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Notas de aula - Análise

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UFRJ - Instituto de Matema´tica
Licenciatura em Matema´tica
Ana´lise Real
Prof. Victor Giraldo (victor.giraldo@ufrj.br)
Notas de Aula
Conteu´do
1 Nu´meros Naturais 1
1.1 Contagem e Sistemas de Numerac¸a˜o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1.2 Construc¸a˜o Axioma´tica do Conjunto dos Nu´meros Naturais . . . . . . . . . . . . . . . 6
2 Func¸o˜es 11
3 Cardinalidade de Conjuntos Finitos e Infinitos 17
3.1 Conjuntos Cardinalmente Equivalentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
3.2 Cardinalidades Finitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
3.3 Cardinalidades Infinitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
3.4 Comparac¸a˜o de Conjuntos Infinitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
4 Nu´meros Inteiros e Racionais 32
4.1 Estruturas Alge´bricas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
4.2 Nu´meros Inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
4.3 Nu´meros Racionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
5 Nu´meros Reais 42
5.1 Representac¸a˜o Posicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
5.2 Cardinalidades dos Conjuntos Nume´ricos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
1 Nu´meros Naturais
1.1 Contagem e Sistemas de Numerac¸a˜o
Os primeiros sistemas gra´ficos de numerac¸a˜o sa˜o provavelmente ta˜o antigos quanto a pro´pria escrita.
Acredita-se que os s´ımbolos para representar nu´meros tenham surgido simultaneamente e se desenvol-
vido paralelamente aos s´ımbolos para representar palavras. As primeiras representac¸o˜es gra´ficas para
nu´meros foram provavelmente atrave´s de marcac¸o˜es na pedra ou na areia em que cada marcac¸a˜o (ricos
ou pontos) correspondia a uma unidade do que se pretendia contar. Assim, neste sistema primitivo
so´ existiria um s´ımbolo, correspondendo a` unidade, e cada nu´mero seria representado pela repetic¸a˜o
deste u´nico s´ımbolo. A partir da´ı, diferentes tipos de sistemas nume´ricos gra´ficos se desenvolveram em
diferentes partes do planeta. Chamaremos de algarismos cada s´ımbolo usado em um sistema nume´rico
gra´fico e de numeral uma combinac¸a˜o de algarismos que representa um nu´mero.
Um refinamento do sistema nume´rico primitivo foi a ide´ia de criar algarismos para representar grupos
de outros algarismos, cujo tamanho era dado, em geral, por uma base fixada. Este era o caso, por
exemplo, do sistema de numerac¸a˜o decimal eg´ıpcio, representado na figura abaixo, que remonta a pelo
menos 3400 ac. No sistema eg´ıpcio o algarismo basta˜o representa a unidade; o algarismo ferradura
representa um grupo de 10 basto˜es; o algarismo corda representa um grupo de 10 ferraduras, ou um
grupo 10 de grupos de 10 basto˜es, ou ainda 102 basto˜es; e assim por diante. Desta forma, ha´ um
algarismo para cada poteˆncia da base 10.
1 10 102 103 104 105 106
basta˜o ferradura corda flor de lo´tus dedo pa´ssaro
homem em
adorac¸a˜o
Figura 1: Algarismos Eg´ıpcios.
O nu´mero 1969, por exemplo, poderia, a princ´ıpio ser representado por 1969 basto˜es. Mas isto e´
equivalente a 196 ferraduras mais 9 basto˜es, ou 19 cordas mais 6 ferraduras mais 9 basto˜es, ou ainda
a 1 flor de lo´tus mais 9 cordas mais 6 ferraduras mais 9 basto˜es.
Figura 2: 1969.
Os numerais sa˜o assim formados pela justaposic¸a˜o dos algarismos. Portanto, para ler um nu´mero
natural a escrito em numerais eg´ıpcios, devemos obter a soma total dos valores dos algarismos – por
isso, o sistema eg´ıpcio e´ dito um sistema por agrupamento aditivo simples (no caso eg´ıpcio, decimal).
Este esquema pode ser representado algebricamente da seguinte forma:
a =
N∑
j=0
aj∑
k=1
ηj
1
em que ηj representa o algarismo eg´ıpcio para 10
j e aj e´ um nu´mero natural entre 0 e 9 que representa
o nu´mero de algarismos ηj no numeral.
Reciprocamente, para escrever um nu´mero a no sistema de agrupamento aditivo eg´ıpcio, utilizamos
um processo de diviso˜es sucessivas. Isto e´, cada agrupamento corresponde a uma divisa˜o pela base 10.
Em primeiro lugar, devemos dividir este nu´mero pela base 10. O resto desta divisa˜o sera´ o nu´mero
de algarismos basta˜o no numeral correspondente, ou a0 na fo´rmula acima. Em seguida, dividimos o
quociente da primeira divisa˜o por 10. O resto da segunda divisa˜o sera´ o nu´mero de algarismos ferradura
no numeral, ou a1 na fo´rmula acima. O processo continua ate´ que o quociente obtido seja menor que
10, o que corresponde ao u´ltimo agrupamento. Assim, cada resto aj no processo de diviso˜es sucessivas
sera´ o nu´mero de algarismos ηj no numeral.
Observe que este e´ mesmo esquema utilizado para a construc¸a˜o dos numerais hindu-ara´bicos. O
nosso e´ um sistema de numerac¸a˜o por agrupamento decimal, assim como o eg´ıpcio. No entanto, a
diferenc¸a fundamental esta´ no fato de que, no sistema hindu-ara´bico, cada ordem de grandeza e´ marcada
pela posic¸a˜o do algarismo, e na˜o por um algarismo diferente. Desta forma, no sistema ara´bico, o valor
dos algarismos na˜o e´ absoluto, mas depende da posic¸a˜o que algarismo ocupa em cada numeral. No
sistema eg´ıpcio, por outro lado, o valor dos algarismos e´ absoluto, pois independe da posic¸a˜o. A
flor de lo´tus sempre sera´ 1000 no sistema eg´ıpcio, mas o algarismos 6 pode ter valor 6, 60, 600
ou qualquer valor 6 × 10k, com k ∈ N, no sistema hindu-ara´bico. Consequ¨entemente, no sistema
hindu-ara´bico 10 algarismos sa˜o suficientes para representar qualquer nu´mero natural, enquanto que no
sistema eg´ıpcio se quisermos representar todos os nu´meros naturais, precisaremos de uma quantidade
infinita de algarismos. O esquema de numerac¸a˜o hindu-ara´bico pode ser representado algebricamente
da seguinte forma:
a =
N∑
k=0
ak 10
i
em que ak sa˜o os algarismos
1 entre 0 e 9, dados pelos restos obtidos no processo de diviso˜es sucessivas.
Os sistemas de numerac¸a˜o baseados neste esquema sa˜o chamados sistemas por agrupamento po-
sicional. Ale´m do sistema hindu-ara´bico, que e´ decimal, outros exemplos de sistemas posicionais na
antiguidade sa˜o o babiloˆnico hexadecimal e o maia (essencialmente) vigesimal.
Consideremos o exemplo do sistema posicional maia. Como este e´ um sistema vigesimal (isto e´, de
base 20) seriam necessa´rios 20 algarismos para representar os nu´meros naturais. Em lugar de criar 20
s´ımbolos diferentes, para representar esses algarismos os maias utilizavam um sistema aditivo de base
5, com s´ımbolos para 1 e 5 (figura 3). Esses algarismos eram enta˜o empregados para representar os
nu´meros de 1 a 19, que eram enta˜o usados como algarismos no sistema posicional de base 20 (figura 4).
Assim, podemos dizer que os maias usavam um sistema posicional de base 20, em que esta´ embutido
um sistema aditivo de base 5. Outra caracter´ıstica importante do sistema maia e´ a presenc¸a de um
algarismo para o 0 (figura 3). No entanto, e´ importante notar que o 0 na˜o tinha estatuto de nu´mero
em si, isto e´, este na˜o era considerado como a expressa˜o de uma quantidade. O s´ımbolo para o 0 era
usado apenas como algarismo na representac¸a˜o de outros nu´meros. De fato, o 0 como nu´mero so´ veio
a surgir alguns se´culos mais tarde.
Curiosamente, o primeiro agrupamento no sistema e´ feito com base em grupos de 20, mas o
agrupamento de segunda ordem e´ feito em grupos de 18 (por isso, dissemos anteriormente que o
sistema maia era “essencialmente”vigesimal). A partir da´ı, nos agrupamentos de ordem superior, a
1Observe que, embora os valores dos restos ik sejam os mesmos nos dois sistemas de numerac¸a˜o, este sa˜o os pro´prios
algarismos no sistema hindu-ara´bico, mas na˜o sa˜o algarismos no eg´ıpcio e sim o nu´mero de vezes que cada algarismo
aparece no numeral.
2
0 1 5Figura 3: Os algarismos 0, 1 e 5 no sistema posicional maia.
Figura 4: Algarismos Maias.
base volta a operar de forma vigesimal2. Assim, o nu´mero 1969, por exemplo, e´ representado por
5× 18× 20 + 8× 20 + 9, ou seja da forma mostrada na figura 5.
Figura 5: 1969.
Exerc´ıcios
1. Explique porque um sistema aditivo de numerac¸a˜o na˜o precisa ter um s´ımbolo para o zero,
enquanto que para que um sistema posicional na˜o seja amb´ıguo, e´ necessa´rio que este inclua o
algarismo zero.
2. Determine um algoritmo para efetuar adic¸o˜es no sistema de numerac¸a˜o eg´ıpcio.
3. Determine um regra simples para multiplicar por 10 no sistema de numerac¸a˜o eg´ıpcio.
4. Explique os passos do algoritmo para expressar nu´meros naturais em algarismos maias.
5. Expresse os nu´meros 3960 e 4335 nos sistemas de numerac¸a˜o eg´ıpcio e maia.
E´ claro que podemos formar um sistema de numerac¸a˜o posicional empregando como base qualquer
nu´mero natural α > 2. Podemos demonstrar formalmente que todo nu´mero natural tem representac¸a˜o
u´nica em relac¸a˜o a qualquer sistema de numerac¸a˜o posicional. Assim, o teorema a seguir permite que
o sistema posicional de base α fique bem definido: a expressa˜o de qualquer nu´mero natural a existe e
e´ u´nica.
2A prova´vel explicac¸a˜o para este fato, que a princ´ıpio pode parecer estranho, esta´ no calenda´rio maia, cujo ano tinha
360 dias. Assim, o nu´mero de dias do ano sistema maia era representado pelo s´ımbolo elementar (1×18×20+0×20+0):
3
Teorema 1.1 Seja α > 2 um nu´mero natural fixado. Dado qualquer a ∈ N, existem nu´meros naturais
a0, . . . aN , tais que 0 6 ak < α e aN 6= 0, unicamente determinados, tais que:
a =
N∑
k=0
ak α
k
Demonstrac¸a˜o: Veja [17].
4
Definic¸a˜o 1.1 Seja α > 2 um nu´mero natural fixado. Dizemos que o nu´mero a ∈ N esta´ expresso no
sistema de numerac¸a˜o posicional de base α se a esta´ escrito na forma:
a =
N∑
k=0
ak α
k
em que a0, . . . aN sa˜o os u´nicos nu´meros naturais tais que 0 6 ak < α e aN 6= 0, chamados algarismos.
Neste caso, denotamos:
a = (aN . . . a0)α
Cada ı´ndice k e´ chamado uma ordem na representac¸a˜o posicional de base α.
Como ja´ dissemos, o algoritmo para expressar um nu´mero natural em relac¸a˜o a um sistema de
numerac¸a˜o posicional e´ o processo de diviso˜es sucessivas – que vem a ser exatamente aquele ensinado
nas escolas, para converter um nu´mero natural para outra base, diferente de 10.
Exerc´ıcio
6. Seja (qk)k∈N a sequ¨eˆncia dos quocientes no processo de diviso˜es sucessivas de um nu´mero natural
a por α > 2 Mostre que qk = 0 para k suficientemente grande.
