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Dando sentido à etnomatemática: etnomatemática fazendo sentido Bill Barton1 Tradução: Maria Cecilia de Castello Branco Fantinato2 Introdução Na última década, tem surgido uma literatura crescente a respeito da relação entre cultura e matemática, e descrevendo exemplos de matemática em contextos culturais. O que não é tão bem reconhecido é o nível a que existem contradições nesta literatura: contradições a respeito do significado do termo etnomatemática em particular, e também acerca de sua relação com a matemática enquanto uma disciplina internacional. Há três dimensões para essas dificuldades. Em um sentido, há uma confusão epistemológica: problemas com os significados de palavras usadas para explicar idéias sobre cultura e matemática. Por exemplo, no primeiro parágrafo, a frase “disciplina internacional” conduz o pensamento do leitor numa certa direção. Conseqüentemente, algumas idéias importantes podem ser excluídas. Outra dificuldade é filosófica. Existe pouco consenso sobre até que ponto a matemática é universal, e sobre como as idéias matemáticas podem transcender culturas. Muito pouco da literatura em etnomatemática é explícita a respeito de seu aspecto filosófico. Esta é uma das áreas que devem ser discutidas se o motivo é ganhar ampla legitimidade em círculos matemáticos. Um terceiro nível de dificuldade relaciona-se ao significado de matemática. O problema aqui é que uma das razões para escrever sobre etnomatemática é mudar o que é entendido por matemática. Assim, por conseguinte, não é surpreendente que muitos escritores discordem entre si. Diante desta confusão multidimensional, como pode ser compreendida esta literatura e como podem ser feitos progressos? A resposta encontra-se não tanto em tentar identificar e resolver cada ponto de confusão, mas sim em criar uma estrutura por meio da qual as opiniões divergentes possam ser vistas umas em relação com as outras. Assim, qualquer leitor pode ver que confusões específicas são importantes para elas e, possivelmente, ver como podem ser resolvidas. 1 BARTON, Bill (1996). “Making sense in Ethnomathematics: Ethnomathematics is making sense”. Educational Studies in Mathematics 31, Netherlands: Kluwer Academic Publishers (201-233) 2 Professora da UFF/ Doutora em Educação pela USP/ Membro do GEPEm. Este artigo apresenta um possível sistema para uma revisão. A estrutura é baseada na intenção dos autores quando estes aproximam matemática e cultura. A partir da análise decorrente deste sistema, uma definição de etnomatemática é proposta e elaborada. Mais adiante ela será testada utilizando-a na explicação de dois exemplos de etnomatemática. Um sistema: o mapa intencional Cultura e matemática é um campo extremamente diversificado: escreve-se sobre ele a partir de muitos contextos, e é mencionado por escritores cujo objetivo principal é escrever sobre outras idéias (por exemplo, a psicologia da matemática, ou a política do currículo de matemática). Uma primeira distinção a ser feita é entre escrever sobre a matemática em si e escrever sobre educação matemática. Cultura e matemática em si Quatro áreas gerais podem ser identificadas. Uma delas é filosófica. Escritores como Bloor (1976, 1983), Ernest (1991) e Zheng (1994) desejam debater as formas pelas quais o conhecimento matemático tem bases culturais. Outros, que escrevem sobre a natureza da matemática, fazem parte deste debate por defenderem uma matemática acultural, ou pan-cultural. (ver Barrow, 1992; Penrose, 1989). Outra área diz respeito à natureza do pensamento matemático e da atividade matemática em várias culturas. Exemplos explíctos bem conhecidos são os estudos de Harris (1991) e Cooke (1990) na Austrália, Gay e Cole (1967) na Libéria, Pinxten (1987) na América do Norte, e o trabalho de Zaslavsky (1971) sobre matemática africana. Também estão incluídos nesta área trabalhos em antropologia que podem ser considerados como matemáticos, por exemplo, Kiselka (1987) sobre a navegação no Pacífico, e Ascher (1981) sobre os quipus astecas. Podemos nos referir a estes estudos como sendo matemática cultural. Uma terceira razão para se escrever sobre cultura e matemática é para descrever a evolução da matemática, o que pode ser chamado de antropologia social do tema. Exemplos notáveis são Kline (1953), Fang e Takayama (1975), Joseph (1991), Swetz (1987), Restivo (1992), e Restivo et al. (1993). A intenção de todos esses escritores é mostrar como a matemática tem uma história cultural que tem afetado a natureza da mesma. Outros escritores estão debatendo as políticas da matemática como um produto da cultura. Bishop (1990) e Fasheh (1991) são talvez os relatos mais explícitos a serem destacados. A intenção destes artigos é explorar os caminhos pelos quais a matemática tem afetado outros aspectos de nossa sociedade e como tem mudado as concepções e valores das pessoas. Cultura e educação matemática Os propósitos dos que escrevem sobre cultura e educação matemática podem também ser categorizados de acordo com quatro aspectos. Alguns dos escritos são sobre a própria educação matemática. Estes tentam mostrar que a educação matemática pode ser mais efetiva se forem tirados exemplos de contextos culturalmente específicos. Em particular, exploram a relação entre os processos de pensamento de algum grupo cultural e a educação matemática. Deixe-nos classificar esta atividade como desenvolvimento do currículo. Os exemplos incluem os artigos sobre matemática das ruas vs a matemática escolar, iniciados por Carraher et al.(1985) e Mtetwa (1992). Outros artigos dizem respeito ao modo como a educação matemática em geral é determinada pela cultura na qual está situada. Nesta área podemos incluir a extensa literatura sobre conhecimento situado (veja Dowling, 1991; Lave, 1988; Nunes, 1992; e Saxe, 1990), matemática e linguagem, e bilinguismo (e.g. Cocking and Mestre, 1988; Secada, 1992; Stephens, 1994). A educação matemática também afeta a sociedade, por exemplo, no modo como sustenta certos sistemas políticos. A análise de Gerdes da educação matemática pré e pós-revolucionária em Moçambique é um exemplo disso (Gerdes, 1981, 1985). A literatura matemática crítica e seu desenvolvimento têm intenções similares (e.g. Abraham and Bibby, 1988; Frankenstein, 1983; Mellin-Olsen, 1987). Um quarto grupo da literatura interessa-se sobre a relação entre matemática e educação matemática. Apesar de menos cultural em sua ênfase, ele discute o modo como paradigmas teóricos estão relacionados nas duas áreas. (e.g. Borba, 1990; Pompeu, 1992; e Vithal, 1992). Estas áreas de intenção dentro da literatura podem ser ilustradas assim: veja figura 1. Figura 1 Dando sentido à etnomatemática Onde os escritos existentes sobre etnomatemática se enquadram neste mapa? Como pode tal arranjo fornecer uma análise proveitosa da literatura? Como um exemplo do potencial dessa estrutura, é brevemente descrito nos termos do mapa os escritos de três autores, e duas áreas de confusão são analisadas. Daí surge uma possível definição para o termo “etnomatemática”. Os três escritores considerados em mais detalhes são Ubiratan D´Ambrósio no Brasil, Paulus Gerdes em Moçambique e Márcia Ascher na América. Alan Bishop é freqüentemente associado a esta área, embora ele não escreva sobre etnomatemática diretamente. Seu trabalho concentra-se na natureza da cultura da matemática em si e, recentemente, sobre como o conflito cultural acontece dentro dos limites da matemática e da educação matemática (Bishop. 