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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL JULIANA QUEIROZ SILVESTRE A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO ESTADO FRANCA 2008 JULIANA QUEIROZ SILVESTRE A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO ESTADO Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas FRANCA 2008 JULIANA QUEIROZ SILVESTRE A LEGITIMIDADE DO DIREITO DE PUNIR EM DECORRÊNCIA DO NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS PELO ESTADO Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. BANCA EXAMINADORA Presidente: _________________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas, UNESP 1º Examinador: ____________________________________________________________ Prof(a). Dr(a). Jete Jane Fiorati 2º Examinador: ___________________________________________________________ Prof. Dr. Euclides Celso Berardo Franca, _____ de ____________________ de 2008. Aos meus pais Antonio e Carmelina (in memorian), Aos meus irmãos Mara, Fernando, Ricardo e Flávio, À minha tia Cida, Minha gratidão, meu respeito e meu amor. AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. José Carlos Garcia de Freitas, estimado filósofo, professor e amigo, pela orientação neste trabalho e pela humildade em partilhar sua imensa sabedoria. À Laura e Pádua pela valiosa cooperação, e aos demais funcionários da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da UNESP, que qualificam o serviço público e o ensino superior. À minha amiga Érika por ter compartilhado todos os passos de desenvolvimento deste trabalho. Ao meu namorado, companheiro e amigo Rodrigo pelo carinho, estímulo, compreensão e paciência. O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever. Jean-Jacques Rousseau SILVESTRE, Juliana Queiroz. A legitimidade do direito de punir em decorrência do não cumprimento das obrigações constitucionais pelo Estado. 2008. 134f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2008. RESUMO Uma das mais destacadas funções do Estado é o exercício do controle social. Para tanto, o jus puniendi, entendido como uma parcela do poder do Estado atua como instrumento de tal controle e constitui um dos pilares de equilíbrio do Estado Democrático de Direito. Isto porque o Direito Penal pode ser considerado como o Direito a atuar em última instância nas relações sociais; ou seja, antes de punir qualquer infrator do Ordenamento Jurídico, o Estado, por outros meios, jurídicos e políticos, deve zelar pela prevenção de delitos. Em termos jurídicos, o Estado, como pessoa jurídica, também está submetido ao princípio da legalidade (art. 5°, inciso II, CF), em que apenas a norma legal – princípios e regras - é capaz de exigir determinado comportamento de pessoas, que ficam adstritas à sua observância e cumprimento. Uma vez adotado o modelo Democrático de Direito (CF, art. 1°, caput), nosso Estado, além de respeitar a legalidade - o “breque” de seu poderio - deve atuar legitimamente na esfera social, nos moldes estabelecidos pela Constituição Federal. Assim, o artigo 3° do Texto Constitucional estabelece quais os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento social; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades e; promover o bem de todos, sem quaisquer preconceitos. Dessa forma, no plano político, o Estado, para atingir seus objetivos, deve cumprir as obrigações constitucionais que o Poder Constituinte dispôs no Capítulo I do Título II, intitulado “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” - lembrando que os deveres estatais neste não se esgotam, permanecendo difundidos em todo Texto Constitucional. Estas obrigações ou deveres constituem uma teia, sendo cada intersecção desta correspondente a um princípio constitucional, que amarra e vincula todas as outras normas à sua observância. Podemos dizer, destarte, que o fundamento dos deveres constitucionais se assenta nos princípios que, por sua vez, encontram-se no mais alto patamar do conjunto das normas jurídicas. Os princípios constitucionais têm o condão de ditar quais as “regras do jogo”, ou seja, veicular o modus operandi do Estado Democrático. Portanto, os princípios são normas jurídicas, aptos a produzirem efeitos (aplicação imediata) na esfera social, além de ocuparem a mais alta hierarquia das leis. O problema das obrigações constitucionais – normas programáticas - repousa na efetividade de seus comandos o que, conseqüentemente, lança uma reflexão sobre a questão da legitimidade do poder estatal. Satisfeitas as obrigações constitucionais, ou mesmo, empenhando-se para a realização das mesmas, o Estado legitima o exercício de seu poder e, conseqüentemente, também legitima e torna justa a aplicação do jus puniendi a qualquer dos indivíduos. A legitimidade, neste caso, é questionada acerca do exercício de poder do Estado. Não se discute a questão da legitimidade do poder do Estado – no caso, do jus puniendi – em sua origem, o que é pacífico; mas esta legitimidade pode se perder em decorrência das práticas ou omissões do Estado que violam o conteúdo material e valorativo da Constituição. Destarte, o poder legítimo, neste caso, é aquele exercido de forma justa, no compasso dos princípios e diretrizes constitucionais e nos moldes das obrigações constitucionais. Palavras-chave: legitimidade. direito de punir. obrigações constitucionais. Estado. Democracia. SILVESTRE, Juliana Queiroz. La legitimità del Diritto di punire in decorrenzia del non òbblighi costituzionali per lo Stato. 2008.134 foglie. Dissertazione (Maestria in Diritto) - Facoltà di Storia, Diritto ed Servizio Sociale, Università Statale Paulista "Julio de Mesquita Filho", Franca, 2008. RIASSUNTO Una delle più distacata funzioni dello stato è il esercizio del controlo sociale. Per tanto, il jus puniendi, intentuto come una particella del potere dello stato attua come strumento di tale controlo ed costitue uno dei pestari dell’equilibrio dello Stato Democràtico di Diritto. Questo perchè il Diritto Penale poteessere considerato come il diritto che fà attuare in ùltima istanza nelle relazioni; o sarai, dianzi di punire qualùnque trasgressore del Ordinamento Giuridico; lo stato, per l’altri mezzi, giuridici ed politici, debbe zelare per la prevenzione di deliti. In conclusione giurdici, lo stato, come persona giuridica, anche questo sottomesso al principio della legalità (art.5, inciso II, CF) nella quale appena la norma legale – principi ed regre è capace da esigere determinata condota di persone che restano ristretto alla sua osservancia e complimento. Una vece adottato il modelo Democratico di Diritto (CF, art 1º - caput) nostro stato, oltre da rispettare la legalità – il “freno” dello suo dominio – debbe attuare legitimamente nella sfera sociale, nei tagli stabiliti per la Costituizione Federale. Così, il articolo 3º del testo costituzionale stabili quali i oggetivi fondomentali della Repubblica Federativa del Brasile, a quali sono costituire una società libera, giusta ed solidaria; garantire il svolgimento sociale; sradicare la povertà e la marginalizazione, ridotto le desiguaglianza e promovere il bene di tutti, senza qualùnque preconcetti. Codesta forma, nel piano politico, lo stato, per attingere suoi oggetivi debbe soddisfare le obbligazioni costituzionali che il potere costituinte dispone nel Capìtolo I del Tìtolo II, entitolato “Dei Diritti ed Doveri Individuali ed Coletivi” – ricordando che i debberi statali in questo non si esaureno, permanecendo diffondite in tutto il testo costituzionale. Queste obbligazioni o debberi constitueno una struttura, sendo ogni intersezione di questa corrispondente a uno principi constituzionale che legga ed vincola tutte l’oltre norme alla sua osservanza. Potteremo dire, così che il fondamento dei debberi constituzionali si fà sedere nei principi che, per la sua vece, si incontrano nel più alto pianerottolo del congiunto delle norme giuridiche. I principi costituzionali hanno il privilegio di attare quali le “regre del gioco”, o debbe essere veicolare il modus operandi dello Stato Democratico. Pertanto, i principi sono norme giuridiche capaci a produrreno efetti (applicazione immediata) nella sfera sociale, oltre occupareno la più alta gerarchia delle leggi. Il problema delle obbligazioni costituzionali – norme programatiche – ripousa nella efetività di suoi comandi o che, consequentemente, getta una reflessione sopra la questione di legitimità del potere statale. Soddisfate le obbligazioni costituzionali, o medesimo impegnandosi per la effetuazione delle stessa cose, il stato legìttimo il esercizio dello suo potere e consequentemente, anche legittima e volge l’applicazioni del jus puniendi a qualùnque degl’individui. La legitimità in questo caso, è questionato intorno dell”esercizio del potere dello stato. Non si discutere la questione della legitimità del potere – nel caso, del jus puniendi – in sua origine, che è pacìfico; ma questa legitimità pote si perdere in decorrenza delle pratiche o ommessioni dello stato violano il contenuto materiale ed valorativo della costituzione. Così, il potere legittimo , in questo caso, è quello esercizio di forma giusta, nel compasso dei principi e direttrice constituzionali e nei moldi delle obbligazioni costitucionali. Parole chiave: Legimità. Diritto di punire. Obbligazioni constituzionali. Stato. Democrazia. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................11 CAPÍTULO 1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 1.1 Origem e formação do Estado......................................................................................... 15 1.2 Evolução histórica............................................................................................................ 17 1.3 Conceito.............................................................................................................................19 1.4 Finalidade......................................................................................................................... 20 1.5 O Estado e o poder........................................................................................................... 22 1.6 Origens do Estado Democrático..................................................................................... 26 1.7 Estado de Direito e Estado Constitucional.................................................................... 29 1.8 Estado Democrático de Direito....................................................................................... 31 1.9 Idéia atual de Estado Democrático de Direito............................................................... 32 CAPÍTULO 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 2.1 Os princípios fundamentais – conceitos......................................................................... 34 2.2 Normatividade e evolução dos princípios...................................................................... 37 2.3 Princípios, normas e regras............................................................................................. 38 2.4 Importância dos princípios e sua superioridade em relação às regras ...................... 41 2.5 Natureza e características dos princípios constitucionais ........................................... 43 2.6 Tipologia dos princípios .................................................................................................. 46 2.7 Princípios na Constituição de 1988 ................................................................................ 47 2.8 Interpretação dos princípios constitucionais ................................................................ 50 2.9 O Direito Natural e os princípios constitucionais ........................................................ 52 2.10 A atuação prática dos princípios constitucionais ....................................................... 54 CAPÍTULO 3 OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS 3.1 Considerações preliminares ........................................................................................... 58 3.2 Conceito e fundamentos .................................................................................................. 59 3.3 Antecedentes dos deveres fundamentais ....................................................................... 61 3.4 Deveres nas Constituições brasileiras ........................................................................... 64 3.5 Deveres na Constituição de 1988 ................................................................................... 65 3.6 Tipologia, titulares e destinatários das obrigações constitucionais............................. 67 3.7 Relação entre obrigações constitucionais e direitos fundamentais.............................. 68 3.8 Relação entre obrigações constitucionais e princípios constitucionais....................... 69 3.9 Eficácia e aplicabilidade dos deveres fundamentais..................................................... 70 CAPÍTULO 4 O DIREITO DE PUNIR DO ESTADO 4.1 A vida humana em sociedade: origens do delito e da pena ......................................... 72 4.2 Evolução do jus puniendi e do Estado ........................................................................... 73 4.2.1 Período da vingança privada ......................................................................................... 74 4.2.2 Período da vingança divina ........................................................................................... 75 4.2.3 Período da vingança pública.......................................................................................... 76 4.2.4 Período Humanitário ..................................................................................................... 79 4.2.5 Período Criminológico...................................................................................................81 4.2.6 Período Contemporâneo ................................................................................................ 82 4.3 Fundamentos do Direito de Punir ................................................................................. 84 4.4 O Direito de punir no Estado Democrático de Direito ................................................ 88 CAPÍTULO 5 LEGITIMIDADE 5.1 Antecedentes históricos ................................................................................................... 93 5.2 Conceitos de legitimidade ............................................................................................... 97 5.3 Legitimidade e legalidade ............................................................................................. 101 5.4 Teoria da racionalidade progressiva de Max Weber ................................................. 105 5.4.1 Dominação legal-racional.............................................................................................106 5.4.2 Dominação tradicional..................................................................................................107 5.4.3 Dominação carismática.................................................................................................107 5.5 Legitimação pelo procedimento de Niklas Lumhann ................................................ 108 5.6 Legitimidade em Habermas ......................................................................................... 111 5.7 Legitimidade e Constituição Dirigente para Canotilho ............................................. 113 5.8 Legitimidade centrífuga.................................................................................................116 5.9 Ética e Legitimidade ..................................................................................................... 119 5.10 Legitimidade e Justiça .................................................................................................121 5.11 Legitimidade e Direito de Punir .................................................................................124 CONCLUSÃO.......................................................................................................................128 REFERÊNCIAS....................................................................................................................130 INTRODUÇÃO A questão do primado da Constituição como norma fundamental do Estado, garantindo aos indivíduos direitos fundamentais, tem suas raízes no século XVIII e XIX, junto à consolidação dos regimes liberais nos Estados Unidos e na Europa pós- revolucionários. A idéia inicial foi desafiar os poderes dos monarcas, limitando-os, na medida em que estes foram reduzidos à categoria de órgão do Estado; em contrapartida, sobreveio a soberania popular que concedeu importância ao povo, agora figurando como um dos elementos do Estado. Embora liberais, as Constituições não eram, ainda, democráticas. O Estado Democrático moderno nasceu, destarte, das lutas contra o absolutismo, sobretudo através do reconhecimento dos direitos naturais da pessoa humana - daí a grande influência jusnaturalista neste período. Declarou-se, pois, que os homens nascem, são iguais perante a lei e permanecem livres. Como finalidade de uma sociedade política, aponta-se a conservação de direitos naturais e indeclináveis aos homens, quais sejam: a liberdade, a propriedade e a segurança. Todos os cidadãos passaram a ter o direito de participar, direta ou indiretamente, da formação da vontade geral. O Estado, neste sentido, submetendo-se ao Direito, tornou-se, também, sujeito de direitos e deveres. No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a elencar os direitos sociais ou de segunda geração, tendo como fonte inspiradora a Constituição da Alemanha de Weimar de 1919. Passados alguns anos de autoritarismo e ditadura, sobreveio a Constituição Federal de 1988, prolixa e analítica, não hesitando ao prever todos os direitos e deveres individuais e coletivos, além de estabelecer metas a serem alcançadas pelo Governo. Neste estágio, a Constituição passou a ser um instrumento de governo, uma vez que confere legitimidade ao poder estatal, limitando-o e submetendo-o à observância e cumprimento dos comandos constitucionais. Assim, a atual Constituição do Brasil, ao subdividir o Título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), nomeou