Como ilustramos abaixo, os quocientes qk no processo de diviso˜es sucessivas formam uma sequ¨eˆncia
decrescente de nu´meros naturais. Portanto, para k suficientemente grande, encontramos um quociente
menor que base, o que corresponde ao u´ltimo agrupamento na construc¸a˜o do numeral (veja o exerc´ıcio
anterior).
a α
a0
^
q0 α
a1
^
q1
. . .
qk α
ak+1
^
qk+1
. . .
qN−2 α
aN−1
^
qN−1 α
aN
^
0
a = α q0 + a0
q0 = α q1 + a1 ⇒ a = α (α q1 + a1) + a0 = α2 q1 + α a1 + a0
q1 = α q2 + a2 ⇒ a = α2 (α q2 + a2) + α a1 + a0 = α3 q2 + α2 r2 + α a1 + a0
...
qk = α qk+1 + ak+1 ⇒ a = αk+1 (α qk+1 + ak+1) +
∑k
j=0 α
j aj = α
k+2 qk+1 +
∑k+1
j=0 α
j aj
...
qN−2 = α qN−1 + aN−1 ⇒ a = αN−1 (α qN−1 + aN−1) +
∑N−2
j=0 α
j aj = α
N qN−1 +
∑N−1
j=0 α
j aj
qN−1 = aN ⇒ a = αN aN +
∑N−1
j=0 α
j aj
Logo:
a =
N∑
k=0
ak α
k
5
Exerc´ıcios
7. O que se pode afirmar sobre a representac¸a˜o de um nu´mero natural a em relac¸a˜o ao sistema de
numerac¸a˜o posicional de base α nos casos abaixo?
(a) a = α (b) a e´ mu´ltiplo de α (c) a e´ poteˆncia de α
(d) a < α (e) αk−1 6 a < αk, com k ∈ N
8. Explique a estrutura dos algoritmos da adic¸a˜o e da multiplicac¸a˜o em um sistema de numerac¸a˜o
posicional e justifique sua validade.
9. Efetue as seguintes operac¸o˜es, sem converter para a base 10:
(a) (654)7 + (546)7 (b) (654)7 × (546)7
10. Efetue a adic¸a˜o e a multiplicac¸a˜o entre os nu´meros abaixo, expressos em algarismos maias, sem
converter para o sistema hindu-ara´bico.
11. (a) O nu´mero (37)9 e´ par ou ı´mpar? E (47)9?
(b) Existe alguma base α tal que (47)α seja par?
(c) Se α e´ um nu´mero par, qual e´ o crite´rio para determinar se um numeral na base α representa
um nu´mero par ou ı´mpar?
(d) Se α e´ um nu´mero ı´mpar, qual e´ o crite´rio para determinar se um numeral na base α
representa um nu´mero par ou ı´mpar?
12. (a) O nu´mero (57)9 e´ mu´ltiplo de 3? E (123)9?
(b) Qual e´ o crite´rio para determinar se um numeral na base 9 representa um mu´ltiplo de 3?
13. Considere o sistema de numerac¸a˜o posicional de base α. Considere a = (aN . . . a0)α um nu´mero
natural expresso neste sistema.
(a) Seja p ∈ N um divisor de α. Mostre que p | a ⇐⇒ p | a0.
(b) Seja p ∈ N tal que α deixa resto 1 na divisa˜o por p. Mostre que p | a ⇐⇒ p | ∑Nk=0 ak.
1.2 Construc¸a˜o Axioma´tica do Conjunto dos Nu´meros Naturais
Existem diferentes maneiras de se estabelecer a existeˆncia dos conjuntos nume´ricos N, Z e Q, munidos
das respectivas operac¸o˜es de soma e produto e relac¸a˜o de ordem. De forma geral, se isto e´ feito
diretamente atrave´s de um sistema axioma´tico, a existeˆncia dos conjuntos, suas operac¸o˜es, ordem e
as respectivas propriedades ba´sicas sa˜o estabelecidas pelos axiomas. As demais propriedades sa˜o enta˜o
demonstradas como teoremas. Outra abordagem poss´ıvel seria por meio de um processo construtivo,
com base em objetos previamente conhecidos (no caso de Z e Q, por meio de classes de equivaleˆncia).
Neste caso, os operac¸o˜es e a relac¸a˜o de ordem sa˜o estabelecidas por definic¸o˜es e suas propriedades
demonstradas como teoremas. O quadro abaixo ilustra treˆs possibilidades para a construc¸a˜o de N, Z e
Q (cada uma mais “econoˆmica”que a anterior).
6
I II III
Axioma´tica de
Teoria de Conjuntos
↓
Construc¸a˜o de N
(Axiomas de Peano)
↓
Construc¸a˜o de Z
(Classes de Equivaleˆncia)
↓
Construc¸a˜o de Q
(Classes de Equivaleˆncia)
Axioma´tica de N
(Axiomas de Peano)
↓
Construc¸a˜o de Z
(Classes de Equivaleˆncia)
↓
Construc¸a˜o de Q
(Classes de Equivaleˆncia)
Axioma´tica de Z
↓
Construc¸a˜o de Q
(Classes de Equivaleˆncia)
Tabela 1: Construc¸o˜es dos Conjuntos Nume´ricos.
Na construc¸a˜o de N com base nos axiomas de teoria de conjuntos (coluna I da tabela 1), partimos
da definic¸a˜o do elemento 0 como sendo o conjunto vazio. Na˜o nos aprofundaremos aqui na axioma´tica
de teoria de conjuntos (para maiores detalhes, veja [9, 12]), mas destacamos brevemente a seguir alguns
dos axiomas fundamentais para dar in´ıcio a` construc¸a˜o do conjunto dos nu´meros naturais.
Axioma 1.1 (Existeˆncia) Existe um conjunto.
Axioma 1.2 (Extensa˜o) Dois conjuntos sa˜o iguais se e somente se teˆm os mesmos elementos.
Axioma 1.3 (Especificac¸a˜o) Para todo conjunto A e para toda condic¸a˜o S(x), corresponde um con-
junto B cujos elementos sa˜o exatamente aqueles elementos de x de A para os quais S(x) e´ verdadeira.
Axioma 1.4 (Unia˜o) Para qualquer colec¸a˜o de conjuntos existe um conjunto que conte´m todos os
elementos que pertencem a pelo menos um dos conjuntos da colec¸a˜o dada.
E´ bom lembrar que, por mais que possa parecer que a axioma´tica de teoria de conjuntos seja uma
maneira de fundar toda a matema´tica que conhecemos “partindo do nada”, mesmo este desenvolvimento
parte de conceitos primitivos na˜o definidos – como o pro´prio termo elemento e a relac¸a˜o pertence. O
Axioma da Existeˆncia garante que na˜o estaremos teorizando no va´cuo. O Axioma da Extensa˜o estabelece
a noc¸a˜o de igualdade entre conjuntos e o crite´rio largamente usado para verifica´-la.
O Axioma da Especificac¸a˜o tem o importante papel de evitar o ce´lebre Paradoxo de Russel, que
podeser enunciado da seguinte forma:
Se A = {x | x 6∈ x} enta˜o A ∈ A ou A 6∈ A?
Este paradoxo seria consequ¨eˆncia do emprego, em lugar do Axioma da Especificac¸a˜o, de um enun-
ciado sutilmente diferente deste, o chamado Axioma da Abstrac¸a˜o:
Para toda condic¸a˜o S(x), corresponde um conjunto B cujos elementos sa˜o exatamente
aqueles para os quais S(x) e´ verdadeira.
Embora o Axioma da Abstrac¸a˜o possa parecer, a princ´ıpio, bastante intuitivo, o Paradoxo de Russel
mostra que ele na˜o pode ser assumido se quisermos construir uma teoria de conjuntos consistente.
Tambe´m decorre do Axioma da Especificac¸a˜o que na˜o pode haver um “conjunto universo”, isto e´, um
conjunto de todos os conjuntos. Assim, para definir um conjunto reunindo elementos que satisfazem
a uma dada condic¸a˜o, na˜o se pode simplesmente tomar esses elementos abstratamente – e´ preciso
7
que estes sejam escolhidos em outro conjunto previamente conhecido. Isto e´, na˜o e´ permitido escrever
simplesmente: {x | S(x)}, mas o Axioma da Especificac¸a˜o nos permite utilizar a notac¸a˜o:
{x ∈ A | S(x)}
Exerc´ıcios
14. Explique qual e´ a contradic¸a˜o inerente ao enunciado do Paradoxo de Russel e em que sentido o
Axioma da Especificac¸a˜o a evita.
15. Explique porque na˜o pode haver um conjunto que contenha todos os conjuntos.
A operac¸a˜o de unia˜o de conjuntos e´ definida com base no Axioma da Unia˜o e no Axioma da
Especificac¸a˜o. Note que o Axioma da Unia˜o na˜o estabelece diretamente a existeˆncia de um conjunto
cujos elementos sa˜o exatamente aqueles que pertencem a pelo menos um dos conjuntos da colec¸a˜o
dada, mas sim de um conjunto que conte´m todos estes elementos. Assim, dados dois conjuntos A e B,
existe um conjunto C ao qual pertencem todos os elementos que pertencem a A ou a B. Precisamos
deste conjunto C para, com base no Axioma da Especificac¸a˜o, definir o conjunto:
A ∪B = {x ∈ C | x ∈ A ∨ x ∈ B}
A operac¸a˜o de intersec¸a˜o tambe´m e´ definida com base no Axioma da Especificac¸a˜o. Dados dois
conjuntos A e B, definimos:
A ∩B = {x ∈ A | x ∈ B}
Para definir o conjunto vazio, tomamos um conjunto A, cuja existeˆncia e´ garantida pelo Axioma da
Existeˆncia. O Axioma da Especificac¸a˜o nos permite escrever:
∅ = {x ∈ A | x 6= x}
A unicidade do conjunto vazio3 e´ uma consequ¨eˆncia direta do Axioma da Extensa˜o. Mostramos que
∅ esta´ contido em qualquer conjunto A por meio de um argumento de vacuidade. Para que isto na˜o
fosse verdade, deveria existir x ∈ ∅ tal que x 6∈ A. Mas na˜o existe x ∈ ∅, pois tal elemento satisfaria a
condic¸a˜o x 6= x. O conjunto vazio e´ usado para definir o nu´mero zero. O nu´mero um e´ enta˜o definido
como o conjunto cujo u´nico elemento e´ o conjunto vazio – e assim por diante.
0 = ∅
1 = {∅} = {0}
2 = 1 ∪ {1} = {∅, {∅}} = {0, 1}
3 = 2 ∪ {2} = {∅, {∅}, {∅, {∅}}} = {0, 1, 2}
De forma geral, dado um conjunto (A,+, ·), definimos σ(A), o sucessor de A:
σ(A) = A ∪ {A}
A existeˆncia do conjunto N dos nu´meros naturais e´ finalmente estabelecida pelo Axioma da Infini-
tude.
Axioma 1.5 (Infinitude) Existe um conjunto indutivo (isto e´, um conjunto X tal que 0 ∈ X e
x ∈ X ⇒ σ(x) ∈ X).
3Isto e´, na˜o e´ correto dizer um conjunto vazio, como muitas vezes se faz, mas sim o conjunto vazio.
8
Uma abordagem axioma´tica para o conjunto dos nu´meros naturais foi formulada pelo matema´tico
italiano Giuseppe Peano em 1879. Nesta formulac¸a˜o, estabelece-se que existe um conjunto N satisfa-
zendo os cinco axiomas a seguir, chamados Axiomas de Peano. Para detalhes desta construc¸a˜o, veja
[12, 15, 17].
Axioma 1.6 (Axiomas de Peano) Existe um conjunto N satisfazendo as propriedades:
P1. 0 ∈ N
P2. n ∈ N⇒ σ(n) ∈ N
P3. 0 6= σ(n) ∀n ∈ N
P4. m,n ∈ N, σ(m) = σ(n)⇒ m = n
P5. Princ´ıpio da Induc¸a˜o Finita
Se A ⊂ N e´ um conjunto tal que 0 ∈ A e n ∈ A⇒ σ(n) ∈ A enta˜o A = N.
Os axiomas P2, P3 E P4 podem ser re-enunciados da seguinte forma: existe uma func¸a˜o σ : N→ N
injetiva tal que 0 6∈ σ(N). Os Axiomas de Peano podem ser tomados como o in´ıcio da construc¸a˜o do
conjunto dos nu´meros naturais (como ilustra a coluna II da tabela 1) ou como a continuac¸a˜o da
construc¸a˜o acima, baseada nos axiomas de teoria de conjuntos. No segundo caso, consideramos sendo
0 e σ(n) definidos como acima e o axioma (P2) corresponde a` definic¸a˜o de conjunto indutivo. Os
axiomas (P3) e (P4) podem ser demonstrados como teoremas. A prova de (P3) e´ trivial e deixada
como exerc´ıcio, mas a de (P4) e´ mais complicada (para a prova completa, veja [12, p.46]). O Princ´ıpio
da Induc¸a˜o Finita, por outro lado, e´ na˜o pode ser demonstrado como teorema e deve, portanto, ser
inclu´ıdo como um novo axioma. Assim, se queremos pensar nos Axiomas de Peano como continuac¸a˜o
da construc¸a˜o de N baseada em teoria de conjuntos, estes devem ser re-enunciados da forma a seguir.
Axioma 1.7 (Axioma de Peano) Existe um conjunto indutivo N tal que 0 ∈ N e para o qual vale
o Princ´ıpio da Induc¸a˜o Finita: se A ⊂ N e´ um conjunto tal que 0 ∈ A e n ∈ A ⇒ σ(n) ∈ A enta˜o
A = N.
