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48 Revisão socio historico unidade 2

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48 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Unidade II 5 RAYMUNDO FAORO E A IDEOLOGIA DO ESTAMENTO Apresentamos aqui um resumo do livro Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, para que você consiga entender melhor como os pensamentos jurídico e histórico descreveram a formação do povo brasileiro. É importante ler Faoro, pois ele tem uma visão também weberiana das características da formação do povo brasileiro. 5.1 A Formação Histórica e Social de Portugal Um longo período, que vai do Mestre de Avis a Getúlio Vargas, valoriza as raízes portuguesas de nossa formação política. A Península Ibérica foi formada e sua sociedade constituída sob o império da guerra (FAORO, 2001, p. 10). Ela começa sua história, com as lutas contra o domínio romano, foi o teatro das investidas dos exércitos de Aníbal, viveu a ocupação das tribos dos visigodos, de origem germânica, e foi finalmente dominada pelos mouros (FAORO, 2001, p. 13). As civilizações ocidental e oriental guerrearam dentro de suas fronteiras pela hegemonia da Europa. Das ruínas do Império visigótico, dilacerado em pequenos reinos, foi gerada uma nova realidade que chegou aos tempos modernos. Do longo predomínio da guerra, nasceu, nas praias do Oceano Atlântico, o reino de Portugal com a revolução da independência e da conquista. “O reino de Portugal” — dirá, já com anacrônica arrogância, um anônimo escritor do século XVII — “é tão guerreiro, que nasceu com a espada na mão, armas lhe deram o primeiro berço, com as armas cresceu, delas vive, e vestido delas, como bom cavaleiro, há de ir para a cova no dia do juízo” (FAORO, 2001, p. 13). Entre os séculos XI e XIII, eram travadas batalhas diárias contra o sarraceno e o espanhol ao mesmo tempo, o que garantiu a existência de um condado convertido em reino. Os dois fragmentos do condado, um sob o domínio do reino espanhol de Leão e o outro dominado pelos sarracenos, criaram a nova monarquia. Do elemento leonês veio a formação social do povo, e dos sarracenos, vestígios na forma de se comportar e de pensar. Essa mistura foi a fonte da civilização portuguesa. Acima da sociedade, o rei, que era chefe da guerra, um general em campanha que conduzia seus guerreiros, soldados obedientes, a uma missão e em busca de um destino. 49 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL A singular história portuguesa, caracterizada pela supremacia do rei, determinou as bases e a moldura das relações políticas e das relações entre o rei e seus súditos. O rei, como senhor do reino, era único proprietário da terra, instrumento de poder em uma época em que as rendas eram predominantemente derivadas do solo. A Coroa conseguiu formar, desde as primeiras batalhas da Reconquista, um imenso patrimônio rural, cuja propriedade se confundia com o domínio da casa real. As riquezas oriundas da terra eram utilizadas para cobrir as necessidades coletivas ou pessoais sob circunstâncias que mal distinguiam o bem público do bem particular do príncipe. Toda conquista contra os sarracenos ou o inimigo espanhol se incorporava ao domínio do rei e ao reinado. Entretanto, mesmo essas conquistas respeitaram a propriedade individual. Os antigos cristãos arabizados, chamados moçárabes, também os descendentes dos colonos da África e da Ásia, assim como os descendentes de espanhóis, tiveram seus bens reconhecidos. Sobravam ainda largos domínios para apropriar: as terras dos mouros, reduzidas pela guerra a terras sem dono. Essas eram as terras dos reinos sarracenos e reservadas a empresas de colonização ou a objetivos vinculados à estrutura do Estado. Contava o rei também os territórios confiscados aos particulares, em represália a crimes ou traições, além das terras que caíam sob o poder do rei pelo direito da Coroa em herdar os bens dos vilões (vilani) que morriam sem filhos. Do patrimônio do rei, que era mesmo maior do que o do clero e, até o século XIV, três vezes maior que o de toda nobreza, saía o dinheiro para sustentar os soldados, os delegados monárquicos em todo o país e os primeiros servidores ministeriais que estavam sediados na corte. O rei também fazia grandes doações rurais em recompensa aos serviços prestados pelos seus caudilhos, que eram recrutados entre os aventureiros de toda a Europa. Para Faoro (2001), essas duas características unidas, do rei senhor da guerra e do rei senhor de terras imensas, determinaram a história do reino de Portugal. A crise de 13831385, que permite que uma nova dinastia, a dinastia de Avis, tome o poder, fecha o primeiro ciclo de formação do reino. O rei como o maior proprietário, além de comandante geral, permite a transformação do domínio das terras na soberania. Por ser o centro supremo das decisões, a figura de rei todo poderoso impediu que Portugal tivesse o poder real disperso em domínios, como no feudalismo da Europa central; não se constituiu uma camada autônoma, formada de nobres proprietários. Em Portugal, não havia entre o rei e os súditos nenhum intermediário. O rei comanda e todos obedecem. Qualquer reclamação contra a palavra suprema era considerada traição, rebeldia contra a vontade de quem tomava as deliberações superiores. O rei não admitia nem aliados nem sócios, pois acima dele só a Santa Sé, o Papa, mas não o clero. Abaixo dele, só havia delegados sob suas ordens, seus súditos e subordinados. Excepcionalmente, mais por atenção ao costume dos soldados estrangeiros que existiam desde a Idade Média na França, a concessão de terras determinava, além da propriedade, a soberania em suas terras, o que demonstrava certa tradição feudal. Com o tempo, essas concessões foram deixadas de lado e todos voltaram a obedecer ao rei. 50 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II A concessão de senhorio ou de vila não significava nenhuma atribuição de poder público. A Coroa separava nos nobres a qualidade de funcionário da qualidade de proprietário. O poder dos nobres, quando havia, derivava da riqueza e não das funções públicas. Nos dois primeiros séculos do reino de Portugal, foram estabelecidos limites claros entre o exercício de um cargo e a propriedade privilegiada. O país era dividido em circunscrições administrativas e militares, as “terras” ou “tenências”, governados por um chefe, o “tenens”. Dentro dessas terras, constituíamse os distritos, os “prestamos”, administrados por um prestameiro designado pelo rei. A principal função da administração pública cabia a um nobre, que, eventualmente, podia não ser o senhor da terra. Também as circunscrições judiciais (julgados) e as circunscrições fiscais (almoxarifados) eram administradas por pessoas que o rei escolhia. Os funcionários recebiam a remuneração das rendas dos casais, das aldeias, das freguesias e dos estabelecimentos que não eram beneficiados com alguma imunidade fiscal. Todos os cargos eram determinados pelo príncipe e dependiam da sua riqueza e de seus poderes. Nesse sentido, Portugal exibia uma estrutura diferente da Europa medieval, pois o absolutismo centralizador ainda era uma modernidade. Quando ordenava