização): a contraposição entre república (que se encontrava em Itália, na Flandres e em certas cidades alemãs) e o principado (em rápido florescimento, então). A república é o governo de vários, sejam alguns (aristocratas) Ou muitos ou todos (democracia). 0 principado ou monarquia o governo de um só. Na república tem de se formar uma vontade colectiva, na monarquia não há senão uma vontade individual. Divide os principados em hereditários e novos (estes provenientes de uma recente conquista do poder, num conceito que se aproxima do moderno conceito de ditadura). Para além disso, não deixa de elogiar os governos mistos, exaltando, a esse propósito, também ele, a República Romana. V - Outra tipologia é a de JEAN BODIN, autor da obra celebérrima Os seis livros da República, publicada em 1576. JEAN BODIN ficou conhecido, sobretudo, como o teórico da monarquia centralizada (e, até certo ponto, da monarquia absoluta francesa) e por ter definido e lançado com êxito - propiciado pelas condições históricas - o conceito de soberania. Contudo, nessa obra, BODIN procede a uma classificação formas políticas, tendo em conta a distinção entre titularidexercício da soberania. 22 0 poder político poderia pertencer a um só, a vários ou a todos - de onde, respectivamente, monarquia aristocracia e demo- cracia. Entretanto, não bastaria atender à titularidade, era também necessário atender ao exercício e às pessoas ou instituições às quais era confiado - o próprio Rei, uma assembleia aristocrática ou uma assembleia popular. Seria, assim, possível combinar as formas de governo em razão da titularidade com as formas de governo em razão do exercício; poderia haver uma titularidade monárquica e um exercício aristocrático ou até democrático do poder, assim como poderia haver uma titularidade aristocrática e um exercício monárquico ou democrático, e uma titularidade democrática com um exercício monárquico ou aristocrático. E daí não há uma divisão tripartida segundo o pensamento de ARISTóTELES ou de POLíBIO, mas uma divisão em nove grandes formas de governo: - monarquia monárquica (que só aparentemente seria um pleonasmo); - monarquia aristocrática; - monarquia democrática; - aristocracia aristocrática; - aristocracia monárquica; - aristocracia democrática; - democracia monarquica; - democracia aristocrática; e - democracia democrática. 23 Com isto, chega-se a formas aparentemente mistas. Só que o próprio BODIN vem, polemicamente, pÔr em causa a existência de governos mistos, afirmando que, em qualquer Estado, há sempre um princípio que prevalece. Finalmente, num segundo momento ou de um ângulo prescritivo, BOD1N coloca a problemática do modo como o poder é exercido, dos resultados e do valor desse exercício, e vem então propor uma tripartição dos governos em legítimos, despóticos e tirânicos. É outra maneira de pensar a velha distinção entre governos puros e corruptos. A monarquia que BODIN preconiza é, obviamente, uma monarquia legítima ou régia, em que os súbditos obedecem às leis do rei e o rei às leis da natureza. VI - outra formulação com interesse é aquela que no século XVIII, GIAMBATTISTA VICO (autor de La Scienza Nuova) apresenta no âmbito da sua filosofia da história. Não é que introduza novos termos; o que ele faz é uma correlação entre as formas políticas e as fases da evolução histórica, tomando Roma como referência. Haveria três idades: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. A idade dos deuses corresponderia à teocracia, a dos heróis à aristocracia e a dos homens quer à democracia ou república popular quer à monarquia. A sucessão de formas políticas seria: aristocracia (a primeira forma de Estado), democracia e monarquia. 24 VII - Muito mais influente viria a ser, contudo, MONTESQUIEU. 0 seu famosíssimo De VEsprit des Lois compreende toda uma doutrina do governo, de que não é senão um dos aspectos a separação de poderes. MONTESQUIEU agrupa as formas políticas também a partir de uma tripartição. Mas esta tripartição não obedece já ao esquema aristotélico, tende a ser uma combinação da concepção aristotélica com a análise das formas do governo em boas e más e em perfeitas e imperfeitas. ao, pois, ess S- as formas a república, a monarquia e o despotismo. A república e monarquia vem na linha de MAQUIAVEL, e acrescenta-se uma terceira forma, o despotismo, o qual corresponde ao governo imperfeito. A república e o governo de todos por um grupo de homens, por um colégio de homens, sejam alguns, sejam todos. A monarquia e o governo de todos Por um só homem, mas um só homem que exerce o poder com equilíbrio, na perspectiva do bem comum. 0 despotismo é o governo imperfeito geralmente exercido Por um só homem sem ter em conta o bem comuin’. 1. Para MONTESQUIEU que escreve considerando não só a Europa mas também a Ásia, a república e a monarquia seriam as formas europeias de governo e o despotismo seria a forma asiática de governo. É óbvio o eurocentrismo. 25 Daqui passa MONTESQUIEU para uma segunda classificação, agora sob prisma prescritivO e valorativo, declarando a monarquia e a república governos moderados e contrapondo-lhes o governo despótico. E é nesta distinção fundamental que vai entroncar a separação dos poderes, porque os governos moderados se definem não já pela titularidade ou pelo exercício, mas sim pela limitação de poder. ou seja, segundo uma classificação descritiva, pode haver república, monarquia, despotismo. Segundo uma classficação prescritiva, poder moderado e poder despótico. VIII - Também KANT se ocupa (na Paz Perpétua) da análise das formas políticas, observando a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado e o modo de governar o povo. Só há três formas possíveis de soberania (forma imperfl): ou a soberania é possuída por um só, por alguns ou por todos os que formam a sociedade civil. De onde, autocracia, aristocracia e democracia, ou poder do príncipe, da nobreza e do povo Quanto à forma de governo (forma regiminis) ou modo como o Estado faz uso da plenitude do seu poder, - ele ou é republicano ou é despótico. 0 princípio republicano corresponde ao princípio político da separação do poder executivo do poder leg,slatIvo; o 26 despotismo é o princípio da execução arbitrária pelo Estado das leis que ele a si mesmo deu (sendo, por conseguinte, a vontade pública manejada pelos governantes como sua vontade privada). Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda o poder contra executivo no que todos decidem sobre um e até, por vezes, um - se não houve o seu consentimento. Para que a forma de governo seja adequada ao conceito de direito deverá, portanto, basear-se no sistema representativo, único capaz de tomar possível uma forma republicana. IX - No século XX, HEGEL (na sua Filosofia do Direito) adoptaria uma análise algo semelhante à de MONTESQUIEU, distinguindo despotismo, democracia e monarquia (onde MONTESQUIEU falava em república, fala HEGEL em democracia). HEGEL procede à contraposição não apenas tendo em conta a titularidade e o exercício do poder político mas tendo em conta também a própria estrutura cultural e social subjacente ao exercício do poder. 