Exerc´ıcios
16. Assumindo a construc¸a˜o de N com base na teoria de conjuntos, demonstre o axioma (P3) de
Peano como teorema.
17. Mostre que ∀n ∈ N, n 6= 0, ∃m ∈ N | σ(m) = n, isto e´, que σ(N) = N?.
Observe que o Axioma da Infinitude estabelece a existeˆncia de N em sua extensa˜o, isto e´, diz define
seus elementos. Mas para completar a construc¸a˜o do conjunto dos nu´meros naturais queremos mais
que isso: queremos munir N de uma estrutura interna, que inclui as operac¸o˜es de soma e produto e
a relac¸a˜o de ordem. Para demonstrar as propriedades desta estrutura interna, precisamos introduzir o
Princ´ıpio da Induc¸a˜o Finita como axioma.
Definic¸a˜o 1.2 (Soma)
(i) Para cada n ∈ N, temos n+ 0 = n.
(ii) Para cada par m,n ∈ N, a soma m+n e´ o u´nico elemento de N tal que m+σ(n) = σ(m+n).
9
Definic¸a˜o 1.3 (Produto)
(i) Para cada n ∈ N, temos n · 0 = 0.
(ii) Para cada par m,n ∈ N, o produto m·n e´ o u´nico elemento de N tal que m·σ(n) = m ·n+m.
O pro´ximo passo da construc¸a˜o e´ provar que a soma e o produto esta˜o bem definidos, isto e´, que
para cada par m,n ∈ N, os nu´meros m+n ∈ N e m ·n ∈ N de fato existem e sa˜o u´nicos. Em seguida,
devemos demonstrar as propriedades usuais das duas operac¸o˜es. A relac¸a˜o de ordem e´ definida com
base na operac¸a˜o de soma. Na˜o faremos as demonstrac¸o˜es das propriedades das operac¸o˜es e da ordem
aqui. Para a construc¸a˜o detalhada, veja [15, 17].
Definic¸a˜o 1.4 (Ordem) Dados m,n ∈ N, dizemos que m 6 n se ∃ r ∈ N tal que m+ r = n.
10
2 Func¸o˜es
Definic¸a˜o 2.1 Uma func¸a˜o e´ uma relac¸a˜o φ : X → Y que, para cada elemento x ∈ X, faz correspon-
der um e somente um elemento y ∈ Y . Ale´m disso:
(i) Os conjuntos X e Y sa˜o chamados dom´ınio e contradom´ınio de φ, respectivamente.
(ii) O elemento gene´rico x ∈ X e´ chamado varia´vel de φ.
(iii) Se x ∈ X, enta˜o o (u´nico) elemento correspondente y = φ(x) ∈ Y e´ chamado imagem de x
ou valor de φ em x.
(iv) O conjunto φ(X) = {y ∈ Y | ∃x ∈ X, φ(x) = y} ⊂ Y e´ chamado imagem de φ.
(v) Se A ⊂ X, enta˜o o subconjunto correspondente φ(A) = {y ∈ Y | ∃ x ∈ A, φ(x) = y} ⊂ Y
e´ chamado imagem de A.
E´ importante observar que uma func¸a˜o e´ um terno que se constitui de treˆs objetos fundamentais:
dom´ınio, contradom´ınio e lei de associac¸a˜o (segundo a qual os elementos do dom´ınio esta˜o associados
aos do contradom´ınio). Para que uma func¸a˜o esteja bem definida, e´ preciso que estes treˆs objetos
estejam estabelecidos. Observe que o enunciado da definic¸a˜o de func¸a˜o pode ser reescrito da seguinte
forma: para que uma relac¸a˜o φ : X → Y seja uma func¸a˜o, esta deve satisfazer a duas condic¸o˜es
fundamentais:
(I) estar definida em todo elemento do dom´ınio (existeˆncia);
(II) na˜o fazer corresponder mais de um elemento do contradom´ınio a cada elemento do dom´ınio
(unicidade).
Desejamosagora definir func¸a˜o inversa e, em seguida, determinar em condic¸o˜es uma func¸a˜o e´
invers´ıvel. Antes pore´m e´ necessa´rio definir composic¸a˜o de func¸a˜o, ja´ que a definic¸a˜o de func¸a˜o inversa
esta´ baseada nesse conceito.
Definic¸a˜o 2.2 Sejam f : X → Y e g : U → V duas func¸o˜es, com Y ⊂ U . A func¸a˜o composta de g
com f e´ a func¸a˜o denotada por g ◦ f , com dom´ınio em X e contradom´ınio em V , que a cada elemento
x ∈ X faz corresponder o elemento y = g ◦ f(x) = g(f(x)) ∈ V . Isto e´:
g ◦ f : X → Y ⊂ U → V
x 7→ f(x) 7→ g(f(x))
Definic¸a˜o 2.3 Uma func¸a˜o f : X → Y e´ invers´ıvel se existe uma func¸a˜o g : Y → X tal que4:
(i) f ◦ g = IY
(ii) g ◦ f = IX
Neste caso, a func¸a˜o g e´ dita func¸a˜o inversa de f e denotada g = f−1.
4Denotaremos por IA a func¸a˜o identidade do conjunto A: IA : A → A
x 7→ x
.
11
Exerc´ıcio
1. Seja f : X → Y uma func¸a˜o invers´ıvel. Mostre que a func¸a˜o inversa de f e´ u´nica, isto e´, se
existem g1 : Y → X e g2 : Y → X satisfazendo as condic¸o˜es da definic¸a˜o 2.3, enta˜o g1 = g2.
Sugesta˜o: Lembre-se que duas func¸o˜es sa˜o iguais se e so´ se seus valores sa˜o iguais em todos os elementos
do dom´ınio. Assim, procure mostrar que g1(y) = g2(y) ∀y ∈ Y .
Definic¸a˜o 2.4 Consideremos uma func¸a˜o f : X → Y .
(i) f e´ sobrejetiva se ∀ y ∈ Y ∃ x ∈ X tal que f(x) = y;
(ii) f e´ injetiva se x1, x2 ∈ X, x1 6= x2 ⇒ f(x1) 6= f(x2);
(iii) f e´ bijetiva se e´ sobrejetiva e injetiva.
Ha´ ainda formas equivalentes de enunciar as definic¸o˜es acima. Podemos dizer que:
• f e´ sobrejetiva se e somente se f(X) = Y .
• f e´ injetiva se e somente se x1, x2 ∈ X, f(x1) = f(x2)⇒ x1 = x2.
• f e´ injetiva se e somente se ∀y ∈ f(X) ∃ ! x ∈ X tal que f(x) = y.
• f e´ bijetiva se e somente se ∀y ∈ Y ∃ !x ∈ X tal que f(x) = y.
Exerc´ıcios
2. Considere as func¸o˜es: p : R → [0,+∞[
x 7→ x2
q : [0,+∞[ → R
x 7→ √x
(a) A func¸a˜o p e´ bijetiva?
(b) Defina a func¸a˜o composta p ◦ q (indicando os treˆs elementos fundamentais: dom´ınio, con-
tradom´ınio e lei de formac¸a˜o). Esta e´ a func¸a˜o identidade do conjunto [0,+∞[ ?
(c) Defina a composta q ◦ p. Esta e´ a func¸a˜o identidade do conjunto R?
(d) Podemos afirmar que q e´ a func¸a˜o inversa de p?
(e) A func¸a˜o p e´ invers´ıvel?
Podemos definir a relac¸a˜o inversa de uma func¸a˜o qualquer, seja esta bijetiva ou na˜o. No entanto,
para que esta relac¸a˜o inversa seja uma func¸a˜o, deve satisfazer as duas condic¸o˜es da definic¸a˜o de func¸a˜o
(definic¸a˜o 2.1).
A relac¸a˜o inversa da func¸a˜o p do exerc´ıcio 2 e´ a relac¸a˜o p−1 : [0,+∞[→ R que, a cada nu´mero real
na˜o negativo x, faz corresponder suas duas ra´ızes quadradas (a positiva e a negativa). A func¸a˜o q seria
um dos dois “ramos” desta relac¸a˜o. Observe que a relac¸a˜o p−1 satisfaz a condic¸a˜o fundamental (I) da
definic¸a˜o de func¸a˜o, mas na˜o a condic¸a˜o (II) – portanto esta na˜o e´ uma func¸a˜o. Isto decorre do fato de
p ser sobrejetiva mas na˜o injetiva. De fato, como p e´ sobrejetiva, esta cobre todo o seu contradom´ınio
(que vira´ a ser o dom´ınio da relac¸a˜o inversa p−1), logo p−1 satisfaz a condic¸a˜o (I). Mas como p na˜o e´
injetiva, os elementos de sua imagem esta˜o associados a mais de um elemento no dom´ınio. Assim, os
elementos do dom´ınio de p−1 estara˜o associados a mais de uma imagem, logo p−1 na˜o satisfaz (II).
12
Por outro lado, a relac¸a˜o inversa da func¸a˜o q do exerc´ıcio 2 e´ a relac¸a˜o q−1 : R → [0,+∞[ que, a
cada nu´mero real na˜o negativo x, faz corresponder seu quadrado. A relac¸a˜o q−1 satisfaz a condic¸a˜o (II)
da definic¸a˜o de func¸a˜o, mas na˜o a (I). Isto se deve ao fato de q ser injetiva mas na˜o sobrejetiva. Como
q na˜o e´ sobrejetiva, na˜o cobre todo o seu contradom´ınio, em consequ¨eˆncia, q−1 na˜o cobrira´ todo o seu
dom´ınio. De fato, q−1 atua somente nos elementos x > 0, embora seu dom´ınio seja todo o conjunto
R, logo na˜o satisfaz a condic¸a˜o (I). Como q e´ injetiva, cada elemento de sua imagem esta´ associado a
um u´nico elemento do dom´ınio. Portanto, cada elemento do dom´ınio de q−1 na˜o pode estar associado
a mais que um u´nico elemento. Assim q−1 satisfaz a condic¸a˜o (I).
De forma geral, sabemos que bijetividade e´ uma condic¸a˜o necessa´ria e suficiente para que a relac¸a˜o
inversa de uma func¸a˜o seja ela pro´pria tambe´m uma func¸a˜o, como demonstrado no teorema a seguir.
Teorema 2.1 Uma func¸a˜o f : X → Y e´ invers´ıvel se o somente se e´ bijetiva.
Demonstrac¸a˜o:
(⇒) Por hipo´tese, existe g : Y → X tal que:
(i) f ◦ g = IY
(ii) g ◦ f = IX
Tomemos y ∈ Y qualquer. Seja x = g(y). Da condic¸a˜o (i) acima, segue que f(x) = f(g(y)) =
f ◦ g(y) = IY (y) = y. Enta˜o, f e´ sobrejetiva.
Tomemos x1, x2 ∈ X tais que f(x1) = f(x2). Logo, g ◦ f(x1) = g ◦ f(x2). Da condic¸a˜o (ii), segue
que IX(x1) = IX(x2), logo, x1 = x2. Enta˜o, f e´ injetiva.
(⇐) Por hipo´tese, f e´ bijetiva. Desejamos construir uma func¸a˜o g : Y → X satisfazendo as condic¸o˜es
(i) e (ii) da definic¸a˜o de func¸a˜o invers´ıvel. Dado y ∈ Y qualquer, como f e´ sobrejetiva, existe x ∈ X
tal que f(x) = y e, como f e´ injetiva o elemento x com esta propriedade e´ u´nico. Assim, definimos
g(y) como o u´nico x ∈ X tal que f(x) = y. As duas condic¸o˜es desejadas decorrem imediatamente da
construc¸a˜o de g.
Observando a demonstrac¸a˜o do Teorema 2.1, vemos que, mais precisamente, podemos enunciar os
teoremas a seguir.
Teorema 2.2 Seja f : X → Y uma func¸a˜o. As seguintes condic¸o˜es sa˜o equivalentes
(i) f e´ sobrejetiva;
(ii) existe g : Y → X tal que f ◦ g = IY (neste caso, g e´ dita uma func¸a˜o inversa a` direita de f);
(iii) a relac¸a˜o inversa f−1 : Y → X faz corresponder, a todo elemento de Y , um elemento de X
(isto e´, satisfaz a condic¸a˜o (I) da definic¸a˜o de func¸a˜o).
Teorema 2.3 Seja f : X → Y uma func¸a˜o. As seguintes condic¸o˜es sa˜o equivalentes
(i) f e´ injetiva;
(ii) existe g : Y → X tal que g ◦ f = IX (neste caso, g e´ dita uma func¸a˜o inversa a` esquerda de
f);
(iii) a relac¸a˜o inversa f−1 : Y → X na˜o faz corresponder, a nenhum elemento de Y , mais de um
elemento de X (isto e´, satisfaz a condic¸a˜o (II) da definic¸a˜o de func¸a˜o).
