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METODOLOGIA DA ARTE EDUCAÇÃO E MÚSICA Professora: Esp. Lídia Mara BRASILIA – DF 2019 2 Texto I A contribuição de John Dewey ao ensino da arte no Brasil Erika Natacha Fernandes de Andrade e-mail: erikaandra@hotmail.com Universidade de São Paulo. Brasil Marcus Vinicius da Cunha e-mail: mvcunha2@hotmail.com Universidade de São Paulo. Brasil Resumo: Este trabalho pretende mostrar que as teses de John Dewey sobre estética e arte consolidadas no livro Arte como experiência oferecem importante contribuição para redirecionar as discussões feitas atualmente no Brasil acerca do ensino da arte no âmbito da educação de crianças. Tais discussões têm se concentrado no problema da certificação formal dos professores, em detrimento de refletir sobre a formação desses profissionais, no que se inclui o modo como compreendem os conceitos de arte e educação e o modo como os articulam para constituir métodos de ensino. Embora Dewey não apresente orientações metodológicas, este trabalho defende que seus princípios filosóficos podem ser associados a suas teses educacionais. Ao conceituar a arte como experiência e como forma de linguagem e ao enfatizar o valor da experiência rítmica na vida cotidiana, Dewey aprofunda sua noção de pensamento reflexivo, na qual se encontra a base de suas propostas para a renovação das ideias e práticas pedagógicas, considerando o modo de vida democrático como uma possibilidade. A junção das teses estéticas e artísticas com as proposições educacionais deweyanas é caracterizada neste trabalho como uma pedagogia retórica, expressão que define a educação como guiada pela meta de construir uma democracia radical por meio da formação de indivíduos capazes de compor e expressar o poder que emana de suas inclinações pessoais, não em benefício exclusivo de sua vida individual, mas visando ao bem da coletividade. Palavras chave: Esporte, Projeto Social, Autonomia. 1. Um breve percurso pela história A intenção primeira deste trabalho consiste em destacar as potenciais contribuições da filosofia estética de John Dewey para o ensino da arte e, assim, mostrar a necessidade de retomar o exame dessa temática específica no interior da obra deweyana. Ao transportar as concepções do filósofo para o campo da educação, com o intuito de evidenciar a nova perspectiva que se abre para o desenvolvimento dos educandos, será possível notar também a relevância dessa discussão para esclarecer os requisitos que se impõem à formação do professor, contrariando a ênfase dos debates vigentes no Brasil na atualidade. O eixo dessas análises será o livro Arte como experiência, elaborado por Dewey quase vinte anos depois de sua obra educacional mais importante, Democracia e educação (Dewey, 1959b), de 1916. Embora separadas por longo tempo, e apesar de Arte como experiência não ser um texto sobre educação, as teses educacionais deweyanas se beneficiam amplamente quando associadas às reflexões do autor sobre estética e arte. 3 Para alcançar essa meta, é preciso, antes de tudo, compor um breve percurso pela história, começando por notar que, até meados do século XX, o ensino da arte no Brasil caracterizou-se pela importação e decodificação de modelos estrangeiros, o que dificultou o desenvolvimento de uma cultura própria e a consolidação de projetos autorais nessa área, e mesmo na educação em geral (Barbosa, 2002, p. 39). Na época do Império, encerrada em 1889 com a proclamação da República, houve várias tentativas de silenciar a arte barroca popular, tipicamente nacional, em benefício da orientação europeia neoclássica, em consonância com os ideais de modernização difundidos por setores da elite. No período pré-republicano verificou-se a influência norte-americana de Walter Smith, defendida por reformadores liberais que visavam à alfabetização e à preparação para o trabalho industrial, em contraposição aos positivistas de inspiração comtiana, que preferiam o estudo e a cópia de ornatos, almejando o aperfeiçoamento da capacidade criativa (Barbosa & Coutinho, 2011; Barbosa, 2012). A inserção de John Dewey nessa área teve início na década de 1920, quando se articulou o amplo movimento de renovação das ideias e práticas educacionais genericamente denominado, Escola Nova - O movimento escolanovista é usualmente saudado pelos historiadores como responsável por introduzir inovações em vários setores da educação (metodologias, programas de ensino, gestão escolar etc.). Conforme será possível notar nos parágrafos seguintes, o ensino da arte também foi contemplado naquele período, embora sem regularidade ao longo do tempo e sem adotar uma orientação filosófica unitária. O traço comum desse movimento era a tentativa de superar problemas metodológicos que limitavam a formação dos alunos e, consequentemente, impediam o progresso da nação. As propostas de solução, no entanto, dividiam-se em duas tendências: de um lado, sob a égide de uma perspectiva tecnicista e formalista, pretendia-se subordinar o indivíduo às ordenações do ambiente social, no intuito de produzir de maneira mais objetiva o avanço do país; de outro lado, sob a inspiração de concepções deweyanas, buscava-se a modernização educacional por meio da valorização dos traços psicológicos individuais dos educandos, sem desviar a escola de suas funções socializadoras. As teses de Dewey sobre educação, arte e estética foram interpretadas e apropriadas de diversas maneiras, com variadas tentativas de transformar os pressupostos do autor em práticas e métodos de ensino, especialmente na educação primária (Cunha & Garcia, 2009; Barbosa, 2002; Barbosa & Coutinho, 2011). 4 A difusão das teorias de Dewey por alguns intelectuais, com destaque para Anísio Teixeira, possibilitou a incorporação da arte às reformas dos sistemas públicos de ensino ocorridas no Distrito Federal e, em vários estados da federação - Destacam-se as reformas comandadas por Anísio Teixeira na Bahia (1925 a 1929) e no Distrito Federal/Rio de Janeiro (1932 a 1935); Francisco Campos em Minas Gerais (1926 a 1929); Fernando de Azevedo no Distrito Federal/Rio de Janeiro (1927 a 1930); e Antônio Carneiro Leão em Pernambuco (1929 a 1930). No Distrito Federal o ensino da arte foi diretamente influenciado por Nereu Sampaio, professor de desenho da Escola Normal do Rio de Janeiro, que, interpretando as ideias deweyanas a seu modo, preconizava a mera apreciação fenomênica e a produção de representações realísticas de objetos observados, sem considerar o valor da imaginação. Em Pernambuco houve problema semelhante, uma vez que as teses deweyanas serviram de fundamento para colocar o trabalho artístico como prova fria da assimilação de conteúdos curriculares pelos alunos (Barbosa, 1998; Barbosa, 2002; Barbosa & Coutinho, 2011). As propostas implementadas em Minas Gerais parecem ter sido mais fiéis a Dewey. Arthus Perrelet, professora vinda da Europa para auxiliar na remodelação do ensino, era admiradora confessa dos ideais deweyanos, entendendo que a experimentação e a exploração de materiais variados eram imprescindíveis ao desenvolvimento de hábitos de pensar e modos de expressão artísticos. O método criado por ela incorporava a ideia de que a ação e o movimento, constituindo a base dos conhecimentos artísticos, são fundamentais para ampliar as interações da criança com o mundo, com ênfase nas relações sociais. Seu projeto continha experiências com representações gráficas expressivas, afastando o desenho da limitação realística, para que os educandos alcançassem a significação das coisas. Com a saída de Perrelet do Brasil,suas propostas foram adaptadas mecanicamente ao cotidiano das escolas, sendo reduzidas à simples cópia de esquemas de figuras desenhados na lousa pelo professor (Barbosa, 1998; Barbosa, 2002; Barbosa & Coutinho, 2011). Mário de Andrade, chefe do Departamento de Cultura do município de São Paulo na década de 1930, opôs-se à falta de senso crítico na utilização de tendências estrangeiras. Suas iniciativas podem ser vistas como associadas às concepções deweyanas difundidas por alguns escolanovistas, situando-se na vanguarda do movimento em prol da renovação do ensino, e do ensino da arte, em particular. A Escola Brasileira de Arte, fundada por ele, funcionava em uma sala anexa a uma escola 5 pública, desenvolvendo projetos extracurriculares para crianças; os Parques Infantis por ele incentivados operavam em tempo integral, adotando programas de valorização das brincadeiras e outras formas de manifestação cultural; seus projetos foram especialmente relevantes por inaugurarem iniciativas autorais na associação entre arte e educação, levando em conta as necessidades dos alunos e as problemáticas sociais e culturais do momento (Faria 1999; Barbosa, 1998; Barbosa & Coutinho, 2011). Todas essas experiências inovadoras processadas desde a década de 1920 foram praticamente silenciadas durante o período ditatorial denominado Estado Novo, vigente entre 1937 e 1945. O interesse genuíno pela inserção da arte na educação foi retomado somente em 1947, com a redemocratização do país e a revisão dos ideais da Escola Nova. No final da década de 1950 o Brasil ingressou em uma era de intensa politização, em decorrência da crescente ineficiência do poder estatal para combater as desigualdades sociais; a educação foi entendida como parte do sistema cultural mais amplo, o que fomentou a produção de pesquisas sobre o ensino da arte e, igualmente, sobre a educação por meio da