0 despotismo corresponderia a uma sociedade não diferenciada, em que a ideia de direito não estaria ainda assente, a uma sociedade atrasada ou primitiva; na democracia, já se verificaria uma determinada organizaçã9 política e social, mas ’a que se daríam a unidade da imperfeita; seria apenas na monarqui 1 27 sociedade e a realização plena da ideia de História e da ideia de Sociedade.A monarquia seria, pois, a forma mais perfeita e a última fase da organização política que se verificaria ao longo dos tempos. Não se confundiria, contudo, com a monarquia absoluta; seria a monarquia constitucional - a monarquia constitucional prussiana (bem diferente da francesa) e em que se disporiam três poderes, o legislativo, o de governo e o do soberano. X - Tipologia bem característica do século XX é a de CARL SCHMITT (no seu livro Legalidade-Legitimidade), assente numa determinante visão política das funções do Estado. Há quatro funções do Estado: a legislativa, a administrativa, a jurisdicional e a política. Consoante cada uma destas funções predomine sobre as demais e consoante, por conseguinte, o órgão correspondente a essa função prevaleça sobre os demais órgãos, encontra-se uma forma política específica. Assim, caberia distinguir: o Estado legislativo - aquele em que na forma de governo prevalecem a função legislativa e os respectivos órgãos; o Estado jurisdicional ou judicial - em que são os tribunais os órgãos centrais da vida pública; o Estado administrativo - em que predomina a função administrativa, há um 28 domínio do Estado pelos órgãos administrativos; e o Estado governamental - em que a função de direcção política é a função essencial e são os órgãos de direcção política que prevalecem. 0 Estado legislativo e o Estado jurisdicional teriam correspondido a formas do século XIX, sendo o Estado legislativo característico da Europa e o Estado judicial característico dos Estados Unidos da América. 0 Estado administrativo corresponderia aos Estados da primeira fase do século XX. 0 Estado governamental que se lhe seguiria, seria um Estado de decisão política, com prevalência de poder no órgão ou nos órgãos aos quais incumbe imprimir sentido, em cada momento, à vontade do Estado (repare-se na conexão com o conceito decisionista de Constituiçao e com a situação vivida entre as duas guerras na Europa, particulannente na Alemanha). X1 - Nos antípodas de SCHMITT, fica a Teoria da Constituição de KARL LOEWENSTEIN, toda construída (também não pouco por causa da experiência histórica e pessoal de Autor) como teoria de limitação ou de controlo do poder, numa renovação do pensamento vindo de LOCKE e de MONTESQUIEU. 29 LOEWENSTEIN, por isso, apresenta uma bipartição das formas de governo em razão de um critério da limitação: - Autocracia: se o poder está concentrado em alguém, seja um homem só, seja um grupo, seja um partido, seja uma assembleia; - Constitucionalismo: se o poder está repartido por vários centros, por vários órgãos, por várias entidades. E esta classificação está directamente relacionada com aquela que KARL LOEWENSTEIN faz das Constituições em normativas, nominais e semânticas. As Constituições normativas são cumpridas como verdadeiros sistemas normativos, representam uma limitação do poder e, portanto, são as Constituições próprias do constitucionalismo; pelo contrário, as Constituições nominais e semânticas estão ligadas à autocracia (pelo menos, à autocracia moderna). X11 - No seu Tratado de Ciência Política, GEORGES BURDEAU estuda as formas governamentais e os regimes políticos. Dentro das formas governamentais, contrapõe governos monocráticos e deliberativos (conforme os mecanismos de poder 30 são animados por uma força única ou por uma pluralidade de forças). Os governos monocráticos englobam as monocracias autoritárias e as monocracias populares. Os governos deliberativos são aqueles em que há discussão e oposição. Nos regimes, contrapõe regimes democráticos e autoritários e na democracia considera ainda: A democracia governada (própria do século XIX): o povo teria a titularidade, mas não teria o acesso real ao poder, o povo seria um povo jurídico e não um povo real; E a democracia govemante (própria do século XX): o povo real e a sua vontade real teriam acesso ao poder, seja na democracia do poder aberto ou democracia pluralista de tipo ocidental; seja na democracia de poder fechado ou democracia marxista, equivalente a monocracia popular. X111 - Muito diferente é a análise de GABRIEL ALMOND (Política Comparada), tomando como critério a progressiva diferenciação de funções de Estado. Donde: 1. Sistemas primitivos: com indiferenciação de funções e órgãos; 31 2. Sistemas tradicionais - correspondentes a não acesso das pessoas, dos súbditos, ao poder; 3. Sistemas modernos - nos quais ocorre a participação crescente no poder e a diferenciação de funções do Estado. XIV - Maneira de ver em estreitos moldes jurídicos e, naturalmente, a de KELSEN (Teoria Geral do Estado). As formas de governo classificam-se segundo os processos de criação do direito, e daí que: - A democracia se caracterize pela participação dos destinatários das normas jurídicas, dos governados, na formação de vontade estadual, pela autodeterminação dos governados, pela liberdade; - E a autocracia, pelo contrário, por a vontade estadual se formar sem participação dos governados, sem autodeterminação, sem liberdade’. 1. Muitas outras tipologias poderiam ser resumidas. Por curiosidade, vale ainda a pena citar o quadro das formas de governo de FERNANDO PESSOA (”Considerações pós-revolucionárias”, in Páginas de pensamento político - 1, 1910-1919, com organização de Antônio Quadros, Lisboa, 1986, pag. 58): 32 4. DISTINÇÃO DE CONCEITOS PROPOSTA 1 - Indicadas as principais tipologias de formas políticas, toma-se ainda mais evidente que só é possível prosseguir no tratamento do tema, desde que se proceda a um rigoroso balizar de fronteiras conceituais. Temos, por um lado, conceitos de capital importância na teoria do Estado (tanto de uma perspectiva jurídica como politológica), mas que devem a priori ser afastados por, embora conexos com a matéria que nos ocupa, para ele só relevarem por via indirecta. São os de tipo histórico do Estado, de tipo constitucional de Estado e de forma de Estado. E temos, por outro lado, aquelas figuras que se prendem com os problemas a abordar aqui e a respeito das quais há-de ser feita a necessária destrinça. São as de forma de governo, sistema de governo, forma institucional, sistema eleitoral, sistema de partidos, regime e sistema político. Aristocratismo Democratismo Monarquismo Monarquia absoluta Monarquia democrática Individualismo Cesarismo (?) Republicanismo República aristocrática República democrática (pura) Individualismo integral Anarquismo Oligarquia Socialismo Anarquia pura 33 II - Quando pensamos em Estado temos de pensar sempre numa certa concretização do Estado, numa certa manifestação histórica de Estado; pois é disso que se cuida quando se fala em tipos de Estado’. É diferente o Estado moderno do Estado romano, por exemplo; e aqui só cabe cuidar do Estado moderno. A noção de tipo constitucional de Estado tem (ou teve) particular interesse no século XX, causa do confronto de diferentes formas organização política, económica e social portanto, também, constitucional que nele verifica (ou verificou). Dentro do mesmo histórico de Estado, o europeu, inserem-se tipos constitucionais tão diversos, e em luta durante quase todo o século, como o Estado de Direito (primeiro liberal, depois social), o Estado marxista,3 -lenínista e o Estado fascista Uma coisa vem a ser a contraposição entre Estado simples ou unitário e Estado composto (designadamente Estado federal), outra a distinção entre monarquia absoluta e governo representativo, ou entre sistema parlamentar e sistema presidencial, ou entre sistema monista e sistema pluralista, para só dar dois ou três exemplos. Uma coisa é a forma de Estado, outra a forma ou o sistema de governo. 1. V. Manual de Direito Constitucional, I, 5.1 ed.,Coimbra. 1996, págs. 49 e segs. 2. V. Manual .... págs. 93 e segs. 3. Pelo contrário,o Estado islâmico fundamentalista (que existe no Irão e procura emergir noutros países) já não pode integrar-se aí. Ele é out-,-) tpo histórico de Estado. 