13
Exerc´ıcios
3. Escreva as demonstrac¸o˜es dos Teoremas 2.2 e 2.3 (basta “rearrumar”a demonstrac¸a˜o do Teorema
1, completando alguns detalhes).
4. Mostre, com contra-exemplos, que se uma func¸a˜o f : X → Y e´ sobrejetiva ou injetiva, mas
na˜o bijetiva, as func¸o˜es inversas a` esquerda ou a` direita na˜o sa˜o unicamente definidas. Isto e´,
construa exemplos da seguinte forma:
(a) f : X → Y sobrejetiva, mas na˜o bijetiva, com g1 : Y → X e g2 : Y → X distintas tais que
f ◦ g1 = IY e f ◦ g2 = IY .
(b) f : X → Y injetiva, mas na˜o bijetiva, com g1 : Y → X e g2 : Y → X distintas tais que
g1 ◦ f = IX e g2 ◦ f = IX .
5. Seja f : X → Y uma func¸a˜o. Mostre que se existem g1 : Y → X e g2 : Y → X tais que
f ◦ g1 = IY e g2 ◦ f = IX , enta˜o g1 = g2 (portanto, f sera´ neste caso invers´ıvel).
Em que o resultado deste exerc´ıcio difere do exerc´ıcio 1?
Voltemos ao exemplo das func¸o˜es p e q do exercido 2. Ja´ observamos que como, p e´ sobrejetiva e
na˜o injetiva, esta admite uma relac¸a˜o inversa, mas na˜o uma func¸a˜o inversa. A func¸a˜o q e´ uma inversa
a` direita de p. De forma ana´loga, q e´ injetiva e na˜o sobrejetiva, portanto na˜o e´ invers´ıvel e p e´ inversa
a` esquerda de q.
Exerc´ıcios
6. De outros exemplos de func¸o˜es injetivas e de func¸o˜es sobrejetivas que na˜o sejam invers´ıveis. Para
cada uma delas, defina a relac¸a˜o inversa e a func¸a˜o inversa a` direita ou a` esquerda, conforme o
caso.
7. Em cada um dos ı´tens abaixo, defina uma func¸a˜o com a lei de formac¸a˜o dada (indicando dom´ınio
e contradom´ınio) e verifique se a func¸a˜o definida e´ injetiva, sobrejetiva ou bijetiva.
(a) que a cada dois nu´meros naturais associa seu mdc.
(b) que a cada vetor do plano associa seu mo´dulo.
(c)que a cada matriz 2× 2 associa sua matriz transposta.
(d) que a cada matriz 2× 2 associa seu determinante.
(e) que a cada polinoˆmio (na˜o nulo) com coeficientes reais associa seu grau.
(f) que a cada figura plana fechada e limitada no plano associa a sua a´rea.
(g) que a cada subconjunto de R associa seu complementar.
(h) que a cada subconjunto de A = {k ∈ N | k 6 10} associa seu nu´mero de elementos.
(i) que a cada subconjunto finito de N associa seu nu´mero de elementos.
(j) que a cada subconjunto na˜o vazio de N associa seu menor elemento.
(k) que a cada func¸a˜o f : R→ R associa seu valor no ponto x0 = 0.
(l) que a cada func¸a˜o integra´vel f : [0, 1]→ R associa o valor de sua integral.
14
8. f : X → Y e g : U → V duas func¸o˜es, com Y ⊂ U . Considere a composta g ◦ f : X → V .
(a) Mostre que, se f e g sa˜o injetivas, enta˜o g ◦ f tambe´m e´.
(b) Mostre que, se f e g sa˜o sobrejetivas e Y = U , enta˜o g ◦ f tambe´m e´ sobrejetiva. Este
resultado permanece va´lido se retirarmos a hipo´tese Y = U?
(c) Sob que condic¸o˜es podemos afirmar que a composta de duas bijec¸o˜es e´ uma bijec¸a˜o?
9. Seja f : X → Y uma func¸a˜o e sejam A e B subconjuntos de X. Mostre que f(A ∪ B) =
f(A) ∪ f(B).
10. Seja f : X → Y uma func¸a˜o e sejam A e B subconjuntos de X.
(a) Mostre que f(A ∩B) ⊂ f(A) ∩ f(B).
(b) E´ poss´ıvel afirmar que f(A ∩B) = f(A) ∩ f(B) ∀ A,B ⊂ X? Justifique.
(c) Determine uma condic¸a˜o sobre f que garanta que a afirmac¸a˜o feita no item (b) seja verda-
deira.
Definic¸a˜o 2.5 Seja f : X → Y uma func¸a˜o.
Se y ∈ Y , enta˜o o subconjunto f−1(y) = {x ∈ X | f(x) = y} ⊂ X e´ chamado contra-imagem ou
imagem inversa de x.
Se A ⊂ Y , enta˜o o subconjunto f−1(A) = {x ∈ X | f(x) ∈ A} ⊂ X e´ chamado contra-imagem
ou imagem inversa de A.
Assim a imagem inversa de um elemento y ∈ Y e´ o subconjunto de X formado pelos elementos
cujas imagens sa˜o iguais a y; enquanto a imagem inversa de um subconjunto A ⊂ Y e´ o subconjunto
de X formado pelos elementos cujas imagens pertencem a A.
Observe que, embora a mesma notac¸a˜o f−1 seja usada para func¸o˜es inversas e imagens inversas,
tratam-se de conceitos formalmente distintos – portanto e´ importante na˜o confundi-los. De fato, se
f−1 esta´ representando a func¸a˜o inversa de f , enta˜o f−1(y) e´ um elemento do dom´ınio de f . Por outro
lado, se f−1 esta´ representando uma imagem inversa, enta˜o f−1(y) e´ um subconjunto do dom´ınio. A
imagem inversa existe e esta´ bem definida para qualquer elemento ou subconjunto do contradom´ınio
de f , mesmo que a func¸a˜o na˜o seja invers´ıvel.
Exerc´ıcios
11. Seja f : X → Y uma func¸a˜o.
(a) Se f e´ injetiva e y e´ um elemento qualquer de Y , o que se pode afirmar sobre a imagem
inversa f−1(y)?
(b) Se f e´ sobrejetiva e y e´ um elemento qualquer de Y , o que se pode afirmar sobre a imagem
inversa f−1(y)?
(c) Se f e´ bijetiva e y e´ um elemento qualquer de Y , o que se pode afirmar sobre a imagem
inversa f−1(y)?
12. Seja f : X → Y uma func¸a˜o. Se A e B sa˜o subconjuntos de Y , demonstre as seguintes
propriedades das imagens inversas:
(a) f−1(A ∪B) = f−1(A) ∪ f−1(B)
(b) f−1(A ∩B) = f−1(A) ∩ f−1(B)
15
13. Seja f : X → Y uma func¸a˜o. Mostre que:
(a) f(f−1(B)) ⊂ B ∀B ⊂ Y
(b) f(f−1(B)) = B ∀B ⊂ Y se e somente se f e´ sobrejetiva.
14. Seja f : X → Y uma func¸a˜o. Mostre que:
(a) f−1(f(A)) ⊃ A ∀A ⊂ X
(b) f−1(f(A)) = A ∀A ⊂ X se e somente se f e´ injetiva.
16
3 Cardinalidade de Conjuntos Finitos e Infinitos
3.1 Conjuntos Cardinalmente Equivalentes
Em 1883, o matema´tico Georg Cantor (1845-1918) conceituou o nu´mero cardinal de um conjunto da
seguinte forma:
Se abstra´ımos a natureza dos elementos e a ordem na qual eles sa˜o dados, obtemos o
nu´mero cardinal do conjunto.
O nu´mero cardinal ou cardinalidade (ou, em termos menos formais, quantidade de elementos) de um
conjunto e´ a propriedade essencial que sobra deste quando desconsideramos todas as suas caracter´ısticas
intr´ınsecas e as relac¸o˜es entre seus elementos. Uma noc¸a˜o bastante intuitiva e´ a de que dois conjuntos
possuem o mesmo nu´mero de elementos quando podemos construir uma correspondeˆncia um a um
entre eles. A partir desta ide´ia, constro´i-se o conceito matema´tico formal de cardinalidade.
Definic¸a˜o 3.1 Dizemos que dois conjuntos X e Y sa˜o cardinalmente equivalentes se existe uma func¸a˜o
bijetiva f : X → Y . Neste caso, denotamos X ∼ Y .
Note que a definic¸a˜o acima estabelece em que condic¸o˜es dois conjuntos sa˜o cardinalmente equi-
valentes, pore´m ainda na˜o estabelece o conceito de cardinalidade em si. De maneira informal, isto
equivaleria a dizer que a definic¸a˜o diz o que significa “possuir a mesma quantidade de elementos”, sem
dizer entretanto o que e´ “quantidade de elementos”. A princ´ıpio podemos pensar em cardinalidade de
um conjunto X como sendo a classe5 de todos os conjuntos cardinalmente equivalentes a X, pore´m
esta noc¸a˜o tem interpretac¸o˜es bastante diferentes no caso de conjuntos finitos e de conjuntos infinitos
– como de fato seria de se esperar.
Consideremos, por exemplo, um conjunto finito: {a, b}. Segundo a definic¸a˜o 3.1, todos os conjuntos
com os quais {a, b} admite uma correspondeˆncia biun´ıvoca sa˜o cardinalmente equivalentes a ele. Neste
caso, a cardinalidade de {a, b} seria a classe formada por todos os conjuntos que podem ser postos em
correspondeˆncia biun´ıvoca com este. Podemos identificar essa classe por meio do ro´tulo ‘2’. O nu´mero
cardinal 2 e´ portanto a propriedade matema´tica que teˆm em comum todos os conjuntos que esta˜o em
correspondeˆncia um a um com {a, b}. Percebemos assim, de forma intuitiva, que as cardinalidades dos
conjuntos finitos se identificam com os elementos do conjunto N, dos nu´meros naturais6.
A noc¸a˜o de cardinalidade na˜o esta´ restrita a conjuntos finitos. No caso de conjuntos infinitos, no
entanto, esta questa˜o se torna bem mais complicada. A teoria moderna de cardinalidades de conjuntos
infinitos tambe´m e´ devida a Cantor, que a desenvolveu em uma nota´vel se´rie de artigos publicados
a partir de 1872 em jornais cient´ıficos alema˜es7: era fundado assim um novo campo da matema´tica.
Em seu trabalho, Cantor mostrou que, contrariamente ao que se acreditava ate´ enta˜o, os conjuntos
infinitos na˜o sa˜o todos cardinalmente equivalentes uns aos outros. Mais do que isso, da mesma forma
que existem infinitas cardinalidades distintas para os conjuntos finitos (identificadas pelos nu´meros
naturais), tambe´m existem infinitas cardinalidades distintas para os conjuntos infinitos – isto e´, existem
5Utilizamos aqui a palavra “classe” em lugar de “conjunto” por que a admissa˜o da existeˆncia do “conjunto de todos
os elementos que satisfazem um dada propriedade” acarretaria numa situac¸a˜o paradoxal – o ce´lebre Paradoxo de Russell.
Para maiores detalhes, ver [12].
6Na˜o entraremos aqui em maiores detalhes formais deste aspecto. Para uma abordagem mais aprofundada, ver [12].
7Uma traduc¸a˜o comentada para o ingleˆs de dois artigos originais de Cantor foi editada por E. Jourdain, ver [13].
17
“infinitos mais infinitos que outros”. Ate´ enta˜o, concebia-se um so´ infinito, representado pelo bem
conhecido s´ımbolo ∞, que foi introduzido por John Wallis (1616-1703) [7, p.318]. Cantor caracterizou
as cardinalidades dos conjuntos infinitos (ou seja, as “infinitas classes de infinito”) e as chamou de
nu´meros transfinitos, representados pela letra ℵ (aleph), do alfabeto hebraico (ver, p.ex. [4, 7, 14, 22]).
A noc¸a˜o de infinito sempre foi uma das mais controversas da histo´ria da Matema´tica, desde seus
primo´rdios (ver, p.ex. [4, 7, 14]). O matema´tico e filo´sofo grego Aristo´teles (384-322 a.c.) considerava
quantidades infinitas, entretanto na˜o admitia o infinito como uma entidade matema´tica, e sim como
uma potencialidade, isto e´, uma tendeˆncia inating´ıvel das grandezas que podem crescer indefinidamente.A ide´ia de Aristo´teles foi compartilhada por matema´ticos em tempos muito mais recentes. Carl Friedrich
Gauss (1777-1855), por exemplo, em uma carta escrita em 1831, afirma veementemente [14, p.993]:
Eu protesto contra o uso de uma quantidade infinita como uma entidade matema´tica
verdadeira; isto nunca e´ permitido em matema´tica. O infinito e´ apenas uma maneira de se
falar, na qual se fala adequadamente de limites dos quais certas razo˜es podem chegar ta˜o
perto quanto desejado, enquanto a outras e´ permitido crescer sem limites.