arte. Difundiu-se a abordagem que enfatizava o treino de técnicas e a profissionalização, mas foram também veiculadas teorias que privilegiavam a liberação emocional, sem direcionamentos que viessem a impedir o desabrochar da originalidade e da criatividade. Esse último modelo foi interpretado como decorrente dos princípios escolanovistas, e, consequentemente, do ideário deweyano, o qual, por sua vez, passou a ser caracterizado como portador de propostas espontaneístas que desvalorizavam os conteúdos e os procedimentos próprios do campo da arte. Sem o estudo adequado dos textos produzidos por Dewey, o conceito deweyano de experiência estética tornou-se sinônimo de mera liberação de sentimentos, e a arte, uma habilidade voltada exclusivamente à livre fruição (Barbosa, 1998; Barbosa & Coutinho, 2011). Tais equívocos começaram a ser notados na década de 1980, quando Ana Mae Barbosa apresentou a Proposta Triangular para o ensino das artes visuais, cuja meta consistia em organizar o trabalho pedagógico com base na leitura de obras, imagens e objetos de arte. Barbosa destacava a necessidade de contextualizar as produções artísticas, as situando no âmbito da história e levando em conta fatores históricos, sociológicos, biológicos e psicológicos, para que os fazeres artísticos propiciassem experiências significativas. A pesquisadora informa que sua proposta era baseada nas Escuelas al Aire Libre do México, nos movimentos Critical Studies, da Inglaterra, e Disciplined-Based Art Education e Reader Responser, ambos oriundos dos Estados 6 Unidos, e na Pedagogia Libertadora do brasileiro Paulo Freire (Barbosa, 1998; Barbosa, 2010). Mas é notória a assimilação da epistemologia deweyana pela autora, pois seus textos vinculam as noções de estética e arte a concepções filosóficas, educacionais e políticas defendidas por Dewey. Naquela época as discussões sobre o ensino da arte começaram a ganhar espaço, caracterizando um «momento de transição», como afirma Penna (1999, p. 58), aparentemente bastante promissor. Os problemas metodológicos voltaram a ser debatidos, reconhecendo-se a inadequação das abordagens tecnicistas que visavam à profissionalização do estudante por meio de práticas mecanicistas e conteúdos abstratos, formais e fragmentados; também se fez a crítica às propostas de base psicológica, muitas vezes identificadas com o escolanovismo, permeadas pelo espontaneísmo, pela ideia de livre expressão e pela ausência de conteúdos, com o que se almejava o desenvolvimento artístico natural, o desabrochar da natureza infantil genuinamente criadora. Por intermédio de Ana Mae Barbosa, Dewey parecia assumir o lugar que lhe cabe como autêntico filósofo da arte e das relações entre arte e educação. No entanto, Arte como experiência (Dewey, 2010a), seu mais importante trabalho sobre o tema, publicado em 1934, era «completamente ignorado» pelos intelectuais envolvidos com os assuntos da arte-educação na década de 1980, o que talvez se explique pelo fato de o livro não conter discussões concernentes ao ensino e, consequentemente, não apresentar indicações sobre como ministrar conteúdos artísticos nas escolas (Barbosa, 1982, p. 56). Esse fato não impediu o surgimento de um genuíno interesse pelas concepções deweyanas, tanto no campo da filosofia quanto no da educação, o que se evidencia pelo crescente número de publicações sobre o filósofo havidas nas últimas décadas, muitas delas baseadas em estudo direto de suas obras. O exame das teses de Dewey sobre estética, porém, apresenta ainda pouco desenvolvimento, o que reforça a necessidade de retomá-las, considerando o contexto atual. 7 2. A necessidade de retomar Dewey Desde o final do século passado tem havido crescente diversificação temática no âmbito da pesquisa educacional, com destaque para trabalhos que investigam a produção da arte em sua diversidade histórica e social, em defesa de métodos pautados na concepção de arte como linguagem, o que remete ao exame dos conhecimentos específicos de cada manifestação artística (Iavelberg, 2013/2014). Tais avanços acadêmicos, no entanto, tendem a ser obscurecidos por outro assunto que atualmente ocupa os debates no Brasil; discute-se intensamente sobre a certificação formal dos professores responsáveis pelo ensino das linguagens artísticas, desviando o foco da questão principal – a formação dos professores que atuam na educação para crianças - A legislação brasileira estabelece que a educação para crianças se faça em instituições de Educação Infantil e no primeiro ciclo do Ensino Fundamental. São matriculadas na Educação Infantil crianças de zero a 5 anos de idade – ou 6, pois o Ensino Fundamental é obrigatório para quem completa essa idade até 31 de março do ano da matrícula. As crianças finalizam o primeiro ciclo do Ensino Fundamental, cuja duração é de cinco anos, com 10 ou 11 anos de idade. Considerando o teor desses debates, é possível inferir que a obra de Dewey continua insuficientemente estudada, quase desconhecida. Na celeuma hoje em andamento, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de Nove Anos registram que os componentes curriculares de arte do primeiro ciclo (para crianças entre 6 e 11 anos) poderão ficar a cargo de um professor generalista, licenciado em Pedagogia, responsável por ensinar todos os componentes curriculares (Brasil, 2010). As Diretrizes para a Educação Infantil, por sua vez, consideram o objetivo integrador da Educação Básica e reconhecem o Pedagogo como profissional habilitado para assumir os processos de ensino e aprendizagem, deixando implícita a responsabilidade do professor generalista pelo trabalho com as linguagens artísticas (Brasil, 2009). Em ambas as normatizações,não há restrições à atuação de professores especialistas no ensino para crianças, embora seja obrigatória a presença de profissionais formados em licenciaturas específicas (Educação Artística, Música, Artes Visuais etc.) para ministrarem as artes no segundo ciclo do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. 8 Argumenta-se, por um lado, que as licenciaturas específicas capacitam para a realização de um trabalho mais consolidado, no que tange aos conteúdos das linguagens artísticas, o que traria inegável benefício à compreensão dos universos simbólicos visual, musical, teatral e corporal pela criança. A inadequação dos professores generalistas é justificada por haver cursos de licenciatura em Pedagogia cujas grades curriculares não contemplam disciplinas relacionadas à arte; além disso, ainda há professores generalistas com formação em nível médio, supostamente pouco qualificados para o exercício de funções tão complexas - Embora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, recomende a formação de professores exclusivamente em nível superior, o curso de Magistério em nível médio ainda é aceito na Educação Infantil e no primeiro ciclo do Ensino Fundamental. O Plano Nacional de Educação prevê que, até 2020, todos os professores deverão possuir formação superior obtida em curso de licenciatura (Brasil, 2014). Considera-se, também, que quem ministra todos os componentes do currículo costuma dedicar-se com mais afinco a uma área específica, em detrimento de outras, particularmente as que tratam das linguagens artísticas, as quais, aliás, são costumeiramente vistas por gestores como domínio de menor valor para o desenvolvimento infantil (Penna, 1999; Iavelberg, 2013/2014). Por outro lado, em defesa do professor generalista, pondera-se que a ênfase demasiada nos conhecimentos específicos de cada linguagem artística pode ocasionar o retorno da tendência tecnicista, inviabilizando o necessário intercâmbio entre as várias artes, o que resultaria no empobrecimento da formação dos alunos. Avalia-se, ainda, que as licenciaturas específicas, ao valorizarem os conteúdos inerentes à área artística em detrimento da formação pedagógica, podem incapacitar o profissional para enfrentar toda a complexidade da situação escolar. Alguns estudos acrescentam que a orientação e o acompanhamento da prática dos generalistas, suprindo as carências de sua formação inicial e assegurando sua permanente atualização, pode levá-los a atuar de modo bastante produtivo no ensino das linguagens artísticas. Esse resultado pode ser potencializado se as universidades, seguindo alguns exemplos pioneiros já existentes, incluírem uma ou mais disciplinas voltadas a essa área nos programas dos cursos de licenciatura em Pedagogia (Penna, 1999; Iavelberg, 2013/2014; Martins & Lombardi, 2015). Não há dúvida quanto ao valor legal dessa discussão ampla e polêmica, mas há que se admitir também que a sua conclusão, qualquer que seja ela, pouco ou nada 9 acrescentará ao que constitui o cerne dessa área: a necessidade de haver professores – sejam eles generalistas ou não munidos de sólida conceituação acerca de arte e de educação, bem como acerca das conexões possíveis entre esses dois territórios, não só no plano teórico, mas principalmente no plano metodológico. A iniciativa tomada por Ana Mae Barbosa na década de 1980, ao trazer as concepções de Dewey para o cenário da arte-educação, carece de continuidade, pois o ensino da arte requer clareza sobre os temas que lhe são próprios: o que é o desenvolvimento humano, o que é a educação, qual é o sentido da arte no contexto em que se almeja a transformação educacional e social; quais recursos metodológicos podem ser postos em ação para que a arte seja instrumento efetivo no processo de conferir significado às coisas e, assim, formar o aluno em sintonia com o mundo contemporâneo. As próximas seções de o presente trabalho mostrar as respostas oferecidas por Dewey a esses problemas, focalizando prioritariamente, conforme já foi mencionado, o livro Arte como experiência (Dewey, 1959b). 