o serviço militar da nobreza territorial, o rei a contratava como um funcionário. Esse contrato era chamado de soldada e criava um vínculo de subordinação, que foi a origem das futuras quantias, uma renda periodicamente distribuída pelo rei. Quando, no século XIV, o tesouro real empobreceu, o pagamento aos soldados foi feito em terras doadas por um rei aparentemente pródigo. Entretanto, entre a compreensão da história e a realidade das guerras e das intrigas, há uma distância e muitas discordâncias. Esses laços de subordinação entre o rei, a nobreza territorial e o clero só aconteceu depois de muita briga e resistência. A fraqueza dos nobres proprietários de terras derivou das regras para a transferência da terra, mas os nobres avançaram na expansão dos seus poderes com a exploração das imunidades dos domínios. Essa disputa entre a Coroa e a nobreza terminou com a derrota da última, que viu desaparecer seus direitos feudais. As doações deterras dadas como pagamento dos serviços de guerra privilegiavam os nobres com a jurisdição privativa sobre os moradores e a completa isenção de tributo. A imunidade tributária continuou valendo durante séculos, com exceção do imposto chamado sisa, tornado obrigatório para todos no século XIV. Contudo, o mesmo não aconteceu com a jurisdição privativa. A realeza percebeu que o poder de julgar envolvia, em última análise, o poder de criar uma camada intermediária e autônoma. Sem a jurisdição total sobre o país, o súdito (o povo) ficaria liberto da obediência, preso apenas a uma lealdade indireta. Daí a doutrina imposta a todos: “O direito e costume geral do reino, dizia elrei dom Dinis em 1317, eram e tinham sido sempre que em todas as doações régias se entendesse reservada para a Coroa a justiça maior, a suprema jurisdição, em reconhecimento ao maior senhorio” (FAORO, 2001, p. 17). Como a atribuição jurisdicional era exclusiva do rei, ele conquistava o povo, que procurava fugir dos desmandos da nobreza e do clero. Todos os trabalhadores simples eram aliados da Coroa. Seus laços eram reforçados pela solidariedade da organização municipal, os concelhos. O velho direito de Castela, consolidado no Fuero Viejo, vigente em Portugal, reservava ao rei, nas doações ou nos senhorios, certas prerrogativas (justiça, moeda, fossado ou jantar), tidas como inerentes à sua preeminência 51 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL na sociedade política. Para fazer demagogia, o rei abria mão de suas prerrogativas, o que encantava o povo (FAORO, 2001, p. 17). Para limitar os excessos dos privilégios da nobreza territorial e do clero, os reis reinstituiram uma pretensa regra da ordem romana. O município, que era usado pelos reis da Europa como estratégia política, foi estimulado. Os concelhos, forma antiga de município, tinham sido conservados pela tradição e tinham pouca significância. Com medo da autonomia do clero e da nobreza, o rei criou uma nova base de sustentação, inaugurando comunas e estimulando as existentes, proporcionando suporte político, fiscal e militar. O trono tentou, assim, uma aliança submissa e servil com o povo. Os forais – a carta de foral – pacto entre o rei e o povo, asseguravam o predomínio do soberano já apontando o caminho do absolutismo, ao estipularem que a terra não teria outro senhor senão o rei. Com a instituição dos concelhos o rei logrou desmontar a política medieval e atacar a prepotência eclesiástica, num meio que levaria a subjugar a aristocracia (FAORO, 2001, p. 18). Havia também outro motivo de origem militar que facilitava a conexão com o fundamento político para a adoção da forma municipal. Uma vez decretada a criação de um concelho para organizar uma povoação ou para reconstruíla, o rei também impunha o dever de defesa militar contra os inimigos mouros ou contra os espanhóis. Assim, o rei conseguiu criar uma milícia gratuita, que era obediente à monarquia. Isso evitou eventuais manipulações políticas da nobreza ou do clero e instituiu o cargo de alcaide, palavra de origem árabe. Surgiu em Portugal um campo neutro contra os privilégios aristocráticos, como a isenção da prestação militar, que, como vimos, era paga pelo rei se dela necessitava. A guerra, a ascendência do rei com a rede de seus agentes cobrindo o país, controlandoo e dirigindoo, domesticando sem aniquilar a nobreza, foram os traços que imprimiram o caráter da sociedade nascente. Isso fez do povo uma força cada vez mais vigorosa, amparada nos concelhos, com a aplicação da velha tradição romana. Um jogo de pressões e influências recíprocas associava a presença do rei tanto nas rendas mais altas, quanto entre as rendas dos mais humildes. Havia uma enorme confusão do que era propriedade do rei, pois terras e tesouros se confundiam como patrimonio público e particular. Toda renda era aplicada nas despesas, sem nenhuma legislação clara, para saldar os gastos da família do rei, ou usada nas obras e serviços públicos. O rei, na verdade, era o senhor de tudo, pois tudo dependia dele para ter legitimidade. Sua autoridade era incontestável, o que vem da tradição visigótica e do sistema militar. Teria sido necessário especificar a fonte das rendas da realeza para entender a estrutura econômica do reino. 52 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Uma análise da base do poder supremo demonstra sua estrutura e profundidade, desde a fonte das remunerações aos guerreiros, funcionários, homens da corte e letrados. Havia um ganho fixo e previsível dos rendimentos do príncipe, que era um senhor territorial como outro qualquer: os lucros da propriedade fundiária. Também havia contribuições da nobreza e do clero, tanto para pagar as contas do chefe do Estado, como também para ser destinado às obras públicas. A propriedade territorial sofria uma exploração indireta e outra direta. A exploração indireta gerava uma renda que poderia ser entendida atualmente como um arrendamento, que era o cultivo temporário da propriedade. A outra renda vinha de uma espécie de imposto de transmissão, quando o lavrador que detinha o uso do solo passavao para outro lavrador; esse pagamento, chamado foro, era feito ao rei. Quando detinham a gestão da terra, os colonos prestavam gratuitamente alguns dias de trabalho por ano ao rei, o que podia ser pago em dinheiro ou em produtos. Essa era a regra para a pecuária, mas também podia ser adotada para as culturas das vinhas e dos olivais. Assim, o rei era o “principal lavrador da nação”, com celeiros e adegas que recolhiam produtos por todo canto de seus domínios. Seus mordomos atuavam na cobrança de foros e rendas. Dessa forma, a monarquia portuguesa se tornou uma “monarquia agrária”. No mesmo período, as rendas do soberano derivavam em sua maior parte da terra, mas as garras reais desde cedo também se estenderam ao comércio, com olhos cobiçosos para o comércio marítimo. Já em meados do século XII, estimulado pela conquista de Lisboa em 1147, o comércio marítimo mostrava os sinais do seu futuro próximo. Havia um grande comércio marítimo com as trocas dos produtos da Inglaterra, Flandres, França, Castela e Andaluzia. Além disso, Portugal dispunha de sal, pescado, vinhos, azeite, frutas, couros e