Em uma cr´ıtica direta ao trabalho de Cantor, Henri Pincare´ (1854-1912) comenta em sua obra
Science et Me´thode [20, p.212]:
Na˜o ha´ infinito atual. Os cantorianos esqueceram disso e ca´ıram em contradic¸a˜o. E´ verdade
que o cantorismo nos prestou servic¸os, mas isto era quando o aplica´vamos a um verdadeiro
problema, cujos termos eram claramente definidos. Enta˜o pod´ıamos caminhar sem medo.
De fato, as descobertas de Cantor foram ta˜o revoluciona´rias em relac¸a˜o aos conceitos estabelecidos
na e´poca, que ate´ mesmo ele, o pro´prio autor, expressou certa resisteˆncia em aceita´-las. Em 1877,
escreveu ao amigo Richard Dedekind (1831-1916), pedindo que verificasse as provas de seus resultados,
pois estes pareciam ta˜o paradoxais que ele pro´prio afirmava: “Eu vejo isso, mas na˜o acredito” [4,
p.415]. O trabalho de Cantor seria mais tarde descrito por David Hilbert (1862-1943) com o ce´lebre
comenta´rio:
Ningue´m nos expulsara´ do para´ıso que Cantor criou para no´s.
Cantor contribuiu de forma marcante em muitos aspectos da teoria moderna de conjuntos, ale´m da
caracterizac¸a˜o dos nu´meros transfinitos. Sua extraordina´ria descoberta na˜o so´ estabeleceu definitiva-
mente o infinito como “uma entidade matema´tica verdadeira”, mas inaugurou uma teoria absolutamente
nova, segundo a qual os diferentes infinitos poderiam ser manipulados e operados como objetos ma-
tema´ticos concretos. Hoje, distinguem-se as noc¸o˜es de infinito potencial – entendido como tendeˆncia
ou limite – e de infinito atual – entendido como cardinalidade de conjuntos.
Antes de estudar as cardinalidades finitas e infinitas entretanto, e´ preciso estabelecer formalmente
os pro´prios conceitos de conjunto finito e conjunto infinito. Existe mais de um caminho para construir
matematicamente estes conceitos. Um deles toma como base uma das propriedades mais importantes
– e tambe´m mais contra´rias a` intuic¸a˜o humana – que distingue em conjuntos finitos e infinitos: todo
conjunto infinito pode ser posto em correspondeˆncia biun´ıvoca com uma parte pro´pria sua (isto e´, um
subconjunto estritamente contido no primeiro). Em outras palavras, poder´ıamos dizer que um conjunto
infinito possui o mesmo “tamanho” que um pedac¸o de si pro´prio – fato que parece inconceb´ıvel se nos
mantemos nossa intuic¸a˜o atrelada a` experieˆncia concreta com conjuntos finitos.
A definic¸a˜o de conjunto infinito com base nesta propriedade (definic¸a˜o 3.2 a seguir) foi primeiro
formulada por Dedekind em 1872 (mesmo ano em que Cantor comec¸ou a publicar a teoria de nu´meros
transfinitos), embora a propriedade em si ja´ fosse familiar a matema´ticos e filo´sofos desde a matema´tica
18
grega. Galileo Galilei (1563-1643), em seu obra Discorsi e Dimostrazioni Matematiche Intorno a` Due
Nuove Scienze8, editada em 1638, cita alguns assim chamados “paradoxos do infinito”. Em um deles,
constata que existe uma correspondeˆncia um a um entre o conjunto dos nu´meros naturais e o dos
pares, dada pela func¸a˜o n↔ 2n. Neste sentido portanto, podemos pensar que existem tantos nu´meros
naturais quanto pares – embora os pares estejam estritamente contidos nos naturais. Em outro paradoxo,
observa que se pode construir uma correspondeˆncia um a um entre dois segmentos de reta AB e A′B′,
de comprimentos distintos, meio de uma construc¸a˜o geome´trica simples, como ilustra a figura abaixo.
aaaaaaaaaaaaaaa
@
@
@
@
@
@
A′ B′X ′
A BX
O
Outro exemplo famoso foi apresentado por Hilbert em uma confereˆncia proferida em 1925. Neste
exemplo, que ficou conhecido como O Hotel de Hilbert, considera-se hotel hipote´tico com infinitos
quartos. Um novo ho´spede chega ao hotel, mas este se encontra lotado. Em uma soluc¸a˜o engenhosa
para o na˜o deixar o novo ho´spede sem pouso, o gerente move o cliente hospedado do quarto 1 para
o quarto 2. Como o quarto 2 tambe´m esta´ ocupado, e´ preciso mover tambe´m o ho´spede deste para
o quarto 3, e assim sucessivamente. Como o hotel possui infinitos quartos este processo pode ser
continuado indefinidamente, movendo cada cliente do quarto n para o quarto n+ 1, sem que nenhum
fique desalojado. Isto e´, um hotel com infinitos quartos nunca esta´ lotado.
Definic¸a˜o 3.2 Um conjunto X e´ dito infinito se existe uma bijec¸a˜o entre X e uma parte pro´pria de
X. Caso contra´rio, X dito e´ finito.
Podemos pensar em um nu´mero natural “muito grande”. Por exemplo, o nu´mero batizado como
googol – 10100 (ou 1 seguido de 100 zeros) – e´ maior que o nu´mero estimado de a´tomos no universo
conhecido:
10.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.
000.000.000.000.000.000.000.000.000.000
O maior nu´mero que ate´ hoje ganhou um nome e´ provavelmente o chamado googolplex – 1010
100
(ou
1 seguido de googol zeros)! Para ser escrito na forma decimal o googolplex demandaria uma quantidade
de folhas de papel da ordem de 2, 5× 1096. Se empilhadas, essas folhas de papel formariam uma pilha
com altura de aproximadamente 2, 5 × 1089km, ou 2, 6 × 1077 anos-luz – da ordem de 1066 vezes o
tamanho do universo conhecido. Para maiores detalhes sobre os nu´meros googol e googolplex, veja [5]
ou [19].
Por maior que seja o nu´mero googolplex, se tivermos um conjunto com googolplex elementos e
destes retirarmos um, o conjunto resultante tera´ googolplex−1 elementos: efetivamente menos que o
original. Entretanto, se retirarmos um elemento de um conjunto infinito, sua cardinalidade permanece
inalterada (como ilustra o exemplo do Hotel de Hilbert). De forma mais geral, e´ poss´ıvel mostrar que
se X e´ infinito e Y ⊂ X e´ finito, enta˜o, por maior que seja Y , temos X \ Y ∼ X. Em outras
palavras, as cardinalidades infinitas se distinguem das finitas por serem insens´ıveis a` exclusa˜o de partes
finitas de qualquer tamanho. Esta propriedade pode parecer bizarra se comparada a fatos familiares de
conjuntos finitos – mas e´, justamente por isso, uma caracterizac¸a˜o importante dos conjuntos infinitos.
8Para uma nova edic¸a˜o comentada, ver [11].
19
Em particular, vemos que e´ falsa a concepc¸a˜o do senso comum de infinito como “um nu´mero muito
grande” ou “um nu´mero maior que qualquer”. De fato, infinito na˜o e´ um nu´mero no sentido aritme´tico-
alge´brico em que compreendemos os nu´meros, pois na˜o respeita as mesmas leis.
Pode-se mostrar ainda que, de qualquer conjunto infinito, podemos retirar uma parte pro´pria sem
que a cardinalidade do conjunto original seja alterada (como ilustra o exemplo dos nu´meros pares de
Galileo). Estas e outras propriedades sera˜o abordadas nos exerc´ıcios a seguir. Demonstrac¸o˜es e maiores
detalhes podem ser vistos em [2] ou [16].
Exerc´ıcios
1. Sejam X e Y dois conjuntos cardinalmente equivalentes.
(a) Mostre que, se X e´ infinito, Y e´ infinito.
(b) Mostre que, se X e´ finito, Y e´ finito.
2. Sejam X e Y dois conjuntos tais que X ⊂ Y .
(a) Mostre que, se X e´ infinito, enta˜o Y e´ infinito.
(b) Mostre que, se Y e´ finito, enta˜o X e´ finito.
O exerc´ıcio a seguir estabelece uma importante relac¸a˜o entre func¸o˜es injetivas e sobrejetivas, seus
dom´ınios e contradom´ınios: uma func¸a˜o injetiva leva sempre conjuntos “menores” em conjuntos “mai-
ores”, enquanto uma func¸a˜o sobrejetiva leva conjuntos “maiores” em “menores”. E´ razoavelmente
intuitivo imaginar que, se existe uma injec¸a˜o f : X → Y , significaque uma “co´pia” do conjunto X
pode ser “injetada” dentro de Y (como o pro´prio nome esta´ dizendo). Por outro lado, se existe uma
sobrejec¸a˜o f : X → Y , enta˜o o conjunto X e´ suficientemente grande para “cobrir” Y (eventualmente
com “sobra”). Estas noc¸o˜es intuitivos fornecem as ide´ias para as demonstrac¸o˜es formais.
Exerc´ıcios
3. Mostre que:
(a) Se existe uma sobrejec¸a˜o f : X → Y , enta˜o ∃X ′ ⊂ X tal Y ∼ X ′.
(b) Se existe uma injec¸a˜o f : X → Y , enta˜o ∃ Y ′ ⊂ Y tal X ∼ Y ′.
(c) Existe uma injec¸a˜o f : X → Y se e somente se existe uma sobrejec¸a˜o g : Y → X.
4. Suponha que exista uma sobrejec¸a˜o f : X → Y . Mostre que:
(a) Se X e´ um finito, enta˜o Y e´ finito.
(b) Se Y e´ infinito, enta˜o X e´ infinito.
5. Suponha que exista uma injec¸a˜o f : X → Y . Mostre que:
(a) Se Y e´ finito, enta˜o X e´ finito.
(b) Se X e´ infinito, enta˜o Y e´ infinito.
20
3.2 Cardinalidades Finitas
Feita a conceituac¸a˜o de conjunto finito, na forma da definic¸a˜o 3.2, podemos passar a caracterizar as
cardinalidades desses conjuntos, a partir da ide´ia de contagem de seus elementos. Esta caracterizac¸a˜o
sera´ estabelecida pela definic¸a˜o 3.4, cuja consisteˆncia sera´ garantida pelos teoremas 3.1 e 3.2. Antes
disso, e´ necessa´rio definir formalmente a noc¸a˜o de contagem.
Definic¸a˜o 3.3 Um conjunto na forma In = {k ∈ N | k 6 n} em que n e´ um nu´mero natural fixado,
e´ chamado um segmento inicial dos naturais. Uma bijec¸a˜o f : In → X e´ chamada uma contagem do
conjunto X.
Os segmentos iniciais dos naturais sera˜o usados como refereˆncia para as cardinalidades de todos
os conjuntos finitos, atrave´s da contagem de seus elementos. Antes pore´m, e´ preciso provar que estes
conjuntos sa˜o, eles pro´prios, finitos. Embora este fato parec¸a o´bvio, deve ser demonstrado de acordo
com o conceito matema´tico de conjunto finito estabelecido pela definic¸a˜o 3.2. A demonstrac¸a˜o do lema
3.1 e´ um pouco delicada, mas e´ necessa´ria para tornar menos a´rduo o trabalho subsequ¨ente.
Lema 3.1 Todo segmento inicial dos naturais e´ finito.
Demonstrac¸a˜o:
Seja A ⊂ In um conjunto tal que existe uma bijec¸a˜o f : In → A. Provaremos por induc¸a˜o que
devemos ter A = In, portanto na˜o pode haver uma bijec¸a˜o entre In e uma parte pro´pria sua.
O resultado e´ trivial para n = 1, ja´ que um conjunto formado por um elemento u´nico na˜o pode ter
subconjuntos pro´prios.
Como hipo´tese de induc¸a˜o, suponhamos o resultado verdadeiro para algum n0 ∈ N.
Seja f : In0+1 → A uma bijec¸a˜o em que A ⊂ In0+1. Sendo a = f(n0+1), a func¸a˜o fˆ : In0 → A\{a}
dada pela restric¸a˜o de f a In0 e´ uma bijec¸a˜o.
Se A \ {a} ⊂ In0 , teremos diretamente da hipo´tese de induc¸a˜o que A \ {a} = In0 . Enta˜o, so´
podemos ter a = n0 + 1, logo, A = In0+1.