o Capítulo I: Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Cabe ao Estado, portanto, o dever constitucional de respeitar tais direitos. Porém, não há, neste Título, qualquer dever discriminado, entendendo grande parte dos doutrinadores que se encontram esparsos e implícitos na totalidade do Texto Constitucional. A esses deveres inseridos, pois, no texto constitucional, alguns doutrinadores chamam “deveres fundamentais” e, outros, de “obrigações constitucionais”. Podemos dizer que as obrigações constitucionais constituem uma categoria especial de deveres jurídicos, em que o Estado, respeitando a dignidade humana (um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, segundo o artigo 1°, III), atua com as finalidades primordiais de tutela da Ordem Pública e de realização do bem comum. O fundamento de validade das obrigações constitucionais se encontra nos princípios constitucionais, petrificados pela Constituição Federal (art. 60, § 4°, IV), jamais podendo ser suprimidos. Disto decorre que o não cumprimento de quaisquer das obrigações constitucionais implica na violação de um princípio constitucional por parte do Estado. Surge para o Estado, destarte, o dever como imperativo ético de cumpri-las, providenciando as condições materiais de aplicabilidade. Somente através de leis lato sensu, devidamente elaboradas de acordo com processo legislativo previsto pela Constituição, podem ser criadas obrigações para o indivíduo e para o Estado, pois aquelas são expressão da vontade geral do povo. A Constituição Federal, uma vez positivada, é a força motriz do Estado, contendo todas as suas diretrizes políticas, econômicas e sociais. A “arte de governar” deve ser inspirada em princípios éticos, mas, sobretudo, não pode o Estado abandonar as regras racionais que lhe são próprias, colocando em risco o princípio da segurança jurídica. Ao conceder esses direitos aos indivíduos, a Constituição confere deveres aos Poderes Públicos, compondo, pois, uma relação obrigacional; o Estado (sujeito passivo) se propôs a fazer ou não fazer qualquer coisa (viabilizar o acesso à educação, trabalho, moradia, dentre outros) em favor da população (sujeito ativo). O inadimplemento do Estado implicaria na reparação do prejuízo que causara aos indivíduos da sociedade. Qual seria a responsabilidade do Estado inadimplente? O Estado brasileiro apresenta atualmente problemas de adequação das normas constitucionais às reais necessidades de seus cidadãos, gerando a sensação de ineficácia do texto constitucional. Ocorre que os textos constitucionais devem ser a expressão da vontade e dos ideais do povo, revelando a identidade constitucional destes sujeitos e devendo, portanto, ter sua participação direta quando de sua elaboração. Tal fato repercute gravemente em questões como legitimidade do poder, sua representatividade e eficácia da norma constitucional. A observação das realidades sociais, culturais e econômicas denuncia as condições de sobrevivência oferecidas pelo Estado aos cidadãos. Neste caso, “cidadão” não seria o termo correto, mas sim, súditos, desprovidos, parcialmente, de liberdade ede direitos. Um Estado que primasse pelo cumprimento das obrigações constitucionais proporcionaria a todos, igualmente, condições para o pleno desenvolvimento social, cultural e espiritual. Assim, o poder de punição do Estado surge como uma das mais destacadas funções do Direito, qual seja, o exercício do controle social e a defesa da sociedade. No caso de um Estado Democrático de Direito, pressupõe-se um controle limitado à estrita observância à legalidade constitucional, voltado à preservação da sociedade. A segurança é, pois, um dos princípios constitucionais presentes no caput do artigo 5° do Texto Constitucional, ao lado da vida, liberdade, igualdade e propriedade. São princípios que, além de invioláveis, devem ser garantidos pelo Estado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País. É assim que o jus puniendi, no entanto, só pode ser exercido se respeitadas certas limitações constitucionais, legais e dogmáticas dentro do Estado Democrático de Direito, tais como os princípios da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade da lei mais severa, dentre outros. Este direito de punir, no entanto, gera uma obrigação para o Estado que, diante de uma infração de natureza criminal, tem um dever de punir em nome da preservação da sociedade. O dever de punir encontra seu fundamento na própria Constituição, que submete todos (princípio da isonomia), inclusive os Poderes Públicos, à observância da lei (princípio da legalidade). Assim, o fato de os indivíduos possuírem direitos fundamentais gera um dever para o Estado de torná-los concretos. Numa visão utilitarista, como a Constituição resguarda os direitos individuais (que exprime uma ética de intenção), cabe ao Estado a voluntariedade de materializá-los (ética de ação), sob “pena” de o Estado perder o direito de exigir a contraprestação social. Assim, o Estado só terá o poder – de fato - de punir quando cumprir suas obrigações constitucionais. Embora um tanto radical esta visão, esbanja precisão quanto à razão pela qual o Estado deve cumprir seus deveres. Finalmente, a análise destes conceitos e institutos permitirá maior segurança para a elaboração de uma conclusão crítica sobre o tema. Para que o direito de punir do Estado seja legítimo, deve ser exercido de maneira justa. Um real Estado Democrático de Direito não é compatível com um direito de punir apenas fundado na legalidade. Ele deve ser legal e legítimo, sob o risco de esconder face autoritária do mesmo. O “problema” das obrigações constitucionais – normas programáticas de eficácia limitada - é que não possuem conteúdo totalmente concretizado na Constituição, carecendo de legislação infraconstitucional, no sentido de não serem diretamente aplicáveis. É o que demonstra a realidade social, cindida por contrastes desafiadores dos princípios fundamentais que deveriam orientá-la. Dessa forma, a questão da legitimidade será analisada não sob o aspecto jurídico, mas sob a ótica sócio-política, como pretendem algumas vertentes sociológicas, especialmente as propostas por Max Weber, Niklas Luhmann, Habermas, além de Canotilho e outros mencionados. 15 CAPÍTULO 1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 1.1. Origem e formação do Estado O homem, consideradas as suas qualidades sui generis, sejam a racionalidade e a produção cultural, que lhe proporcionam a capacidade de transformar o meio ambiente de acordo com seus interesses, é um ser fadado ao relacionamento. A idéia de associação está diretamente ligada a um interesse, ou à consecução de um fim que apenas a cooperação entre homens é capaz de viabilizar. Um animal selvagem, por exemplo, desprovido daquelas, não possui alternativas, senão a de se adaptar ao meio, rendendo-se às condições que este lhe impõe. Como bem observou Giorgio Del Vecchio1: A sociedade é um fato natural determinado pela necessidade que o homem tem de viver com os seus semelhantes. O homem, para viver isolado, fora da sociedade, deveria ser (consoante escreveu Aristóteles) – um bruto ou um Deus – ou seja: qualquer coisa menor ou qualquer coisa maior que o homem. Mas, dada a sua natureza, outro remédio não tem senão o de se associar, de pertencer a uma sociedade. Destarte, ao se observar os tempos remotos – e nem há a necessidade de se voltar tanto na História – não se pode afastar a existência de uma força centrípeta que diminui e reforça, paulatinamente, os laços existentes entre os seres humanos. Nos primórdios dos agrupamentos humanos não havia, ainda, qualquer tipo de organização e muito distantes estavam do que se conhece por civilização. Porém, a experiência do convívio social se encarregou em despertar e promover a evolução de tais agrupamentos que, cada vez mais organizados, culminaria, num longo período de aprendizado dos homens, no que conhecemos como Estado de Direito e, num grau de desenvolvimento ainda maior, no Estado Democrático de Direito. Falar sobre a origem e formação do Estado implica em uma polêmica discussão doutrinária que rendeu inúmeras teorias, não cabendo neste trabalho, a apresentação de todas, apenas daquelas que exerceram maior influência sobre o pensamento político das épocas que se seguiram. Sob o ponto de vista da época em que o Estado surgiu, são três as posições, a saber: 1 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia de direito. Tradução de Antônio José Brandão. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1972. v. 2. p. 217 (destaque do autor). 