34 III - A forma de governo (tomando governo em sentido lato, equivalente ao grau mais denso de fenômeno político) tem, precisamente, que ver com a relação política fundamental - a relação entre govemantes e governados. É o modo como se estabelece e estrutura essa relação; e estabelece-se e estrutura-se em resposta a quatro problemas - os problemas da legitimidade do poder, da participação, do pluralismo ou da liberdade e da unidade ou divisão de poder. Além destes problemas (de certa maneira pressupostos por eles e também, de outra maneira como problemas autónomas), põem-se todos os problemas concementes às relações entre órgãos de governo (entre órgãos de função política), ou até à existência ou não de uma pluralidade de órgãos govemativos. E somente aqui é que, em rigor, se encontra o conceito de sistema de governo. Ao passo que a forma de governo abrange a totalidade da vida política, a forma de governo confirma-se à estrutura interna do poder, as instituições e ao estatuto dos govemantes. Melhor se compreenderá a diferença dos dois conceitos, se se observar a situação política na Europa, na América e noutras partes do mundo: hoje prevalece ou tende a prevalecer a mesma forma de governo - a democracia representativa - sem embargo da grande variedade de sistemas de governo, sistemas parlamentares, presidenciais, etc1. 1. Cfr., embora não coincidente, a distinção entre formas de Estado e formas de governo adoptada por alguma doutrina em Portugal e no estrangeiro: assim, BARBOSA DE MELO, Democracia e Utopia, Coimbra, 1980, pág. 40. 35 Pelo contrário, Pouco conteúdo político tem hoje, corno se notou já, o contraste entre monarquia (a monarquia constitucional) e república. Não deixa, porém, apesar de tudo, de revestir algum significado a nível institucional e de cultura cívica, pelo que se justifica propor um conceito autónomo para o contemplar - o de forma institucional. A compreensão das formas e dos sistemas de governo dos dois últimos séculos requer o conhecimento dos sistemas eleitorais e dos sistemas de partidos. Realidades (de direito e de facto) bem caracterizadas, entrelaçam-se com essas formas e esses sistemas de governo, ora como seus condicionamentos, ora como suas decorrências, sem com eles se confundirem. IV - Por último, cabe aludir a conceitos mais amplos, mais complexos, de síntese; o conceito de regime político e o conceito de sistema político. o conceito de regime é, essencialmente, um conceito ligado ao conceito de Constituição: regime político é a expressão política da Constituição material. A cada Constituição material corresponde um regime político, uma concepção dos fins e dos meios do poder e da comunidade. Regime político, aliás, não se esgota na mera organização do poder político, prende-se também, e muito, com os direitos fundamentais e com a organização económica e social. 36 Por seu turno, o sistema político atende muito mais à efectividade do que à normatividade; e abarca não só os órgãos e instituições formais ou constitucionais mas também as demais instituições e corporações políticas ou sociais politicamente relevantes, as forças políticas (partidos) e económico-sociais (sindicatos, associações patronais), a ideologia dominante e o enquadramento exterior do Estado’. V - Na Constituição portuguesa actual, alguns destes conceitos aparecem mais ou menos explicitamente. A forma de Estado esta patente no art. 6.2: ”0 Estado é unitário ... - Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político- administrativos e de órgãos de governo próprios”. A forma de governo é definida nos arts. 9.% alínea c), e 10.9, n.9 2 como democracia política e no art. 112.2 como sistema democrático; e recortada através de elementos como a soberania popular (arts. 2.2, 3.% ri.!’ 1. e 111.2), o pluralismo (art. 2.2), a representação política (arts. 10.9, 49.` e 116.L» e a separação e a interdependência de órgãos de soberania (arts. 113.2 e 114.9). 1. Cfr., por todos, DAVID EASTON, The Political System, Nova Iorque, 1953; GEORGES BURDEAU, Traité .... VII, págs. 578 e segs. 37 0 sistema de governo decorre dos poderes, das acções recíprocas e dos estatutos dos vários órgãos políticos - a nível nacional, do Presidente da República, da Assembleia da República e do Governo (maxime arts. 123.2, 124.9, 136.1’ e segs., l64.2 e segs., 193.L> e segs. e 201.2 e segs.); e a nível regional, da assembleia legislativa e do governo regional (art. 233.2). A forma institucional república - ligada à existência de um Presidente da República electivo (mas não só)’ - é apresentada, menos correctamente, como forma de governo: ”As leis de revisão constitucional terão de respeitar: - b) A forma republicana de governo” (art. 288.9, alínea b)”. Os sistemas eleitorais - porque há tantos quantos os órgãos de base electiva - aparecem em numerosos preceitos (arts. 116.9, n.2 5, 129Y, 152.2 e 155.2, 2319, n.2 2, 241.9, n.2 2, 247.2, n.2 2, 252.2 e 260.2). Já não, como não poderia deixar de ser, o sistema de partidos. 0 regime político, esse, é assim resumido no art. 2.9: ”A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticos e no respeito e na garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais que tem por objectivo a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. 38 r CAPITULO II OS PROBLENIAS CARDEAIS § 1.o LEGITIMIDADE 5. SENTIDO DA LEGITIMIDADE 1 - Um princípio de legitimidade’ está presente em qualquer governo e em qualquer Estado. 1. V., entre tantos, MAX WEBER, Wirtschaft und Geselischaft, 1922, trad. cast. Economia y Sóciedad, México, 1944-1969, 1, págs. 170 e segs.; GUGUELMO FERRERO, Pouvoir - Les Génies de la Cité, Nova Iorque, 1942; Lidêe de Légitimité, obra colectiva, Paris, 1967; ALESSANDRO PASSERIN UENTRÈVES, Obedienza e resistenza in una società democratica, Milão, 1970; REINHOLD ZIPPELIUS, op. cit., págs. 255 e segs.; MARCELLO CAETANO, op. cit., 1, págs. 293 e segs.; PouvoirS, n.9 5, 1978; AFONSO QUEIRó, ”Tirania”, in Verbo, X-VH, págs. 1579 e segs.; Legitimation of Regimes, obra colectiva ed. por BOGI)AN DENITCH, Beverly HilIs e Londres, 1979; Conflict and Control - Challenge ofLegitimacy ofModern Governments, obra colectiva ed. por Anthon J. Vidich e Ronald M. Glossman, Beverly HilIs e Londres, 1979; GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, págs. 14 e segs.; Dictatures et Légitimité, ob. col. sob direcção de Maurice Duverger, Paris, 1982; JOÃO BAPTISTA 41 Todas as formas de governo assentam numa determinada justificação. Pretendem fundamentar-se, legitimar-se em certo princípio (ou ideia de Direito, para usar uma expressão de rini GEORGES BURDEAU). Para lá da legalidade - ou ’confo dade com o próprio Direito positivo que criam - para se radicarem e durarem, precisam de legitimidade - ou conformidade com critérios, objectivos, valores aceites na comunidade’. As tipologias básicas de formas de governo são (como Mostrámos) tipologias não apenas descritivas mas também preceptivas: não compreendem só os governos que existem mas também os que devem existir. Ora, isso liga-se directamente com as concepções de legitimidade - de como deve o Estado ser, de como deve ser a MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, págs. 173 e segs.; OLIVEIRA BARACHO, ”Legitimidade do poder”, in Revista da Associação dos Magistrados Mineiros, vol. 11, 1983, págs. 143 e segs.; n.2 de 1984 de Sociologiadel Diritto; MARTIM DE ALBUQUERQUE, ”Legitimidade”, in Polis, 111, págs. 1017 e segs.; Diritto e Legittimazione, obra colectiva dirigida por Renato Treves, Milão, 1985; PAULO BONAVIDES, op.cit., págs. 113 e segs.; JOAQUIM AGUIAR, ”Normas de dominação e sociedade: o caso do neopatrimonialismo”, in Análise Social, 1987, 2.Q, págs. 241 e segs.; Coniparing Pluralist Democracies, obra colectiva ed. por MATTEI DOGAN, Boulder, Westview, 1988; TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ, MARIA HELENA DINIZ e RITINHA A. STEVENSON GEORGALIKAS, Constituição de 1988 - Legitimidade, Vigência e Eficácia, Supremacia, São Paulo, 1989; MARIA DE ASSUNÇÃO ESTVES, A Constitucionalizaçâo da Direita de Resistência, Lisboa, 1989, págs. 19 e segs. e 101 e segs. 1. Assim como, em momentos revolucionários ou de ruptura, mesmo não havendo ainda uma nova legalidade, a legitimidade proclamada serve de princípio - de direito, e não de facto - por que se vai reger o Estado. 