Caso contra´rio, basta construir uma nova bijec¸a˜o g : In0+1 → A, com a propriedade g(n0 + 1) =
n0+1, e recairemos no caso anterior. Como temos A \ {a} 6⊂ In0 , significa que n0+1 ∈ A \ {a} (pois
certamente A \ {a} ⊂ In0+1). Enta˜o, podemos tomar p = fˆ−1(n0 +1) ∈ In0 . Constru´ımos g trocando
as imagens dos elementos n0 + 1 e p, isto e´, fazemos g(n0 + 1) = f(p) = n0 + 1, g(p) = f(n0 + 1) e
g coincidir com f(k) nos demais elementos k 6= p, k 6= n0 + 1.
Isto completa a prova.
Teorema 3.1 Um conjunto X 6= ∅ e´ finito se e somente se existe uma contagem para X 9.
Demonstrac¸a˜o:
(⇒) Esta demonstrac¸a˜o consiste em “esvaziar” o conjunto X, retirando um a um seus elementos.
Sejam x1 ∈ X um elemento fixado e X1 = X \ {x1}. Se X1 = ∅, significa que X = {x1}, neste
caso obtemos trivialmente uma bijec¸a˜o entre I1 e X.
Se X1 6= ∅, repetimos o processo acima, fixando x2 ∈ X1 e tomando X2 = X1 \ {x2}. Da mesma
forma, se X2 = ∅, teremos X = {x1, x2}, obtendo uma bijec¸a˜o entre I2 e X.
Ao repetir este processo indefinidamente, fazemos:
9Em uma construc¸a˜o alternativa, esta sentenc¸a poderia ser usada como definic¸a˜o para o conceito de conjunto finito.
Neste caso, um conjunto infinito seria definido como sendo um conjunto na˜o-finito e a sentenc¸a utilizada na definic¸a˜o
3.1 deveria ser demonstrada como teorema.
21
xn ∈ Xn−1 fixo
Xn = Xn−1 \ {xn}
Se Xn 6= ∅, podemos fazer mais uma passagem. Se Xn = ∅, enta˜o X = {x1, . . . , xn}, assim,
constru´ımos uma func¸a˜o:
f : In → X
k 7→ xk
que e´ claramente bijetiva, pois os elementos xn sa˜o por construc¸a˜o distintos dois a dois. Neste caso,
conseguimos uma contagem para X e o teorema fica demonstrado.
Devemos provar portanto que o processo na˜o pode ser repetido indefinidamente, isto e´, que Xn = ∅
para algum n ∈ N. De fato, se supusermos o contra´rio veremos facilmente que a func¸a˜o:
ϕ : N → X
n 7→ xn
e´ uma injec¸a˜o. Logo, X e´ infinito, contradizendo a hipo´tese.
(⇐) Suponhamos que X seja infinito. Neste caso, deve existir uma bijec¸a˜o g : X → Y , em que Y e´
uma parte pro´pria de X. Enta˜o, A = f−1(Y ) e´ parte pro´pria de In. A func¸a˜o fˆ : A → Y dada pela
restric¸a˜o de f a A e´ uma bijec¸a˜o. Desta forma, podemos construir uma bijec¸a˜o entre In e sua parte
pro´pria A:
h = fˆ−1 ◦ g ◦ f : In → X → Y → A
o que contradiz o lema 3.1.
Teorema 3.2 Se f : In → X e g : Im → X sa˜o contagens, enta˜o n = m.
Demonstrac¸a˜o: Se existem duas bijec¸o˜es f : In → X e g : Im → X com, digamos, m < n,
poder´ıamos construir uma bijec¸a˜o h = f−1 ◦ g : Im → In. Como Im esta´ estritamente contido em In,
isto implicaria que In e´ infinito, contradizendo o lema anterior.
Definic¸a˜o 3.4 Seja X um conjunto finito10. Se X 6= ∅, definimos a cardinalidade de X como o u´nico
nu´mero natural n tal que existe uma bijec¸a˜o f : In → X. Definimos ainda que a cardinalidade de ∅ e´
0. Denotamos a cardinalidade de X por #X.
Como ja´ foi dito, a cardinalidade de um conjunto finito fica bem definida grac¸as aos teoremas 3.1
e 3.2.
Exerc´ıcios
6. Mostre que dois conjuntos finitos possuem a mesma cardinalidade se e somente se existe uma
bijec¸a˜o entre eles.
7. Sejam Y um conjunto finito e X ⊂ Y .
(a) No exerc´ıcio 2, ja´ foi mostrado X e´ finito. Mostre que #X 6 #Y .
(b) O que se pode afirmar se X e´ um subconjunto pro´prio de Y ?
10Observe que decorre diretamente da definic¸a˜o 3.1 que o conjunto vazio e´ trivialmente finito, por um argumento de
vacuidade: como ∅ na˜o possui partes pro´prias, na˜o pode admitir uma bijec¸a˜o com uma parte pro´pria.
22
8. Em prosseguimento aos exerc´ıcios 4 e 5, mostre que:
(a) Se existe uma sobrejec¸a˜o f : X → Y e X e´ finito, enta˜o Y e´ finito e #X > #Y .
(b) Se existe uma injec¸a˜o f : X → Y e Y e´ um conjunto finito, enta˜o X e´ finito e #X 6 #Y .
9. Sejam X e Y dois conjuntos finitos. Mostre que:
(a) X ∪ Y e´ finito e #(X ∪ Y ) = #X +#Y −#(X ∩ Y )
Sugesta˜o: fac¸a primeiro o caso em que X ∩ Y = ∅.
(b) X × Y e´ finito e #(X × Y ) = #X ·#Y
(c) P(X) e´ finito e #(P(X)) = 2#X
(em que denotamos por P(X) o conjunto das partes de X, isto e´, o conjunto de todos os
subconjuntos de X)
(d) Y X e´ finito e #
(
Y X
)
= #Y #X
(em que denotamos por Y X o conjunto das func¸o˜es f : X → Y )
10. Se X e Y sa˜o conjuntos finitos. Podemos afirmar que #(X \ Y ) = #X − #Y ? Sob que
condic¸o˜es esta afirmac¸a˜o e´ verdadeira?
11. Seja X um conjunto infinito e Y ⊂ X finito. Mostre que X \ Y e´ infinito.
3.3 Cardinalidades Infinitas
Ate´ aqui, estudamos as cardinalidades dos conjuntos finitos. Classificamos os conjuntos finitos de
acordo com seu nu´mero de elementos e os separamos assim em classes de cardinalidades, representadas
pelos nu´meros naturais. Desejamos agora imitar essas perguntas para o caso dos conjuntos infinitos.
Faz sentido falar em “nu´mero de elementos”de conjuntos infinitos? Os conjuntos infinitos sa˜o todos
equivalentes? Quantas classes de conjuntos infinitos existem e como podemos representa´-las?
O exemplo mais familiar de conjunto infinito e´ provavelmente o dos nu´meros naturais N. Para ver
que N satisfaza definic¸a˜o de conjunto infinito (definic¸a˜o 3.1), basta tomar, por exemplo, a bijec¸a˜o
n↔ 2n, entre os naturais e os pares, ja´ mencionada. Na verdade, no sentido de cardinalidades, N esta´
na classe dos menores conjuntos infinitos poss´ıveis, como veremos a seguir.
Teorema 3.3 Seja X um conjunto infinito qualquer.
Existe uma func¸a˜o injetiva ϕ : N→ X.
Demonstrac¸a˜o:
Procederemos de forma semelhante a` prova da ida do teorema 3.1.
Fixemos x1 ∈ X e tomemos X1 = X \ {x1}. E´ claro que X1 6= ∅, pois ter´ıamos X = {x1}.
Podemos enta˜o fixar x2 ∈ X1 e repetir o processo, tomando X2 = X1 \ {x2}. Da mesma forma,
X2 6= ∅, pois ter´ıamos X = {x1, x2}. Repetindo o processo indefinidamente, consideramos:
xn ∈ Xn−1 fixo
Xn = Xn−1 \ {xn}
Temos certeza que Xn 6= ∅ ∀n ∈ N, pois caso contra´rio escrever´ıamos X = {x1, . . . , xn}, obtendo
uma contagem para X e X seria finito.
Podemos enta˜o considerar a func¸a˜o:
23
ϕ : N → X
n 7→ xn
Como os elementos xn sa˜o por construc¸a˜o distintos dois a dois, ϕ e´ uma injec¸a˜o.
Corola´rio 3.1 Todo conjunto infinito possui um subconjunto cardinalmente equivalente a N.
Demonstrac¸a˜o: Se X e´ infinito e´ ϕ : N→ X e´ uma injec¸a˜o, basta tomar o conjunto ϕ(N) ⊂ X.
Assim, como todo conjunto infinito conte´m um subconjunto “do mesmo tamanho” que N, na˜o pode
haver conjuntos infinitos “menores” que N. Entretanto, em se tratando de conjuntos infinitos, e´ preciso
o ma´ximo cuidado ao se usar os termos “do mesmo tamanho”, “menor” e “maior”. Para que estes
termos fac¸am sentido, devemos defini-los precisamente, como faremos mais adiante (definic¸a˜o 3.6),
e demonstrar um resultado importante, o Teorema de Cantor-Bernstein-Schro¨der (teorema 3.5, cuja
demonstrac¸a˜o, como veremos, na˜o e´ das mais imediatas). Estes termos na˜o teˆm o mesmo sentido do
caso finito e seu descuidado pode nos levar a contradic¸o˜es, ja´ que um conjunto infinito e´ cardinalmente
equivalente a um subconjunto pro´prio de si mesmo. Por exemplo, se chamamos de P o conjunto
dos nu´meros naturais pares, sabemos que ha´ uma bijec¸a˜o entre P e N, embora P esteja estritamente
contido em N. Analogamente, o fato de N ser um subconjunto pro´prio de R na˜o garante, por si so´, que
R na˜o seja cardinalmente equivalente a N. De forma mais geral, o fato de haver uma injec¸a˜o de N em
qualquer conjunto infinito (o que significa, em um certo sentido, que na˜o existem conjuntos infinitos
“menores” que N) na˜o garante, por si so´, que exista um conjunto infinito estritamente “maior” que N,
isto e´, um conjunto infinito que na˜o seja cardinalmente equivalente a N.
Para mostrar que de fato existem conjuntos infinitos com cardinalidades diferentes (portanto, “maio-
res”) que a de N, observemos os exemplos a seguir. Consideremos o conjunto11 2N, das func¸o˜es
x : N → {0, 1}. Suponhamos que exista uma bijec¸a˜o ρ : N → 2N. Uma func¸a˜o de N em {0, 1} pode
ser pensada como uma sequ¨eˆncia de 0 e 1. Denotando xn = ρ(n), podemos escrever os elementos de
2N em forma de uma “lista” infinita:
x1 = x11 x12 x13 . . .
x2 = x21 x22 x23 . . .
...
xn = xn1 xn2 xn3 . . .
...
em que, para cada n, k ∈ N, o valor xnk e´ 0 ou 1.
Consideremos agora uma sequ¨eˆncia xˆ ∈ 2N constru´ıda da seguinte forma:
xˆk =
{
0 se xkk = 1
1 se xkk = 0
Isto e´, o primeiro valor de xˆ e´ obtido da troca do primeiro valor de x1; o segundo, da troca do
segundo elemento de x2; e assim por diante. Assim, constru´ımos xˆ trocando os valores da diagonal
formada na lista infinita acima. Conseguimos desta maneira xˆ diferente de cada xn em pelo menos um
valor, portanto diferente de todos estes.
Este processo e´ conhecido como argumento da diagonal de Cantor e foi uma das primeiras provas
formais da existeˆncia de conjuntos infinitos com cardinalidades estritamente maiores que a de N. A
11Dado um conjunto X, o conjunto das func¸o˜es X → {0, 1} e´ denotado por {0, 1}X , ou, de forma abreviada, 2X .
24
partir da suposic¸a˜o da existeˆncia de uma bijec¸a˜o ρ entre N e 2N, seja ela qual for, constru´ımos um
elemento de 2N distinto de todos os elementos da imagem de ρ. Portanto, na˜o pode existir tal bijec¸a˜o.
A diagonal de Cantor acrescenta mais um item no elenco de fatos surpreendentes estabelecidos por
Cantos em sua e´poca: nem todos os conjuntos infinitos sa˜o equivalentes, ou em outras palavras, existe
mais de um “tipo”de infinito. De fato, existem pelo menos dois “tipos”diferentes de conjuntos infinitos:
aqueles que sa˜o cardinalmente equivalentes a N e aqueles que na˜o sa˜o. Chamaremos os primeiros de
enumara´veis.
Definic¸a˜o 3.5 Os conjuntos infinitos cardinalmente equivalentes a N sa˜o ditos enumera´veis e os de-
mais, na˜o enumera´veis12. Uma bijec¸a˜o f : N→ X e´ chamada uma enumerac¸a˜o de X.