16 a) A primeira acredita que o Estado sempre existiu concomitante à sociedade. Nesta posição destacam-se Eduard Meyer e Wilhelm Koppers, que consideram o Estado como elemento universal na organização humana2. b) A segunda vertente entende o surgimento do Estado para atender aos anseios dos grupos sociais, sendo, portanto, posterior a estes. Não surgiu, ao mesmo tempo, em todos os lugares, mas em cada um, dependendo das suas condições. c) A terceira posição acredita na existência do Estado a partir de características bem definidas. Carl Schmidt acredita se tratar de um conceito histórico concreto, a partir da idéia e da prática da soberania no século XVII. Também compartilham destas idéias Kelsen, Balladore Pallieri e Ataliba Nogueira3. Quando se fala em causas do aparecimento do Estado, duas vertentes devem ser levadas em consideração: uma que procura explicar a formação originária do Estado; e outra que justifica a formação derivada do mesmo. Quanto à formação originária, são duas as teorias, a saber: aquelas que afirmam a formação natural ou espontânea do Estado, tendo em comum a afirmação de que o Estado se estabeleceu naturalmente, por um ato voluntário; e outras que sustentam a formação contratual do mesmo, a partir de um ato volitivo dos homens. As teorias que sustentam a formação natural, segundo Dallari4, podem ser agrupadas pelos seguintes critérios: a) Origem familiar ou patriarcal: o Estado sendo uma extensão da entidade familiar, tendo como principal representante Robert Filmer. b) Origem em atos de força, violência e conquista: o Estado como conseqüência da dominação dos mais fracos pelos mais fortes; Oppenheimer é o principal representante. d) Origem em causas econômicas: o Estado como um produto da sociedade quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento, segundo Marx e Engels, dentre outros. e) Origem no desenvolvimento interno da sociedade: o desenvolvimento espontâneo da sociedade origina o Estado, não havendo a influência de fatores externos à sociedade, como interesses dos indivíduos; representada por Robert Lowie. 2 CARVALHOJUNIOR, Clóvis. As origens do Estado. 1988. 393 f. Tese (Livre Docência) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 1988. v. 1. p. 35. 3 NOGUEIRA, José Carlos Ataliba. Lições de teoria geral do estado. 1969. p. 46-47 apud DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 44. 4 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 46-47. 17 As diversas vertentes do contratualismo – Rousseau, Hobbes, Locke e Grócio -, apesar das diferenças no tocante à natureza humana, pressupõem certo grau de liberdade imanente aos homens; assim, por manifesta vontade destes em prol da necessidade de harmonia social, segurança e possibilidade de realização de interesses – sem a sobreposição de alguns em detrimento de outros -, optam pelo contrato social como garantia de uma vida pacífica e não hostil. Quanto aos processos derivados, a formação do Estado pode ocorrer através do fracionamento ou pela união de Estados. Tem-se o fracionamento quando uma parte se desmembra do território estatal passando a constituir outro. A união reúne vários Estados que se vinculam pela adoção de uma Constituição comum. 1.2 Evolução histórica O estudo da evolução do Estado procura fixar as formas fundamentais que o mesmo tem adotado através os séculos. Busca a tipificação do Estado, a descoberta de movimentos constantes e a formulação de probabilidades quanto à sua futura evolução. Para se conceber o Estado tal qual se apresenta hodiernamente, a Doutrina, em geral, percorre dois caminhos: o primeiro pretende alcançar o momento de seu aparecimento, e o segundo investiga as causas de surgimento do mesmo. Por fim, a Doutrina se preocupa, ainda, com o estudo dos tipos de Estado, ou seja, com a questão da formação de Estados a partir de outros preexistentes. Quanto à época, de modo geral, “pode-se dizer que do século XVI em diante o termo Estado vai aos poucos tendo entrada na terminologia política dos povos ocidentais”. 5 Mas é Maquiavel6, especificamente em ocasião de sua obra “O Príncipe”, que data de 1513, que utilizou o termo associado à sociedade política. Para efeitos didáticos, estuda-se o tema dentro de uma sucessão cronológica, justamente para uma melhor compreensão do Estado contemporâneo. É possível, dessa forma, distinguir os tipos de Estado, ao qual se dedicou Jellinek7 como uma de suas maiores contribuições à Teoria Geral do Estado. Seguindo suas lições, cronologicamente, o Estado percorreu as seguintes fases: 5 AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 17. ed. Porto Alegre: Globo, 1978. p. 7. 6 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. 6. ed. São Paulo: Martins Claret, 2008. passim. 7 JELLINEK, Georg. Teoria general del estado. Tradução de Fernando de Los Rios. Buenos Aires: Albatros, 1954. p. 24. 18 a) Estado Antigo: também conhecido como Estado Teocrático ou Oriental; refere- se à forma mais antiga de Estado, caracterizado, principalmente pela natureza unitária e pela religiosidade. A autoridade dos governantes, assim como as normas de comportamento, tinha amparo num poder divino. b) Estado Grego: apesar de não empregarem o vocábulo “estado”, possuíam organismos similares embebidos de teor político, tal qual se apresentam os Estados Modernos, como se vê verá adiante. c) Estado Romano: como na polis grega, o Estado era governado pelo povo, um termo ainda restrito e limitado segundo as modernas orientações. Os governantes supremos eram os magistrados pertencentes às famílias patrícias. Assim, a família é o elemento base de sua organização. O advento do Império Romano e sua grandiosidade empreenderam a integração jurídica dos povos conquistados, ao passo que novas camadas sociais surgiam e adquiriam direitos, sem, no entanto, desintegrar o núcleo da organização política. d) Estado Medieval: foi marcado pelo cristianismo, pelas invasões bárbaras e pelo sistema feudal. A luta empenhada pela Igreja em expandir o Império cristão foi responsável pela universalização dos ideais de igualdade, de amor ao próximo, bem como o esforço que se empreendeu em recuperar a unidade política. Neste sentido foi a atitude do papa Leão III ao conferir a Carlos Magno, no ano de 800, o título de Imperador, que acabou fracassando perante o imenso e complexo Império nos últimos séculos da Idade Média. Esta condição gerou uma enorme necessidade de restabelecimento da ordem e da autoridade, donde surge o Estado Moderno. e) Estado Moderno: nasceu da frustrada tentativa de unidade do Estado Medieval, somada, dentre outros fatores, à intolerância dos senhores feudais à alta tributação dos monarcas e ao constante estado de guerra. Buscou-se, então, a unidade territorial, sob os ditames de um poder soberano, aspiração documentada pelos tratados de paz de Westfália, que anunciaram o Estado Moderno. Tais tratados, que encerraram a Guerra dos Trinta Anos, são apontados pela Doutrina, como o marco da Diplomacia Moderna, donde foi reconhecida, pela primeira vez, a soberania dos Estados envolvidos. 19 1.3 Conceito O termo “Estado” deriva do latim status, que quer dizer “estar firme”. De imediato, pois, pode-se atribuir ao mesmo dois caracteres intrínsecos: o de permanência e o de rigidez. Vários são os conceitos encontrados na Doutrina, sendo que cada um reflete o momento histórico e a ideologia política reinante da época. Destarte, a conceituação do Estado parece tarefa difícil e corre o risco de limitações e mesmo de interpretações adversas. Assim, para os gregos, o Estado limitava-se ao continente da polis. Preleciona Azambuja8, que os romanos utilizavam o termo status republicae para designar a situação, a ordem permanente da coisa pública, dos negócios do Estado. Talvez o desuso do segundo termo pelos autores medievais condicionou a utilização de Status com a significação moderna. Continua o mesmo autor que, posteriormente, na linguagem política e nos documentos públicos, o termo foi utilizado para representar as três classes que formavam a população dos países europeus: a nobreza, o clero e o povo. É no século XVI que o termo passa a ser utilizado pelos povos ocidentais. As diversas teorias acerca do conceito de Estado podem ser divididas em três grupos; são eles: os conceitos filosófico, sociológico e jurídico, enumerados por Paulo Bonavides.9 Filosoficamente, Hegel definiu o Estado como a realidade da idéia moral, a substância ética consciente em si mesma, e manifestação da divindade; considerado dialeticamente como instituição mais alta, conciliando as contradições da Família e da Sociedade. O conceito sociológico ou político não descarta a natureza jurídica do Estado, mas consideram-no, sobretudo, um poder em si. Neste sentido, Duguit10 considera o Estado como “a força material irresistível” sendo, atualmente, limitada e regulada pelo Direito. Também Max Weber chama o Estado de comunidade humana dentro de um determinado território que reivindica para si, de maneira bem sucedida, o monopólio da violência legítima. Da mesma forma, as teorias jurídicas não eliminam a presença do elemento força do conceito de Estado. Porém, o Estado passa a ser visto como pessoa jurídica, sendo que seu funcionamento é subordinado a regras jurídicas. É assim que Jellineck11 elaborou a noção de Estado como a “corporação territorial dotado de um poder de mando originário”. Também 8 AZAMBUJA, Darcy. Introdução à ciência política. 12. ed. São Paulo: Globo, 1999.p. 28-29. 9 BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 62-66. 10 DUGUIT, Leon. Traite de droit constitutionnel. 3. ed. Paris: E. de Boccard, 1927. p. 93. 11 JELLINECK, 1954, op. cit., p. 103. 