3. Arte como experiência e forma de linguagem Quando se elabora uma definição pretende-se indicar o sentido correto de uma palavra ou esclarecer a conotação mais adequada de um conceito. As definições possuem caráter persuasivo, uma vez que mobilizam as disposições intelectuais e emocionais dos leitores, redirecionando as suas inclinações atuais no interior de um sistema de pensamento (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2002; Oliveira, 2011). Definir é uma operação complexa e, muitas vezes, arriscada, especialmente nas situações em que vigora uma definição bem estabelecida pela comunidade, sem oposição ou controvérsia acerca dos qualificativos de determinado objeto. Nesse caso, quem se propuser a definir o mesmo objeto incorrerá em atitude quase subversiva, posicionando-se no centro de uma disputa, para a qual deverá reunir vasto arsenal argumentativo. Em Arte como experiência, Dewey (2010a, p. 126) define arte como experiência e como forma de linguagem, a situando no âmbito das práticas sociais. Assim, o autor contraria frontalmente a definição hegemonicamente aceita que atribui ao fazer artístico uma condição superior, um caráter perfectivo isolado das condições concretas de criação, uma prática que emana de instâncias metafísicas, realizada somente por quem possui um dom que o aproxima da esfera divina. Retomando o sentido atribuído pelos 10 gregos antigos, Dewey considera que arte é techné, «processo de fazer ou criar»; implica ação intencional e manuseio, refinamento, combinação, montagem e demais processos aplicados a materiais e energias, até que tais elementos atinjam um novo estado e uma nova forma, proporcionando assim ao criador uma satisfação não sentida anteriormente, quando tudo ainda se encontrava em estado bruto. Essa definição serve para explicar que vários objetos, como templos, quadros, músicas, esculturas, poemas etc., derivam da ação construtiva humana; mas não é suficiente para evidenciar por que alguns fazeres são identificados como arte, nomeados como obras – ou trabalhos – de arte. Torna-se, então, imprescindível complementar a definição com um esclarecimento sobre o que Dewey (2010a, p. 381) denomina «qualidade do fazer», noção situada no campo da estética, na qual residem às paixões suscitadas na pessoa que ouve, vê, toca, movimenta ou aprecia objetos derivados de produção humana; paixões que remetem à coordenação e unificação de qualidades antes separadas, concorrentes e difusas. Dewey (1958; 2010a) associa intimamente a arte à estética, pois toda criação envolve sensibilidade e paixão; sempre que o homem participa de experiências estéticas, lapida sua imaginação e seu poder criativo. Ao complementar sua definição, Dewey a torna ainda mais diretamente contrária ao pensamento hegemônico, pois afirma que a arte pertence aos domínios da vida do homem comum. Toda pessoa realiza arte quando tem uma experiência singular dotada de característica estética; quando vivencia um processo que, a despeito de suas diferentes partes constitutivas, alcança uma unidade enriquecida de significados, capaz de fornecer a sensação de ter explorado ao máximo todas as possibilidades de ação. Uma refeição, um banho, a escuta de uma história, o encontro com um amigo – coisas assim tão simples são experiências com qualidades estéticas e artísticas quando sensibilizam os indivíduos, os conduzindo a se envolverem em atividades mentais e corporais, até alcançarem um desfecho coordenado e significativo (Dewey, 2010a, p. 554). A poesia, a dança, o drama, o canto, os instrumentos musicais, osartefatos e as construções das civilizações antigas podem ser caracterizados como arte porque «se conformavam às necessidades e condições da experiência mais intensa, mais prontamente aprendida e mais longamente relembrada». Para os artistas que realizaram aquelas obras, a arte foi consumada por envolver experiências «em que os atos sucessivos são perpassados por um sentimento de significado crescente, que é 11 conservado e se acumula em direção a um fim vivido como a consumação de um processo». No momento atual em que seus produtos são apreciados, pode-se dizer que elas são arte na medida em que se tornam experiências com qualidade ímpar para quem os vê, ouve, toca (Dewey, 2010a, p. 115). As dimensões intelectual, emocional e prática do ser humano são unificadas nas experiências dotadas de qualidades artísticas; a partir de uma necessidade sentida, a pessoa passa a direcionar intencionalmente os eventos – quer usuais, naturais, ou fortuitos – no decorrer de um processo, até obter um resultado significativo, capaz de proporcionar o enriquecimento interior, ou o da própria experiência, bem como o sentimento de prazer, deleite, satisfação. O componente estético se faz presente tanto no estágio final da experiência artística, quando se dá a elaboração ou a reconstrução de significados e o consequente contentamento, quanto no decorrer de todo o processo de percepção e/ou produção que regula as atividades; por isso, é fundamental que a vida cotidiana seja constituída por experiências prazerosas, pois é no contexto desse ambiente comum que se forma a sensibilidade estética, sem a qual não há experiência artística. Dewey (2010a, p. 150) afirma que todo ser humano nasce ativo e com energia para a vida, dotado de uma impulsão para se desenvolver, sobreviver, progredir e conquistar. O organismo, no entanto, vivencia obstáculos, rupturas que produzem desconfortos – movimentos abruptos que o mobilizam integralmente. Na relação com o ambiente, essas novas impulsões são convertidas em agentes favorecedores da vida, ajudando a pessoa a seguir em frente. Como as experiências recorrentemente vividas são recriadas, adquirindo novo formato, solidez e significados, o ser vivo ganha consciência, apreende o sentido daquilo que faz e passa a agir visando «atingir uma consequência conscientemente pretendida»; seu fazer torna-se um ato de expressão, contendo intenção, expressando valores incorporados de experiências anteriores, ao mesmo tempo em que comunica algo próprio; como ato de expressão, o fazer também é um «ato de arte». Toda experiência enriquecida por emoção e sentidos é «arte em estado germinal», pois, mesmo em suas formas rudimentares, uma experiência é «a realização de um organismo em suas lutas e conquistas em um mundo de coisas», em que se apresenta a promessa da criação e da percepção prazerosa (Dewey, 2010a, p. 84). O que qualifica o trabalho artístico são as experiências unificadoras que envolvem «o 12 desdobramento da vida emocional interna e o desenvolvimento ordenado das condições externas materiais», de modo que a pessoa desempenhe ações de pensamento e de controle da natureza, tornando-se capacitada para «perceber o significado do que se está fazendo e se regozijar com ele». Para que o mundo tenha mais arte, Dewey (2010a, p. 30) sugere «recuperar a continuidade da experiência estética com os processos normais do viver», uma vez que a participação contínua em eventos interessantes da vida e a imersão em atividades que intensificam os sentimentos imediatos derivados de ver, ouvir e sentir são elementos sine qua non da expressão e da formação estética e artística. Dewey amplia sua definição de arte por intermédio da noção de linguagem, dizendo que a arte, entendida como experiência, é também uma forma de linguagem, uma vez que toda experiência consciente é um ato de expressão, comunicando intenções; «cada arte fala um idioma que transmite o que não pode ser dito em nenhuma outra língua», e esse processo se realiza por meio de uma relação que envolve «o falante, o dito e aquele com quem se fala» (Dewey, 2010a, p. 216). A comunicação artística não tem o mesmo caráter da comunicação que se efetiva por palavras, símbolos que substituem objetos e ações com o objetivo de indicar a sua correspondência com a realidade. A arte comunica a existência de objetos novos vivenciados, aos quais se associam significados singulares; a arte expressa tanto o conhecido – sejam experiências ou técnicas – quanto o que se exprime por meio da abstração individual, viabilizando obter distanciamento do significado exato das coisas. O processo de elaboração expressiva envolve ampla multiplicidade de significados decorrentes de experiências anteriores, os quais contribuem para a formação de interesses e propósitos que são reorganizados no processo de produção, até alcançar uma unidade nova. 4. A experiência rítmica O cerne da contribuição oferecida pelas reflexões estéticas deweyanas à educação reside na tese de que as linguagens das artes precisam ser aprendidas, pois o desenvolvimento da sensibilidade artística não decorre de processos naturais, inatos (Dewey, 1958; 2010a). Instaura-se, desse modo, um desafio aos educadores, o que, no vocabulário deweyano, recebe o nome de problema, situação ou objeto ainda obscuro que requer solução, esclarecimento: o problema consiste em elaborar meios para trabalhar com as referidas linguagens na escola. Na filosofia deweyana, a busca pela elucidação de problemas significativos constitui uma investigação, ou reflexão, a qual 13 se efetiva pelo uso do raciocínio que opera com informações e ideias já existentes, e