Assim, o conjunto dos nu´mero naturais pares e´ um exemplo de conjunto enumera´vel, enquanto 2N
e´ na˜o enumera´vel. Os conjuntos enumera´veis sa˜o, no sentido das cardinalidades, os menores conjun-
tos infinitos poss´ıveis. A cardinalidade desta classe de conjuntos e´ representada por ℵ0 na teoria de
cardinalidades infinitas desenvolvida por Cantor.
Outro exemplo importante de conjunto infinito na˜o enumera´vel e´ o conjunto P (N) = {A ⊂ N}
das partes de N. Para verificar este fato, basta mostrar que 2N e P (N) sa˜o cardinalmente equivalentes,
exibindo uma bijec¸a˜o entre estes conjuntos. Existe uma bijec¸a˜o natural entre 2N e P (N), constru´ıda
da seguinte forma: para cada func¸a˜o x : N → {0, 1}, formamos um subconjunto A ⊂ N incluindo os
elementos cuja imagem por x e´ 1 e excluindo aqueles cuja imagem e´ 0, isto e´, A = {n ∈ N | x(n) = 1}.
Constru´ımos assim a seguinte func¸a˜o:
σ : 2N → P (N)
x 7→ {n ∈ N | x(n) = 1}
E´ fa´cil verificar que σ e´ de fato uma bijec¸a˜o. Tomemos func¸o˜es x, y ∈ 2N distintas. Devemos
mostrar que σ(x) e σ(y) sa˜o subconjuntos distintos de N. Pela definic¸a˜o de igualdade de func¸o˜es,
estas devem diferir em pelo um elemento n0 ∈ N. Isto e´, x(n0) 6= y(n0). Digamos que x(n0) = 1
e y(n0) = 0. Neste caso, pela definic¸a˜o da func¸a˜o σ, temos que n0 ∈ σ(x) e n0 6∈ σ(y), portanto
σ(x) 6= σ(y). Segue que σ e´ injetiva. Para mostrar que σ e´ sobrejetiva, dado A ⊂ N qualquer, devemos
exibir xA ∈ 2N tal que σ(xA) = A. Basta tomar a func¸a˜o:
xA : N → {0, 1}
n 7→
{
0 se n 6∈ A
1 se n ∈ A
Como ja´ foi dito, estabelecemos a existeˆncia de dois “tipos”de conjuntos infinitos: os enumera´veis
e os na˜o enumera´veis. No entanto, na˜o podemos ainda afirmar se estes “tipos”consistem, cada um
deles, em algo que possamos chamar de “classes de cardinalidade”, isto e´, classes de conjuntos car-
dinalmente equivalentes entre si. Certamente, os conjuntos enumera´veis sa˜o todos equivalentes entre
si (por definic¸a˜o). Logo, podemos dizer que estes formam uma primeira classe de cardinalidade –
representada por ℵ0. Por outro lado, os conjuntos na˜o enumera´veis sa˜o definidos como aqueles que
na˜o sa˜o equivalentes a N, o que na˜o garante se estes sa˜o todos equivalentes uns aos outros. Desta
forma, sabemos que existem pelo menos duas classes de cardinalidades, mais ainda na˜o sabemos ao
certo quantas classes existem, nem podemos ainda classificar os conjuntos infinitos em classes (como
12Na maioria dos textos sobre conjuntos infinitos, a definic¸a˜o de enumerabilidade e´ diferente da aqui formulada.
Usualmente, define-se que um conjunto e´ enumera´vel se admite uma bijec¸a˜o com os naturais ou se e´ finito. Isto e´,
incluem-se na definic¸a˜o os conjuntos finitos, ale´m daqueles considerados aqui como enumera´veis. Entretanto, neste texto
optamos por restringir as noc¸o˜es de enumerabilidade ou na˜o enumerabilidade apenas a conjuntos infinitos.
25
ja´ fizemos com os finitos). Esta questa˜o sera´ resolvida mais adiante, pelo Teorema de Cantor (teorema
3.4).
Antes disso, estudaremos a seguir algumas propriedades de conjuntos enumera´veis e na˜o enu-
mera´veis. Os exerc´ıcios12 e 13 apresentam uma reinterpretac¸a˜o das propriedades de func¸o˜es injetivas
e sobrejetivas ja´ estudadas no exerc´ıcio 3, no contexto de conjuntos enumera´veis e na˜o enumera´veis.
Isto e´, uma func¸a˜o injetiva leva conjuntos “menores” em “maiores”, e uma func¸a˜o sobrejetiva leva
conjuntos “menores” em “maiores”.
Exerc´ıcios
12. Sejam X e Y conjuntos. Suponha que exista uma injec¸a˜o f : X → Y .
(a) Se Y e´ enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de X?
(b) Se Y e´ na˜o enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de X?
(c) Se X e´ enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de Y ?
(d) Se X e´ na˜o enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de Y ?
13. Sejam X e Y conjuntos. Suponha que exista uma sobrejec¸a˜o f : X → Y .
(a) Se Y e´ enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de X?
(b) Se Y e´ na˜o enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de X?
(c) Se X e´ enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de Y ?
(d) Se X e´ na˜o enumera´vel, o que se pode afirmar sobre a cardinalidade de Y ?
14. (a) Sejam X e Y dois conjuntos enumera´veis. Mostre que X ∪ Y e´ enumera´vel.
(b) Com um argumento de induc¸a˜o, generalize o item anterior para a unia˜o de uma fam´ılia finita
(Xk)16k6n de conjuntos enumera´veis.
(c) Com este mesmo argumento, o resultado pode ser generalizado para a unia˜o de uma fam´ılia
enumera´vel (Xn)n∈N de conjuntos enumera´veis? Justifique sua resposta.
(d) E´ verdade que o conjunto unia˜o X =
⋃
n∈NXn e´ enumera´vel?
15. (a) Sejam X e Y dois conjuntos enumera´veis. Mostre que o produto cartesiano X × Y e´
enumera´vel.
(b) Sejam X e Y dois conjuntos finitos ou enumera´veis. O que se pode afirmar sobre o produto
cartesiano X × Y ?
16. Seja {Xn}n∈N uma fam´ılia enumera´vel de conjuntos enumera´veis. Mostre que o produto´rio
cartesiano infinito
∏
n∈N
Xn e´ na˜o enumera´vel.
17. Seja X um conjunto na˜o enumera´vel e Y ⊂ X enumera´vel. Mostre que X \Y e´ na˜o enumera´vel.
18. Seja X um conjunto infinito e Y ⊂ X finito. Mostre que X \ Y ∼ X. O que este exerc´ıcio
acrescenta em relac¸a˜o ao resultado do exerc´ıcio 11?
19. Suponha que voceˆ seja o gerente do Hotel de Hilbert13, o hotel de infinitos quartos (ver pa´gina
19) e que este esteja lotado.
13Veja o video Hotel de Hilbert, produzido pelo Projeto M3, da UNICAMP:
http://www.youtube.com/watch?v=iAAZkewIPXY.
26
(a) Se chegar ao hotel um oˆnibus com uma quantidade finita {xk | 1 6 k 6 n} de novos
ho´spedes, como voceˆ podera´ aloja´-los?
(b) Se chegar ao hotel um oˆnibus com uma quantidade infinita enumera´vel {xn | n ∈ N} de
novos ho´spedes, como voceˆ podera´ aloja´-los?
(c) Se chegar ao hotel uma quantidade infinita enumera´vel de oˆnibus {yn | n ∈ N}, com uma
quantidade infinita enumera´vel Xn = {xnm | m ∈ N} de novos ho´spedes em cada um, como
voceˆ podera´ alojar todos eles?
20. Determine se as afirmativas abaixo sa˜o verdadeiras ou falsas, justificando suas respostas.
(a) Se X e´ infinito e Y ∼ X, enta˜o Y e´ infinito.
(b) Se X e´ enumera´vel e Y ∼ X, enta˜o Y e´ enumera´vel.
(c) Se X e´ infinito na˜o enumera´vel e Y ∼ X, enta˜o Y e´ infinito na˜o enumera´vel.
(d) Se X e Y sa˜o infinitos, enta˜o X ∼ Y .
(e) Se X e Y sa˜o enumera´veis, enta˜o X ∼ Y .
(f) Se X e Y sa˜o infinitos na˜o enumera´veis, enta˜o X ∼ Y .
21. Mostre que o conjunto dos nu´meros naturais pode ser escrito como unia˜o de uma fam´ılia enu-
mera´vel de subconjuntos enumera´veis disjuntos dois a dois.
22. Seja X um conjunto qualquer. Mostre que P (X) ∼ 2X .
Finalmente, examinaremos a questa˜o se os conjuntos na˜o enumera´veis sa˜o todos cardinalmente
equivalentes entre si, ou, em caso contra´rio, em quantas classes de cardinalidades podem ser divididos.
Para responder esta pergunta, observaremos a relac¸a˜o entre as cardinalidades de um conjunto X e o
conjunto de suas partes P (X). Existe uma injec¸a˜o natural de X em P (X), dada por x ∈ X 7→ {x} ∈
P (X). Isto significa que a cardinalidade de P (X) na˜o pode ser menor que a de X, mas na˜o implica, a
princ´ıpio que esta e´ estritamente maior. E´ poss´ıvel provar que X e P (X) na˜o podem ser cardinalmente
equivalentes, isto e´, a cardinalidade de P (X) e´ de fato estritamente maior que a de X. Este resultado
e´ conhecido como Teorema de Cantor (teorema 3.4, a seguir)14.
Teorema 3.4 (Cantor) Para qualquer conjunto X, na˜o pode existir uma bijec¸a˜o entre X e P (X).
Demonstrac¸a˜o:
Suponhamos que exista tal bijec¸a˜o α : X → P (X). Assim, fazemos corresponder a cada elemento
de x ∈ X um subconjunto Y = α(x) ⊂ X. Consideremos o subconjunto:
A = {x ∈ X | x 6∈ α(x)}
Isto e´, A e´ o conjunto dos elementos de X que na˜o pertencem ao conjunto correspondente α(A).
Enta˜o, existe um elemento a ∈ X tal que α(a) = A. Para este elemento, deve valer uma e somente
uma das hipo´teses: a ∈ A ou a 6∈ A. Mas, pela pro´pria definic¸a˜o de A, a ∈ A acarretaria a 6∈ A. Da
mesma forma, a 6∈ A acarretaria a ∈ A. Portanto, em ambos os casos, chegamos a uma situac¸a˜o de
absurdo.
A partir do teorema 3.4, pode-se concluir que os conjuntos enumera´veis podem ser divididos em
infinitas classes de cardinalidade. De fato, a cardinalidade de N e´ estritamente menor que a de P (N),
(que e´ igual a` de 2N e a` de R). Esta, por sua vez, e´ estritamente menor que a de P (P (N)) (ou
22
N
), e assim por diante. Constru´ımos assim uma sequ¨eˆncia infinita de classes de cardinalidades na˜o
enumera´veis cada vez maiores. Estas classes sa˜o denotadas por ℵ1, ℵ2, . . ., ℵn, com n ∈ N.
14E sua demonstrac¸a˜o certamente esta´ entre as mais elegantemente simples de toda a matema´tica.
27
Finitos Infinitos
Enumera´veis Na˜o Enumera´veis
Classes de
Cardinalidade
0 1 2 3 . . . ℵ0 ℵ1 ℵ2 ℵ3 . . .
Representantes ∅ I1 I2 I3 . . . N R, 2N 22
N
22
2N
. . .
Tabela 2: Classes de cardinalidade de conjuntos finitos e infinitos.
3.4 Comparac¸a˜o de Conjuntos Infinitos
A definic¸a˜o a seguir estabelece s´ımbolos para a comparac¸a˜o de conjuntos quaisquer (em particular,
infinitos) do ponto de vista da cardinalidade.
Definic¸a˜o 3.6 Sejam X e Y dois conjuntos.
(i) Dizemos que X 4 Y (ou X e´ cardinalmente menor ou equivalente a Y ) se existe uma injec¸a˜o
f : X → Y . Se X 4 Y e X � Y (se existe uma injec¸a˜o, mas na˜o existe uma bijec¸a˜o de X em
Y ), dizemos que X ≺ Y (ou X e´ cardinalmente estritamente menor a Y ).
(ii) Dizemos que X < Y (ou X e´ cardinalmente maior ou equivalente que Y ) se existe uma
sobrejec¸a˜o f : X → Y . Se X < Y e X � Y (se existe uma sobrejec¸a˜o, mas na˜o existe uma
bijec¸a˜o de X em Y ), dizemos que X � Y (ou X e´ cardinalmente estritamente maior que Y ).