42 organização do poder político, de como deve o Estado organizar-se e funcionar para cumprir os seus fins. Mais ainda: conforme escreve JELLINEK, o poder tem de assentar na convicção popular sobre aelecomitimaiidsaOduem.Esta aprovação, expressa por diferentes maneiras enos do Estado vigor, é uma condição permanente na forniaação concreta e constitui uma das funções necessárias omunidade popular como elemento constitutivo do Estado’. Qualquer poder ou qualquer govemante, para ser poder, para governar ou realizar os seus fins carece sempre de ser reconhecido como tal pela comunidade. Ele, em rigor, só é poder político a partir dessa relação - a partir da relação bilateral que se estabelece entre quem governa e quem é governado. Não basta o governante invocar qualquer intenção do seu poder ou ter, pura e simplesmente, a força material para se fazer obedecer; ou apresentar-se ao serviço deste ou daquele projecto ou ideologia. Tem ainda de obter o consentimento, pelo menos passivo, dos destinatários do poder. Tem ainda de se configurar como autoridade. Em que consiste ou em que se baseia esse consentimento? Antigamente, dir-se-ia prevalecerem os factores espirituais (as 1 - QP. cit., pág. 318. 43 tradições, as crenças, as doutrinas políticas); mais recentemente, privilegiam-se os factores económicos, seja o domínio de classe ou a conjuntura de riqueza ou bem- estar; e também se tem procurado interpretá-los em meros moldes sociológicosi. Mas afigura-se mais correcto integrar todos os elementos num conjunto complexo. A questão da legitimidade não releva só da cultura política, ou só das concepções jurídicas, ou só da situação económico-social, ou só dos condicionalismos geográficos. Releva de todos eles e do modo como se dispõem em cada país e em cada época. Há uma problemática teórica geral da legitimidade e há tantos problemas de legitimidade em concreto quanto os Estados e as formas de governo, simultânea ou sucessivamente. 6. A LEGITIMIDADE NA HISTóRIA 1 - A temática da legitimidade está, pois, sempre presente ao longo dos tempos. Revela-se, porém, mais importante ou mais candente em momentos de crise. 1. Cfr., por exemplo, P.11. PARTRIDGE, Consent and Consensus, Londres, 1971; Democracy, Consensus, Social Contract, obra colectiva editada por PIERRE BIRNBAUM; ANDRES OLLERO, ”Consenso: racionalidad o legitimación?”, in Anales de Ia Catedra Francisco Suarez (Universidad de Granada), 1983-1984, págs. 164 e segs. 44 Não é por acaso que ocupa um grande lugar na doutrina cristã da Idade Média, quando se procura, no meio de enormes convulsões, estabelecer situações políticas com estabilidade e que, ao mesmo tempo, sejam situações de limitação de poder (porque legitimar o poder é ao mesmo tempo limitá-lo de acordo com os fins correspondentes à legitimidade). E é então que BÁRTOLO fórmula a contraposição entre legitimidade de título (ou legitimidade derivada do modo de designação) e legitimidade de exercicio (ou legitimidade derivada do modo de exercício das funções ou do poder político). Nem é Por acaso que a questão volta a ter uma grande acuidade na Europa nos séculos XVIII e XIX. Se na Inglaterra se transita, como se sabe, com relativa facilidade, para a monarquia parlamentar, já na maior parte do Continente tal não acontece e, em alguns países - entre os quais Portugal - a instauração de formas liberais e democráticos mostra-se lenta e precária’. 0 século XX, século de revoluções e de transformações radicais por toda a parte, viria a ser, finalmente, também ele marcado pela legitimidade: destruição de antigas legitimidades monarquicas ainda subsistentes e- de legitimidades imperiais, conflitos de legitimidades, assim como, em alguns casos, consolidação ou sedimentação de princípios de legitimidade antes apenas afirinados nos textos constitucionais. 1. Recorde-se que no século XIX, português, espanhol e francês legitimistas eram aqueles que defendiam a legitimidade monárquica e, particularmente, a legitimidade monárquica absoluta. 45 11 - A propósito da passagem da legitimidade monárquica absoluta do século XVIII para a legitimidade democrático-liberal ou monárquico-liberal ou monárquico- constitucional ao longo do século XIX, GIGLIELMO FERRERO apontou três formas de governo: Em primeiro lugar, os governos legítimos: aqueles que são aceites pela colectividade, aqueles em relação aos quais a colectividade professa a crença na sua razão de ser, na sua qualidade legítima para exercer o poder. Em segundo lugar, os governos quase/legítimos: aqueles govemos que invocam um tipo de legitimidade, mas que têm de se defrontar com outra legitimidade que ainda subsiste na colectividade. E, quando isto acontece, os governos quaselegítimos têm muitas vezes que se impor pela força. - Em terceiro lugar, os governos pré-legítimos: aqueles governos que estão em vias de obterem, mas ainda não obtiveram, o assentimento na comunidade. Esta análise pode estender-se a muitas situações do século XX. 111 - 0 problema da legitimidade não se suscita apenas no âmbito dos ordenamentos internos dos Estados. Suscita-se outrossim a nível de relações internacionais’. 1. V. JORGE MIRANDA, Direito Internacional Público, 1, Lisboa, 1995, págs. 256 e segs e autores citados. 46 0 reconhecimento de Estado e de outros sujeitos de Direito internacional e o reconhecimento de Governo (este, aliás, só ocorrendo quando haja rupturas constitucionais) implica a observância de certas regras jurídicas e tem-se chegado a pretender ainda o respeito de certos padrões de referência, valores ou objectivos assumidos como dominantes pela comunidade internacional. Pense-se no princípio das nacionalidades no século XIX e no da autodeterminação dos povos do século YX como justificativos ou legitimadores de movimentos irredentistas, secessionistas ou anticoloniais ou, ao mesmo tempo, na ilegitimidade da intervenção estrangeira para provocar o desmembramento de um Estado. Pense-se, quanto ao reconhecimento de Governo, na doutrina monárquica da Santa Aliança até 1848 e nas doutrinas de legitimidade democrática difundidas na América Latina. Ou, na Europa após 1945, na exigência de formas democráticas, com parlamentos resultantes de eleições livres, para o acesso de qualquer Estado a organizações internacionais (Conselho da Europa, Comunidades Europeias). 7. TIPOS DOUTRINAIS DE LEGITIMIDADE 1 - Além da já referida visão dicotómica legitimidade de título e legitimidade de exercício, talvez a mais conhecida classificação de tipos de legitimidade seja a tripartição proposta por MAX 47 WEBER de legitimidade tradicional, legitimidade carismática e legitimidade legal- racional. A legitimidade tradicional repousa na tradição, nas práticas costumeiras e em determinadas crenças morais, culturais, etc. E aqui haveria a salientar, historicamente,quatro sub-tipos, dois arcaicos ou originários e dois mais recentes. Os primeiros seriam o patriarcalismo antigo e a gerontocracia; os segundos seriam a organização patrimonial e a organização estamental. Quanto à legitimidade carismática, corresponde ela ao poder personalizado e abrange os casos em que o poder é reconhecido a alguém em virtude de uma qualidade, de um dom específico dessa pessoa. Assim acontece, por exemplo, quando o poder remonta a determinados factos bélicos, a feitos de heroísmo, a grandes virtudes pessoais, a decisões políticas marcantes de um povo ou mesmo a laços de sangue. A legitimidade legal-racional, essa assenta em normas jurídicas gerais e abstractas, ditadas pela razão. Forma mais avançada assinala aquilo a que MAX WEBER chama Estado administrativo-burocrático. 