cortiça, que eram trocados por têxteis flamengos e italianos, pelo ferro da Biscaia, pelas madeiras do Norte, pela prata da Europa central e oriental, pelas especiarias e pelo açúcar. Além disso, Portugal promovia feiras, que eram ativas na promoção do comércio interno. O comércio e a indústria dependiam das concessões régias, das delegações graciosas e dos arrendamentos onerosos, que, a qualquer momento, poderiam ser substituídos por empresas monárquicas. Essas foram as sementes do mercantilismo lançadas em chão fértil. Com os privilégios concedidos para exportar e para importar, o rei arrecadava sua parte, numa apropriação de renda que só analogicamente se compara aos modernos tributos. No fim do século XIV, a sisa, imposto devido ao tesouro pelos consumidores na compra e venda e na troca de mercadorias, ocupava o primeiro lugar no orçamento. Todos eram obrigados a pagar, não havendo nenhuma dispensa para os nobres, os eclesiásticos ou os plebeus. O comércio que alcançava todas as camadas da população era estimulado na organização dos concelhos, criando renda para o soberano. Assim, a monarquia agrária se tornou mais ficção do que realidade, pois os rendimentos tributários da Coroa logravam maior lucro. Para entendermos como Faoro (2001) intui que Portugal antigo influencia o Brasil até hoje, vejamos a lista de impostos que já naquela época eram cobrados da população: 53 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL a) os réditos com origem na agricultura e no pastoreio —cânones, porções, direituras e miunças dos herdamentos régios, jugadas dos herdamentos dos herdadores peões, o montado pago sobre certas pastagens, as vendas da produção direta; b) réditos provenientes da circulação internae do mercado — portagens, açougagem, alcavalas; c) os réditos provenientes do comércio externo — dízimas, portagens; d) as multas judiciais, ou calúnias e coutos; e) réditos provenientes da atividade industrial — vieiros e minas, dízima do pescado, taxa de mesteres; f) serviços prestados ao rei ou aos oficiais régios — geiras de malados júniores e outros, almocreverias e carretos, serviço de remadores na frota real [...] ou suas compensações monetárias; g) jantar ou colheita; h) emissões de moeda (FAORO, 2001, p. 22). Havia ainda as rendas colhidas da dízima eclesiástica (imposto sobre a religião), das pensões de tabelionato e da justiça civil. Todos esses impostos compunham os tesouros reais em moedas, que aparecem nos testamentos dos soberanos em uma indicação da nascente economia monetária. A simplificação da cobrança levou ao calculado incremento da ordem municipal. A Coroa criava rendas com seus bens, cobrava impostos do patrimônio particular e manipulava o comércio para sustentar a corte e garantir a segurança de seu domínio. O súdito nobre e o súdito comum não pagavam serviços, tangíveis ou abstratos, como o contribuinte moderno. O rei era um poderoso sócio e patrão, submetendo todo proprietário a cuidar da produção. A nobreza tentava defender os velhos privilégios, se mantendo como aliada do soberano, mas logo ela vai preferir se juntar à burguesia. O Estado patrimonial não respeitou os privilégios dos nobres. Assim, Faoro deixa claro como a estrutura da formação econômica de Portugal apresenta contornos que podem ser comparados com as demais fases da história do Brasil. Contudo, a constituição política pode ser situada, segundo Faoro (2001), na constituição do imperador Diocleciano (285305). A estrutura do direito vem do imperador Justiniano (527565), cujas codificações se propagaram no Ocidente como a forma principal de pensamento jurídico. Assim, esses imperadores romanos criaram a organização política e o conjunto de regras jurídicas que perduraram por sete séculos. Depois disso, na Idade Média, de acordo com as circunstancias sociais, foram utilizados pedaços de codificações para estruturar a ideologia da fé cristã. Essa ideologia entende que o Estado consagra a supremacia ao príncipe para manter a unidade do reino e a submissão dos súditos ao poder mais alto, na figura de coordenador das vontades. As bases sobre as quais assentaria o Estado português estavam elaboradas no direito romano. O príncipe, na qualidade de senhor do Estado, proprietário eminente ou virtual sobre todas as pessoas e bens, está definido como ser dominante desde a monarquia romana. A figura do rei era a de comandante militar supremo, e sua autoridade era exercida na administração e na justiça, tal como no período clássico da história imperial romana. O racionalismo formal do direito, com toda a sua infinidade de leis, serve para disciplinar a ação política e o rumo da ordem social sob o comando e o magistério da Coroa. 54 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Exemplo de aplicação Raymundo Faoro está comparando a forma original de constituição do reino de Portugal com o desenvolvimento do Estado brasileiro. Compare os privilégios atuais dos políticos, dos juízes e dos militares, que, juntamente com a classe dominante, pretendem ainda hoje a manutenção de um modelo de inspiração arcaica. Para Faoro (2001), a Common Law, que rege o direito angloamericano, vem dos costumes das tribos dos godos, que muitas vezes se sobrepunham à ordem jurídica formalizada. Isso teria origem na dispersão da autoridade, um fenômeno geral na Idade Média. O direito romano justificava legalmente os privilégios do rei, revelandose o instrumento ideal para afirmar o predomínio. A Península Ibérica, unida ao pensamento dos Papas, aprendeu o direito romano com as lições dos clérigosjuristas, que se espalharam pela Europa sobretudo a partir dos séculos XI e XII. Esse movimento inclusive contestou a supremacia do clero a partir das obras jurídicas e legislativas de Afonso X (12671272), rei de Castela, e do rei português Afonso III (1246 ou 12481279), com a promulgação da ordenação sistemática sobre os processos. O direito romano, modificado com as legislações ibéricas, permitiu e justificou que o rei dominasse o clero e a nobreza. Assim, a influência da obra dos juristas e imperadores romanos serviu a fins opostos aos previstos pelo clero, criando uma nova ideologia. Essa luta obedece aos padrões acabados e perfeitos do jurismo do imperador Justiniano. A batalha estimulada pelos soberanos portugueses buscou nos municípios romanos a forma adequada à instituição dos concelhos. O município português se filia à origem romana e à sua feição ideológica. A forma, o modelo e a estrutura são romanos, mas os fins a que se destina e as funções que desempenha são modernos. Essa foi a influência romana na organização de Portugal. Contudo, mesmo combatendo os privilégios da nobreza territorial, o direito romano não favorecia os interesses comerciais. O rei era titular dos poderosos e possuía extensos interesses econômicos. O comércio já tinha conseguido criar durante a Idade Média um direito específico, o que serviu de fundamento para o moderno direito comercial. Assim, era necessário adaptar o direito e lidar com as sociedades comerciais e os títulos de crédito. A Inglaterra, mãe do capitalismo moderno, desenvolveu seus instrumentos legais de relações econômicas sem utilizar quase nada do direito