pelo levantamento de hipóteses a serem testadas em situação prática (Dewey, 1959a). Arte como experiência, portanto, não contém – e, por coerência com a filosofia do autor, não poderia conter – um método, entendido como conjunto de procedimentos sequenciais e inflexíveis para o ensino da arte. As situações de aprendizagem são únicas, irreproduzíveis; em cada situação particular, caberá ao professor colocar a si mesmo como investigador, tomando seus alunos e as condições específicas da instituição de ensino como problemas a serem enfrentados pelo pensamento reflexivo. O que o livro traz são princípios baseados na definição de arte como experiência e forma de linguagem, oferecendo alicerces teóricos para que o educador construa, por si mesmo e com seus alunos, o edifício da educação. O princípio básico defendido por Dewey é o que situa a aprendizagem no campo das experiências estéticas vividas cotidianamente; são elas que conduzem ao refinamento das percepções, dos interesses e propósitos, viabilizando a expressão, além de possibilitarem o domínio de linguagens específicas, mesmo que embrionariamente, seja na criação, seja na recriação de sentidos. Os meios de expressão – técnicas, materiais, modos de fazer, etc. – devem ser valorizados como veículos da significação, e seu uso deve ser continuamente revisto no decorrer do processo porque as temáticas e os procedimentos relativos à arte não habitam a esfera das sublimes inspirações metafísicas. O fazer artístico resulta da assimilação e da problematização de modelos já existentes, o que requer tempo, habilidade técnica e sensibilidade perante o mundo. Dewey (2010a, p. 517) “comenta que os primeiros trabalhos dos pós-impressionistas já mostravam domínio das «técnicas dos mestres imediatamente anteriores», evidenciando plena ciência de sua aplicabilidade a temas antigos; com o tempo, os novos artistas ganharam autonomia e passaram a ver o mundo de um modo que seus antecessores não viam, até que a«nova temática exigiu uma nova forma», os obrigando a elaborar «experiências com o desenvolvimento de novos procedimentos técnicos»”. No que diz respeito à formação estética e artística da pessoa, a noção essencial elaborada por Dewey reside na metáfora experiência rítmica, a qual traduz a ideia de que a experiência é tão relevante para o desenvolvimento de formas expressivas quanto o ritmo é essencial para a forma musical. A experiência, portanto, é o ritmo do desenvolvimento de formas expressivas. A afirmação se restringe às experiências 14 dotadas de caráter estético, evidentemente, pois somente elas podem ser caracterizadas como verdadeiramente educativas. É por intermédio da arte que «o eu se modifica», não somente por adquirir «facilidade e habilidade maiores» no trato com materiais novos, mas por incorporar atitudes e interesses que afetam seu modo habitual de ver, ouvir e sentir e, consequentemente, seu modo costumeiro de significar as coisas. Tal experiência requer acesso a um amplo capital cultural vivenciado, comunicado e constituído em meio a práticas significativas, possibilitando a formação de temas, assuntos, motivos e conteúdos (Dewey, 2010a, p. 457). As experiências estéticas – e, portanto, rítmicas – influem no aprimoramento e no exercício da imaginação, o que acontece quando materiais de variadas qualidades emocionais sensoriais e perceptuais adquiridos em experiências passadas e presentes são mobilizados e reunidos, determinando o desejo de formular e expressar algo próprio ou novo; o sentido da imaginação para a continuidade da vida está em sua capacidade de despertar emoções, levando o ser humano a ingressar «em outras formas de relacionamento e participação», diferentes das usuais (Dewey, 2010a, p. 457). O movimento da imaginação integra-se ao movimento da produção, canalizando conscientemente as emoções, as quais ultrapassam o estado de pura descarga de energia para assumir a forma de escolhas e procedimentos. Todo o processo, da ideação à consumação, é composto por diferentes forças, ou vozes, que se relacionam mutuamente, não de modo regular, homogêneo, pela justaposição e repetição de unidades isoladas, mas por meio de contraposições que ressaltam as particularidades das energias envolvidas na produção. As relações assim estabelecidas têm efeito cumulativo, permitindo que se alcance a percepção plena do todo, momento em que se pode visualizar a resolução de problemas ou desejos anteriormente sentidos. Ao conceber o ritmo musical nesse registro psicológico e cognitivo, em contraposição a uma concepção mecânica, Dewey põe em primeiro plano o caráter aberto do fazer estético e artístico, como também o sentido da apreciação dos produtos da arte. O artista – aquele que cria – valoriza a particularidade de cada um dos elementos sobre os quais opera; as especificidades são potencializadas, não silenciadas, o que permite a sua conservação e, também, o seu tensionamento em prol da experiência total, como nos movimentos rítmicos que utilizam pausas, fechos e acentos para estabelecer ligações e promover avanços no todo composicional. A atuação do artista requer diálogo com as vozes da cultura, uma conversa consigo mesmo e com os outros, 15 e é no contexto dessa rede de comunicação e significação que tomam forma a intencionalidade, o direcionamento e as enunciações subjetivas. O espectador, por sua vez, também precisa ser formado para obter o gozo inteligente da arte; sua participação em atividades de apreciação pode ser capturada por algum elemento da obra, mais do que por outro, envolvendo-se em interpretações e significações que lhe são próprias. Dewey (2010a, p. 581) afirma que as linguagens artísticas constituem «o órgão incomparável da instrução», pois é pela experiência rítmica – estética artística e expressiva – que se torna possível exercitar a enunciação, ato de pensamento e ação que viabiliza transcender o existente. Conceituada como vivência genuína de experiências rítmicas, a experiência estética tem papel fundamental na formação humana desde a mais tenra idade, pois a criança desenvolve a capacidade de criação e significação agindo no ambiente, auxiliada pelos mais velhos, muito antes de formular ideias por meio do discurso interno. Engajadas em atividades interessantes e ricas em significados sociais, as crianças se interessam por «o que» criar e, ao mesmo tempo, por «como» construir, elaborando um crescente conjunto de significações e domínio de habilidades, até a constituição do fazer artístico como capacidade e especialidade mental (Dewey, 2010c, p. 196). Ao se expressar por intermédio do desenho, o que interessa imediatamente à criança é o próprio agir; depois, o ritmo da composição é marcado pela ação gráfica, pelo significado que as coisas têm na vida e pelas variadas possibilidades de expressão; posteriormente, o processo rítmico e expressivo alia-se à «consciência da técnica», a qual, por sua vez, torna-se instrumento para «uma expressão imaginativa cada vez mais rica», ou seja, para enunciações cada vez mais elaboradas (Dewey, 2008, p. 198). Dewey (2010a) considera que os signos e significados veiculados pelas artes fundam as tradições culturais; no plano da formação do eu, constituem elementos decisivos nas experiências rítmicas que influenciam os desejos, os interesses, as crenças, os objetivos e os modos de satisfação das pessoas, ou seja, todo o material que alicerça o pensamento. A arte favorece a articulação de um repertório inovador, livre da censura dos costumes; enriquece os discursos internos, os solilóquios, mobilizando as reflexões e ações humanas que compõem o pensamento reflexivo. A arte, ainda, viabiliza os mecanismos de sublimação, pelos quais a energia explosiva é convertida em sentimentos voltados à percepção de injustiças sociais, por exemplo, da mesma forma que uma pulsão sexual pode ser direcionada a trabalhos artísticos. Como veículo de 16 expressão, a experiência artística oferece oportunidade para o exercício da enunciação, levando a pessoa à satisfação de criar e significar, colocar-se no mundo mediante a apresentação de algo novo. O impedimento do acesso às artes, à multiplicidade da cultura artística e a vivências estéticas pode resultar na desorganização da vida pessoal e social; «o impulso incontrolável de buscar experiências prazerosas em si encontra as válvulas de escape que o meio cotidiano proporciona» (Dewey, 2010a, p. 63). Não se pode estranhar, portanto, a eclosão de fenômenos como indisciplina, agressividade e recusa à autoridade, em escolas que não oferecem canais de expressão para as pulsões infantis; quando não encontram oportunidades para se tornarem sujeitos enunciadores de suas paixões, as crianças fazem uso do que está disponível – modelos de conduta oferecidos por ambientes sociais e meios de comunicação pouco ou nada afeitos a experiências educativas. A rejeição a expressões artísticas que não se enquadram nos padrões socialmente aceitos ou nos cânones acadêmicos traz risco semelhante, provocando o silenciamento de energias que poderão ser convertidas em comportamentos inacessíveis ao controle interno e externo; no plano da cultura, provocam males também significativos, impedindo a novidade e a transformação que fomentam a revisão da vida em sociedade (Dewey, 1958, p. 163). 