11 - Vale a pena aludir a, entre várias outras classificações, à que SERGIO COTTA sugere, embora num plano não tanto de legitimidade em si mesmo quanto de ideologia de legitimidade. 48 Seriam as seguintes essas concepções, ou ideologias: ideologias de legitimidade histórica, de legitimidade racional e de legitimidade existencial. Os resultados, se não são opostos, completam os da observação de MAX WEBER. As ideologias de legitimidade histórica procuram a legitimidade no sentido da História. E subdistinguem-se em ideologias de legitimidade histórica retrospectiva e de legitimidade prospectiva. 0 que diferenciaria estas últimas das primeiras (conservadoras, tradicionalistas) seria o facto de terem uma perspectiva de futuro, de buscarem na História a justificação, a legitimação da mudança, maxime da revolução, e não do status quo (assim, o marxismo). Por seu turno, as ideologias de legitimidade racional baseiamse numa ideia de eficácia do poder: será legítimo aquele que, em termos de racionalidade, seja mais eficaz. Estas ideologias estão na base quer do despotismo esclarecido do século XVIII, quer das modernas tecnocracias do século XX. Ideia semelhante se pode ver, já na Antiguidade, em PLATÃO, ao referir-se aos filósofos-reis (que, em certa medida, se podiam, contrapor aos pretensos reis-filósofos do século XVIII). Por último, as ideologias de legitimidade existencial baseiam-se na capacidade de promover a personalidade humana, a existência do homem em sociedade. Neste grupo se integra, mormente, a concepcão cristã de legitimidade, que é a adoptada por SERGIO COTTA. 49 111 - Importa também aqui fazer referência à mais sugestiva e fecunda das teses empíricas, de matriz sociológica, sobre legitimidade: a da legitimação pelo procedimento I. Pensada para o sistema jurídico em geral, aplica-se ainda à legitimidade do poder e dos govemantes. Segundo LUHMANN, normas jurídicas concebidas como decisões apenas podem fundar-se noutras decisões, mas a legitimidade não repousa na decisão última. Repousa, sim, no próprio procedimento: é este, e não cada um dos seus componentes, que a confere. Legitimidade pode então descrever-se como uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância2. 8. TENTATIVA DE QUADRO GERAL 1 - Numa tentativa de enquadramento geral do fenômeno de legitimidade, podem ser enunciados os seguintes critérios de destrinça: 1. É este, justamente, o título da obra famosa de NIKLAS LUHMANN (Legitimation durch Verfahren, 1969, de que há tradução portuguesa, Legitimação pelo Procedimento, Brasília, 1980). 2. Qp. cit., pag. 30. 50 - Objecto da legitimidade; - Fundamento; - Causa; - Função; Forma. 11 - Os diferentes tipos de legitimidade distinguem-se em razão do objecto, dando resposta a problemas relativos ao poder político ou ao Estado em si mesmo, a problemas respeitantes à ilegitimidade das formas de governo e a problemas respeitantes à legitimidade dos concretos govemantes actuais. Há correntes negativistas que negam a legitimidade de qualquer poder político: assim, designadamente, o pensamento anarquista. A grande maioria dos autores, no entanto, toma uma posição positiva ou afirmativa em relação à legitimidade do poder político. Dentro desta corrente, que toma uma posição positiva em relação à legitimidade do poder político, duas teses se defrontam quanto ao fundamento dessa legitimidade. Para as teses transcendentalistas, esse fundamento deve procurar-se fora da sociedade: exemplo claro é o das teorias cristãs do direito divino, quer sobrenatural, quer providencial - Omnis potestas a Deo. Para as teses imanentistas, o fundamento da legitimidade do poder político deve buscar-se na própria sociedade. Exemplo bem demonstrativo é o das teorias contratualistas. 51 No tocante às formas de governo, cabe considerar quatro princípios: o da legitimidade teocrática, o da legitimidade monocrática, o da legitimidade aristocrática e o da legitimidade democrática. A estes princípios podem corresponder grandes concepções de regime e de governo. Quanto à problemática da legitimidade dos govemantes em concreto, ela pode colocar-se em relação ao título ou ao exercício insista-se (esta última adquire relevância autónoma quando os governantes exercem o poder em discrepancia com a ordem estabelecida); e assim pode dizer-se que o título de um govemante é legítimo ou ilegítimo ou que o exercício que faz do poder é, também, legítimo ou ilegítimo. A distinção entre legitimidade de título e de exercício reporta-se aos governantes actuais, mas não deixa de ter implicações na legitimidade da forma de governo em concreto. No caso de um govemante possuir título legítimo, é porque se reconhece legitimidade à forma de governo; se ele apenas possui legitimidade de exercício, está a agir, o mais das vezes, à margem da forma de governo, por sua vez considerada ou não legítima. 111 - Um segundo critério atenta ao fundamento da legitimidade e, trabalhando com ele, será possível encontrar três contraposições: 52 a) Entre legitimidade de base religiosa e legitimidade de base laica; b) Entre legitimidade de base histórica e legitimidade de base racional; c) Entre legitimidade (do prisma jurídico) de base jusnaturalista e legitimidade de base positivista. IV - Terceiro critério de classificação é o da causa da legitimidade e traduz-se, de novo, na referência a legitimidade que vem do título e a legitimidade que vem do exercício. A usurpação implica falta de legitimidade de título. A opressão e a corrupção (económica)t falta de legitimidade de exercíci(e podem degenerar em tirania ou despotismo. VI - Quinto critério vem a ser o da forma como se manifesta a legitimidade ou como é reconhecida pelos governados. Haverá então legitimidade activa (através da adesão ou da aclamação) ou legitimidade passiva (igual a mero consentimento). 53 § 2.’ PARTICIPACÃO POUTICA 9. A PARTICIPAÇÃO POLíTICA EM GERAL I - Da atribuição a qualquer pessoa da qualidade de cidadão de um Estado não resulta, obrigatoriamente, o conferimento de uma interferência no exercício do poder. A soberania da colectividade estadual satisfaz-se com a livre existência e acção de orgãos próprios ou de govemantes que prossigam o interesse colectivo; não requer a participação dos membros da colectividade. Pode, por conseguinte, conceber-se a existência de governos que afastem, radicalmente, os cidadãos - relegados para o estatuto de meros súbditos - de qualquer intervenção na gestão da coisa pública, que lhes neguem qualquer influência nas decisões polí--’ ticas a tomar, que, enfim, consagrem a liberdade dos govemantes 55 em face dos governados’. As monarquias territoriais da Antiguidade Oriental, as monarquias absolutas da Idade Moderna e certas ditaduras contemporâneas fornecem disso os exemplos mais frisantes. Nos dois últimos séculos, porém, a tendência, primeiro europeia e americana, depois universal, tem sido outra.Tem sido a de converter os súbditos em cidadãos completos, a de elevar os homens na Cidade de simples sujeitos ao poder a verdadeiros sujeitos do poder. Quer dizer: o sentido generalizado da evolução política, sob formas diversas e não sem movimentos contraditórios, tem sido o de fazer participar cada vez mais os governados nas tarefas da vida pública. Não se trata de banir a distinção entre govemantes e governados. Mas trata-se, em oposição ao Ancien Régime, de estabelecer uma relação permanente entre uns e outros, de tal sorte que os governantes ajam como representantes do povo e prestem contas ao povo pelos seus actos. Tal é o princípio representativo moderno, que, por outro lado, se contrapõe também ao governo directo do povo (democracia directa), praticado, designadamente, em Atenas e em diferentes cidades-Estados e municípios ao longo dos tempos (e ainda hoje em alguns cantões da Suíça). 