romano. O direito romano serviu para a disciplina dos servidores ao Estado e para a expansão dos súditos ligados ao rei e regidos por regras racionais, pelo menos no sentido formal. O novo estilo de pensamento jurídico não acabou com o comando irracional ditado pela tradição ou pela vontade caprichosa do príncipe, que tentou o tempo todo mudar as regras que davam poder aos nobres. O renascimento jurídico romano foi estimulado a reforçar o Estado patrimonial e serviu de estatuto para a ascensão do quadro administrativo do soberano, quando surgiu a figura do ministro. Em Portugal, os antigos funcionários romanos se transmutaram na aristocracia goda e, assim, deixaram no passado sua 55 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL ambição clara pela riqueza territorial. A política real limitou a autonomia dessa aristocracia, agrupando na corte os nobres que receberam funções públicas que os atrelavam ao poder do soberano. A Reconquista revalorizou as baronias territoriais, compostas dos principais oficiais da monarquia, dos magistrados superiores e dos civis e militares. Nas baronias se fundiram a antiga aristocracia burocrática da época dos romanos e os militares godos. O recrutamento, que era determinado pela tradição, obedecia à liberdade do rei, que chamava os servos de sua casa para servirem ao lado de senhores territoriais. Em Portugal, o barão não se baseou no feudalismo porque as populações só aceitavam, hipnotizadas por um estilo antigo, a predominância do rei, chefe dos exércitos. O barão português se define como funcionário e não como senhor. Havia um traço do feudalismo, mas não o feudalismo como instituição. Por causa dessa realidade, Faoro (2001) contesta a ideia instituída por pensadores de esquerda, por exemplo, Caio Prado Júnior, que encontrou nas capitanias hereditárias um feudalismo tardio. Segundo Faoro (2001), não pode ter existido no Brasil algo que tampouco existia na história portuguesa, pois os portugueses nem saberiam como legislar com ideias medievais. O direito público que definia as relações entre o rei e os súditos continuava visigótico, assegurando as prerrogativas do rei. No século XV, essa linha de pensamento levaria um rei a se reconhecer como titular do poder absoluto. A própria organização ministerial renasceu do resgate das ideias da monarquia visigótica, impregnadas de legislação romana. Todos os cargos eram exercidos sob o direto de comando do rei, sem nenhuma possibilidade de serem herdados. Em tempos de guerra, na ausência do rei, era nomeado oalferesmor como comandante do exército. Portanto, segundo Faoro (2001), existe uma linha ideológica contínua entre o Império de Diocleciano e o reinado da Reconquista. Os fundamentos sociais e espirituais reuniramse para formar o Estado patrimonial. Com a economia se monetizando e o surgimento do mercado com relações de troca pagas em dinheiro, o Estado patrimonial, que já era latente desde as navegações comerciais da Idade Média, tornouse realidade. O uso da moeda, padrão no início da Idade Moderna e medida de todos os valores, tornou Portugal aberto ao progresso do comércio. Isso promoveu a renovação das bases da estrutura social, política e econômica no reino. Muito antes da descoberta do Mundo Novo, a cidade tomou o lugar do campo. A moeda, que passou a circular nas economias até então fechadas do mundo medieval, preparou o caminho de uma nova ordem social. Em Portugal, o capitalismo comercial e monárquico, guiado por uma oligarquia governante audaz e empreendedora, acabou se libertando de qualquer tradição feudal. Isso permitiu que o príncipe organizasse o Estado como uma obra de arte, uma criação calculada e consciente. A moeda permitiu que o exército fosse livremente recrutado e que os letrados se tornassem funcionários da Coroa. Assim, foram desenvolvidas formas mais flexíveis de ação política, criando o Estado moderno, que precedeu ao capitalismo industrial projetado sobre o Ocidente. Faoro (2001) percebe que nessa aparente sequência que parte da guerra e amadurece no comércio, com o rei senhor da espada e das trocas, há um sério problema histórico. Teria sido a nova construção política do Estado absolutista moderno um acontecimento só possível depois da ruína do feudalismo? 56 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Ou teria o Estado moderno uma linha própria de crescimento, sem vínculo necessário com o sistema feudal da Europa central? Para o autor, o ponto importante que caracteriza a economia da Idade Média, identificada como feudalismo, reside na propriedade dos meios de produção. Feudalismo e economia natural seriam termos correlatos. Antes do capitalismo, havia uma pequena indústria, baseada na propriedade do artesão sobre os meios de produção. No campo, a agricultura estava limitada a plantar apenas um pouco mais do que as suas necessidades. Para Faoro (2001), os meios de produção, como a terra, os implementos agrícolas, a oficina e as ferramentas, devem ser considerados meios de trabalho dos indivíduos, já que eram destinados ao uso individual. Portanto, a possibilidade de produção era pequena e limitada, o que seria o motivo pelo qual pertenciam apenas ao próprio produtor. Na Revolução Industrial, o tear individual deu lugar ao tear coletivo. A máquina de fiar substituiu a roca e, assim, a produção perdeu o caráter individual. A força de trabalho coletiva, que converte o trabalho em mercadoria, resultou na perda da identidade do homem trabalhador. Contudo, Faoro (2001) sugere que, na economia medieval, não havia nada além de um momento idealizado adequado para se opor à cruel realidade do capitalismo. Outra consequência do modelo marxista é que o capitalismo, teoricamente responsável pela ruína feudal, teria sido o capitalismo das manufaturas, que foi a primeira fase do capitalismo industrial. Em vários países, o capitalismo industrial se beneficiou do capitalismo comercial: troca de produtos manufaturados por mercadorias, na sua maioria produtos agrícolas ou minérios. Para Faoro (2001), a historiografia marxista segue um curso linear, embora reconheça a ausência de feudalismo nos Estados Unidos e a não peculiaridade de certas relações sociais tidas como específicas da Idade Média na formação sóciohistórica do Brasil. Mas ele afirma que essa doutrina construída sobre uma tradição histórica, e ensinada sem exame crítico de profundidade, infiltrouse na teoria acadêmica, ganhando o prestígio dos lugarescomuns. O marxismo teria contaminado os estudos do século XX, empenhado, sobretudo nos países subdesenvolvidos, a descobrir uma “estrutura feudal” perdida em um mundo há muito tempo capitalista. Os estudos do século XIX, sobre os quais nasceu a tese marxista, pareciam apoiála, e poucos tiveram coragem de não concordar com esse ponto de vista. Contudo, Faoro insiste que, como Portugal era patrimonial e não feudal, os efeitos que até hoje estão presentes na sociedade brasileira, principalmente naquilo que diz respeito às relações entre o homem e o poder, são de outra ordem. Também a forma econômica que organiza a economia do Brasil até hoje não é de origem feudal. Quando o patrimonialismo é dominante, há uma ordem burocrática que determina que o soberano é sobreposto ao cidadão na qualidade de chefe para funcionário: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Além disso, o capitalismo dirigido pelo Estado, que impede a autonomia da empresa e a própria formação do mercado livre, anula as liberdades públicas, que são fundadas sobre as liberdades econômicas, de livre contrato, de livre concorrência e de livre profissão. Tudo isso vai contra o estabelecimento dos monopólios e das concessões reais, assim como é o caso das atuais concessões públicas no Brasil. 