1994). Ubiratan D’Ambrósio Ubiratan D’Ambrósio é o mais fecundo dos atuaisescritores na área da etnomatemática, visto que, por dez anos, ele tem escrito regularmente e explicitamente sobre o assunto. Sua influência é detectável em quase todos os outros textos desta área. Desta forma, não é surpreendente que, no Mapa Intencional, algo do trabalho de D’Ambrósio possa ser localizado em quase todas as áreas. A maior parte fica localizada na dimensão sócio-antropológica entre sociedade e matemática. Esta relação é descrita em seu modelo inicial do comportamento humano (1984), embora ele use exemplos da matemática cultural para ilustrar este modelo, e mais tarde (1985a e b), lida explicitamente com a relação entre sociedade e educação matemática. Entretanto, ele torna novamente (1985b) e mais uma vez (1987) a abordar a dimensão sócio- antropológica da matemática em si. Ele tem cada vez mais usado seu modelo para analisar o modo como o conhecimento matemático é colonizado e como ele racionaliza divisões sociais dentro da sociedade e entre sociedades, isto é, nos aspectos políticos do tema (1990, 1991). Seu trabalho posterior refere-se às implicações educacionais desta análise e à natureza de um currículo cultural (1990, 1994). Paulus Gerdes Gerdes é o próximo escritor mais produtivo. Com base em Moçambique, Gerdes começou escrevendo logo após o governo revolucionário de Samora Machel assumir o poder no lugar dos portugueses. A realidade de viver e trabalhar em um país se recuperando de severa opressão colonial tem afetado tanto o tema de seus escritos como a orientação que Gerdes lhes dá: comparado com a abordagem teórica de D’Ambrósio, o trabalho de Gerdes é tanto prático quanto politicamente explícito. No Mapa Intencional, Gerdes se localiza mais próximo da educação matemática do que da matemática. Em particular, seus primeiros trabalhos (1981, 1985, 1986 a e b) estão diretamente preocupados em elaborar a importância da política social da educação matemática e discutem estratégias pelas quais a educação matemática pode servir a pessoas de forma libertadora. Seus estudos de 1988 transferem-se para a área de currículo cultural e ele então começa a escrever sobre as políticas matemáticas do currículo e a natureza cultural da matemática em si (1989 a e b). Seu trabalho sobre desenhos sona dos Tchokwe (1990, 1991 a e c) ainda é mais matemático, embora todos os seus escritos contenham referências ao propósito subjacente da educação matemática em Moçambique. Uma publicação posterior sobre história da matemática (1992) está localizada dentro da matemática cultural. Desta forma, Gerdes tem escrito em todas as dimensões do mapa associadas com educação matemática, partindo inicialmente das ligações com a sociedade, para elementos mais matemáticos posteriormente. Seu artigo recente tenta vincular os dois, desenvolvendo o termo “etnomatemática” para descrever um movimento ou uma direção de pesquisa que é motivada por objetivos sócio-políticos específicos. Marcia Ascher Marcia Ascher é uma acadêmica americana que vive e trabalha em Nova Iorque. Seu livro (1991) é a publicação individual mais completa sobre etnomatemática. Com D’Ambrósio, ela editou uma edição especial da For the Learning of Mathematics sobre educação matemática e cultura. No Mapa Intencional, Ascher está firmemente localizada na área da matemática cultural, embora reconhecendo as implicações políticas de seus artigos para a sociedade e para a educação. As primeiras frases de seu livro são: “Vamos dar um passo em direção a uma visão global, multicultural da matemática. Para fazer isso, nós introduziremos as idéias matemáticas de pessoas que têm sido geralmente excluídas de discussões sobre matemática.” (Ascher, 1991: p.1) No capítulo final, Ascher apresenta um ensaio sobre etnomatemática, no qual ela é explícita sobre a finalidade de seu trabalho. Uma das finalidades é aumentar a compreensão sobre diversas culturas, de maneira a aumentar o nosso entendimento sobre a nossa própria cultura: iluminando as suposições que nós fazemos e esclarecendo aquilo que faz a nossa cultura distinta. Outra finalidade é reconhecer que, até mesmo dentro de nossa própria cultura, as idéias matemáticas existem em diferentes contextos e não são propriedade exclusiva de poucos eleitos. A intenção do termo “etnomatemática” é, para Ascher, a de indicar um interesse num campo mais vasto do que apenas no tema matemática: a de incluir o pensamento matemático em todo contexto em que este ocorrer. Em resumo, os três autores podem ser localizados no Mapa Intencional, como segue: veja fig.2. Figura 2 O que é etnomatemática? O primeiro de dois pontos a serem analisados é o objeto da etnomatemática. Ela se refere a um corpo de conhecimentos, a um conjunto de práticas, ou a algo diferente? Será visto que o objeto da etnomatemática desviou-se de sua concepção inicial de ser a matemática de grupos culturais específicos. A direção desta mudança pode ser relacionada com as intenções dos autores e quaisquer concordâncias entre eles se situam exatamente onde suas intenções se sobrepõem. O texto inicial de D’Ambrósio (1984) define etnomatemática como a forma pela qual diferentes grupos culturais matematizam (contam, medem, relacionam, classificam e inferem). A implicação é de que a etnomatemática constitui práticas, embora os exemplos retirados das práticas de sociedades indígenas da Amazônia sejam referidos como “corpos de conhecimento”. Por exemplo, não é claro se D’Ambrósio está se referindo ao processo de construção de um barco ou ao conjunto de técnicas deduzidas da construção finalizada. No ano seguinte, D’Ambrósio (1985b) sugere que diferentes códigos e jargões conduzem a diferentes teorias do conhecimento. Ele deseja claramente argumentar a favor de sistemas globais de conhecimento nos quais são baseadas as práticas definidas culturalmente. Ele usa “etnomatemática” para referir-se a uma forma desenvolvida de conhecimento que se manifesta em práticas que podem mudar com o tempo. Seu programa para a ação é explícito: Nós estamos coletando exemplos e dados nas práticas de grupos diferenciados culturalmente que são identificáveis como práticas matemáticas, portanto etnomatemáticas, e tentando ligar essas práticas a um padrão de racionalidade, um modo de pensamento. Usando a teoria cognitiva assim como a antropologia cultural, nós esperamos traçar a origem dessas práticas. Deste modo, poderá suceder uma organização sistemática dessas práticas num corpo de conhecimento. (p.47). Dois anos mais tarde, D’Ambrósio (1987) relaciona o conceito de etnomatemática ao “código restrito” de Bernstein e ao “universo vernacular” de Illich. Etnomatemática é a codificação que permite a um grupo cultural descrever, gerenciar e compreender a realidade. Mais tarde, D’Ambrósio ainda (1989) argumenta explicitamente a favor da etnomatemática como um programa de pesquisa que incorpora a história da matemática. Esta tendência para uma perspectiva mais ampla da etnomatemática continua com o uso de uma definição etimológica: a arte de explicar, entender e enfrentar o meio sócio-cultural e natural...A dinâmica desta interação (entre o indivíduo e o meio) mediada pela comunicação e a codificação e simbolização resultantes, produz conhecimento estruturado que pode eventualmente tornar-se disciplinas. (1990, p.22). D’Ambrósio, em vários de seus últimos escritos, concentra-se nessa evolução dinâmica de um corpo sistemático de conhecimento, em vez do conhecimento propriamente dito. Assim, a etnomatemática torna-se o processo de fazer-conhecimento. Neste sentido, abrange a história e filosofia “não apenas da matemática, mas de tudo” (D’Ambrósio e Ascher, 1994, p.43).Numa tal amplitude, ela torna-se indefinível – como ele admite em sua mais recente publicação (1994, p. 449). D’Ambrósio está interessado em reivindicar um status para o conhecimento dos povos em sociedades não dominantes. Para fazer isto, a relação conhecimento e sociedade deve ser vista de uma forma global, para que haja uma equivalência nessa relação para todas as sociedades. A etnomatemática tem se tornado a ferramenta de D’Ambrósio para esta tarefa. Por conseguinte, o objeto da etnomatemática tem necessariamente se tornado mais global, a medida em que os parâmetros dessa tarefa têm se tornado claros. Para Gerdes, a etnomatemática foi inicialmente (1986b) a matemática implícita em cada prática. Ele escreveu sobre “o reconhecimento do caráter matemático” (p.10) e a identificação da “matemática congelada” (p.12) em técnicas de produção. Entretanto, Gerdes não discute a idéia de um corpo sistemático de conhecimentos, ele apenas descreve idéias isoladas que estão escondidas em exemplos da prática. Diferentemente de D’Ambrósio, Gerdes não liga a etnomatemática a diferentes sistemas de valores, embora ele