5. Uma pedagogia retórica Desde a década de 1980, quando as concepções deweyanas voltaram a ser estudadas no Brasil, as ideias educacionais de Dewey têm recebido várias interpretações, sendo boa parte delas dedicada a incentivar o exame direto de suas produções com o intuito de evitar o que Cunha (2007) denomina«desleituras», ou seja, apropriações parciais que não levam em conta o vínculo indissociável entre a filosofia, as teses educacionais e a visão política do autor. Os grupos de pesquisa que participam desse renovado interesse pelo autor têm mantido intenso contato com estudiosos estrangeiros, em busca de situar Dewey no âmbito das tendências filosóficas contemporâneas (Hansen, 2005; Garrison, 2010; Cunha, 2010; Cunha & Pimenta, 2011). As interpretações resultantes desse movimento permitem qualificar as ideias deweyanas como poéticas, denominação ampla que alude à palavra grega poïesis, cujo sentido remete a ação que busca criar, conferir existência algo até então inexistente, 17 envolvendo a mobilização de técnicas, planejamento e energias intelectuais, como também disposições emocionais, sensibilidade e abertura para posicionar a individualidade no centro do processo de deliberar e agir. Essa denominação, acompanhada dos sentidos que lhe são correspondentes, vem sendo recentemente ampliada por estudos baseados em Nathan Crick (2010; 2015a; 2015b), para quem Dewey integra uma abrangente tradição retórica originada com os sofistas, em especial Protágoras e Górgias. Trata-se de uma abordagem conceitual que atribui ao movimento sofístico características que contrariam os cânones da filosofia, pois entende a atuação daqueles professores de retórica como um empenho voltado à valorização da individualidade, da experiência estética e da inteligência criativa, qualificativos que vão além da transmissão de técnicas para a confecção de discursos persuasivos. A pedagogia dos sofistas era norteada pela meta de contribuir para a constituição de uma democracia radical por intermédio de práticas discursivas que buscavam formar o aprendiz para o exercício da deliberação racional, no interior de uma esfera pública igualitária. Os sofistas consideravam que todos podem arguir debater e decidir, desde que se reconheçam como autores, como pessoas capazes de utilizar a linguagem como veículo de expressão de ideias e sentimentos, visando ao bem da coletividade. Essa caracterização contém delineamentos metodológicos que exprimem finalidades políticas, consistindo em conferir poder ao educando, incentivar a liberação da individualidade, promover a expressão intelectual e emocional, tal qual o que se encontra nas propostas educacionais de Dewey, particularmente quando concebidas em associação com as suas reflexões sobre estética e arte. O que se apresenta em Dewey é uma pedagogia retórica, uma pedagogia radical que almeja produzir disposições em busca de uma democracia também radical cuja base é a formação de indivíduos capazes de compor e expressar o poder que emana de suas inclinações pessoais, não em benefício exclusivo de sua vida individual, mas visando à construção de um novo modo de vida, a democracia. O modo de vida democrático teorizado por Dewey não implica a homogeneidade, a harmonia conquistada por intermédio do silêncio, mas o permanente debate efetuado no interior de um ambiente que acolhe a divergência. A pedagogia retórica deweyana valoriza o poder de criar e o domínio da enunciação, a sensibilidade para perceber a complexidade do mundo e a relevância de formar o eu para investigar e 18 deliberar acerca de novos horizontes para a vida em comum. Dewey afirma que, dentre todas as linguagens existentes, a linguagem da arte é a que possui a maior potencialidade para alimentar as aventuras imaginativas do pensamento filosófico. Tal qual a arte, a filosofia se desenvolve impulsionada pela mente imaginativa, responsável por articular meios para a obtenção de fins harmônicos e comandar a busca por condições objetivas para efetuar ações que integrem conhecimentos já adquiridos e regras estabelecidas à possibilidade de renovar a vida por meio da expressão individual. O potencial significador e expressivo da arte consubstanciam e definem a experiência, «tanto de quem enuncia quanto daqueles que escutam»; por isso a arte pode servir como referência para a experiência filosófica, cujo sentido reside no logos, elemento que confere poder ao ser humano como ser que controla a natureza e elabora os fins da vida em coletividade (Dewey, 2010a, p. 427). Se a arte pode servir de base à filosofia, e se a filosofia, como Dewey sustenta em suas obras, é o que deve nortear a educação, são na arte que devem ser buscados os qualificativos necessários à renovação das práticas educacionais. O núcleo dessa renovação reside no conceito de experiência estética e artística, a experiência rítmica. Ao transportar os princípios de Arte como experiência para a educação, fortalecendo a tese de que as concepções educacionais deweyanas constituem uma pedagogia retórica, observa-se que o problema central do ensino da arte não é o da certificação formal dos professores, como se discute atualmente no Brasil, mas o da formação dos professores, sejam eles generalistas ou especialistas. É preciso contar com docentes capazes de despertar a sensibilidade dos alunos, direcionar as suas emoções, canalizar os seus interesses e proporcionar a eles experiências com qualidade estética. O professor que emerge das teses estéticas deweyanas é uma pessoa profundamente envolvida nas tradições artísticas antigas e contemporâneas, capaz de reconhecer os produtos culturais como decorrências da vida cotidiana das sociedades em que foram gerados, e ciente de que todos os indivíduos, quando imersos em situações plenas de significado, podem ser produtores de arte. As considerações de Dewey permitem compreender também que a estética e a arte devem permear todas as atividades regulares da escola, não podendo ficar restritas a um determinado horário do dia letivo em que são ministrados os conteúdos artísticos. A noção deweyana de experiência deve impactar a educação como um todo, produzindo verdadeiras transformações no ambiente educativo, mobilizando não somente os 19 professores de arte, mas os professores em geral, os gestores e, mais ainda, todos setores que compõem o universo escolar, desde a jardinagem até a cozinha, incluindo a estrutura e ornamentação dos banheiros, a organização das salas de jogos, os espaços de lazer e de convivência informal. As linguagens artísticas possuem um poder mobilizador universal por afetarem as paixões, mas esse potencial só se realiza de modo pleno quando todas as pessoas estão engajadas em um ambiente moral formado estética e artisticamente, com pleno acesso às artes; em contextos culturais propícios, as artes «moldam ocupações coletivas» e «determinam a direção do interesse e da atenção», podendo afetar os propósitos pessoais e coletivos (Dewey, 2010a, p. 578). Como «toda arte é um processo de tornar o mundo um lugar melhor para se viver», é necessário haver mais arte e mais domínio de suas linguagens para a construção da democracia; um contexto estético e artístico possibilita comunicações poéticas, cujos sentidos e significados são compreendidos no interior de vivências mobilizadoras (Dewey, 1958, p. 363). A pedagogia retórica deweyana implica a produção de experiências rítmicas na totalidade da instituição de ensino, para que todos sejam formados como seres humanos sensíveis à diversidade da vida; experiências que agreguem criação e apreciação, conhecimento do que já foi produzido pela humanidade e desejo de produzir o novo; a regra e o impulso transgressor, os saberes formais e a emoção direcionada, por intermédio de linguagens e materiais diversificados; experiências rítmicas que viabilizem escolhas conscientes no decorrer de processos investigativos que não silenciem as vozes dos aprendizes, mas integrema multiplicidade cultural que constitui o cenário do mundo contemporâneo. Havendo individualidades fortes e poderosas, munidas de autonomia para dialogar, torna-se possível potencializar as experiências significativas e projetar um modo de vida que incentive a percepção de que as escolhas referentes ao futuro da coletividade dependem de consensos a serem testados na prática, consolidando um autêntico processo reflexivo. A formação do professor e a instauração de um ambiente escolar no escopo dessa pedagogia requer a cautela de não ceder às inclinações espontaneístas que equivocadamente são atribuídas às propostas educacionais de Dewey. A educação como experiência estética e artística destina-se a despertar a sensibilidade de todos os envolvidos no processo, sejam alunos, professores, gestores ou funcionários da escola; deve-se elevá-los à condição de criadores de significados, sujeitos dispostos a assumir 20 formas variadas de autoria expressiva e enunciativa. Esse empreendimento, no entanto, não é sinônimo de esvaziamento dos conteúdos linguísticos específicos das diversas manifestações artísticas, nem de desprezo pelos conhecimentos relativos às condições sociais concretas que originaram as obras de arte. Esse cuidado se faz necessário por causa do dualismo que historicamente acompanha o pensamento pedagógico e que encontra em Dewey forte oposição. A pedagogia deweyana visa promover o acesso a signos e significados que podem desenvolver a imaginação, levar as pessoas à elaboração de propósitos, atos de criação, reelaborações contínuas do próprio eu e também a sonhos esperançosos sobre o futuro. Sempre que uma proposta pedagógica se apresenta desse modo, com ênfase nas paixões e na construção de indivíduos