57 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL O feudalismo não criou, no sentido moderno, um Estado. O sistema feudal é um conjunto de poderes políticos divididos entre a cabeça e os membros, separados de acordo com o objeto do dominação e controle. Não havia no feudalismo uma unidade de comando, que é a raiz da soberania. Na Idade Média, a homogeneidade nacional, para além da língua, eram os privilégios contratualmente reconhecidos de uma camada autônoma formada por senhores territoriais, os nobres. Não há feudalismo sem a ideia de que uma camada da população tem poder sobre as demais, cada uma com sua cultura própria. O feudalismo não foi um fenômeno exclusivamente europeu, mas foi um desvio na formação da nação politicamente organizada. Ele não existia no mundo grego ou no mundo romano, onde podemos encontrar uma linha histórica sem interrupção desde a tribo até o Estado soberano. Há uma incompatibilidade entre o sistema feudal e a apropriação pelo rei dos recursos militares e fiscais, que são os fatores que levaram a racionalizar o Estado. Para Faoro: [...] o chamado feudalismo português e brasileiro não é, na verdade, outra coisa do que a valorização autônoma, truncada, de reminiscências históricas, colhidas, por falsa analogia, de nações de outra índole, sujeitas a outros acontecimentos, teatro de outras lutas e diferentes tradições (FAORO, 2001, p. 34). No feudalismo, a camada dominante dos nobres proprietários de terra se associava ao rei por convívio fraternal e de irmandade. Mas os nobres dispunham de poderes administrativos e de comando; para se aliarem ao rei, exigiam algumas negociações e acordos. O serviço devido ao rei e aos senhores pelo conceito de vassalagem não constituía uma obrigação ou um dever e podia ser retirado em qualquer tempo. Situado teórica e historicamente, o sistema feudal foi incompativel com o mundo português desde os primeiros momentos da Reconquista. Em Portugal, a terra obedecia a um regime patrimonial e era doada sem a obrigação de serviço ao rei. Ele, sempre que concedia terras, fazia como em uma alienação moderna, pois assim conservava o direito de tomálas de volta. O serviço militar prestado ao rei português era pago. O domínio da terra não fazia do seu titular uma autoridade pública, nem beneficiário de um monopólio real. Assim, Faoro (2001) conclui que, desde a Idade Média, Portugal era um Estado patrimonial e não feudal. Esse Estado patrimonial tinha uma direção prétraçada, organizado pelo direito romano e pela tradição das fontes eclesiásticas e renovado pelos juristas da Escola de Bolonha. Faoro (2001) evoca também a lembrança de Maquiavel, que reconhecia dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial. Em uma monarquia patrimonial, o rei está acima de todos os súditos. É senhor da riqueza territoriale dono do comércio. O reino tem no rei um titular da riqueza eminente e perpétua, capaz de gerir as maiores propriedades do país, dirigir o comércio e conduzir a economia, tudo como se fosse sua empresa. Ao contrário dos direitos, privilégios e obrigações fixamente determinados do feudalismo, inclusive para o rei, no sistema patrimonial todos estão presos ao soberano em uma rede patriarcal, pois os senhores representam a extensão da casa real. 58 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Os auxiliares do príncipe viriam a compor em Portugal uma nobreza própria, muitas vezes mais importante do que a nobreza territorial. Os legistas, doutores e letrados se tornariam funcionários comuns. Só a vontade do rei poderia lhes conceder grandezas. Mas, enquanto o mundo não foi inteiramente dominado pelo capitalismo industrial, pensavase que havia o risco de se voltar a um feudalismo. Portugal teve desde o início um destino patrimonial de preponderância comercial. O comércio definiu o destino do reino e foi a forma de financiamento da Reconquista dos árabes e da independência da Espanha. O comércio se converteu no modo próprio de expandir suas atividades, tanto que Portugal abandonou a cultura do trigo para adquirilo em mercados estrangeiros por um preço melhor do que o produzido em suas terras. Essa trajetória, iniciada com as exportações para Flandres, Inglaterra e Mediterrâneo, culminou nas grandes navegações. Mesmo que a maior parte da população portuguesa na Idade Média vivesse da agricultura, o traço característico da vida econômica não era dado pela exploração do solo. A atividade comercial e marítima, que resultou do povoamento da costa e da exploração do mar, é que representou o elemento decisivo e definidor da forma de vida nacional portuguesa baseada na pesca, na produção de sal e nas trocas dos produtos comerciáveis da terra. Entre o período do comércio medieval, de trocas costeiras, e o comércio moderno, com as navegações longas, houve o aparecimento da burguesia comercial desvinculada da terra, capaz de financiar a compra das mercadorias. O rei enquanto dirigente centralizador conduzia as operações comerciais como se fosse uma empresa. Nenhuma exploração industrial e comercial estava isenta de seu controle. Por isso, mantinha comando imediato em todos os setores mais lucrativos e concedidos e autorizados à burguesia nascente, que em Portugal sempre esteve presa às rédeas da Coroa. É a estrutura patrimonial que permitirá a estabilização da economia. Ela permitiu a expansão do capitalismo comercial e fez do Estado uma gigantesca empresa comercial, que impediu o desenvolvimento em Portugal e no Brasil do capitalismo industrial até o século XX. Até hoje Portugal não se tornou uma nação fortemente industrial. Enriquecida pelo comércio, a burguesia foi reduzida ao papel de intermediária do comércio. Assim, a atividade industrial, quando existiu, resultou de estímulos, favores ou privilégios. A empresa individual, baseada racionalmente no avanço tecnológico e no cálculo do lucro, completamente independente da intervenção governamental, nunca pode existir. A atividade comercial e sua finalidade especulativa impediu a liberdade econômica, que foi a base da Revolução Industrial. Daí surgiram as consequências econômicas e os efeitos políticos que, segundo Faoro (2001), se prolongam no século XX e, em sua ótica, até os nossos dias. Os portugueses herdaram o comércio dos árabes, que já tinham definido a vocação marítima do país, geograficamente condicionada pela convergência entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico. Foram os moçárabes e os muçulmanos que prepararam, com o comércio pelo mar, a jornada ultramarina e a grandeza de uma camada popular, a burguesia comercial. Os documentos do século XII demonstram que, na concessão de privilégios para os oficiais de navios e nas mercadorias reexportadas, o comércio marítimo era uma atividade antiga que entrou em expansão após a Reconquista. 