20 Kelsen12 fixa uma noção genuinamente jurídica de Estado, como a ordem coativa normativa da conduta humana. De todo o exposto, o Estado deve ser conceituado envolvendo suas dimensões política e jurídica; assim, pode ser considerado como a sociedade jurídica e politicamente organizada para atender ao bem comum. Pode, destarte, ser considerado como a forma mais perfeita de organização social, produto da evolução e da cultura; tanto que sua composição, dessa forma, pode ser observada como uma tendência universal: a perfeita síntese de uma orientação genérica, ordinária, evolutiva e cultural, responsável por sedimentar os laços da convivência humana. 1.4 Finalidade O estudo acerca da finalidade do Estado é de grande importância prática, dado que é através da consciência desta que se pode fazer um julgamento sobre a presente atuação estatal ou verificar em qual medida o Estado atende ou não seus propósitos. É necessário, para tanto, que as finalidades estatais coincidam com o desempenho de suas funções. Neste sentido, como se verá no capítulo V, a legitimidade de todos os atos do Estado depende de sua adequação às finalidades. Mas quais seriam exatamente estas finalidades? Alguns autores consideram o Estado um fim em si mesmo, sendo o homem, um instrumento do qual se serve o Estado para a realização de sua grandeza. De modo contrário, há aqueles que sustentam o Estado como instrumento do homem para a realização da paz social e da justiça; estas seriam, pois, as finalidades daquele. Esta é a posição de Ataliba Nogueira e Azambuja, segundo a qual: “O Estado é um dos meios pelo qual o homem realiza o seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual, e isso é que justifica a existência do Estado”. 13 Outra posição, um tanto reducionista, seria a de Kelsen14, dentre outros, que atribui a discussão das finalidades do Estado ao campo da Política, não devendo a Teoria Geral se ocupar de questões alheias ao campo técnico-jurídico. Aristóteles entende que o Estado, como criação da natureza, tem a finalidade de viabilizar a consecução da felicidade humana, tornando possível a completa realização de todas as capacidades do homem. O fim do Estado é, pois, assegurar ao homem o exercício de 12 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 63. 13 AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 114. 14 KELSEN, op. cit., p. 41. 21 todos os direitos fundamentais, viabilizando sua felicidade. Essas faculdades só poderão ser plenamente desenvolvidas vivendo no seio de uma comunidade (cidade-estado). Logo, faz parte da natureza humana viver na cidade-estado. Enquanto Hobbes afirma que os homens devem renunciar aos seus direitos existentes no estado de natureza, Locke15 afasta tal possibilidade, uma vez que contraria os objetivos do contrato social: Nenhum homem ou sociedade tem o poder de renunciar à própria preservação, e, portanto, aos meios de fazê-lo em favor da vontade absoluta e domínio arbitrário de alguém, e sempre que houver a tentativa de reduzi-los a tal situação de escravidão, terão direito de preservar aquilo que não tinham, o poder de alienar, e de livrar-se dos que violam a lei fundamental [...]. O estimado professor Clóvis Carvalho Júnior16, ao considerar o Estado como fruto de um processo da evolução natural, subordinado às causas econômicas e culturais, bem sintetizou suas finalidades: “Conceitos como desenvolvimento da personalidade, satisfação das necessidades mínimas, segurança e busca da felicidade estão incluídos de maneira natural nas finalidades do Estado.” A noção de bem público é pertinente nesta discussão sobre a finalidade estatal justamente por demonstrar a existência de parcelas de fruição comum17. Citando novamente Darcy Azambuja18, a maioria dos autores confunde os conceitos de “fim” e de “competência” do Estado, chegando muitos a afirmarem a impossibilidade de determinação dos fins estatais devido à variabilidade dos mesmos. Porém, o mesmo autor adverte que os fins são os bens públicos, que são invariáveis; variáveis seriam os meios empregados para a consecução dos mesmos. Os bens públicos formam um conjunto de meios que visam o aperfeiçoamento de determinada sociedade, tendo em vista a satisfação das necessidades de seus membros. A realização do bem-público, assim, origina uma série de deveres e obrigações, que devem ser claramente definidos como expressão da consciência social. Codificam-se, pois, os direitos individuais e sociais. Os primeiros constituem obrigações negativas do Estado, ou seja, o que ele não pode fazer para embaraçar o desenvolvimento do indivíduo. Os direitos sociais geram obrigações positivas ao Estado e ao indivíduo; define quais as 15 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 109. 16 CARVALHO JUNIOR, op. cit., p. 102. 17 Por bem público pode-se entender, em sentido amplo, a parcela de bens destinados direta ou indiretamente à utilização do povo, ou em benefício deste, embora sua titularidade pertença à União, aos Estados, ao Distrito Federal ou aos Municípios, ou a suas autarquias ou a suas fundações de direito público. 18 AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 114. 22 providências que deve tomar o Estado para que o indivíduo coopere de modo eficaz para a realização do bem público. Na visão de Azambuja19: Segurança e progresso, eis uma síntese do bem comum. [...] O Estado não cria a prosperidade material, a Arte, a Ciência, A Moral, o Direito, que são criações da alma humana, e por isso não tem poder direto sobre ela. Seu domínio é o temporal, o equilíbrio e a harmonização da atividade do homem, para que a liberdade de um não prejudique a igual liberdade dos outros. Surge, pois, um desafio frente aos Estados Modernos Democráticos: a realização dos bens públicos por meio do cumprimento de suas obrigações para com a sociedade do qual faz parte. O conjunto dessas obrigações a serem realizadas pelo Estado é o que Azambuja20 entende por competência do mesmo, ou seja, deveres de exclusiva atribuição do Estado. A tendência dos Estados Modernos é alargar cada vez mais tais suas atribuições, gerando uma hipertrofia estatal. Não basta, todavia, alargar cada vez mais o plano de atuação e interferência estatal ao ponto de provocar sua ineficácia. Aliás, diga-se que o Estado – em especial o Brasileiro – já está obrigado sob a égide da Carta Constitucional de 1988 em que o Poder Constituinte Originário não titubeou na sua redação prolixa, pormenorizada exaustivamente e, ainda, inesgotável, de forma a não deixar escapar as previsões fundamentais de um Estado. Impõe-se, diante de expressa previsão da Carta Maior, a realização material das suas finalidades. 1.5 O Estado e o poder Estabelecido o critério para definição da finalidade estatal, resta saber qual a necessidade de manutenção do elemento aglutinador por excelência dos agrupamentos humanos: o poder. Como um elemento impositivo, limitador das liberdades humanas é capaz de preservar um Estado de modelo democrático e, ainda, preservar ou não ameaçar sua legitimidade? Este elemento é de alta relevância para o presente trabalho, uma vez que será questionadoao longo do mesmo no tocante à legitimidade do poder de punir do Estado. A legitimidade, no entanto, será dissecada ao final deste, donde serão analisadas as definições dos mais expressivos autores sobre este tema. Portanto, neste ponto, importante é o adiantamento de que o referido termo será entendido, previamente, como uma qualidade do 19 AZAMBUJA, 1999, op. cit., p. 119. 20 Ibid., p. 123. 23 poder, que deve ser avaliada não apenas na sua aquisição, mas também no seu exercício. Assim, não basta um título obtido de maneira justa para que seja legítimo; da mesma forma, é necessário que o mesmo seja exercido de maneira justa. A maioria dos autores que têm se encarregado do estudo deste tema reconhece-o como imprescindível à vida da sociedade. Muitos chegam a afirmar que ele sempre existiu, mesmo nos agrupamentos mais primitivos. A observação dos comportamentos das mais diversas sociedades revela que mesmo as mais desenvolvidas e organizadas apresentam dissidência dos membros, conflitos de interesses que não dispensam o poder como elemento mantenedor do corpo social. As manifestações mais primitivas de poder foram caracterizadas pelo aspecto material da força, que definia quais os chefes dos grupos, os mais fortes e preparados para a condução e defesa do grupo das ameaças externas. Outro critério utilizado em tempos remotos foi o sobrenatural: quando muitos acontecimentos não poderiam ser desvendados pela força física, confiava-se o poder a uma entidade sobre-humana. Esta prática era verificada na Antigüidade greco-romana, entre os antigos povos do Oriente e no mundo Ocidental, já no século XVIII, com a influência do cristianismo e a crença no poder divino dos reis. O poder, com o passar dos anos, passou a contar com variadas características definidoras de sua legitimidade, desvinculando-se da força como elemento constitutivo. O poder poderia se utilizar da força, mas jamais se confundir com a mesma. No século XIX, a positivação do Direito estava vinculada a um poder, o que