autônomos, acredita-se que a sua efetivação dispense toda forma de planejamento e estruturação didática. Mas nada é mais distante da filosofia deweyana do que esse tipo de dicotomia que mimetiza a célebre oposição entre razão e paixões, pois Dewey (2010b, p. 136), ao clamar por mais paixões, não menos, não pretende dispensar a racionalidade, mas propor uma revisão desse conceito. Racionalidade, diz ele, «não é uma força evocada contrariamente ao impulso e ao hábito»; a palavra razão, «como substantivo, significa a feliz cooperação de uma multiplicidade de disposições, como simpatia, curiosidade, exploração, experimentação, franqueza, perseverança – para seguir as coisas pensadas –, circunspecção, para olhar o contexto, etc., etc.». Racionalidade, para Dewey, é a disposição resultante do processo de reflexão, não um manancial de soluções prévias que repousa fornecendo orientações seguras, prontas para o uso. 21 Texto II O PAPEL DA MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Maria da Glória Gohn Isa Stavracas Este artigo é parte da dissertação de mestrado intitulada O papel da música na Educação Infantil, na qual se analisa a presença e a forma de utilização da música em práticas educativas da Educação Infantil, comparando realidade com as suas possibilidades de utilização, preconizadas por estudiosos do tema. Por meio de reflexões e questionamentos sobre as ações desenvolvidas nesse contexto educativo, pretende-se abordar as diversas possibilidades da música para a construção do conhecimento, fundamentadas por teóricos que a apontam como necessária para a criança e o processo de ensino-aprendizagem. Na educação escolar, formal, a música está inserida nas leis e nos documentos oficiais, entre os quais: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (Lei nº 9.394, de 1996) e o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998), documentos estes que oferecem diretrizes para o atendimento e desenvolvimento integral da criança, portanto, fundamentais na análise das práticas educativas voltadas para a construção do conhecimento musical. Palavras-chave: Educação Infantil. Educador - formação. Música. Introdução A música é uma arte presente em todas as culturas como linguagem simbólica, com inúmeras representações, que permite à criança expressar suas emoções e sentimentos, contribuindo para a sua formação integral. Sendo uma forma de comunicação e de expressão, torna-se importante elemento na construção do saber, necessária na Educação Infantil e na formação do educador. Mas o que é música? Esta pergunta tem sido feita ao longo da história e recebido diferentes respostas, dependendo da cultura da sociedade e do contexto em que está inserida. A visão de mundo que se tem de uma época norteia o papel que a música desempenha, valorizando suas funções e as práticas que se estabelecem entre diferentes grupos. Em contrapartida, de acordo com o “Referencial Curricular para a Educação Infantil”, música é: “[…] a linguagem que se traduz em formas sonoras capazes de expressar e comunicar sensações, sentimentos e pensamentos, por meio da organização e relacionamento expressivo entre som e o silêncio”. (BRASIL, 1998, p. 45). A música é o elo entre o som e o silêncio, entre o criar e o sentir, entre os movimentos vibratórios e as relações que se estabelecem com eles. Pensar na música como elemento que une de forma complementar o som e o silêncio faz com que o indivíduo tenha uma relação intrínseca com a capacidade de perceber o mundo à sua 22 volta, permitindo-lhe, a partir disso, construir e produzir sua própria história de diferentes maneiras. O homem é um artista que, no seu processo de criação, elaborou combinações de som e silêncio e as transformou em música. A música é uma arte universal que há milhares de anos os povos utilizam para se comunicar e que está presente na vida do ser humano antes mesmo do seu nascimento. Faz-se presente nas situações cotidianas, permitindo que bebês e crianças tenham a possibilidade de iniciar o seu processo de iniciação musical. O contato que estabelecem com os adultos mediante canções de ninar, brincadeiras, jogos de mãos, parlendas etc., propicia a construção de novos conhecimentos e a apropriação de diferentes significados. Sendo ela uma arte que contribui para o pensamento criativo, vem ganhando cada vez mais espaço nas pré-escolas, que devem respeitá-la como forma de arte responsável por parte do desenvolvimento da criança (tanto cognitivo como social, cultural etc.), e não somente como apoio às atividades escolares. A criatividade faz parte do ser humano, que deve estimulá-la por meio de atividades que favoreçam o processo de produção artística. Nas escolas, o educador deve ser criativo para, então, propiciar aos seus alunos situações em que possam construir algo novo e realizar experiências que au- mentem sua visão do mundo, colaborando, assim, para a formação da sua identidade e autonomia. O trabalho com a musicalização infantil permite ao aluno desenvolver a percepção sensitiva quanto aos parâmetros sonoros – altura, timbre, intensidade e duração –, além de favorecer o controle rítmico-motor; beneficiar o uso da voz falada e cantada; estimular a criatividade em todas as áreas; desenvolver as percepções auditiva, visual e tátil; e aumentar a concentração, a atenção, o raciocínio, a memória, a associação, a dissociação, a codificação, a decodificação etc. Uma das formas de se identificar o papel da música na Educação Infantil é investigar o conjunto de leis e documentos oficiais, na dimensão relativa à educação, tais como a Constituição de 1988; o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990); a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 (LDBEN); o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI, 1998) além de normatizações, em nívelestadual e municipal. Estes últimos documentos foram elaborados como forma de redimensionar as práticas pedagógicas das instituições de Educação Infantil e suas concepções. Dentro dos novos parâmetros a música passa a ter o seu papel fundamentado e redimensionado, 23 pois, estando presente em todas as culturas e sendo uma forma de representação humana, por si só faz-se necessária e justificável dentro do contexto escolar. Segundo o Referencial Curricular para a Educação Infantil: Um expoente a ser analisado dentro da linguagem musical é a falta de ações pedagógicas que atendam as reais necessidades do educando. Apesar de fazer parte do planejamento e ser considerada como fundamental na cultura da infância, a música tem atendido a propósitos alheios às suas reais especificações. Ela é tratada como um algo que já vem pronto, servindo como objeto de reprodução e formação de hábitos na rotina escolar, o que acaba por deixá-la em defasagem junto às demais áreas de conhecimento, quando poderia atender a um propósito interdisciplinar. (BRASIL, 1998, p. 47). A falta de formação específica em música dificulta as ações pedagógicas do professor, fazendo com que muitos continuem a tratá-la apenas como uma atividade do dia a dia, sem maiores conotações ou expectativas. Para que essa visão simplista e destituída de intencionalidades seja exaurida é preciso que haja um esforço pessoal de cada profissional para captar informações e transformá-las em recursos que representem mudanças em suas práticas. Portanto, muitos aspectos precisam ser redimensionados no trabalho com a linguagem musical, a começar pelos conteúdos a serem especificados no planejamento escolar, que devem ser definidos de acordo com a faixa etária dos educandos. Outros fatores fundamentais para a elaboração desse trabalho são: organização do tempo, jogos e brincadeiras, organização do espaço, fontes sonoras, registros, além de um entendimento sobre o fazer musical e a apreciação musical. Normalmente, o que se encontra dentro do contexto escolar são concepções pedagógicas que não utilizam as estratégias adequadas para o desenvolvimento dessa prática. Veem-se ações padronizadas de comportamento, como, por exemplo, cantar para tomar o lanche, para comemorar datas especiais, para formar a fila etc., não havendo uma aprendizagem significativa e expressiva da linguagem musical. Muitas são as possibilidades de se trabalhar com a linguagem musical na Educação Infantil. Proporcionar à criança situações em que ela possa expressar-se e desenvolver sua criatividade é papel da escola e do professor. 