59 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL Os direitos reais, que definiam a apropriação de renda dos negócios, enriqueceram o tesouro real com as taxas das alfândegas. O rei era o banqueiro da nação, seu maior sócio e estimulador das exportações. A burguesia, tendo tomado conta da administração municipal, sobretudo em Lisboa e no Porto, tinha voz nas Cortes através de seus delegados e procuradores. Foram duas as medidas que favoreceram diretamente o comércio marítimo em benefício dos armadores: os privilégios concedidos “aos mercadores, moradores e vizinhos de Lisboa” para o fomento da construção de navios; e a genial criação dos seguros marítimos, em 1383. A primeira medida tinha um cunho nacionalista, pois “melhor seria se o lucro que os navios estrangeiros recebiam dos fretes fosse recebido pelos seus naturais”. A segunda medida visava ao estabelecimento “de uma associação de todos os donos das naus, pela qual tais perdas se remediassem e seus donos não caíssem em áspera pobreza” (FAORO, 2001, p. 49). A alta burguesia, presa aos vínculos do soberano que outorgava as concessões de comércio, foi arrastada ao centro do furacão. O Regedor e Defensor do Reino, em dois anos de guerra, se converteu em Dom João I, primeiro rei da dinastia de Avis (13851580). A guerra contra os espanhóis foi lançada por Castela com o apoio da ala mais extremada da aristocracia portuguesa. Essa guerra aconteceu no contexto da guerra civil, que definiu a reestruturação do reino de Portugal. Nascia nesse momento a forma astutamente e sagaz do mando portugues (e brasileiro): Álvaro Pais escreve na Crônica de Dom João I: Senhor, fazei por esta guisa: dai aquilo que vosso não é, prometei o que não tendes, e perdoai a quem vos não errou, e servosá de mui grande ajuda para tal negócio em que sois posto (FAORO, 2001, p. 51). Esse conselho realista é seguido, e Dom João I faz doações de terras aos militares combatentes, tomando os bens da aristocracia que tinha apoiado a Espanha. Concedeu os privilégios à burguesia comercial e trouxe para as Cortes os letrados legistas. As três categorias se projetaram no círculo ministerial e nos conselhos do novo dirigente, dando nova feição à aristocracia portuguesa. Nuno Alvares Pereira, o general da campanha militar, tornouse o maior proprietário do reino, não sem a oposição dos legistas, preocupados em manter a supremacia do rei, inclusive na grandeza do senhorio territorial. Coube ao jurista João das Regras conciliar as facções, incorporandoas ao Estado. Sua primeira obra foi institucionalizar a dupla chefia do governo, com a prevalência do poder revolucionário. Com seus sofismas, pode o rei ser aclamado Regedor e Defensor do Reino e reivindicar o trono com argumentos de legitimidade. Os nobres fidalgos resolveram reconhecer o bastardo Dom João I, aceitando a duvidosa nulidade dos casamentos de onde provinham os demais pretendentes. Assim triunfou o direito romano, com sua maneira retórica de raciocínio, consagrando as Cortes de Coimbra e o novo príncipe, mas não podemos esquecer que isso só foi possível pela força que seu exército representava. A sociedade urbana e popular tinha um rei que era resultado da revolução burguesa, da força da espada e dos argumentos dos juristas. Os burgueses e os legistas cuidavam para que Portugal não se tornasse uma confederação de senhores territoriais, enriquecidos com as doações de terras feitas como pagamento pelos serviços da guerra. 60 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Nuno Alvares, dono da metade do país, sofreu dura restrição para desfrutar suas propriedades, o que se atribuiu na época à inveja. Mas os juristas insisitiam que ninguém, salvo o rei, tivesse vassalos. O rei, então, aceitou indiretamente essa ideia, ao adquirir parte das terras doadas. Procuravase defender a idéia do Estado favorável à burguesia e contra esse súbito alastramento do regime senhorial. A autoridade legal e racional, filha dos argumentos, raciocínio e subtilezas de João das Regras,serviu apenas de moldura intelectual. Quando conseguiu obter o poder extraordinário, Dom João I ergueu seu domínio acima da burguesia e rebaixoua de patrocinadora da monarquia a servidora. A nobreza, enriquecida com novas linhagens, deixou de sonhar com os castelos feudais e preferiu ficar presa às rédeas do trono; ainda, absorveu grande parte da burguesia comercial que era voltada para o campo e pagou caro pela insensata tentativa de conquistar privilégios que podiam ameaçar o poder real. Fernão Lopes, cronista e historiador que relatou esses acontecimentos, relatou as transformações sociais e econômicas que a revolução consagrou. Com ele, nasceu uma história nova, ajustada ao tempo, preocupada com a realidade profunda e com a ideologia, alheia à tradição narrativa romana. Por ele, sabemos que a revolução não quis emancipar o povo envolvido no alto comércio marítimo e urbano. Ela tornou nobre apenas os burgueses ricos, que era uma camada longamente preparada para a ascensão social e política. As conquistas burguesas perseveram nos anos seguintes. A sisa, que nesses tempos era o principal imposto, quebrou as imunidades aristocráticas, sendo cobrada em todas as transações de compra, venda e troca. Os armadores foram beneficiados, fazendo germinar a conquista ultramarina. A nobreza também não desapareceu, nem perdeu totalmente seu poder; foi transformada em elite nominal sem influência. Ao seu lado instalouse a grande burguesia, com a função de conduzir a economia e partilhar a direção da sociedade. A burguesia é que foi transformada de grupo de pressão em fator do poder. Não se limitava mais a atuar, perdida nos concelhos municipais, nas pressões urbanas, sobretudo em Lisboa, no Porto e em Santarém, ou raramente nas Cortes. A burguesia passou a formar o Estado. A burguesia tinha conquistado seu lugar, mas acima dela havia o rei, proprietário virtual de todo o comércio, capaz de conceber projetos e planos encomendados aos juristas cheios de armadilhas e sofismas e capazes de erguer a forca por toda parte. A monarquia portuguesa foi definida na crise de 13831385, e a realidade do Estado patrimonial necessitou de uma confederação política, que amadureceu em um quadro administrativo de caráter ministerial. A direção dos negócios da Coroa exigia a administração da empresa econômica, que já estava definida em direção ao comércio marítimo e requeria um grupo de conselheiros e executores, sob as ordens incontestáveis do soberano. O rei deixou de ser apenas o senhor virtual do território e tomou o Estado para tornálo um agente econômico extremamente ativo. Forçava as casas senhoriais a lançaremse nos empreendimentos comerciais marítimos. Isso acontecia para que a contração econômica fosse contornada com as rendas advindas da navegação oceânica e seu comércio, bem como de algumas atividades industriais, principalmente da mineração. Para isso, o Estado desenvolveu, de acordo com sua necessidade, uma organização políticoadministrativa, juridicamente escrita, racionalizada e sistematizada pelos juristas. 