1. 0 que não significa - porque seria impossível - um total afastamento entre govemantes e governados. Estes, ainda que indirectamente, conseguem agir ou reagir sobre aqueles não só através da legitimidade que lhes reconhecem ou não mas também através da aceitação e do maior ou menor grau de efectividade dos seus actos. 56 Por outro lado, sabe-se que a doutrina da origem popular da soberania (da soberania popular alienável), por exemplo, precedeu na Europa de centenas de anos o triunfo das ideias democráticas. E raros foram ou tem sido os regimes que, pelo menos, não reconhecem aos cidadãos ou a grupos de cidadãos o direito de petição ou o de serem ouvidos em defesa dos seus interesses ou do interesse geral. De resto, o arredarem-se os indivíduos de qualquer participação política não implica só por si, teoricamente, que eles não possam obter alguma ou muita participação no interior das instituições sociais em que vivem. Podem estas estar fechadas para a interferência no poder político e, não obstante, gozarem de apreciável autonomia na prossecução dos seus interesses: em certa medida, foi o que sucedeu na Idade Média. 11 - A participação política não se insere sempre no mesmo contexto. Ela pode ser decorrência natural da organização constitucional do país ou, ao invés, ter cunho excepcional ou antagónico em face da filosofia própria da forma do governo; pode constituir uma ideia dominante ou encontrar-se em concorrência com outras ideias (quer em igualdade, quer em posição subalterna). Se qualquer participação cívica implica a atribuição de direitos políticos, não traduz já, necessariamente, um princípio funda- 57 mental de forma do governo ou do regime político, os quais, embora a ela desfavoráveis, podem ser obrigados a acolhê-la por diversos motivos. Muito menos se poderá dizer que a participação política significa só por si direcção dos negócios públicos pelos cidadãos com direitos políticos ou acção determinante deles sobre o governo. 111 - Os modelos ou tipos de colocação da participação política que se deparam na evolução do Estado europeu são principalmente três: a monarquia limitada pelas ordens, em que a participação se dá numa área circunscrita da vida política; a monarquia constitucional, em que o princípio democrático se associa ao princípio monárquico; e o governo representativo, em que o princípio fundamental da Constituição é aquilo que se chama a soberania do povo. No primeiro modelo - historicamente correspondente ao Estado estamental, ou seja, a fase de transição da organização política medieval para as formas modernas do Estado soberano - o poder político entende-se que pertence ao rei, mas este deve exercê-lo com a ajuda e o conselho do ”reino”, organizado em diferentes instituições, estamentos ou ordens, com vida própria e larguíssima autonomia. Os estamentos participam, pois, no poder central através de uma assembleia, em parte representativa e em parte não representativa, e de regra, com meras atribuições consultivas. 58 No segundo modelo - característico do século XIX europeu, também ele época de transição - há dois centros de poder, o rei e o Parlamento, com diferentes fontes de autoridade, a tradição e o direito divino, por um lado, e a eleição por outro lado. 0 poder do rei não emana do povo, nem o poder do Parlamento emana do rei; e o Parlamento, conquanto eleito por sufrágio censitário, vai arrogar-se a representação de todo o povo para reforçar a sua posição perante o rei’. Consoante os países, ora predomina o princípio monárquico, ora prevalece o princípio democrático. Por último, no terceiro modelo, fruto das revoluçoes amencana e francesa, o princípio da organização política vem a ser o consentimento activo e explícito dos governados, de quem dependem a designação e a conservação dos govemantes no poder. Porque se considera agora que o poder pertence ao povo, os govemantes, eleitos e responsáveis políticamente perante o povo, dizem-se representantes do povo. Mas há aqui que distinguir ainda, como se verá, entre governo representativo liberal e democracia representativa. 10. MODOS DE PARTICIPAÇAO 1 - Os modos e as manifestações de intervenção do povo no processo político revelam-se, naturalmente, variáveis com os 1 . E a da burguesia, de que é expressão, perante a velha nobreza. 59 países e as épocas, as formas de governo e os regimes políticos. Também o seu conteúdo pode tomar-se mais ou menos rico e a sua prática mais ou menos autêntica’. 0 povo pode ser considerado através de cada cidadão a quem é reconhecido um direito de participação, através de grupos de cidadãos ou de instituições sociais menores integradas no Estado (famílias, municípios, organismos sócio-profissionais ou corporativos, etc.); finalmente, através da totalidade dos cidadãos (ou das instituições) com direito de intervenção na vida pública. Daí, modos individuais, institucionais e globais ou colectivos de participação. Como modos individuais e institucionais -porque a sua estrutura é idêntica, só divergem os seus titulares - indiquem-se, por um lado, o direito de petição ou representação no interesse geral2 o direito de acção popular e a iniciativa popular (legislativa ou constituinte)3 sem esquecer as próprias liberdades públicas. 1. Cfr. MARNOCO E SOUSA, op. cit., pág. 99, falando (embora incidentalmente) na importância da participação real dos cidadãos no governo, para determinar a diversidade e fazer a classificação das suas formas. 2. Não o direito de reclamação ou queixa. 3. Porventura também o direito de resistência individual no interesse geral (mas parece que só existe resistência individual no interesse geral, e não mera autodefesa, aí onde se admite, pelo menos, um princípio de legitimidade democrática). 60 E, por outro lado (alguns, em zonas mais relevantes no campo administrativo, embora sempre com significado político),’a intervenção em procedimentos da Administração, a audição, por via de associações representativas de interesses, antes da tomada de decisão pelos órgãos competentes, a participação em órgãos consultivos e auxiliares, a formação de associações públicas, a gestão ou a participação na gestão de serviços públicos. Quanto aos modos globais ou colectivos (globais ou colectivos, ainda que assentes em actos individuais) são o sufrágio - traduzido ora em eleições, ora em referendo - e a assembleia popular ou assembleia directa dos cidadãos. Eles podem ser consagrados isoladamente e, assim, acontecer que se admitam uns e não outros. Mas podem também ser consagrados em conjunto, desempenhando cada qual o seu papel e reflectindo-se uns sobre os outros’. Começaram por aparecer os meios individuais e institucionais de participação cívica e por se defender o princípio da resistência à opressão; só muito depois surgiria o sufrágio e, mais recentemente, os institutos ditos de 2 democracia participativa . I. Por exemplo: a petição ou representaçãodirigida a titulares de órgãos electivos. 