24 Aprendendo música na escola municipal de educação infantil Porque, na educação formal, as escolas de Educação Infantil devem trabalhar com a musicalização? Esta é uma questão que necessita de uma resposta que perpasse por entre as práticas musicais encontradas nas escolas e se difunda entre os educadores. Musicalização é um processo de construção do conhecimento musical que tem como objetivo despertar e desenvolver o gosto musical da criança, contribuindo para sua capacidade de criação e expressão artística. Na musicalização o lúdico caminha lado a lado com a música, oferecendo ao educando a possibilidade de desenvolver e aperfeiçoar a percepção auditiva, a organização, a imaginação, a coordenação motora, a memorização, a socialização e a expressividade. Segundo Brito (1998, p. 45): O termo musicalização infantil adquire uma conotação específica, caracterizando o processo de educação musical por meio de um conjunto de atividades lúdicas, em que as noções básicas de ritmo, melodia, compasso, métrica, som, tonalidade, leitura e escrita musicais são apresentadas à criança por meio de canções, jogos, pequenas danças, exercícios de movimento, relaxamento e prática em pequenos conjuntos instrumentais. Entender o papel da música na Educação Infantil e possibilitar ao educando a vivência dessa prática constitui o primeiro passo para a construção do fazer musical, no ambiente escolar, permitindo que o canto deixe de ser uma ação mecânica, sem uma intencionalidade definida. Dessa maneira, as escolas devem proporcionar situações em que a criança possa ampliar seu potencial criativo, favorecendo o desenvolvimento do seu gosto estético e aumentando sua visão de mundo. Quando a criança ouve uma música, aprende uma canção, brinca de roda, participa de brincadeiras rítmicas ou de jogos de mãos recebe estímulos que a despertam para o gosto musical, introduzindo no seu processo de formação um elemento fundamental do próprio ser humano. A expressão e a criação mediante o conhecimento da música acompanham o ser humano ao longo de sua vida. É próprio da natureza humana a ação de criar, que é resultado de reflexão e de leitura sobre o mundo. Nesse sentido, o trabalho pedagógico é aquele que proporciona a educação crítica e reflexiva, desenvolvendo ações que possibilitem ao educando agir criticamente e refletir diante das situações novas e desafiadoras do dia a dia. A educação musical é um dos meios para se alcançar este tipo de educação, mas produz efeitos positivos somente quando se estabelece uma relação 25 reflexiva entre o professor e o educando. Sendo o educador um facilitador da aprendizagem, deve garantir a liberdade de expressão e proporcionar situações ricas e produtoras de experiências marcantes e significativas. De acordo com o RCNEI (BRASIL, 1998), na Educação Infantil a música tem servido de suporte para atender a vários propósitos, como a formação de hábitos, atitudes e comportamentos, a realização de festas comemorativas, a memorização de conteúdos relativos a números, letras do alfabeto e cores, entre outros. As canções utilizadas são acompanhadas, ordinariamente, por gestos, que são imitados pelas crianças de forma mecânica e sem sentido. O RCNEI, no entanto, faz uma crítica ao ensino da música por imitação. Segundo esse parâmetro, muitas instituições encontram dificuldades para integrar a linguagem musical ao contexto educacional. Constata-se uma defasagem entre o trabalho realizado na área de música e aquele efetuado nas demais áreas de conhecimento, evidenciada pela realização de atividade de reprodução e imitação, em detrimento de atividades voltadas à criação e elaboração musical. Assim, a música é tratada como um produto pronto, apenas reproduzido, e não como conhecimento construído (BRASIL, 1998, p. 47). Algumas práticas musicais têm sido utilizadas na Educação Infantil para atender a propósitos diferenciados, os quais variam de acordo com os interesses do grupo e as propostas contidas em seus currículos. Segundo Hentschke (1995, apud JOLY, 2003, p. 117): Algumas razões são importantes para justificar a inserção da educação musical no currículo escolar. Entre elas, está proporcionar à criança: o desenvolvimento das suas sensibilidades estéticas e artísticas, o desenvolvimento da imaginação e do potencial criativo, um sentido histórico da nossa herança cultural, meios de transcender o universo musical de seu meio social e cultural, o desenvolvimento cognitivo, afetivo e psicomotor, o desenvolvimento da comunicação não verbal. Em contrapartida, em todas as práticas musicais utilizadas na Educação Infantil se verifica a ligação da música com o brincar, que, presente em todas as culturas, é transmitido de geração para geração, constituindo parte das tradições a serem preservadas. Embora a música já seja reconhecida como fundamental na formação do educando e necessária dentro dos currículos, na Educação Infantil ainda há muito que fazer para que esta prática deixe de ser utilizadaapenas como suporte para aquisição de conhecimento. 26 Alguns elementos estão presentes nas práticas escolares que se apoiam ou se expressam mediante a linguagem musical, tais como os jogos, a dança, a dramatização, o canto, a bandinha rítmica e os brinquedos infantis. Todos eles desenvolvem na criança a expressividade musical, situando-a numa organização de espaço e tempo. Entre os jogos e brinquedos que permeiam a cultura da criança estão as parlendas (brincadeiras rítmicas com rimas e sem música), os brincos (movimento corporal com poucos sons), as mnemônicas (brincadeiras utilizadas para fixar ou ensinar nomes, números etc.), as rondas ou brincadeiras de roda (envolvendo música, dança e poesia), os acalantos ou cantigas de ninar, as adivinhas, o faz-de-conta, os jogos de improvisação, o trava- línguas, entre outros. Observa-se também que esses elementos resgatam o folclore brasileiro, contribuindo para o conhecimento, a divulgação, a memória e a preservação da cultura nacional. Segundo Daniel Gohn (2003, p. 41), “Os processos de musicalização nas crianças têm o objetivo de, através de jogos e brincadeiras, desenvolver a sensibilidade e criar as primeiras noções de ritmo.”. Cada atividade, em suas diferentes especificidades, favorece o processo de aprendizagem da criança à medida que oferece a ela a oportunidade de externar suas emoções e construir significados para cada nova vivência adquirida. A mais comum de todas as práticas musicais na Educação Infantil são as cantigas de roda. De acordo com Maffioletti (1994, p. 15): Cantigas de roda são canções utilizadas em brincadeiras de roda cantada, realizadas como forma de recreação por adultos e crianças. Sua formação clássica consiste em formar uma roda de mãos dadas, com o rosto voltado para o centro, movimentando-se para a direita ou para a esquerda, em andamento eleito pelo grupo. Ainda hoje, segundo estudiosos do tema, a apreciação de determinados gêneros musicais necessita de maior espaço dentro das instituições de Educação Infantil. Nesse sentido, a música caipira ou de raiz, as composições eruditas – como O trenzinho do caipira (Bachianas brasileiras nº 2) – e, ainda, a música popular brasileira, tão rica e pouco explorada, merecem destaque no trabalho pedagógico-musical das escolas. Uma maneira de se inserir na sala de aula a música que está presente na cultura popular é realizando trabalho junto às famílias ou aos membros da comunidade local onde se localiza a escola, resgatando por meio de pesquisas, encontros, festas e outras ações as canções que eram cantadas por eles ou por seus antepassados e ainda fazem parte de suas vidas. Ademais, na escola a criança deve ter a possibilidade de entrar em contato com as diversas manifestações folclóricas, tanto aquelas que provêm da sua 27 origem familiar pela educação informal1 como aquelas oriundas de outros grupos, dando-lhe a oportunidade de adquirir novos conhecimentos. Segundo Gohn (2005, p. 100): “A educação informal decorre de processos espontâneos ou naturais, ainda que seja carregada de valores e representações, como é o caso da educação familiar.”. Joly (2003, p. 113), por sua vez, afirma: A inserção das artes, incluindo a música, no processo de formação do indivíduo, está sendo muito valorizada por algumas sociedades atualmente. Na grande maioria dos países desenvolvidos, como os Estados Unidos, Canadá, Áustria, Alemanha, Holanda, Finlândia, entre outros, há um reconhecimento de que a educação musical, seja ela formal ou informal, ensina às crianças requisitos importantes para a vida adulta. O folclore, sendo uma manifestação do povo, está enraizado na cultura brasileira de maneira tão profunda que, muitas vezes, passa imperceptível aos olhos. As brincadeiras, as cantigas, os provérbios, as histórias, as expressões gestuais e outros elementos típicos do folclore utilizados no dia a dia fazem parte da cultura espontânea, transmitida de geração para geração. De acordo com Rosa (1990, p. 218), “A cultura espontânea está incorporada aos seres humanos: eles a vivem no dia-a-dia, sem perceber. Esta cultura é o objeto do folclore e é difundido através da interação social.”