Exerc´ıcio
23. Sejam X e Y dois conjuntos. Mostre que:
(a) X 4 Y ⇐⇒ Y < X
(b) X ≺ Y ⇐⇒ Y � X
Decorre diretamente da definic¸a˜o 3.6 que, para quaisquer conjuntos X e Y , vale:
X ⊂ Y ⇒ X 4 Y
A propriedade fundamental que diferencia conjuntos infinitos de conjuntos finitos na sua pro´pria
definic¸a˜o e´ o fato de que um conjunto infinito pode ser cardinalmente equivalente a uma parte pro´pria.
Isto e´, para conjuntos finitos, vale:
X Y ⇒ X ≺ Y
Enquanto que, no caso de conjuntos infinitos, podemos ter:
X Y ∧ X ∼ Y
Assim, podemos afirmar apenas que:
X Y ⇒ X 4 Y
Ale´m disso, para conjuntos finitos, a definic¸a˜o de cardinalidade (e os teoremas que garantem que
este conceito esta´ bem definido) estabelece que os s´ımbolos para comparac¸a˜o de conjuntos do ponto
de vista das cardinalidades sa˜o totalmente determinados pela ordem dos nu´meros naturais, isto e´:
X ≺ Y ⇐⇒ #X < #Y X 4 Y ⇐⇒ #X 6 #Y
28
Exerc´ıcio
24. (a) Mostre que se X e Y sa˜o finitos e X ∼ Y , enta˜o f : X → Y e´ injetiva se e somente se e´
sobrejetiva.
(b) O resultado do item anterior e´ va´lido tambe´m para conjuntos infinitos? Justifique sua
resposta.
Ainda no caso de conjuntosfinitos, de forma geral e´ razoavelmente fa´cil comparar cardinalidades.
De fato, suponha que X e Y sa˜o finitos e que exista uma injec¸a˜o f : X → Y que na˜o seja sobrejetiva.
Enta˜o, temos que f(X) ∼ X (pois f e´ injetiva) e f(X) Y (pois f na˜o e´ sobrejetiva). Como X e
Y sa˜o finitos, podemos concluir que X ≺ Y . Em particular, na˜o pode haver uma sobrejec¸a˜o nem uma
bijec¸a˜o de X em Y . Analogamente, se X e Y sa˜o finitos e existe uma sobrejec¸a˜o g : X → Y que na˜o
seja injetiva, enta˜o podemos ter certeza de que X � Y , logo na˜o pode haver uma injec¸a˜o nem uma
bijec¸a˜o de X em Y .
Suponha agora que X e Y sejam conjuntos finitos, que existam uma injec¸a˜o f : X → Y e uma
sobrejec¸a˜o g : X → Y . Podemos concluir que tanto f quanto g sa˜o na verdade bijetivas. De fato,
se f na˜o fosse sobrejetiva g na˜o poderia existir e se f na˜o fosse injetiva f na˜o poderia existir. Segue
que X ∼ Y . Observe que podemos tambe´m concluir que X ∼ Y argumentando com base nas
cardinalidades de X e Y .
Em resumo, para conjuntos finitos, valem as seguintes propriedades:
• Se existe f : X → Y injetiva e na˜o sobrejetiva, enta˜o na˜o pode haver sobrejec¸a˜o de X em Y e
X ≺ Y .
• Se existe g : X → Y sobrejetiva e na˜o injetiva, enta˜o na˜o pode haver injec¸a˜o de X em Y e
X � Y .
• Se existem f : X → Y injetiva e g : X → Y sobrejetiva, enta˜o f e g sa˜o bijec¸o˜es.
E´ fa´cil ver com contra-exemplos que nenhuma das propriedades acima e´ va´lida para conjuntos
infinitos. A terceira propriedade nos leva a` seguinte conclusa˜o:
X 4 Y, Y 4 X ⇒ X ∼ Y
Esta propriedade no entanto e´ va´lida tambe´m para conjuntos infinitos, pore´m na˜o e´ ta˜o simples
demonstra´-la no caso geral, isto e´ sem a hipo´tese da finitude dos conjuntos. A prova geral deste
resultado, conhecido como Teorema de Cantor-Bernstein-Schro¨der, e´ baseada na seguinte ide´ia.
Se X 4 Y e Y 4 X, enta˜o existem injec¸o˜es f : X → Y e g : Y → X. Desejamos provar que
existe uma bijec¸a˜o h : X → Y . A hipo´tese nos fornece dois “caminhos naturais” para ir de X a Y : f
e g−1. Observe na˜o podemos garantir que g e´ invers´ıvel, assim usamos o s´ımbolo g−1 para denotar a
relac¸a˜o inversa de g (que pode na˜o ser uma func¸a˜o). Como na˜o sabemos se g e´ sobrejetiva, g−1 pode
na˜o estar definida em todo o conjunto X. Mas, como g e´ injetiva, enta˜o no subconjunto de X em que
g−1 estiver definida, g−1 sera´ uma func¸a˜o injetiva.
Assim, seria o´timo se pude´ssemos aproveitar os dois “caminhos naturais” f e g−1 para construir a
bijec¸a˜o desejada, isto e´, se pude´ssemos particionar o dom´ınio X em dois subconjuntos, X0 e X \X0
tomando o caminho f em um deles e o caminho g−1 no outro, de tal forma que h : X → Y definida
por:
h(x) =
{
f(x) se x ∈ X0
g−1(x) se x ∈ X0{
29
fosse uma bijec¸a˜o. Observe que a injetividade de h segue diretamente da injetividade de f e de g.
Logo, falta garantir a sobrejetividade de h, isto e´, que h “cubra” todo Y . Como h e´ definida como
f em uma parte do dom´ınio e como g−1 na parte complementar, a unia˜o das imagens destas duas
partes deve ser todo Y , isto e´, f(X0) ∪ g−1(X0{) = Y . Ale´m disso, estas duas imagens na˜o devem se
interceptar, pois neste caso perder´ıamos a injetividade de h. Assim, os conjuntos f(X0) e g
−1(X0{)
devem ser complementares em Y , isto e´:
f(X0) = g
−1(X0{)
{
Grac¸as a` injetividade de g (porque?), a expressa˜o acima pode ser reescrita da seguinte forma:
X0 = g(f(X0)
{)
{
Assim, a ide´ia principal da demonstrac¸a˜o consiste em encontrar um subconjunto X0 ⊂ X satisfa-
zendo a condic¸a˜o acima, o que permitira´ a construc¸a˜o de uma bijec¸a˜o entre X e Y .
Consideremos agora a seguinte func¸a˜o:
ϕ : P (X) → P (X)
A 7→ g(f(A){){
Desta forma, a propriedade que o conjunto X0 deve ter pode ser escrita como ϕ(X0) = X0. Isto
e´, devemos procurar por um conjunto que seja ponto fixo15 da func¸a˜o ϕ acima. Para obter este ponto
fixo, iteraremos a func¸a˜o ϕ, como vemos no lema abaixo.
Lema 3.2 SejaX e Y dois conjuntos tais que existem injec¸o˜es f : X → Y e g : Y → X. Consideremos
a func¸a˜o:
ϕ : P (X) → P (X)
A 7→ g(f(A){){
Enta˜o, ∃X0 ⊂ X tal que ϕ(X0) = X0.
Demonstrac¸a˜o: Consideremos a sequ¨eˆncia de conjuntos (Xn)n∈N ⊂ P (X) definida recursivamente
por:
A1 = X
An = ϕ(An−1) n > 2
Isto e´: An = ϕ
n(X), em que o s´ımbolo de poteˆncia esta´ associado a` operac¸a˜o de composic¸a˜o, isto
e´ ϕn(X) representa a composta de ϕ com si mesma n vezes. Consideremos o conjunto:
15Argumentos de ponto fixo sa˜o muito comuns em Ana´lise. Aqui, procuramos um ponto fixo de uma func¸a˜o de
conjuntos, mas se busca´ssemos um ponto fixo de uma func¸a˜o real (cont´ınua) ϕ : R→ R, escolher´ıamos um ponto inicial
a0 ∈ R e iterar´ıamos da seguinte forma:
a1 = ϕ(a0)
an = ϕ(an−1) ∀n > 2
Caso a sequ¨eˆncia (an)n∈N convirja, podemos tomar a = lim an. Sendo ϕ cont´ınua, temos que:
a = lim an = lim an = limϕ(an−1) = ϕ(lim an−1) = ϕ(a)
Logo, a e´ o ponto fixo procurado.
30
X0 =
+∞⋂
n=1
An
Como f e´ injetiva, temos que:
f(X0) = f
(
+∞⋂
n=1
An
)
=
+∞⋂
n=1
f (An)
Logo:
ϕ(X0) = g(f(X0)
{)
{
= g
f (+∞⋂
n=1
An
){{ = g
(+∞⋂
n=1
f(An)
){{ = g(⋃
n∈N
f(An)
{
){
=
(⋃
n∈N
g
(
f(An)
{
)){
=
+∞⋂
n=1
g
(
f(An)
{
){
=
+∞⋂
n=1
ϕ(An) =
+∞⋂
n=1
An+1 =
+∞⋂
n=2
An
Mas como A1 = X, temos que
⋂+∞
n=2An ⊂ A1, portanto
⋂+∞
n=1An = A1 ∩
(⋂+∞
n=2An
)
=
⋂+∞
n=2An.
Segue que:
ϕ(X0) =
+∞⋂
n=1
An = X0
Teorema 3.5 (Cantor-Bernstein-Schro¨der)
X 4 Y, Y 4 X ⇒ X ∼ Y
Demonstrac¸a˜o: Como X 4 Y e Y 4 X, existem injec¸o˜es f : X → Y e g : Y → X. Enta˜o, a func¸a˜o
ϕ definida no lema anterior admite um ponto fixo X0. Da definic¸a˜o de ϕ segue que g(f(X0)
{) = X0
{.
Como g e´ injetiva, g−1 : X0{ → g(f(X0){) e´ uma bijec¸a˜o. Como f e´ injetiva, f : X0 → f(X0) tambe´m
e´ uma bijec¸a˜o. Logo a func¸a˜o h : X → Y definida por:
h(x) =
{
f(x) se x ∈ X0
g−1(x) se x ∈ X0{
e´ uma bijec¸a˜o.
31
4 Nu´meros Inteiros e Racionais
4.1 Estruturas Alge´bricas
Antes de dar in´ıcio a`s construc¸o˜es de Z (seja por um sistema de axiomas ou por um classes de equi-
valeˆncia) e de Q, relembraremos a linguagem ba´sica de estruturas alge´bricas, o que podera´ abreviar as
construc¸o˜es e torna´-las mais compreens´ıveis.
Definic¸a˜o 4.1 Um anel e´ um terno (A,+, ·), em que A e´ um conjunto munido de duas operac¸o˜es
bina´rias:
+ : A× A → A
(a, b) 7→ a+ b
· : A× A → A
(a, b) 7→ a · b
que satisfazem a`s seguintes propriedades.
A1. Associatividade da Soma
∀ a, b, c ∈ A : (a+ b) + c = a+ (b+ c)
A2. Comutatividade da Soma
∀ a, b ∈ A : a+ b = b+ a
A3. Elemento Neutro da Soma
∃ 0 ∈ A tal que a+ 0 = a ∀ a ∈ A
A4. Elemento Inverso da Soma
∀ a ∈ A ∃ − a ∈ A tal que a+ (−a) = 0
A5. Associatividade do Produto
∀ a, b, c ∈ A : (a · b) · c = a · (b · c)
A6. Distributividade
∀ a, b, c ∈ A : a · (b+ c) = (a · b) + (a · c) e (a+ b) · c = (a · c) + (b · c)
Definic¸a˜o 4.2 Um anel (A,+, ·) e´ dito um anel comutativo se vale a propriedade:
A7. Comutatividade do Produto
∀ a, b ∈ A : a · b = b · a
Um anel (A,+, ·) e´ dito um anel com unidade se vale a propriedade:
A8. Elemento Neutro do Produto
∃ 1 ∈ A, 1 6= 0, tal que a · 1 = 1 · a = a ∀ a ∈ A
Um anel (A,+, ·) e´ dito um anel sem divisores de zero se vale a propriedade:
A9. Cancelatividade do Produto
∀ a, b, c ∈ A, a 6= 0 : a · b = a · c⇒ b = c
Definic¸a˜o 4.3 Um dom´ınio de integridade e´ um anel comutativo, com unidade e sem divisores de zero.
Definic¸a˜o 4.4 Um corpo e´ um anel comutativo, com unidade em que vale a seguinte propriedade.
A10. Elemento Inverso do Produto
∀ a ∈ A ∃ a′ ∈ A tal que a · a′ = a′ · a = 1
32
Exerc´ıcios
1. Seja (A,+, ·) um anel. Mostre que 0 · a = a · 0 = 0 ∀ a ∈ A.
2. Seja (A,+, ·) um anel.
(a) Mostre que o elemento

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