2. Cfr. CAROLLE PATEMAN, Participation and Democratic Theory, Cambridge, 1970; SAMUEL HUNTINGTON e JOAN M. NELSON, No easy choice. Polítical Participation in Developing Countries, Harvard University Press, 1976; FRANCO LEVI, ”Partecipazione e organizzazione”, in Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1977, págs. 1625 e segs.; CESAR 61 11 - Tanto os modos de participação individuais e institucionais como os modos colectivos têm de comum o reconhecimento aos indivíduos ou às instituições sociais de uma posição interessada e activa nos destinos do Estado; têm de comum a atribuição aos cidadãos ou a essas instituições de direitos políticos, ou direitos 1 relativos ao estabelecimento e ao exercício do poder público . A participação política - o status activae civitatis de Jellinek assume um carácter ambivalente. Tem ao mesmo tempo sentido objectivo e projecção subjectiva. Na sua finalidade - a realizaçao do bem comum ou dos fins do Estado - e na sua atribuição a cada indivíduo ou instituição como parcela do povo adquire um sentido objectivo e funcional. Mas, na sua incidência, é essencialmente sub ectiva: é a participação feita faculdade jurídica de agir frente j aos govemantes. Por isso, os direitos políticos em que ela se consubstancia não podem deixar de revestir ainda uma dupla natureza, oscilando 2 entre poderes funcionais e direitos subjectivos stricto sensu MARCELLO BAQUERO, ’Tarticipação política na América Lati-na Problemas de conceituação-, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, n.2 53, Julho de 1981, págs. 7 e segs.; ARISTIDE SAVIGNANO, ”Partecipazione política”, in Enciclopedia del Diritto, XXX11, págs. 1 e segs.; RONALD INGLEHART, ”La nuova partecipazione nelle societá post-industriali”, in Rivista di Scienza Política, 1988, págs. 403 e segs. 1. Cfr. art. 6W` do anterior Código Penal Português. 2. Dentro dos conceitos correntes. Não serão os únicos poderes jurídicos de natureza ambígua; veja-se também o poder paternal. 62 Parece que são poderes funcionais, porque devem ser exercidos segundo o interesse colectivo (tal como a competência dos órgãos de governo). Parece que são direitos subjectivos, porque se destinam, simultaneamente, à prossecução de interesses próprios dos seus titulares, interesses, por sua vez, a atender na síntese do interesse colectivo’. 11. A REPRESENTACÃO POUTICA: FORMAÇÃO HISTóRICA 1 - No moderno Estado europeu2, instituições representativas encontram-se logo na sua primeira fase, a estamental: são as assembleias, as Cortes, as Dietas, os Estados Gerais, os Parlamentos, em que tomam assento não só membros por direito próprio (do alto clero e da nobreza) como representantes ou procuradores (por exemplo, em Portugal; procuradores dos concelhos). 1 . Compreende-se, sob este foco, por que razão a luta pela conquista de direitos políticos, nomeadamente, do direito de sufrágio, não se esgota nunca na simples participação, nem é sequer movida pela ideia de participação pela participação. Essa luta faz-se quase sempre pela defesa de interesses sectoriais ou por certa maneira de interpretar o interesse geral, na medida em que os direitos políticos constituem instrumento primacial de protecção dos interesses dos seus titulares. 2. Não curamos aqui de instituições ou fenômenos análogos que houve ou tenha havido na Grécia e em Roma. Cfr. J.A.0. LARSEN, Representative Government in Greek and Roman Hístory, Bekerley e Los Angeles, 1966; AGERSON TABOSA, Da Representação Política na Antiguidade Clássica, Fortaleza, 1981. 63 A representação é aqui, não uma representação da comunidade política como um todo, mas dos sectores ou ordens provenientes da idade Média e que subsistem com maior ou menor autonomia; e os representantes estão vinculados às instruções que recebem, num mandato imperativo semelhante ao mandato civil. Por isso, e porque ao Rei se reconhece a plenitude do poder, a função da representação exaure-se, praticamente, na garantia dos interesses e privilégios dos estamentos uns perante os outros e perante o Rei. 0 desenvolvimento do absolutismo monárquico reduz as instituições representativas a uma pálida recordação nos séculos XVI, XVII e XVIII. Apenas em Inglaterra se descobre continuidade no Parlamento, mas as revoluções do século XVII e as transformações políticas e sócio -económicas subsequentes vão levar à consideração dos Deputados como representantes de todo o país, de toda a nação, e não já deste ou daquele grupo corporativo ou desta ou daquela entidade local ou constitucional. Por seu lado, quando no Continente, entre os séculos XVIII e XIX, se tenta a superação do Ancien Régime e a construção de uma nova ordem política, assente nos direitos individuais e na divisão do poder, a ela se liga, necessariamente, a formação de uma ou mais de uma assembleia representativa de cidadãos enquanto tais. Sem representação de cidadãos não há liberdade e não há Constituição, no sentido do art. 16.9 da Declaração de 1789. A representação política na acepção rigorosa do termo, e não meras instituições representativas sectoriais ou parcelares, radica, 64 portanto, historicamente, na confluência de dois fenômenos: a afirmação da unidade política correspondente ao Estado moderno e a passagem do absolutismo ao liberalismo. A nova forma de governo - a representativa - surge conexa com o novo regime, o liberal’. 1 . Cfr., entre tantos, MONTESQUIEU, De 1 Ésprit des Lois, cap. VI do livro Xl; ROUSSEAU, Du Contrat Social, cap. XV do livro 11j; SIEYÈS, Quest-ce que le tiers état, cap. IiI, § II e cap. IV, S V11; BENJAMIN CONSTANT, Príncipes de Politique, Paris, 1815, págs. 23 e 62; DE LOLME, Constitution de 1 Angleterre, Paris, 5. ed., 1819, págs. 269 e segs.; CUSTóDIO REBELO DE CARVALHO, Bases de todo 0 governo representativo ou condições para que a Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa seja uma realidade, Londres, 1832; STUART MILL, Considerations on RePresentative Government, Londres, 1861; ANTóNIO CUSTóDIO RIBEIRO DA COSTA, Princípios e Questões da Filosofia Política - I - Condições Científicas do Direito de Sufrágio, Coimbra, 1878; A. ESMEIN, ”Deux fonnes de gouvernemenf’, in Revue du droitpublic, 1894, 1, págs. 15 e segs.; V. E. ORLANDO, ”Du fondementiuridique de Ia réprésentation politique”, ibidem, 1895, págs. 1 e segs,; ROCHA SAR_AIVA ”As teorias sobre a representação política e a nossa Constituição-, in Revista de Justiça, ano 1, 1916, págs. 233 e segs. e 313 e segs.; LENINE, As eleições para a assembleia constituinte e a ditadura do Proletariado, trad. port., Coimbra, 1975; CARL SCHMITT, qp, cit., págs. 231 e segs.; CARRÉ DE MALBERG, ”Considérations théoriques sur Ia question de Ia combinaison du reférendum avec le parlementarisme”, in Revue du droit public, 193 1, págs. 225 e segs.; LUIGI ROSSI, ”La Reppresentanza Politica”, in Scritti Vari di Diritto Pubblico, V, Milão, 1939, págs. 79 e segs.; CARLO ESPOSITO, ”La Rappresentanza Istituzionale”, in Séritti in onore di Santi Romano, 1, Pádua, 1940; GERHARDT LEI13HOLZ, ”DénIocratie Réprésentative et État de Partis Moderne”, in Revue internationale dhistoire politique et constitutionnelle, Janeiro-Março de 1952, págs. 51 e segs., e Die Reprãsentation in der Demokratie, 1973, tradução italiana La Rapprensentazione nella Democrazia, Milão, 1989; VINCENZO ZANGARA, La Rappresentanza Istituzionale, Pádua, 2. ed., 1952; MAURICE DUVERGER, ”Esquisse d’une théorie de Ia réprésentation politique”, in 65 11 - A doutrina da representação política é elaborada quase ao mesmo tempo pela doutrina política inglesa (desde LOCKE a BURKE) e francesa (desde MONTESQUIEU a SIEYÈS e a B. CONSTANT). No entanto, ainda no século XVIII, sofre a sua primeira grande contestação, a de Rousseau. Vale a pena recordar os elementos mais significativosdo pensamento destes autores, com os seus matizes específicos. L’évolution du droit public - Études en l’honneur dAchille Mestre, Paris, 1956, págs. 211 e segs.; ERNST FRANKEL, Die reprãsentative und die plebiszitãte Komponente im demokratischer Verfassungstaat, 1958, trad. it. La componente representative e plebiscitaria nello Stato costituzionale democratico, Turim, 1994; GlOVANN1 SARTORI, A teoria da representação no Estado representativo moderno, trad., Belo Horizonte, 1962 e Théorie de Ia démocratie, trad., Paris, 1973, págs. 383 e segs.; HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito (2. ed. port.), Coimbra, 1962, 11, págs. 197 e segs.; PIER LUIGI ZAMPETTI, Dallo Stato Liberale allo Stato dei Partiti, Milão, 1965; J. ROLAND PANOCK e JOHN W. CHAPMAN, Representation, Nova lorque, 1968; JEAN ROELS, Le concept de réprésentation politique au dix-huitième sièclefrançais, Paris, 1969; Representation, obra colectiva, Nova lorque, 1969; A.H. BIRCH, Representation, Londres, 1971; ACHILLE MESTRE e PHILIPPE GU1TINGER, Constitutionnalismejacobin et constitutionnalisme soviétique, Paris, 1971, págs. 19 e segs.; HANNA PITKIN, The Concept of Representation, Berkeley, 1972; Pouvoirs - Revue dÉtudes Constitutiormelles et Politiques, n.