reconheça que ela possa envolver diferentes códigos e convenções. A maioria de seus exemplos são elaborações da matemática ocidental inspiradas por práticas tradicionais. A perspectiva educacional emancipatória de Gerdes leva-o a conduzir as explorações etnomatemáticas nas culturas da África do sul. Há uma urgência em seu trabalho, um imperativo em rapidamente encontrar meios para transformar, por meio da educação matemática, uma cultura colonizada em uma cultura moderna, independente, que utilize a matemática mundial (1988, p.20). Esta agenda política imediata leva-o a concordar com D’Ambrósio no desenvolvimento do conceito de etnomatemática como um campo de pesquisa. Assim, em 1989, Gerdes descreve etnomatemática como um movimento (1989a). É uma reivindicação ativa de um ponto de vista matemático como parte da cultura nativa. Isto inclui a geração de novas matemáticas a partir da combinação de fontes tradicionais e da matemática convencional, como em seu exemplo usando desenhos Tchokwe. A etnomatemática é do presente, mais do que uma coleção de práticas do passado, e é motivada por objetivos sócio-políticos determinados, por exemplo, para contribuir para a consciência matemática do povo colonizado, ou para atrair atenção para a matemática como um produto cultural. Sua visão corrente, resumida em Gerdes (1994), define este movimento como um campo de pesquisa envolvendo reconstrução antropológica. Mas sua orientação é matemática e a etnomatemática permanece dentro deste contexto. Ascher partilha com Gerdes uma perspectiva de um profissional de matemática, assim o objeto da etnomatemática permanece dentro dos limites da própria matemática. Em 1986, Ascher definiu etnomatemática como “o estudo das idéias matemáticas dos povos não letrados” (Ascher e Ascher, 1986). Assim, ela já tinha se transferido das práticas em si, para o estudo de tais práticas de um ponto de vista matemático. Entretanto, a definição restringe as culturas de onde exemplos podem ser retirados. Junto com seu co-autor, um antropólogo, a intenção é recorrer a um trabalho etnográfico que esclareça nosso entendimento de matemática. Ascher vê estas idéias matemáticas como modelos, estruturas e padrões que podem ser manipulados e discutidos abstratamente. No artigo inicial há uma longa seção (1986, p. 137-139) dando evidências de que um sistema de parentesco dos Novos Hébrides foi concebido como um sistema abstrato e manipulado enquanto tal, isto é, não era apenas uma característica social à qual foi dada uma estrutura pelos antropólogos. Assim, a etnomatemática implica em conhecimento estruturado, não somente em sua manifestação prática. Essa é uma orientação a ser esperada de uma profissional de matemática. Mas, como matemática, Ascher é levada também à análise matemática dessas estruturas. A etnomatemática torna-se fazer a matemática em si, assim como identificar as estruturas e como elas são usadas. Ascher nem sempre é clara sobre a qual dessas duas atividades está se referindo, embora ela reconheça essa diferença e “confia que o leitor também o faça” (1991, p.3). Em seu trabalho sobre o quipu, em 1980, Ascher reconheceu que as idéias matemáticas de uma cultura têm “ressonância em outras partes daquela cultura” (D’Ambrosio e Ascher, 1994, p.6). A concordância com D’Ambrósio está no reconhecimento mútuo deles do potencial vitalizador da etnomatemática dentro da educação matemática. Porém a intenção de Ascher é vitalizar a matemática; e a de D’Ambrósio é fortalecer a educação. Para todos os escritores, as dificuldades iniciais em identificar o objeto da etnomatemática aconteceram porque este assunto é assumido como estando situado dentro de outra cultura. Isto causa dificuldade, porque não se considera a adequação do uso do termo matemática para descrever práticas ou conceitos em uma cultura que pode não conter a matemática como uma categoria de conhecimento. Outra dificuldade é a suposição colonialista de que todas as culturas possuem componentes que podem ser descritos em termos da matemática convencional. Assim, a etnomatemática evoluiu para um programa de pesquisa, com um referencial mais amplo. Ele agora inclui: (a) a formação de todo conhecimento (D’Ambrósio); (b) a matemática em relação à sociedade (Gerdes); e (c) as idéias matemáticas onde quer que ocorram (Ascher). O problema é conciliar esses alcances e reconhecer formalmente que, por meio do uso do termo “matemática”, o programa etnomatemático permanecerá, por ora, culturalmente delimitado. A etnomatemática é parte da matemática? A segunda questão a ser analisada diz respeito à relação entre etnomatemática e matemática. Seria a etnomatemática um precursor, um corpo paralelo de conhecimento, ou um corpo de conhecimento pré-colonial com respeito à matemática? Será visto que existem grandes diferenças entre os três autores que estão sendo discutidos e que essas diferenças podem ser relacionadas às intenções subentendidas em seus escritos. Existe, no entanto, uma evolução em cada uma das concepções: uma única evolução, que pode ser aplicada a todos os três modelos. Muitos dos artigos de D’Ambrosio sugerem que ele considera a etnomatemática como um tipo de conhecimento diferente da matemática. Em seu texto de 1984, por exemplo, é feita uma distinção muito clara entre a etnomatemática (que é ensinada informalmente) e a ‘matemática culta’ (que é ensinada nas escolas). A matemática culta é um corpo fechado de conhecimento e muda através da atividade dos matemáticos. Por outro lado, a etnomatemática tem uma interação contínua com todos os membros da sociedade. D’Ambrosio destaca que a etnomatemática e a matemática são paralelas e diferentes: "diferentes modos de pensamento podem conduzir à formas diferentes de matemática" (D’Ambrosio, 1985b: pag 44). Ele vê a matemática como originária da divisão entre a matemática acadêmica e a matemática prática. O artigo continua dizendo que a primeira é considerada agora como matemática e a segunda (que pode incluir técnicas de alto nível que não foram formalizadas ou às quais não foi dado rigor suficiente) é etnomatemática, porque pode ser identificada com algum grupo. Mas o caráter cumulativo do conhecimento etnomatemático é diferente do caráter cumulativo do conhecimento matemático. A matemática evolui internamente, pela construção de uma idéia até a seguinte, preservando a idéia antiga de alguma forma codificada que é incorporada à nova idéia. Por outro lado, a etnomatemática evolui como resultado de mudanças sociais, com novasformas substituindo as velhas. A experiência das formas antigas não é, deste modo, codificada dentro das novas, mas sim passa a fazer parte da prática. O programa de pesquisa de D’Ambrosio consiste em organizar sistematicamente essas práticas, de maneira a tornar óbvias a estrutura e a evolução da etnomatemática. Posteriormente (D’Ambrosio,1987), a matemática e a etnomatemática passam a ser distinguidas epistemologicamente. A primeira é considerada apriorística em comparação ao caráter relativo e evolucionário da etnomatemática. Essa distinção destaca o aspecto psico-emocional da etnomatemática em relação à matemática. A mudança histórica na natureza da racionalidade acontece dentro de um conjunto complexo de características sociais, explicando assim, a íntima relação entre etnomatemática e sociedade. A etnomatemática tem valor determinado e é validada pelas visões de mundo do indivíduo, enquanto a matemática é racional e é validada por uma hierarquia de autoridade. Para D’Ambrosio, a etnomatemática é inerente aos indivíduos na relação desses com o meio ambiente. O conhecimento estruturado que é produzido nesta interação é expropriado pela estrutura de poder e devolvido ao povo. Isto é feito codificando-o nos códigos racionalistas da matemática. Assim a matemática está contida dentro de uma cultura específica, mas a etnomatemática relaciona-se à construção do conhecimento em todas as culturas. A definição etimológica de D’Ambrosio (veja acima) constrói esta concepção, e "pode restabelecer para a matemática em cada cultura – isto é, para a etnomatemática – sua amplitude" (D’Ambrosio e Ascher, 1994: p 42). Por outro lado, Gerdes relaciona a