aproximou e fez coincidir o poder jurídico com o poder legítimo. Direito e poder passaram a caminhar paralelamente, sem serem confundidos, porém, vistos sob uma relação de complementaridade. Assim, o Direito recebeu os aliados para sua existência e veracidade: a legalidade e a legitimidade. A legalidade vem a ser um princípio de Direito que submete os Estados ao império de suas leis. Quanto à legitimidade, várias são as teorias que se ocupam desta qualidade intrínseca ao Estado Democrático, termo que, posteriormente, será estudado com mais minúcias. Por enquanto, de modo singelo, pode-se associá-la à idéia de consentimento da maioria e de justiça quanto aos procedimentos, ou seja, não basta obediência às leis: é necessário que expressem uma vontade geral e que sejam efetivas na sociedade. Duas são as correntes que pretendem caracterizar o poder. A primeira classifica-o como poder político e a segunda, como poder jurídico. O poder político manifesta-se na ação do Estado e destina-se à organização dos indivíduos; o Estado atua, pois, como representante e guardião da vontade coletiva, sejam nas 24 suas funções legislativa, executiva e judiciária. Berloffa21 acrescenta que através do poder político “permite-se, ainda, a manutenção das ideologias de organização e atuação do Estado, ao viabilizar, nas democracias, a existência da dissidência partidária em oposição à forma de atuação do Governo existente.” O poder jurídico, que tem Kelsen como eminente representante, significa a vinculação do Estado ao Direito. É através deste poder que o Estado poderá agir de forma legítima no exercício do poder político, conduzindo a máquina administrativa pública de acordo com as normas de gestão e de condução da democracia. A soberania é expressão máxima do Poder Jurídico, calcada na dominação sobre todos os demais poderes. É característico do poder do Estado organizar a nação e fazer valer em seu território a totalidade de suas decisões, nos limites e fins éticos de convivência. 22 De acordo com Miguel Reale23, a organização pressupõe um poder e um direito, concluindo que não há poder, portanto, que não seja jurídico. Mas isto não significa que o poder esteja totalmente situado no âmbito do Direito. O mesmo autor fala sobre uma graduação de juridicidade; assim, mesmo que o poder se apresente com aparência de mero poder político, procurando ser eficaz na consecução de objetivos sociais, sem preocupação com o Direito, ele já participa, ainda que em grau mínimo, da natureza jurídica. Mesmo quando o poder atinge o grau máximo de juridicidade, tendo reconhecida sua legitimidade, ele continuará a ser da mesma forma, poder político, capaz de agir com plena eficácia e independência para a consecução de objetivos não jurídicos. Diversamente, relevante é classificação de Norberto Bobbio, que enumera três formas de poder: econômico, ideológico e político. O poder econômico se materializa na posse de certos bens, por exemplo, os meios de produção, indispensáveis em períodos de escassez, induzindo os que não os detêm a adotar certa conduta, como a de prestação de um serviço útil nas condições determinadas pelo detentor dos mesmos. O poder ideológico se identifica na detenção de conhecimentos, informações, códigos de conduta ou doutrinas capazes de influenciar comportamentos dos indivíduos num processo de socialização. Por fim, o poder político – desde sempre considerado o sumo poder -, utiliza-se da força como meio específico, tendo em vista que todo grupo social dele imprescinde para se proteger de ataques externos ou para impedir a própria desagregação interna. 21 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e ciências políticas. Campinas, SP: Bookseller, 2004. p. 290. 22 Ibid., p. 291. 23 REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado. São Paulo: Martins, 1990. p. 106-107. 25 O que se tem em comum entre estas três formas de poder é que elas contribuem conjuntamente para instituir e para manter sociedades de desiguais divididas entre fortes e fracos com base no poder político, em ricos e pobres com base no poder econômico, em sábios e ignorantes com base no poder ideológico. Genericamente, entre superiores e inferiores. 24 Para Hannah Arendt, poder é a aptidão humana para agir em conjunto, daí a importância decisiva do direito de associação para uma comunidade política, pois é a associação que gera o poder do qual se valem os governantes. O poder, dessa forma, não se confunde com a força; do contrário, sempre resulta de um agir em conjunto, imprescindindo de comunicação entre as pessoas e, portanto, do direito à informação. É assim que a questão da obediência à lei não se resolve, em última instância, pela força, mas pela opinião e pelo número daqueles que compartilham o curso comum de ação expresso no comando legal. 25 O poder não precisa de justificativas, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; mas precisa, isto sim, de legitimidade. A percepção dessas duas palavras como sinônimos não é menos enganosa do que a corrente equação de obediência e apoio. O poder é originado sempre que um grupo de pessoas se reúne e age de comum acordo, porém a sua legitimidade deriva da reunião inicial e não de qualquer ação que possa se seguir. 26 Pode-se concluir do exposto, que não há associação sem o elemento poder; ou seja, o poder atua como pressuposto de existência a qualquer associação, sociedade ou Estado. E, ainda, o poder tem como conseqüência o consentimento, seja espontâneo ou forçado. No entanto,não há que se falar, tendo em vista o atual Estado Democrático de Direito, nos elementos força e violência, mas em legitimidade ou não do poder. O problema da legitimidade do poder consiste, pois, no próprio fundamento deste, que será analisado posteriormente. 24 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992. p. 82-83. 25 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 25. 26 ARENDT, Hannah. Sobre la violência. Tradución de Guilhermo Solana. Madrid: Alianza, 2006. p. 71. “El poder no necesita justificación, siendo como es inherente a la verdadera existencia de las comunidades políticas; lo que necesita es legitimidad. El empleo de estas dos palabras como sinónimo no es menos desorientador y perturbador que la corriente ecuación de obediencia y apoyo. El poder surge allí donde las personas se juntan y actúan concertadamente, pero deriva su legitimidad de la reunión inicial más que de cualquier acción que pueda seguir a ésta.” 26 1.6 Origens do Estado Democrático Observado o paradoxo entre as promessas constitucionais, firmadas especialmente nos artigos da atual Constituição Federal que se dedicam aos princípios constitucionais e o seu efetivo cumprimento, o Estado Democrático de Direito revela defasagens gigantescas que desembocam numa crise de sua legitimidade. Assim sendo, parece evidente a existência de uma acentuada contradição entre o modelo normativo proposto e as práticas efetivas dos agentes e representantes do poder e da sociedade. De acordo com José Eduardo Faria27, “[...] o país vem vivendo uma ampla crise estrutural, da qual se destacam a falta de credibilidade do regime, a fragmentação de seu aparelho burocrático, a desmoralização da autoridade [...].” Entretanto, ao contrário da proposta do mesmo autor sobre a elaboração de uma nova Carta Magna, este trabalho vem propor uma re-inauguração do Estado Democrático de Direito, de maneira que sejam assegurados efetivamente os direitos fundamentais do homem por meio do cumprimento das obrigações constitucionais. A Constituição Federal de 1988, mesmo diante de sua prolixidade, atende, formalmente, aos anseios do modelo democrático de Estado; constata-se um problema de efetividade, que põe em dúvida o referente modelo. A idéia de democracia surgiu na Grécia Antiga, significando, pela própria etimologia da palavra, o governo do povo, o governo da maioria, ou seja, dos cidadãos. Para o pensamento antigo, forma de governo significava muito mais do que um adjetivo para a organização da polis, mas um valor fundamental de determinada forma de organização. Tanto que a finalidade da polis ultrapassava o plano material, estendendo-se à consecução da Justiça através da liberdade política dos cidadãos que expunham suas idéias e debatiam opiniões. Importante assinalar que a virtude política estava diretamente relacionada à virtude moral, termos que hoje parecem opostos. Sólon, considerado o pai da democracia, tomou medidas que transformaram o mundo grego: modificou a estrutura da sociedade ateniense: os cidadãos passaram a ser classificados não segundo o tamanho das propriedades de cada um — critério que assegurava o poder político à aristocracia rural —, mas de acordo com suas riquezas, facilitando a ascensão de pequenos artesãos e comerciantes antes tidos como inferiores. Além disso, o legislador revigorou a Assembléia do Povo, que anualmente elegia os funcionários do governo, e instituiu um tribunal popular, a heliéia. 27 FARIA, José Eduardo. A crise constitucional e a restauração da legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1985. p. 11. 