-’ 7, 1978; OTTO BACHOF, 0 direito eleitoral e o direito dos partidos na República Federal da Alemanha, trad. port., Coimbra, 1982; DAMIANO NOCILLA e LUIGI CIAURRO, ” Rappresentanza política”, in Enciclopedia del Diritto, XXX, págs. 543 e segs.; LUIZ NAVARRO DE BRITO, ”0 mandato imperativo partidário”, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1983, págs. 147 e segs.; a antologia ed. por DOMENICO FISICHELLA, La Rappresentanza politica, Milão, 1983; SILVIO GAMBINO, ”Sovranità popolare e rappresentanza política”, in Política del Diritto, 1983, págs. 293 e segs.; ANDREA PUBUSA, ”Riflessioni sul rapporti fra il popolo e 66 ”0 Parlamento - diz Burke (Discurso aos eleitores de Bristol, em 1777) - não é um congresso de embaixadores de interesses diferentes e hostis, interesses que cada um tem de sustentar como representante e advogado contra outros representantes e advogados. 0 Parlamento é, sim, uma assembleia deliberativa de uma única nação, com um só interesse, o do todo, e que deve guiar-se não pelos interesses locais, mas pelo bem geral, resultado da razão geral do todo”. MONTESQUIEU ocupa-se da representação política no mesmo célebre capítulo de De lÉsprit des Lois (o VI do livro XI), em que formula a separação dos poderes. ”Como, num Estado livre, qualquer homem que se repute dotado de uma alma livre, deve ser governado por si mesmo, o povo deveria ter em si mesmo o poder legislativo. Mas, como isso é impossível nos grandes Estados e oferece muitos inconvenientes nos pequenos, é preciso que o povo faça pelos seus representantes tudo aquilo que não pode fazer a si próprio”. alcuni organi dello stato”, in Jus, 1985, págs. 88 e segs.; E.W. BõCKENFõRDE, ”Democrazia e rappresentanza”, in Quaderni Costituzionali, 1985, págs. 227 e segs.; PEDRO VEGA, ”Significado constitucional de Ia representación política”, in Revista de Estudios Políticos, Março-Abril de 1985, págs. 25 e segs.; La Réprésentation, obra colectiva sob a direcção de François d’Arcy, Paris, 1985; Representatives of the People? - Parliamenis and Constituents in Western Democracies, obra colectiva, Cambridge, 1985; PAULO BONAVIDES, qp. cit., págs. 235 e segs. e 309 e segs.; ANGEL RODRIGUEZ DIAS, ”Un marco para el analisis de Ia representación política en los sistemas dernocraticos11, in Revista de Estudios Politicos, OutubroDezembro de 1987, pags. 137 e segs. 67 MONTESQUIEU e, posteriormente, os autores liberais pronunciam-se contra os sistemas democráticos, por temerem que em sistemas democráticos se verificasse uma concentração do poder num único titular, que seria o povo, ou em órgãos, que, baseados no povo, viessem a pôr em causa as liberdades individuais. Só a representação permitiria a divisão de poder. Na vês pera da Revolução Francesa, SIEYÈS (Qu’est-ce que le tiers état?) apela para a representação política para justificar a transformação dos Estados Gerais em Assembleia Constituinte, defende um governo exercido por procuradores do povo e distingue entre aquilo a que chama a ”vontade comum real” e aquilo a que chama a ” vontade comum representativa”. Esta, a vontade comum representativa, não é uma plena vontade, não é uma vontade ilimitada, é uma porção da grande vontade comum nacional, em que os delegados agem não por direito próprio, mas por direito de outrem. Cite-se ainda o que escreve BENJAMIN CONSTANT em 1815 (De la liberté des anciens comparée à celle des modernes): ”É necessário que tenhamos liberdade, e tê-la-emos. Mas como a liberdade de que precisamos é diferente da dos antigos, é preciso, para essa liberdade, outra forma de organização política, que não seja a mesma que os antigos adoptaram. Na forma antiga, quanto mais o homem consagrasse o seu tempo ou a sua força ao exercício dos seus direitos políticos, mais ele se julgava livre. Na espécie de liberdade dos modernos, mais o exercício dos nossos 68 direitos políticos nos deixa tempo para o exercício dos nossos direitos privados, mais esta liberdade nos é preciosa. E daí, a necessidade do sistema representativo, que não é outra coisa senão uma organização com a ajuda da qual uma nação descarrega nalguns indivíduos dela mesma aquilo que ela não pode fazer por si só. ”Os pobres tomam conta dos seus próprios negócios; os ricos tomam intendentes. É a História das nações modernas. 0 sistema representativo é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que quer que os seus interesses sejam por eles defendidos.” 111 - Em contrapartida, são bem conhecidas as observações de ROUSSEAU (Du Contrat Social, livro 111, cap. XVI) contra a representação: ”A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que ela não pode ser alienada: ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ela é a mesma ou é outra, não há meio termo. Os deputados do povo não são, portanto, e não podem ser seus representantes; eles apenas são seus comissários, e não podem, por si, concluir nada definitivamente. Toda a lei que o povo em pessoa não ratifique é nula; não é lei. 0 povo inglês pensa ser livre, mas engana-se; só é durante a eleição dos membros do parlamento; e logo que estes são eleitos, fica sendo escravo, não é nada. Nos curtos momentos da sua liberdade, usa-a de tal modo que merece perdê-la.99 69 E mais adiante: ”Não sendo a lei senão a declaração da vontade geral, é claro que no poder legislativo o povo não pode ser representado; mas pode e deve sê-lo no poder executivo, que é apenas a face aplicada da lei.” ROUSSEAU liga as ideias de representação ao feudalismo, pois nas antigas repúblicas ela não existia, e propugna um sistema que possa reunir ”a autoridade exterior de um grande povo com a polícia adequada e a boa ordem de um pequeno Estado”: tal viria a ser a forma de governo democrático radical ou comissarial da Constituição jacobina francesa de 1793. 12. DO GOVERNO REPRESENTATIVO LIBERAL À DEMOCRACIA LIBERAL 1 - É a tese do governo representativo, e não de governo comissarial, que vinga com as grandes revoluções do século XVIII e XIX ou que, sem revolução, é adoptada em alguns países onde se consegue fazer a experiência de reforma ou transições pacíficas. E as componentes principais do governo representativo vêm a ser: a) A soberania nacional ou princípio de que o poder reside essencialmente (isto é, potencialmente) no povo, na nação entendida como colectividade distinta dos indivíduos que a constituem; 70 b) A incapacidade da nação de exercer o poder e, por conseguinte, a necessidade de o ”delegar” em representantes por ela periodicamente eleitos, únicos que o podem assumir (cfr. art. 26.2 da
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