etnomatemática à "matemática do povo" e à "matemática indígena", implicando então que ela é distinta da “matemática mundial”. Entretanto, Gerdes (1988b) chega a dizer que a matemática mundial é a união de todas possíveis etnomatemáticas. A idéia implícita de que a matemática mundial é um ideal, comparada com a realidade da etnomatemática, é diferente da concepção de D’Ambrosio. Também explica como a etnomatemática é um corpo vivo e mutável de conhecimento e torna compreensível o mecanismo do efeito colonizador da matemática ocidental. É a visão de mundo ocidental que está sendo propagada, não o conteúdo matemático em si. O foco de Gerdes na política da educação e a realidade de viver em uma sociedade à procura de educação para um urgente avanço tecnológico tem gerado uma conexão mais tranqüila entre a matemática e a etnomatemática. Gerdes (1994: p.20) mantém a idéia da união de muitas etnomatemáticas, mas também reconhece a implicação de que a etnomatemática, como tal conjunto, passa assim a ser definida em um outro nível, isto é, como o campo de pesquisa da antropologia cultural da matemática. Ascher considera a matemática e a etnomatemática como campos de estudo separados. A matemática é vista como uma categoria de conhecimento estritamente definida, particular da cultura ocidental. É a província dos matemáticos e tem uma história particular. Por outro lado, a etnomatemática é vista como o estudo das idéias matemáticas de culturas que não têm uma categoria de conhecimento com o rótulo “matemática”. Ela tem se referido a esse grupo como ‘não-letrado’ (Ascher,1986) e ‘tradicional’ (Ascher,1991) mas esforça-se para mostrar que isto não implica num status inferior ou num estágio dentro de um processo de desenvolvimento que levaria à matemática verdadeira. Assim, etnomatemática é diferente de matemática, a diferença sendo definida culturalmente. Onde está a linha a ser traçada entre a matemática e a realidade cultural? Em diversos estudos Ascher usa conceitos matemáticos convencionais, simbolismos e análises. Ela reconhece isso: ...ao tentar transmitir o significado das idéias, nós o faremos elaborando-as em nossas expressões ocidentais. Do princípio ao fim , nós diferenciamos... entre idéias matemáticas que estão implícitas e as que estão explícitas, e entre conceitos ocidentais que nós usamos para descrever ou explicar e aqueles conceitos que atribuímos às pessoas de outras culturas”. (Ascher, 1991, p.3). Como, então, podemos descrever suas análises? Seriam etnomatemática os próprios conceitos, como as relações de parentesco dos Warlpiri; e os diagramas de Ascher e a análise de grupo desses conceitos, matemática? Embora a etnomatemática e a matemática sejam distintas, para Ascher parece haver uma interseção entre elas. Ascher reconhece que a etnomatemática não pode ser definida universalmente como a interpretação dos conceitos matemáticos de uma cultura, por meio dos conceitos matemáticos de outra cultura. Esta tentativa de ser pan-cultural fracassa porque, embora nós possamos imaginar anciões Warlpiri analisando relações de parentesco européias, eles podem não perceber essas discussões como sendo matemáticas. Para eles poderia ser um inquérito etnogenealógico, isto é, eles usariam uma categoria específica de sua cultura. Uma atividade pan-cultural não pode ser definida nos termos de uma cultura. Desta maneira, o conceito de Ascher de etnomatemática é um conceito subjetivo. Entretanto, Ascher chega à sua idéia de etnomatemática a partir de dois pontos de vista diferentes. Há a "leitura" global de uma cultura que está implícita nas idéias matemáticas manifestas dentro dela e um reconhecimento dos aspectos diários da atividade matemática, por exemplo, a visualização geométrica do tecelão expressa através de ações e materiais. Como ela mesma coloca: “... O carpinteiro, definitivamente, está lidando com uma idéia matemática; o matemático que (decidiu arbitrariamente trissecar um ângulo só com régua e compasso) estava lidando com uma idéia. Elas são ambas importantes, mas são diferentes. E elas estão relacionadas”. (D’Ambrósio e Ascher, 1994, p.38). A idéia de um vínculo conduz a uma caracterização da visão de Ascher de etnomatemática, não como um assunto distinto que atravessa a matemática, mas como a interseção entre matemática e cultura. Figura 3 Poderiam as concepções dos três autores ser apresentadas juntas? Pedindo licença para a forma como a inclusão e a interseção estão sendo usadas e reconhecendo a simplificação que faz perder a riqueza do ponto de vista de cada autor, é possível exprimir por diagramas as relações entre a etnomatemática e a matemática que eles sugerem. Estes diagramas são desenhados para exagerar as diferenças. (E – etnomatemática, E* – etnomatemática como programa de pesquisa, M – matemática, C – cultura). Tendo exagerado as diferenças, a linha comum em todos os modelos é a idéia de etnomatemática como um programa interpretativo entre matemática e cultura. Cada modelo pode ser visto como uma espécie de janela (Oates, l994). Para D’Ambrosio é uma janela para o próprio conhecimento; para Gerdes é uma janela cultural para a matemática; e para Ascher é a janela matemática para outras culturas. Esta metáfora pode ser usada para colocar os problemas para uma definição de etnomatemática. Uma primeira análise refere-se ao que está sendo visto através desta janela. A segunda análise refere-se à natureza da janela. Uma última questão diz respeito aos atores neste processo de visualização. Cada um desses pontos é abordado na seção seguinte. Uma definição: Etnomatemática fazendo sentido A discussão acima requer uma definição de etnomatemática que esclareça tanto seu objeto, quanto sua relação com a matemática. Construindo a partir do conceito de programa de pesquisa de D'Ambrosio e Gerdes, e a partir do uso de Ascher de ‘idéias matemáticas’, a seguinte definição é apresentada: "Etnomatemática é um programade pesquisa do modo como grupos culturais entendem, articulam e usam os conceitos e práticas que nós descrevemos como matemáticos, tendo ou não o grupo cultural um conceito de matemática." O relato de uma definição requer três formas de elaboração. Primeiro, é necessário definir os termos usados; em segundo lugar, quaisquer implicações devem ser reveladas; e finalmente, a definição tem que se revelar útil na caracterização de etnomatemática. Quatro termos são críticos para a definição. Matemática. Refere-se aos conceitos e práticas do trabalho daquelas pessoas que se autodenominam matemáticos. Matemática, com este significado, é o que tem sido referido como "matemática erudita", “matemática escolar” ou "matemática mundial" (D'Ambrosio, l984; Carraher et al, l985 e Gerdes, l988b, respectivamente). A matemática, neste sentido, é extremamente difundida nas escolas e universidades ao redor do mundo. Porém, embora exista um grande fundamento comum neste assunto, existe também discordância na prática, sobre se alguns aspectos seriam legitimamente matemáticos. Matemático. Refere-se àqueles conceitos e práticas que são identificados como estando relacionados de alguma maneira à matemática. A relação pode ser identificada porque uma idéia corresponde a algum aspecto da matemática na sua estrutura ou simbolismo (por exemplo, os sistemas de parentesco, que podem ser vistos como estruturas de grupo), ou porque uma idéia está ligada a outras idéias que podem ser consideradas como matemáticas (por exemplo, as práticas de navegação estão vinculadas à trigonometria e à geometria esférica). As idéias matemáticas podem não ter sido aceitas por matemáticos como parte de seu objeto de estudo (por exemplo, o tradicional problema da ponte Königberg foi um enigma recreativo durante séculos, antes de tornar-se parte da matemática, como teoria das redes). As idéias matemáticas são freqüentemente inextricavelmente ligadas a outros conceitos que são claramente identificados como não matemáticos (por exemplo, os desenhos kowhaiwhai na arte Maori podem ser analisados matematicamente (Knight, l984), mas estarão sempre embutidos no simbolismo Maori). Ambos os termos matemática e matemático são culturalmente delimitados porque seus referentes