. As músicas próprias da cultura da criança estão presentes nas rodas cantadas, nas parlendas, nos brincos, nos jogos de mãos, nos acalantos etc. Ao ter contato com o folclore a criança, além de conhecer músicas próprias da cultura infantil, pode apropriar-se da cultura de outros povos que muito contribuíram para a formação do povo brasileiro, exercendo influência na língua, na religião, nos costumes, nas danças, nas músicas e nas comidas do nosso país. As principais contribuições ao folclore brasileiro vieram dos europeus, dos indígenas e dos africanos. Dos europeus há contribuições nas músicas presentes no folclore, como as cantigas de ninar, as brincadeiras de roda, as quadrinhas, os acalantos, além dos autos e das dramatizações, como as pastorinhas e a catira. A cultura indígena, por sua vez, é encontrada, sobretudo nas cantigas e danças folclóricas, como caiapós ou caboclinhos, bem como na utilização de instrumentos musicais como os tambores, a flauta de bambu e o maracá. Os africanos, por fim, exerceram influência principalmente nas cantigas, nas danças e nos jogos folclóricos, além de proporcionarem o conhe- 28 cimento acerca do uso de instrumentos musicais como o caxixi, o agogô, o afoxé e o berimbau, entre outros. Nos espaços destinados à educação não formal, comumente realizam-se atividades que expressam a influência do negro na cultura brasileira, como, por exemplo, o samba e a capoeira. Sobre a educação não formal Gohn (2010, p. 33) diz: É um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania, entendendo o político como a formação do indivíduo para interagir com o outro em sociedade. Ela designa um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de programas e projetos sociais. Estas manifestações, extremamente importantes na história e na cultura do país, continuam a difundir-se, cada vez mais, recebendo incentivo de órgãos públicos e privados para sua realização. De acordo com Gohn (2005, p. 101): Os espaços onde se desenvolvem ou se exercitam as atividades da educação não formal são múltiplos, a saber: no bairro-associação, nas organizações que estruturam e coordenam os movimentos sociais, nas igrejas, nos sindicatos e nos partidos políticos, nas Organizações Não- Governamentais, nos espaços culturais, e nas próprias escolas, nos espaços interativos dessas com a comunidade educativa, etc. Verifica-se, portanto, que nos espaços destinados à educação não formal as crianças têm a oportunidade de participar de atividades em que estão presentes as culturas populares. Nesse sentido, Gohn (2003, p. 27) afirma: Outras formas de aprendizado musical ocorrem nas manifestações culturais populares, nas quais é comum que crianças sejam inseridas no mundo das práticas adultas, imitando e recriando os movimentos e gestos, seguindo a estrutura grupal e o comportamento dos indivíduos. Com tantas possibilidades de utilização da música no cotidiano escolar, as atividades que hoje são desenvolvidas devem atender a propósitos mais específicos no que se refere à musicalização infantil. A escola deve incentivar a criança a produzir musicalmente, permitindo que experimente, componha, interprete, manipule e crie a partir do material sonoro disponível, proporcionando um senso crítico que resulte no fazer musical. Mediantea música a criança tem elementos para descobrir e reencontrar seu corpo físico, reconhecendo-se como ser que pode perceber ouvir, movimentar e interagir, adquirindo habilidades e comportamentos criativos e críticos que irão contri- buir para o seu desenvolvimento integral. 29 A criança e o fazer musical A relação da criança com a música inicia-se muito antes do seu nascimento. O bebê tem como primeiro instrumento sonoro a sua voz. É por meio dela que ele manifesta suas necessidades e emoções. É comum ver o bebê balbuciar, cantarolar, gritar e tentar imitar sons que lhe são familiares. Isso acontece porque está tentando explorar suas possibilidades vocais, que, acompanhadas dos movimentos corporais, dão-lhe condições de se expressar e tentar produzir a comunicação verbal com os entes que lhe são mais próximos, ou seja, pai, mãe, avós, irmãos etc. Tal interação contribui para o desenvolvimento afetivo e cognitivo do bebê, além de auxiliar na elaboração da comunicação sonora. As crianças realizam movimentos corporais de maneira natural, e também de forma espontânea colocam ritmo nas atividades que realizam e lhes dão prazer, numa integração entre gesto, som e movimento. De acordo com Brito (2003, p. 145): É fato indiscutível que o ritmo se aprende por meio do corpo e do movimento. Partir dos movimentos naturais dos bebês e crianças, ampliando suas possibilidades de expressão corporal e movimento, garante a boa educação rítmica e musical, além de equilíbrio, prazer e alegria, pois o ser humano é – também – um ser dançante. Conforme vai crescendo e ampliando suas potencialidades sonoras, a criança utiliza cada vez mais materiais diferenciados, o que lhe dá condições de criar e explorar as qualidades próprias do som, como a altura, o timbre, a intensidade e a duração. Gainza (1988, p. 109-110) afirma: […] por princípio, todo conceito deverá ser precedido e apoiado pela prática e manipulação ativa do som: a exploração do ambiente sonoro, a invenção e construção dos instrumentos, o uso sem preconceitos dos instrumentos tradicionais, a descoberta e a valorização do objeto sonoro. É fundamental que os adultos proporcionem às crianças contato com esses diferentes materiais, pois, dessa maneira, ao mesmo tempo em que descobrem seu potencial sonoro, começam a incorporá-lo aos movimentos construídos na interação. Dessa forma, nota-se que as canções tornam-se elementos constantes nas atividades que a criança desenvolve. Assim, seu potencial sonoro aumenta e ela é capaz de criar um repertório próprio, utilizando melodias já conhecidas em consonância com 30 outras por ela elaboradas. A capacidade de explorar as possibilidades sonoras, por meio da improvisação, dá à criança condições de fazer uso dessa prática de forma instantânea, rápida. Isso permite que ela conte uma história cantando, invente letras diferentes para uma mesma melodia, faça rimas com nomes que lhe são conhecidos, imite diferentes sons presentes na natureza etc. Durante esse processo de improvisação a criança dá ensejo à sua imaginação, utilizando seu corpo como principal articulador desse processo. A música na pedagogia cognitivista Na teoria cognitivista de Jean Piaget, a concepção de criança se dá na construção do conhecimento. De acordo com este conceito, a criança se desenvolve a partir da elaboração das suas estruturas mentais, o que ocorre à medida que ela aprende e estabelece novas formas de construção do seu conhecimento. A criança está em constante interação com o meio e, para que possa desenvolver-se de forma mais completa, constrói e organiza o mundo que a cerca, atribuindo significados para os novos conhecimentos e aprendendo com as experiências vividas. Segundo Kamii (apud ANGOTTI, 1994, p. 70): “O interacionismo, proposto na teoria do desenvolvimento cognitivo, determina como produtos de interação da criança sobre o meio ambiente, o seu desenvolvimento mental.”. Diante da visão cognitivista, pode-se dizer que o conhecimento musical ocorre à medida que se estabelece uma interação com o ambiente, proporcionando a exploração das potencialidades sonoras e a elaboração de conceitos musicais que, por meio de experiências concretas, levam à abstração. Ainda conforme Kamii (apud ANGOTTI, 1994, p. 70): “A educação deve processar-se em condições que possibilitem a criança o agir com liberdade e espontaneidade, numa interação dialética com seu meio ambiente, propiciadora de condições para o crescimento e desenvolvimento máximo das potencialidades do ser.”. A pré-escola, nesse sentido, contribui para a interação da criança com o meio, além de possibilitar o contato com as práticas musicais, que auxiliam o educando na estruturação e superação das etapas de seu desenvolvimento. Quando a criança constrói suas estruturas mentais tem a possibilidade de desenvolver-se nos aspectos cognitivos, fazendo com que a sua relação com o mundo resulte em novas aprendizagens significativas e repletas de criatividade. Sendo ela sujeito da sua ação e construtora do 31 seu conhecimento, desenvolve suas potencialidades, levantando hipóteses, refletindo, fazendo e refazendo suas estruturas mentais. Ademais, vale lembrar que na aprendizagem musical as experiências anteriores da criança, como a percepção, a memória e a concentração, são fundamentais para a construção do seu conhecimento. É importante que sejam valorizadas e entendidas como elemento essencial na formação da criança e, por conseguinte, como necessárias no seu processo de assimilação do ambiente. Alguns autores, como François Delalande, estabelecem que haja uma relação entre o estágio de atividade lúdica de Jean Piaget e a linguagem musical. Segundo Brito (2003), Delalande classifica as condutas da produção sonora da criança em: “exploração, expressão” e “construção”, referentes, respectivamente, ao “jogo sensório- motor”, ao “jogo simbólico” e ao “jogo com regras”. Brito faz uma análise da pesquisa de Delalande, esclarecendo questões que nos remetem às condutas de exploração, expressão e construção e nos transportando do ambiente sonoro ao musical. De acordo com Brito (2003, p. 40): Se a pesquisa de Delalande acerca das condutas da produção sonora da criança pode nos auxiliar a conhecer melhor o modo como às crianças se relacionam com o universo de sons e música, é importante lembrar que cada criança é única e que percorre seu próprio caminho no sentido da construção do seu conhecimento, em toda e qualquer área. Sendo a criança o agente do seu próprio desenvolvimento, é fundamental que a Educação Infantil crie situações em que o educando possa construir seu conhecimento, num processo de ação sobre o ambiente, analisando-o, compreendendo-o e colocando sua capacidade interpretativa como elemento de aperfeiçoamento, para, a partir daí, elaborar suas estruturas mentais, crescendo e se desenvolvendo de forma integral. Considerações finais A música é uma arte, presente na história da humanidade desde os tempos mais remotos. Foi utilizada pelas antigas civilizações e considerada fundamental na formação dos cidadãos, tanto quanto outras áreas do conhecimento como a filosofia e a matemática. Ao longo da história as pessoas de todas as partes do mundo têm cantado e se encantado com os elementos musicais, criando e tocando antigos e novos instrumentos, usando a música como uma forma de expressão que retrata ideias, costumes, 32 sentimentos e condutas sociais. Para a criança a música representa mais que uma forma de expressão e integração com o meio; é um elemento que possibilita desenvolver habilidades, conceitos e hipóteses,
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