27 Sólon foi, também, o responsável pela introdução da idéia de que a sobrevivência da cidade depende da educação de todos os cidadãos. Ele acreditava que a saúde de um organismo político depende não só das instituições que o integram, mas também de cada membro da comunidade. Por isso, ele encontra na formação do caráter um meio mais seguro de garantir a manutenção do equilíbrio social. No entanto, nem todos na polis grega possuíam privilégios. Como bem esclareceu Aristóteles, cidadão era aquele que tivesse parte na autoridade deliberativa e na autoridade judiciária. Apesar das exceções em casos de emergência em algumas cidades, a regra era a restrição. Aos artesãos e escravos não era permitida a prática desta virtude política, um privilégio daqueles que não tinham a necessidade de trabalhar para sobreviver. Esta era uma regra estabelecida no estatuto jurídico e que não feria os princípios morais e políticos da época. A própria condição de guerra em que viviam justificava a hierarquia adotada. É evidente que esta idéia de democracia, não estaria presente nas revoluções burguesas do século XVIII. A democracia passou a ser um adjetivo do Estado, sendo que o termo “povo” recebeu uma amplitude maior do que significava aos antigos gregos. Estado e povo passaram a ser termos independentes: o Estado Moderno organiza-se com uma roupagem democrática e, então, controla a sociedade. A democracia passou a ser um termo de legitimação do poder estatal, localizado acima da sociedade. A democracia efetiva, idealizada e realizada pelos gregos, ganhou uma conotação simbólica para os Estado Modernos. O conceito moderno de Estado Democrático tem suas raízes no século XVIII, agregando, obrigatoriamente, a afirmação de certos princípios fundamentais da pessoa humana vinculadores da organização e funcionamento do Estado a serviço e realização dos mesmos. A partir de então, seguiu-se uma série de conflitos na tentativa de proteção aos direitos humanos e a dificuldade da máquina estatal em assumir de fato seu papel precípuo. Daí a grande influência dos jusnaturalistas, como Locke e Rousseau. Apesar deste não ter acreditado em um governo democrático de homens, mas de deuses, em sua mais expressiva obra, “O Contrato Social”, estão encerrados os princípios do Estado Democrático. Na prática, três foram os movimentos político-sociais a materializar estas teorias: a Revolução Inglesa, influenciada, principalmente, por Locke, culminando no Bill of Rights, em 1689; em seguida, a Revolução Americana e a conseqüente independência das treze colônias da América, em 1776 e; por fim, a Revolução Francesa em 1789, com seus princípios expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a marcante presença das idéias rousseaunianas. 28 Foi declarado que os homens nascem, e permanecem livres e iguais em direitos. Como fim da sociedade política, apontou-se a conservação dos direitos naturais indeclináveis do homem, quais sejam: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Qualquer limitação ao indivíduo deveria ser permitida apenas pela lei, como expressão da vontade geral. Assim, a base da organização do Estado deveria ser, pois, a participação popular no governo, para que fossem preservados e garantidos os direitos inerentes. Foram essas as idéias responsáveis pela consolidação do Estado Democrático como ideal supremo que, a partir de então, figurou em vários sistemas jurídicos. Em pequena síntese, são pontos fundamentais do Estado Democrático: 1) supremacia da vontade popular; 2) preservação da liberdade, e; 3) igualdade de direitos. A conseqüência do despertar da Europa e dos Estados americanos inaugurou uma era de resgate dos direitos naturais do homem, assim como a descoberta de novos direitos a ele pertencentes. A Doutrina consagroua expressão “gerações de direitos”, lembrando que tal expressão é inesgotável, no sentido de que a história não é estanque, assim como a história do Direito e dos direitos. Assim é que tais direitos são variáveis, modificando-se ao longo da história de acordo com as necessidades e interesses do homem. A primeira geração consagrou o direito amplo à liberdade. Surgiu nos séculos XVII e XVIII, compreendendo direitos civis e políticos inerentes ao homem e oponíveis ao Estado, à época, grande opressor das liberdades individuais. São exemplos: direito à vida, segurança, justiça, propriedade privada, liberdade de pensamento, voto, expressão, crença, locomoção, dentre outros. A segunda geração, pós 2ª Guerra Mundial, proclamou os direitos de igualdade, consentâneo ao advento do Estado Social. São os direitos econômicos, sociais e culturais que devem ser prestados pelo Estado através de políticas de justiça distributiva, como o direito à saúde, trabalho, educação, saneamento, greve, lazer, repouso, habitação, livre associação sindical, dentre outros. Os direitos da terceira geração consagram os direitos de fraternidade e solidariedade, coletivos por excelência, pois estão voltados a toda humanidade. Dessa forma, não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo ou grupo isolado, de determinado Estado, mas operam, tais direitos, no gênero humano como condição de existência e vivência concreta. São eles: direito ao desenvolvimento, à paz, à comunicação, ao meio-ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural da humanidade, dentre outros. 29 A quarta geração de direitos, a mais nova criação doutrinária, resulta dos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, da preocupação política que os avanços tecnológicos do mundo globalizado impõem ao meio social e que afetam as estruturas políticas, econômicas, culturais e jurídicas vigentes. São exemplos o direito à informação, ao pluralismo e à democracia direta. A linguagem dos direitos humanos encerra um inegável teor de atualidade e praticidade – a exemplo da quarta geração de direitos – que extrapola a órbita individual dos cidadãos para vincular, também, o Estado. Assim é que Bobbio28 classifica os direitos individuais tradicionais - que consistem em liberdades -, e os direitos sociais - que consistem em poderes. Os primeiros exigem obrigações puramente negativas, que implicam na abstenção de determinados comportamentos; contrariamente, os segundos exigem obrigações positivas de todos, inclusive do Estado. Neste ponto encontra-se, pois, o maior desafio dos direitos humanos: seu reconhecimento generalizado por todos os povos, a proteção e a efetivação dos mesmos. Trata-se de problema jurídico e, em sentido ainda mais amplo, de problema político a ser sanado. 1.7 Estado de Direito e Estado Constitucional A moderna concepção de Estado está intimamente vinculada à idéia de limitações por normas jurídicas, que traduzem direitos e deveres, faculdades e vinculações dos Estados e dos indivíduos entre si. Aliás, sem descartar as outras esferas do Estado (social, econômica, política), foi esta construção normativa verdadeira arma contra os abusos do absolutismo. Ensina o professor Jorge Miranda29: “[...] não são apenas os indivíduos (ou os particulares) que vivem subordinados a normas jurídicas. Igualmente o Estado e as demais instituições que exercem autoridade pública devem obediência ao Direito.” Pode-se considerar o elemento jurídico como a moldura do Estado, no sentido de que todos os seus elementos constitutivos, ou seja, povo, território e soberania, devem estar sempre conformados e limitados pelas normas jurídicas. Assim, tais elementos devem estar regulados e amparados pela Constituição e por outras normas do ordenamento jurídico de um Estado Nacional. 28 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 20. 29 MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 1 (destaque do autor). 30 Para José Afonso da Silva30, o clássico conceito de Estado de Direito se limita a uma igualdade formal e abstrata, baseada na generalidade da lei, sem qualquer base na vida real. De acordo com Canotilho31, o Estado como forma de organização jurídica do poder político soberano, ao qual fica submetido o povo de um determinado território, corresponde ao modelo que surgiu com a paz de Westfália, em 1648, tendo evoluído para o Estado Constitucional, que se conceitua como sendo uma tecnologia política de equilíbrio político-social, e representa uma superação da autocracia absolutista do poder dos privilégios orgânico-corporativo medievais. O mesmo autor define o Estado Constitucional como Estado soberano, que edita as leis que devem ser observadas pelo povo de um determinado território, mas que também o submete ao Direito, sendo regido por leis sem confusão de poderes. Dessa forma, do clássico conceito de Estado de Direito dos séculos XVIII e XIX não foi difícil avançar para o conceito de Estado Constitucional, que no século XX ganhou a primazia nas formulações políticas do mundo ocidental. Não obstante, principalmente a partir da segunda metade do século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Nacionais - já todos em sua conformação Constitucional - passaram a vivenciar uma nova perspectiva: a dos blocos e comunidades transnacionais, as quais se formaram em busca de uma maior força pelas alianças econômicas, políticas e até culturais. O Estado Constitucional é, assim, uma criação do Estado Moderno, tendo surgido paralelamente ao Estado Democrático. Pressupõe uma estrutura ordenada por um sistema normativo fundamental e hierarquicamente superior. Mas não é só isso; o Estado Constitucional vai além do Estado de Direito, não se limitando a ele. O Estado Constitucional moderno é, também, democrático e esta exigência se impôs da necessidade de legitimação, não apenas da ordem jurídica enquanto positivada, mas do exercício do poder político vinculado, ditado segundo o princípio da soberania popular. Seja pelos objetivos propostos, seja pela conveniência dos interesses burgueses, não se pode olvidar que o Constitucionalismo teve caráter nitidamente revolucionário. Porém, apesar da força com que as Constituições escritas se impuseram no século XVIII, gozando de extraordinária autoridade como a mais alta expressão democrática e legislativa, rendeu-se a um paulatino processo de desmistificação e perda de eficácia. 