dependem de quem está usando os mesmos. É possível, por exemplo, que alguns matemáticos venham a discordar sobre o que é legitimamente matemática. O nós usado na definição é um grupo que partilha um entendimento de matemática e que está interessado em etnomatemática. Este grupo incluirá geralmente matemáticos, que são tomados por definição, mas também incluirá outros, que tenham experimentado a matemática como uma categoria em sua própria formação. Quando uma cultura étnica diferente está envolvida, o nós refere-se aos membros de uma cultura que contenha a categoria matemática. O uso do pronome indica que o etnomatemático tem um ponto de vista particular. Cultural. Tomando o significado usado por D'Ambrosio, que se refere a um grupo de pessoas que tem “práticas desenvolvidas, conhecimentos e em particular, jargões e códigos, que claramente abrangem a maneira como eles matematizam, isto é, a maneira como contam, medem, relatam e classificam e a maneira como inferem” (D'Ambrosio l984). Tal grupo pode ser um grupo étnico, um grupo nacional, um grupo histórico ou um grupo social dentro de uma cultura mais ampla. Cultura refere-se a um conjunto identificável e compartilhado de comunicações, entendimentos e práticas. Não é necessário para a definição de etnomatemática que este conjunto seja exatamente descritível. Tendo definido os termos, existem quatro implicações da definição: (a) a etnomatemática não é um estudo matemático, é mais como antropologia ou história; (b) a definição em si depende de quem a está expressando e é culturalmente delimitada; (c) a prática que é descrita é também culturalmente delimitada; e (d) a etnomatemática implica alguma forma de relativismo para a matemática. A etnomatemática não é matemática A etnomatemática não consiste nas idéias matemáticas de outras culturas, nem é a representação dessas idéias pela matemática. Esses constructos podem ser parte da etnomatemática, mas não são sua essência. A etnomatemática é uma tentativa de descrever e entender as formas pelas quais idéias, chamadas pelos etnomatemáticos de matemáticas, são compreendidas, articuladas e utilizadas por outras pessoas que não compartilham da mesma concepção de ‘matemática’. Ela tenta descrever o mundo matemático do etnomatemático na perspectiva do outro. Assim, como na antropologia, uma das dificuldades da etnomatemática é descrever o mundo do outro com os seus próprios códigos, linguagem e conceitos. Neste sentido, a etnomatemática está mais para a história da matemática do que para a matemática. Uma história da matemática deverá conter muita matemática, mas trata em primeiro lugar da forma como as idéias originaram-se e desenvolveram-se dentro da matemática, não das idéias matemáticas em si mesmas. A história da matemática e a etnomatemática se sobrepõem. Contudo, a etnomatemática tenta desvelar como essas idéias eram percebidas no seu tempo e como as atividades matemáticas culturais do presente foram derivadas das do passado; a história da matemática tenta desvelar como essas idéias desenvolveram-se e como evoluíram até a matemática. A etnomatemática, de fato, cria uma ponte entre a matemática e as idéias (e conceitos e práticas) de outras culturas. Parte de um estudo etnomatemático elucidará por que aquelas outras idéias são consideradas matemáticas e dessa maneira, por que poderiam ser de interesse dos matemáticos. Tal estudo cria tanto a possibilidade da matemática prover uma perspectiva nova sobre os conceitos e práticas para os membros de outra cultura, quanto dos matemáticos ganharem uma nova perspectiva (e possivelmente novo material) para seu próprio objeto de estudo. Por exemplo, um estudo do quipu inca não é matemática, embora ele possa consistir na descrição do sistema quipu na forma numérica e esse sistema possa dar acesso a sistemas numéricos anteriormente não considerados dentro da matemática. Novamente, um estudo etnomatemático da colocação de tijolos, dificilmente levará à descoberta de uma nova matemática, mas esse estudo poderá fornecer um novo ponto de vista sobre certos conceitos geométricos e uma demonstração de alguns resultados geométricos de uma forma prática. A etnomatemática é culturalmente delimitada A definição de etnomatemática é culturalmente delimitada: é escrita do ponto de vista de uma cultura ou grupo social, ou seja, uma cultura ou grupo social que possui uma categoria conceitual chamada “matemática”. Um dos problemas dos textos etnomatemáticos é que eles têm tentado ser universais no alcance de suas definições. E ainda, este tipo de tentativa é uma negação da intenção do etnomatemático com relação à matemática. Parte dos propósitos da etnomatemática consiste em desafiar a natureza universal da matemática e em expor diferentes concepções matemáticas. Se este propósito for alcançado, então a etnomatemática também fica delimitada a um conceito particular de matemática. Logo uma definição universal não é possível. Uma definição culturalmente delimitada implica que não faça sentido, por exemplo, falar da “matemática dos Maori”, ou da “matemática dos carpinteiros”, a não ser que o grupo social em questão tenha uma categoria própria chamada matemática. Como a categoria matemática não é comum a todas as culturas, então o conceito etnomatemática não é reflexivo. Uma outra conseqüência da definição subjetiva é de que as culturasque não possuem a categoria matemática não podem ter uma atividade chamada etnomatemática. Não apenas a definição de etnomatemática é construída nos termos de uma cultura específica, como também a prática etnomatemática também precisa ser específica de uma cultura. Estudar a maneira pela qual outra cultura reconhece práticas e conceitos particulares é um exercício interpretativo de uma cultura sobre outra. Este tipo de atividade, necessariamente, precisa usar a forma de discurso do intérprete. Particularmente, o etnomatemático estará usando os conceitos da matemática. Por exemplo, no trabalho de Ascher (1991) sobre as relações de parentesco dos Warlpiri, ela utiliza os simbolismos e conceitos algébricos de estrutura de grupo para elucidar o componente matemático dos relacionamentos. Foi este componente matemático em primeiro lugar que tornou o tópico de interesse. Gerdes faz o mesmo ao analisar desenhos dos Tshokwe na areia, resultando numa matriz algébrica (Gerdes, 1990). A etnomatemática inclui um diálogo entre as idéias de outra cultura e os conceitos convencionais da matemática. Esse diálogo provavelmente encaminhará ambas para novas áreas de aplicação da matemática, e para uma nova matemática por meio da adaptação a novas idéias. Apesar do etnomatemático provir da cultura matemática, isso não significa que o diálogo seja totalmente influenciado por essa cultura. Se a prática da etnomatemática é feita de modo íntegro, haverá um reconhecimento dos aspectos das práticas e conceitos que são baseados em outra cultura e que, de início, não podem ser considerados matemáticos. É possível que alguns desses aspectos venham a ser incorporados na descrição e análise matemáticas das práticas, ou pelo menos venham a ter alguma influência sobre as mesmas. Além disso, se o foco do estudo é contemporâneo, é possível que haja membros de outra cultura ou grupo que estejam interessados no diálogo, e que estarão reinterpretando, em termos de sua cultura, as atividades matemáticas do etnomatemático. Essas pessoas, e o etnomatemático, serão capazes de se entender, e poderão ‘ver’ o que o outro está dizendo com exatidão suficiente para falar sobre a questão. Deste modo, a etnomatemática pode ser vista como um processo da construção social do conhecimento num nível cultural. Este é o processo criativo da etnomatemática: esse estudo é capaz não apenas de estender a matemática existente aplicando-a em novas áreas, como também a matemática pode ser enriquecida por meio de um reexame de seus conceitos, da perspectiva de outra cultura. Relativismo Matemático Esta definição de etnomatemática implica dois sentidos de onde a matemática é universal, e dois sentidos de onde ela é relativa. O primeiro sentido universal vem do fato que, se você é de uma cultura matemática, então é possível identificar aspectos matemáticos de todas as outras culturas. Em outras palavras, é possível ver todos os outros mundos através de uma perspectiva matemática. Por exemplo, Bishop (1988) identifica seis práticas pré- matemáticas que ele afirma estarem presentes em todas culturas: contar, medir, localizar, desenhar, jogar e explicar. Isto deixa aberta a questão se os números (ou triângulos ou o contínuo) existem de forma real porque todo mundo conta, (ou projeta ou mede), ou se esses 'objetos' são meramente ferramentas conceituais com existência apenas para quem os concebe. O segundo sentido pelo qual a matemática é universal resulta do fato que, se você reconhece alguma categoria matemática, logo você reconhece a categoria convencional. Se você não o fizer, então fica difícil justificar o uso do qualificativo “matemática”. A matemática existe enquanto uma categoria do conhecimento. Se você chama outra coisa de matemática, então você não compreende o que é a matemática. Esta auto-referência universaliza a matemática para aqueles que fazem parte de um contexto matemático. Esses aspectos universais da matemática são equilibrados por dois sentidos pelos quais é possível dizer que a matemática é relativa. Em primeiro lugar, a matemática deve estar mudando. Esta mudança precisa ser mais do que uma construção evolutiva a partir do que veio antes, ela deve envolver uma mudança revolucionária no sentido de Daubin (Gillies, 1993). Não existe nenhuma dificuldade para qualquer matemático aceitar que seu objeto de estudo é crescente, com idéias construídas a partir das anteriormente existentes, com novas concepções incluindo as velhas, a partir de um novo paradigma. Entretanto, a etnomatemática requer mais do que isso. Ela deve admitir a possibilidade da existência de outros conceitos matemáticos que não sejam subordinados aos já existentes, ou a alguma generalização nova e mais abrangente. Isto não quer dizer que todos os estudos etnomatemáticos gerarão matemáticas alternativas. O que é necessário é a idéia de que isso possa acontecer: de que idéias novas possam transformar a maneira como a matemática é concebida. Se esta possibilidade não for admitida, então a etnomatemática reduz-se ao estudo de práticas culturais particulares do ponto de vista de um matemático, (oposta à idéia de um estudo do modo pelo qual outras pessoas concebem suas próprias práticas). A etnomatemática torna-se assim uma parte (não muito importante) da matemática. A menos que a matemática possa mudar de uma maneira radical, não há porque examinar o modo como outras pessoas vêm coisas que nós chamamos de matemáticas. Se existe somente uma única visão do fenômeno matemático, então por que tentar e encontrar um outro? O segundo sentido pelo qual a matemática deve ser relativa é aquele de que deve haver um reconhecimento de que a matemática não é o único modo de ver o mundo, nem ela é o único modo de ver aqueles aspectos do mundo comumente referidos como matemáticos, isto é, relacionados com número, forma e relações. Além do mais, é necessário que haja um reconhecimento de que modos alternativos de ver estes fenômenos são legítimos e válidos, pois se eles não são legítimos, então não existe nenhum sentido em tentar estudá-los, só teria sentido a procura de caminhos para ‘educar’ aqueles que não enxergam da maneira ‘correta’. Esta segunda versão da relatividade tem algumas implicações para a natureza do fenômeno matemático. Se é verdade que números (triângulos, grupos,...) têm uma realidade fora daqueles que os expressam, então um etnomatemático pode interessar-se somente pela maneira como as pessoas de outras culturas se aproximam desses objetos reais. Eles não estariam interessados nas percepções dos outros, somente se interessariam sobre o quão próximas aquelas percepções estão das concepções ideais do matemático. O etnomatemático deve ter como pressuposto de trabalho a idéia de que os símbolos e as concepções do matemático são limitados na tarefa que se propõem a executar. O etnomatemático vai estar constantemente tentando superar as limitações dessas ferramentas matemáticas (e poderá gerar ferramentas novas durante o processo). Se a matemática tem uma realidade platônica, então não haverá nenhuma tensão entre as ferramentas e a atividade etnomatemática. Para esclarecer a dicotomia universal/relativo, pode ser útil a distinção entre relatividade histórica e relatividade contemporânea. Se nós nos perguntarmos se existem, verdadeiramente, outras matemáticas com poder equivalente ao que comumente entendemos como matemática, então a resposta é não. Por outro lado, se nós nos perguntarmos se matemática poderia ter sido diferente, então a resposta é sim. Historicamente, a linha de progresso da matemática poderia ter sido outra. Não há maneira de sabermos que teoria da matemáticanós poderíamos ter agora, nem se esta teoria hipotética seria mais compreensível, mais sofisticada, mais aplicável (ou ‘melhor’ de acordo com algum outro critério de progresso). A evidência de que a história poderia ter sido diferente é necessariamente circunstancial. Isto requer um pensamento- experimental do tipo ‘e se’, e isto é o porquê de termos a forte ilusão de que existe apenas uma única matemática. É tarefa da sociologia da matemática identificar os lugares de onde idéias divergentes poderiam ter mudado o curso da história, e rastrear aqueles caminhos da maior distância possível. A falta de mais de uma matemática contemporânea e sofisticada, não implica na universalidade da matemática que conhecemos – somente contribui para nossa sensação de sua veracidade. A relatividade contemporânea é melhor concebida como sendo o potencial para o desenvolvimento matemático. Categorizando estudos etnomatemáticos A definição pode ser usada agora para caracterizar a etnomatemática. Isto é feito classificando-se estudos etnomatemáticos e descrevendo-se atividades etnomatemáticas. Uma classificação Uma característica crucial da etnomatemática é a de que um grupo está tentando compreender práticas e concepções particulares que são dominadas por outro grupo. O modo pelo qual o segundo grupo é identificado fornece três dimensões de acordo com as quais a etnomatemática pode ser classificada. São as dimensões de tempo, cultura e matemática. Na dimensão tempo, a etnomatemática pode estar interessada nas concepções de um grupo cultural antigo ou contemporâneo. Por exemplo, pode incluir o modo como o quipu dos Incas era utilizado e desenvolvido (Ascher, 1981), ou as estruturas genealógicas de povos indígenas australianos de nossos dias (Cooke, 1990). A dimensão cultura da definição abrange desde um grupo étnico distinto, até um grupo puramente social ou vocacional. Assim, a etnomatemática pode incluir o modelo da tecelagem da kete Maori, a estatística esportiva na cultura de lazer esportiva na Nova Zelândia, ou as práticas de medição dos carpinteiros. A dimensão matemática da etnomatemática é determinada pelo relacionamento das idéias matemáticas com a matemática em si, isto é, a etnomatemática é um estudo que pode ser interno à própria matemática, ou transferido conceitualmente das convenções matemáticas existentes. Um exemplo no limite interno do espectro são as concepções conflitantes de estatística no debate Bayesiano/Frequentista; um exemplo externo é a tradicional navegação Polinésia. Os vários estudos de etnomatemática podem possivelmente ser colocados dentro dessas dimensões: ver fig. 4. Figura 4 Cada uma dessas dimensões é um contínuo, e estudos etnomatemáticos podem ser localizados em qualquer ponto do espaço. Por exemplo, as questões etnomatemáticas a partir de três pontos deste espaço são: B: Histórica, grupo étnico, interno Quais eram as práticas e concepções matemáticas dos antigos hindus? Ou dos Gregos? É geralmente reconhecido que essas foram duas das origens da matemática dos tempos modernos, mas suas visões sobre o tema divergiam das concepções de hoje. H: Contemporâneo, grupo social, externo Os carpinteiros fazem matemática? Os diagramas de um manual de basquetebol são matemática? E os cálculos requeridos para se jogar “Dungeons and Dragons”? Até que ponto os padrões do tricô são um sistema