30 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 119. 31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. p. 86- 89. 31 1.8 Estado Democrático de Direito O Estado Democrático nasceu das lutas contra o absolutismo, sobretudo através do reconhecimento dos direitos naturais da pessoa humana - daí a grande influência jusnaturalista neste período. Declarou-se, pois, que os homens nascem, são iguais perante a lei e permanecem livres. Como finalidade de uma sociedade política, aponta-se a conservação de direitos naturais e indeclináveis aos homens, quais sejam: a liberdade, a propriedade e a segurança. Todos os cidadãos passaram a ter o direito de participar, direta ou indiretamente, da formação da vontade geral. O Estado, neste sentido, submetendo-se ao Direito, tornou-se, também, sujeito de direitos e deveres. Seguindo as lições de Canotilho32, mais uma vez, o binômio “legalidade- igualdade” reclama que sua aplicação sejade cunho material sua aplicação, o que somente pode ser alcançado se houver também a democracia econômica, social e cultural, como conseqüência lógico-material da democracia política. Esta é, pois, a construção do Estado Democrático de Direito. Acrescenta que o principio da democracia econômica e social impõe tarefas ao Estado para a promoção da igualdade real, constituindo um elemento essencial de interpretação das normas constitucionais. O Constitucionalismo ampliou os horizontes do Estado de Direito, trazendo a idéia de sua legitimação na vontade popular por meio da democracia participativa; eis o Estado Democrático de Direito. A lei, especialmente a Constituição, passou a desempenhar uma função transformadora. A lei opera, pois, como instrumento de realização material de uma sociedade justa, solidária, onde a promoção da dignidade humana seja a razão da própria existência do Estado. A veiculação desses valores, dentre outros, se dá por meio de princípios, que ocupam o ápice do Ordenamento Jurídico. Assim, deve-se partir do ponto de que a Constituição, por meio dos princípios, explícitos ou implícitos, oriente a interpretação do sistema, que lhe dê uma unidade de sentido; contrariamente, o Estado Democrático de Direito não se realiza, pois o seu ordenamento transformar-se-á numa somatória estanque de preceitos, desprovido de qualquer capacidade de coordenação e efetividade do todo. Neste sentido, o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello 33 ressaltou a importância da Constituição; em 23/04/2008, iniciou os discursos proferidos na posse do 32 CANOTILHO, 1999, op. cit., p. 325. 33 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Constituição e o Supremo: informativo. Disponível em: 32 novo presidente da Corte, o ministro Gilmar Mendes. Em seu discurso, destacou que os três Poderes da República, sem exceção, devem respeito à Constituição, que não pode ser burlada por conveniência política ou pragmatismo institucional. Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. 1.9 Idéia atual de Estado Democrático de Direito Através da análise do longo processo de desenvolvimento das sociedades humanas e do Estado, não se pode afastar a imaturidade do Estado Democrático de Direito. Perante a História, pode-se dizer que, em dois séculos de existência, ele ainda está num aprendizado, ainda não fala, ainda não anda; está sendo educado segundo princípios e regras constitucionais que consagram os direitos fundamentais do homem. Pode-se falar, atualmente, numa verdadeira crise do Estado Contemporâneo. Se no século XVIII havia um ideal de Estado a ser materializado, no século XIX o mesmo passou a ser definido paulatinamente, chegando aos dias atuais como ideal político de toda a humanidade. No entanto, problemas de ordem estrutural da sociedade capitalista se tornaram empecilho às aspirações liberais da época, arrastando-se até os dias atuais. Dallari34 enumera três problemas: a) O problema da supremacia da vontade do povo. A ênfase ao poder Legislativo, que se empreendeu no século XIX, gerou um problema de representação devido às divergências dos grupos sociais que se formavam. O industrialismo obrigou a inserção dos operários na esfera política, seja através de movimentos proletários, seja através da tentativa de participação no poder. No século XX, tendo adquirido um razoável grau de organização, as classes trabalhadoras elegeram seus representantes que passaram a integrar partidos, fundar novos até, enfim, integrarem o Plenário. Em meio a tantas diversidades partidárias e intermináveis debates, o processo legislativo se tornou lento e imperfeito, acarretando um verdadeiro descrédito no sistema representativo. Eis um dos impasses a que chegou o Estado Democrático de Direito: a http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=87586&caixaBusca=N. Acesso em: 24. abr. 2008. 34 DALLARI, op. cit., p. 254. 33 participação do povo tornou-se inconveniente quando, na verdade, sua ausência constitui expressa violação do princípio democrático. b) Dilema entre os princípios liberdade e igualdade Estes foram dois dos princípios consagrados pela Revolução Francesa, prezando- se, na época pela não intervenção do Estado, no sentido de que todos permanecessem livres com iguais condições para alcançarem seus interesses. Porém, esse ideal não seria possível numa sociedade marcada pelas descomunais diferenças entre as classes sociais. Muitos passaram a defender a intervenção estatal a fim de assegurar a igualdade de todos os indivíduos. A questão da igualdade passou, pois, a ter primazia perante a liberdade. De que adiantaria liberdade diante das desigualdades e dos privilégios restritos às minorias? Chegou- se ao segundo impasse do Estado Democrático de Direito: na prática, liberdade e igualdade se mostraram princípios antitéticos e antidemocráticos. c) Distanciamento entre a formalidade e a efetividade do Estado Democrático A medida emergencial de combate ao Absolutismo foi à submissão de todos ao império da lei. No entanto, a prática demonstrou uma formalidade de leis camuflando um Estado totalitário revestido de democrático. Seria o elemento formal um empecilho à efetivação do Estado Democrático? Ou sua ausência favoreceria a utilização arbitrária do poder? Eis o terceiro impasse que desprestigia o Estado Democrático. Diante do exposto, entretanto, não há que se conspirar contra o Estado Democrático, mas repensar maneiras para atingi-lo, ou para alcançar sua maturidade. Não se pode, destarte, questionar o modelo de Estado Democrático, mas questionar as atitudes humanas que dirigem a sociedade. Daí a questão da Ética como a maior preocupação do século XXI, gerando discussões em nível universal acerca do comportamento dos homens. Há, portanto, uma preocupação com as atitudes humanas desprovidas, consistindo a Ética no antídoto para as mazelas dos indivíduos. Quanto ao Estado Democrático de Direito, seria este ideal possível de ser atingido? De que maneira? Sim, os ideais de democracia e de Justiça podem ser atingidos a partir do momento em que os seres humanos tiverem as plenas e iguais condições de desenvolvimento físico, cultural, moral e ético. E tais condições serão possíveis a partir de um efetivo Estado Democrático, que prima pela igualdade de todos os cidadãos, governantes e governados, e se mantém fiel aos mandamentos constitucionais e à vontade da maioria. 34 CAPÍTULO 2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 2.1 Os princípios fundamentais – conceitos A palavra “princípio” exprime, em sentido vulgar, o ponto de partida, o início de algo. Porém, como o termo é utilizado em diferentes esferas do conhecimento humano, tais como a Filosofia, a Sociologia, a Física, o Direito, dentre outras, cabe a cada uma dessas ciências animarem esta idéia simplificada a partir de seus elementos peculiares. Assim, todo conhecimento humano pressupõe um conjunto de elementos ou de idéias sistematizados e ordenados a partir de princípios e a eles subordinados. Em termos jurídicos, o vocábulo alcança um sentido bem mais amplo, tendo a Doutrina e os Tribunais se preocupado em definir e realçar sua importância
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