simbólico matemático? Existem muitas atividades em cada cultura que possuem componentes matemáticos que podem ser identificados, estudados e relacionados à matemática corrente. G: Histórica, grupo social, externo A viagem marítima, seja Polinésia ou Européia, era uma antiga arte praticada por navegadores e capitães de muitas nações. Seus sistemas de navegação têm sido objeto de muitos estudos e debates concernentes à extensão em que os mesmos representam sistemas matemáticos. A Atividade etnomatemática Tendo classificado os estudos etnomatemáticos é necessário perguntar-se como esses estudos são empreendidos. O que deve um etnomatemático fazer a fim de perceber como as pessoas de outras culturas entendem, articulam e usam conceitos matemáticos? Quatro tipos de atividades são relevantes: descritiva, arqueológica, matematizadora e analítica. Qualquer uma ou todas elas podem fazer parte da etnomatemática. Atividade Descritiva A primeira tarefa do etnomatemático é descrever as práticas ou concepções que estão sendo consideradas. Isto significa uma descrição que, tanto quanto possível, é feita dentro do contexto da outra cultura. Ela provavelmente se utilizará de linguagem comum e incluirá alguns conceitos da outra cultura que estejam relacionados ao assunto em questão. A descrição focalizará não apenas os aspectos matemáticos, mas poderá valer-se de convenções antropológicas ou da teoria. São exemplos desta atividade partes do trabalho de Ascher (1991), Abreu e Carraher (1989) sobre a matemática dos plantadores de cana-de-açúcar brasileiros, e o livro de Kyselka (1987) sobre os sistemas de navegação da Ilha Carolina. Atividade Arqueológica Uma vez que a atividade tenha sido descrita há vários caminhos de fazer ressaltar os aspectos matemáticos. Um desses é voltar no tempo, para descobrir a matemática que se encontra atrás da prática ou concepção corrente. Isto é uma investigação mais arqueológica do que histórica, porque a história da prática não estará escrita usualmente em termos matemáticos. Assim, não se trata de encontrar documentos ou antecedentes matemáticos, mas de encontrar a matemática subentendida na origem da prática. Este é o tipo de atividade referida por D’Ambrósio (1985a), em seu programa etnomatemático. Ele identifica especialmente a história matemática de práticas existentes, que envolve a maneira como práticas anteriores foram descartadas ou modificadas ao longo do tempo. Descobrir esta história pode não ser fácil, uma vez que práticas antigas teriam desaparecido a medida em que se tornaram menos úteis. Gerdes, também, discute a necessidade de "descongelar" a matemática de práticas culturais tais como a tecelagem e a construção de casas (1988). Ele observa que os artesãos dos dias atuais não estão necessariamente conscientes da matemática implícita nessas atividades, mas que algum entendimento dos princípios matemáticos deve ter estado presente quando as práticas foram formuladas. Atividade matematizadora Um segundo modo de expor os aspectos matemáticos em um estudo etnomatemático é por meio da matematização, isto é, traduzindo-se o material cultural para uma terminologia matemática, e relacionando-o aos conceitos matemáticos existentes. Nesta atividade, o etnomatemático está conscientemente evitando o contexto da prática original, a fim de elucidar a matemática. Tal trabalho não implica que a outra cultura tenha tal consciência matemática, ele apenas identifica e desenvolve a matemática implícita na atividade. Exemplos desta matematização interpretativa é o trabalho de Ascher (1991) com respeito às relações de parentesco dos Warlpiri e os desenhos na areia dos Tshokwe. Na Nova Zelândia foi feito um trabalho similar sobre os modelos de jangada e padrões de tecelagem dos kowhaiwhai (Knight 1984). Assim como matematizar interpretativamente é possível trabalhar-se com a matemática interpretada e ampliá-la num sentido matemático. O propósito de tal atividade pode ter dois desdobramentos: favorecer uma investigação puramente matemática e criativa, ou reinterpretar a matemática ampliada no contexto original, a fim de ganhar mais compreensão daquele contexto. Um exemplo de uma investigação matemática criativa utilizando os desenhos de areia dos Tchokweé citado em Gerdes (1992: p.12). Um exemplo de matemática ampliada sendo reinterpretada é o trabalho de Ascher (1991: p. 95-109) com respeito a Mu Torere, um jogo Maori, que mostra a idéia de que os primeiros Maori tinham provavelmente consciência de que as versões alternativas do jogo não eram tão interessantes quanto a versão que sobreviveu. Atividade Analítica Tendo descrito e desenvolvido idéias matemáticas de outras culturas, pesquisadores procuram descobrir porque as práticas são como elas são. Se o objetivo é entender as percepções de outro grupo, então os aspectos que influenciaram o desenvolvimento do fenômeno precisam ser considerados. Esta atividade é mais histórico/social do que matemática. Exemplos das questões formuladas na atividade analítica são: Quais eram os requisitos práticos para a tecelagem de redes de peixes? Que perguntas estatísticas estavam sendo feitas quando as visões freqüentistas de probabilidade foram desenvolvidas? Que efeito teve o tipo de embarcação no desenvolvimento dos sistemas de navegação Europeu e Pacífico? Quais são as convenções artísticas com as quais os artistas Maori trabalham? Qual é o efeito hereditário das relações de parentesco dos Warlpiri? Os quatro tipos de atividade etnomatemática aqui descritos correspondem a atividades habitualmente associadas à história, matemática, antropologia e sociologia. Juntas elas constituem um campo de estudos fascinante, proveitoso e criativo. Mecanismos de interação O que resta a ser feito nesta análise da etnomatemática é descrever o mecanismo da interação entre a matemática e a etnomatemática. Em que níveis a etnomatemática torna-se parte da matemática e qual é o status da matemática que se origina de estudos etnomatemáticos. A que ponto o domínio é relevante, a que ponto ele se perde? Quando é apropriado o uso de palavras como apropriação e colonização do conhecimento, e quando é apropriado falar de crescimento e desenvolvimento da matemática? Tal discussão fica para um artigo futuro. Dois exemplos de etnomatemática Uma definição e uma descrição de etnomatemática têm agora sido feitas. Será que isto pode acrescentar alguma perspectiva a exemplos específicos, de idéias que poderiam ser descritas como matemáticas, mas não são inicialmente consideradas deste modo em suas culturas de origem? Dois exemplos bem diferentes foram escolhidos. O primeiro, tecelagem tripla, não é novo na literatura etnomatemática. O segundo, estatística dos esportes, foi escolhido porque é contemporâneo e originário de conceitos estatísticos reconhecidos. Tecelagem tripla A tecelagem tripla ocorre em várias partes do mundo – Gerdes (1992) menciona exemplos de Moçambique, Brasil, Índia, Laos, China, Japão e Indonésia. Cada um dos padrões abaixo é um exemplo de modelo de tecelagem tripla. O leitor está convidado a gastar alguns momentos decidindo que padrões são do mesmo tipo, isto é, fazendo uma simples classificação desses quatro desenhos. Figura 5 O aspecto interessante desses modelos é que, do ponto de vista da tecelagem, três deles poderiam ser classificados juntos, a saber: A, B e D. O padrão C é bem diferente. Neste tipo de tecelagem é comum que a ordem das cores dos fios seja a mesma em todas as três direções. Em cada um dos modelos A, B e D a ordem é branco/branco/preto. A tecelagem é idêntica, é o deslocamento das tiras branco/branco/preto para a direita ou para a esquerda que fornece um modelo diferente. O padrão C é obtido alternando-se os fios branco/preto/branco/preto. É possível levar esta análise muito mais adiante, estabelecendo-se estruturas teóricas de grupos de padrões e a relação entre eles. Essas estruturas são prontamente identificadas como matemáticas. Elas serão referidas daqui por diante como análise de fios. A análise de fios fornece resultados diferentes de uma análise simétrica. Por exemplo, na análise simétrica os modelos A e C seriam classificados juntos como tendo três dobras de simetria rotacional, e todos os modelos têm linhas de simetria diferentes. Existem, no entanto, evidências culturais de que a análise de linhas é uma reconhecida base de discurso entre tecelões. Os tecelões Maori da Nova Zelândia usam a palavra whakapapa para descrever a maneira como os fios são compostos antes de tecer. Na tecelagem de suas cestas e esteiras, é dado o mesmo nome genérico a diversos desenhos com o mesmo whakapapa. Por exemplo, os padrões mostrados abaixo são todos referidos como patikitiki, apesar de sua similaridade não ser imediatamente óbvia para não-tecelões, mesmo quando se sabe olhar para a ordem das cores das fibras. O essencial desse exemplo é que a diferença matemática reside no processo de análise, na base da linguagem usada para descrever o padrão, e na classificação resultante. Isso não é para sugerir que a análise de fios deve ser igualada à análise simétrica do padrão. A simetria tem uma esfera de aplicação ampla, enquanto a análise das linhas é restrita à tecelagem. Mas a análise de linhas não é um subconjunto da análise de simetria: ela é diferente num sentido matemático importante e significativo. Uma visão de etnomatemática como o estudo de idéias bem como de práticas nos alerta para olhar além dos artefatos ou práticas para os conceitos que estão atrás deles. Neste caso particular, o reconhecimento que a análise de linhas é construtiva (isto é, ela está baseada nas ações dos tecelões fazendo seu trabalho) levanta a mesma questão sobre simetria. Até que ponto a analise simétrica surgiu do ato de fazer desenhos? Em outras palavras, até que ponto as origens desse ramo da matemática dependem das ações dos artistas e desenhistas? Clareando-se a natureza relativa da maneira pela qual analisamos formas, abrem-se nossas mentes para outras possibilidades e, deste modo, aumentam nossas chances de obter algum pensamento matemático criativo. Figura 6 Nos termos das quatro atividades etnomatemáticas descritas acima, a descrição da tecelagem tripla focaliza a atenção nos padrões e no processo construtivo, a arqueologia expõe a existência e profundidade da análise de linhas como uma base alternativa para o padrão. O matematizar mostra que a análise de fios é uma forma verdadeiramente matemática de riqueza considerável e a análise leva-nos a questionar as raízes sociais da simetria. Isto tem acrescentado para os meios potenciais de produção de desenhos de cestas para tecelões, bem como tem aberto uma nova área para a investigação matemática. Estatística esportiva Um exemplo de uma concepção cultural diferente em matemática, que se originou na cultura ocidental contemporânea, é o uso da estatística esportiva. A maneira como idéias estatísticas têm sido usadas no esporte representa um tipo diferente de análise do que é ensinado nas escolas. Considere as análises estatísticas que são mostradas nas telas de nossas tevês durante o progresso de um jogo: digamos num dia, críquete, netball, rugbi, ou futebol. Em um dia de críquete tais dados incluem: pontos para batedores e taxas de strikes para lançadores. Os dados do netball incluem posse, porcentagem de pontos feitos pelo “goal shoot” e “goal attack”, diferença de pontos em diversos estágios do jogo e prorrogação. Os dados da liga de rugbi incluem: domínio de território, derrubadas de jogadores no território oponente, número de derrubadas feitas por jogadores individuais, taxa de gols feita por jogadores, erros de manobra e contagem de pênaltis e de luta pela bola. Os dados do futebol, semelhantemente, incluem domínio de território e manutenção da posse de bola. Para chegar à base da análise é necessário olhar para ascaracterísticas dessas estatísticas: elas são mais razões do que medidas; elas descrevem um estado em vez de um objeto como uma população, elas estão em mudança contínua e acumulativa, ao invés de serem descritores estáticos; elas são temporárias; e espera-se que elas sejam indicadores preditivos para um evento no futuro. Para o telespectador o objetivo principal é a previsão do resultado final do jogo. Note-se que a previsão em si varia em importância ao longo do jogo – estamos cientes de que ela é maior no terceiro quarto do jogo, e não tem nenhuma conseqüência depois do evento. É possível caracterizar-se estatísticas esportivas usando as definições de estatística encontradas no dicionário ou entre estatísticos em geral. Entretanto, apenas porque se pode descrever análises esportivas nestes termos, isto não significa que aquela concepção de estatística é apropriada para a análise. Deve haver uma descrição alternativa que seja mais precisa, ou mais plausível para os usuários dessas estatísticas. Por exemplo, estatísticas esportivas poderiam ser descritas como mais Bayesianas do que Freqüentistas. Esta distinção encontra-se nos fundamentos das estatísticas e é muito debatida entre profissionais da área da estatística. A visão tradicional, freqüentista, está por detrás da estatística escolar – o único conhecimento estatístico experimentado pela maioria daqueles que estão nos meios culturais de lazer desportivo. Uma interpretação freqüentista seria pensar no resultado de um jogo como sendo um membro de uma população de encontros entre dois times. Entretanto isto não faz sentido de um ponto de vista intuitivo, uma vez que as exatas condições de um jogo nunca se repetem. Por outro lado, faz sentido considerar cada jogo como um evento único sobre o qual temos algumas informações prévias, e, à medida que o jogo prossegue, essas informações prévias são modificadas dando-nos novas probabilidades para o resultado. Esta é uma concepção Bayesiana. O que revelaria um estudo etnomatemático dessa situação? Esta breve descrição indica a pertinência de uma explicação não-padronizada, Bayesiana, de estatística. Um estudo arqueológico pode revelar mais sobre a formação de probabilidades prévias por espectadores esportivos. A probabilidade prévia é um problema contínuo para estatísticos Bayesianos, que poderiam ser ajudados por esse estudo. A matematização pode levar a novos e melhores métodos para análise de jogos. Por exemplo, nesse ponto parece ser uma oportunidade para desenvolver uma teoria sobre a força de uma predição baseada em estatísticas cumulativas, como aquelas usadas nos esportes. Conclusão O caleidoscópio do nosso mundo pode ser visto de diferentes ângulos, que mostram diferentes padrões. Deste modo, a etnomatemática é uma ferramenta por meio da qual podemos ter uma compreensão melhor do nosso mundo, tanto de como nós o vemos, quanto de como os outros o vêem. Este artigo tentou criar uma estrutura com a qual se possa falar sobre cultura e matemática. Ele faz isso reconhecendo nossas intenções como escritores e oradores. O mapa resultante, as análises decorrentes do mesmo e a definição de etnomatemática conseqüente podem ajudar a categorizar estudos e atividades etnomatemáticos. Não há dúvida que a matemática é um aspecto valioso do conhecimento humano e que vale a pena ser seguido. Também não há dúvida de que o papel que ela correntemente exerce em muitos países e culturas é uma versão limitada de seu potencial. O objetivo da educação matemática é promover a compreensão matemática para todos. Para realizar isso, é necessário mudar o status e as funções da matemática em nossa sociedade. Uma concepção etnomatemática para a tarefa da educação matemática atende a essa mudança. Nas palavras de D’Ambrósio, “A revitalização da matemática através da etnomatemática será o resultado porque a pedagogia da etnomatemática é uma pedagogia ativa”. (D’Ambrósio e Ascher, 1994). O reconhecimento do componente cultural da matemática aumentará nossa apreciação de seu alcance e de seu potencial para prover uma visão do mundo interessante, artística e útil. Referências bibliográficas ABRAHAM, J., BIBBY, N. Mathematics and Society: Ethnomathematics and a Public Educator Curriculum. For the Learning of Mathematics 8(2). 2-11, 1988. ABREU, G., CARRAHER, D.W. The Mathematics of Brazilian Sugar Cane Farmers. Keitel, Damerow, Bishop e Gerdes (eds.). Mathematics, Education and Society, UNESCO, Paris, 1989. ASCHER, M. 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