61 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL Para Faoro (2001), nesse momento surgiu aquilo que melhor explica a formação sóciohistórica do Brasil: o estamento. Segundo ele, essa corporação de poder se estruturou de forma diferente das categorias de classe social ou casta. Faoro entende que a estratificação social, embora economicamente condicionada, não resulta na absorção do poder pela economia. O grupo que comandava, no qual se instalou o núcleo das decisões, não era, nas circunstâncias históricas de Portugal, uma classe, da qual o Estado seria mero delegado, uma espécie de comitê executivo. Pelo sentido clássico marxista, a classe social se forma a partir da apropriação de interesses econômicos, determinados pelo mercado. A propriedade e os serviços oferecidos no mercado, que podem ser pagos em dinheiro, determinam a emergência de uma classe social. Assim, surge logo a diferença entre quem é positivamente ou negativamente privilegiado. Em Portugal, nenhuma classe e seus membros, por mais poderosa que fosse, conseguia dispor de poder político. Ao contrário, uma classe rica podia ser repelida pela sociedade e marcada pelo preconceito, como os financistas e banqueiros judeus dos séculos XV e XVI em Portugal. O estamento é, primariamente, uma camada social e não econômica, embora possa repousar, em conexão não necessária real e conceitualmente, sobre uma classe social. O estamento político que Faoro conceitua é constituído de uma comunidade que faz seus membros pensarem e agirem conscientes de pertencer a um mesmo grupo, a um círculo elevado, qualificado para o exercício do poder. A situação estamental proposta seria a do indivíduo que aspira aos privilégios do grupo, e se fixa no prestígio da camada e na honra social que ela infunde sobre toda a sociedade. Em outras palavras, é como um operário moderno que prefere votar em políticos que são patrões. A estabilidade econômica favorece uma sociedade de estamentos, assim como as transformações bruscas da técnica ou das relações de interesses enfraquecem os estamentos. Por isso, representam um freio conservador pela preocupação em assegurar a base de seu poder. Ainda segundo Faoro (2001), há estamentos que se transformam em classes sociais e classes sociais que evolvem para o estamento, mesmo que sejam coisas diferentes. Os estamentos governam, as classes negociam: “Os estamentos são órgãos do Estado, as classes são categorias sociais (econômicas)” (FAORO, 2001, p. 60). A partir dessa formulação, Faoro vai buscar comprovar suas ideias examinando a história de Portugal e a história do Brasil. Prossegue com a descrição de como se organizou esse estamento em Portugal. O absolutismo e o funcionalismo estavam nascendo no Estado patrimonial de estamento, sem com elas se identificar. O estamento era uma comunidade de dependentes do tesouro da Coroa e se converteu na burocracia. Era uma burocracia de caráter aristocrático, com uma ética e um estilo de vida próprios, impregnados do espírito précapitalista. No Estado absoluto, o estamento vivia atuante e seus privilégios estavam condicionados pela vontade do soberano. O estamento, que era o estado maior da autoridade pública, apressou e consolidou a separação entre a coisa pública e os bens do príncipe. O reino não era mais o domínio do rei, e o soberano tornouse o domínio da nação. A tradição, apoiada no direito romano, ganhou caráter racional e consciente graças à palavra, acatada e respeitada, dos juristas. Desde a segunda metade do século XIII, as funções públicas se diferenciaram por competências estereotipadas, com a distinção básica entre a administração pública e a administração do serviço doméstico do rei. 62 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II No século XVI, os legistas formavam uma espécie de casta. Os cargos da magistratura superior eram geralmente desempenhados por famílias mais ou menos ligadas entre si pelos laços do parentesco. Os cargos subalternos da administração judicial eram preenchidos comumente por pessoas que dependiam dos empregados superiores. Os legistas não tinham constituído uma casta. Eles se agregaram em uma comunidade onde todas os funcionários se representavam. O estamento no século XVI zelava pela supremacia do poder nacional, que era ao mesmo tempo um poder civil de oposição à nobreza e contra o controle do poder econômico. A nobreza perdeu a imunidade fiscal. Os legistas golpearam os senhores territoriais. Firmaram o princípio da inalienabilidade dos bens da Coroa e deixaram claro que as doações de terras se fariam com a reserva de reversão, se não fossem preenchidas certas condições na sucessão. O rei ainda podia reaver a terra que tinha sido doada durante uma guerra, pagando à nobreza os salários das jornadas militares. O serviço militar tornouse assim um serviço público obrigatório, remunerado pelo dinheiro do rei. A nobreza perdia todos os seus privilégios ancestrais e, no futuro, só lhe restariamser cortesãos. Contudo, o soberano foi também despojado de atribuições. Perdeu a marca de proprietário do reino e foi convertido em seu administrador, defensor e zelador, pois o principado elevouse acima do príncipe. O conceito de imperium substituiu o conceito de dominium, sem desvirtuar o princípio patrimonial, exacerbado em seguida pelas jornadas ultramarinas. Os direitos e privilégios do estamento obrigaram o rei a se amparar nele. A ação real acontece por meio de pactos, acordos e negociações. Dentro do estamento, se instalou uma luta permanente na caça ao predomínio de uma facção sobre outra. A teia jurídica que envolve o estamento não tem o caráter moderno da impessoalidade e da generalidade. A troca de benefícios era a base da atividade pública, reunida na convergência de tomar o poder e o tesouro do rei. 5.2 Como aconteceram as navegações Portugal teve alguns benefícios que possibilitaram a aventura ultramarina. Contando com vários portos para promover o comércio europeu, nos séculos XIII e XIV, o comércio atlântico de troca de produtos locais ou no trânsito de especiarias vindas do Mediterrâneo concentravase por lá. Nos dois extremos, tanto no Mediterrâneo como em Flandres, as atividades marítimas se expandiram para o norte da África e para a França e a Inglaterra, ligando os dois extremos, Flandres e o comércio do Mediterrâneo. Houve, em paralelo, o desenvolvimento de legislações que estabeleceram seguros marítimos e as participações acionárias em empresas de navegação. O Estado patrimonial, articulado pelo estamento, foi o elemento que permitiu o alargamento do mundo comercial europeu, pois seu crescimento não cabia na capacidade dos financistas particulares, que era a forma do modelo genovês de comércio. Portugal nunca conheceu o predomínio da economia agrária, que teria sido capaz de eleválo à quase soberania da nobreza territorial. Foi o Estado patrimonial que orientou o comércio marítimo e a formação territorial. Entre a conquista de Ceuta e a viagem de Vasco da Gama, por oitenta anos, a mentalidade não mudou. O comércio exigia lucros maiores, rendas maiores e vantagens maiores. Mas que esteja claro 63 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL que o comércio era conduzido pelo rei, herdeiro do Estado patrimoniale e cercado pelo estamento, que discutia razões e objeções. Dentro desse contexto, era impossível manter a nobreza alheia ao comércio, pois era essa a atividade que enriquecia a nação. A religião, no século XV, em Portugal, era a expressão ardente da causa nacional, da independência e da missão do reino. Ela não congregava apenas homem e Deus, mas homem e pátria. Entretanto, o espírito da religião era a guerra das cruzadas, ou seja, a rapina, a pirataria, o comércio e a dilatação do império e da fé. Depois de Ceuta, deuse início ao projeto da escola de Sagres, e a aventura continou agora convertida em empresa. O infante Dom Henrique (13941460) não foi o pai do comércio e da expansão ultramarina. Ele dirigiu a empresa marítima, racionalmente planejada e racionalmente expandida. Nos tempos de Dom Henrique, organizouse o comércio africano, que foi o modelo do futuro comércio ultramarino, patrimônio inalienável da Coroa e reconhecido pelas bulas papais. Esse comércio podia ser feito por conta do príncipe ou mediante delegação régia. Era fácil encontrar banqueiros italianos, flamengos e alemães na capital do reino e nas feitorias. Os venezianos, transferindo suas atividades para Portugal, tornaramse a principal fonte de financiamento das expedições ultramarinas. Sua importância cresceu ainda mais depois da expulsão dos judeus de Portugal. Os judeus portugueses tinham sido os primeiros que financiaram o comércio intercontinental. O mercado principal de compra era a Europa, cujo centro era a feitoria de Antuérpia, para onde se transferira, em 1496, a feitoria de Flandres. O comércio europeu, com os metais do Norte e as mercadorias necessárias à troca de produtos asiáticos, era a condição fundamental do comércio ultramarino. A Coroa não delegava a soberania, mas apenas o governo, para poder retomálo a qualquer instante. Assim, o rei podia delegar a exploração do comércio mediante uma concessão graciosa, como no caso da concessão ao infante Dom Henrique, ou determinar um arrendamento oneroso, como a concessão do comércio de paubrasil a Fernão de Noronha. A Coroa nunca perdia o monopólio da sua propriedade, podendo retomála quando quisesse. No ultramar, voltaram a encontrarse o colono, o militar, o mercador e o missionário. Ao lado do forte militar, desenvolviamse a feitoria comercial e a igreja. Portugal crescia com a ocupação militar, com a exploração mercantil e com a evangelização; as três constantes da história ultramarina. Como atributo da sua soberania, o rei conserva o “quinto”, imposto cobrado pela proteção militar. O Estado inchou com servidores ramificados na África, Ásia e América, mas sobretudo concentrados no reino e que engrossaram o estamento. Tal como no Brasil atual, havia uma multidão de “pensionistas” e dependentes, fidalgos e funcionários, todos sôfregos de ordenados, pensões e favores. O rei pagava tudo, abusos e roubos, infortúnios comerciais e contratos fraudados. A atividade mercantil portuguesa, desenvolvida até o delírio, mas sempre dentro das raias que lhe assinalavam a ordem econômicopolítica, nunca alcançou a forma do capitalismo industrial. Nem mesmo o artesanato conseguiu ganhar expansão em Portugal. Toda a atividade econômica se concentrava nas mercadorias importadas para a troca com outras mercadorias importadas. Umas vinham da África, da Ásia e da América, e outras, dos países marítimos da Europa. No interior agrícola português, cuja produção 64 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II era limitada ao azeite, ao vinho e às frutas, a produção não conseguia suprir sequer as necessidades nacionais. O trigo, cujo cultivo tinha preocupado a corte de Dom Fernando I, passou a ser adquirido no exterior, pois seu plantio era pouco lucrativo. A Coroa era dona de todos os monopólios comerciais: da pimenta, do paubrasil e dos escravos. O capitalismo era politicamente orientado para servir o estamento. Não havia nenhuma vontade de permitir a livre iniciativa, pois o rei constituía seu capital graças ao imposto sobre as atividades comerciais e industriais privadas. Sua riqueza e prosperidade era comandada pelo florescimento dessas atividades, mas, como também ele exercia o comércio, ficava com a maior parte dos lucros e, portanto, restringia o campo de atuação dos particulares. Mas esse real empreendimento comercial não organizou a sua gestão conforme faziam as empresas privadas. Como os privilégios na Corte queriam usufruir dos lucros, não se poupava para permitir o financiamento com capital próprio ou para realizar novos investimentos. Uma vez que o Estado não tinha outras rendas como as derivadas da agricultura, mas mantinha uma ordenação jurídica que permitia o usufruto do estamento, as rendas dos empreendimentos iam sobretudo para o clero e para os senhores. Isso criou um atraso na estruturação capitalista da própria sociedade portuguesa, quando parecia que o Estado tinha enveredado por esse caminho. No século XV, com a subida ao poder da dinastia de Avis, a aliança do rei com a burguesia, que servia para domesticar o poder da nobreza, parecia ter alcançado seu grau extremo, com a emancipação econômica e política do comerciante. O grande burguês de Lisboa e do Porto, trazendo junto o povo das ruas, foi o principal fator da revolução de 13831385. Havia um órgão do Estado, integrado por comerciantes que tinham um papel importante, mas não eram decicivos para as deliberações do soberano. Não tivessem havido certos elementos históricos, a tendência do momento teria levado Portugal a criar das ruínas da nobreza, um sistema político burguês, ao estilo genovês ou no futuro estilo holandês. Mas a realidade desmentiu as promessas da história. Nem a ordem política, nem a ordem ideológicafavoreceram o crescimento da burguesia. Depois de pouco tempo de expansão autônoma, os comerciantes, que tinham sido os principais colaboradores da magna revolução da história portuguesa, recolheramse aos seus bairros sem prestígio, insultados pelos brios fidalgos da nova dinastia. Contudo, percebese que houve uma traição. O mercador, que tinha enriquecido com os transportes, as exportações e os empréstimos, tornouse nobre, muitas vezes renunciando ao negócio e se radicando na terra, tentando reviver o velho estilo aristocrático. A burguesia comercial dependia do rei e continuou presa a esse vínculo, subjugada ao papel de órgão delegado do rei mercador. Ao lado dele havia uma camada de letrados, para cujo recrutamento a origem nobre não tinha nenhum peso. Essa camada era formada principalmente de filhos de famílias burguesas que tinham como pagar para os filhos uma educação universitária. Percebese hoje em dia que não foi a burguesia que renegou sua posição. Parte dela se acomodou ao estadomaior dirigente, que moldou um novo estilo de vida. Essa estratificação social impediu que a burguesia se tornasse autônoma. A burguesia preferiu adotar uma aversão e mesmo desprezo ao trabalho, fosse comercial ou manual, para preferir como valor maior a ociosidade letrada. Para Faoro (2001), isso mostra a força da ideologia do estamento, que não permitia a ascensão de outra ideologia que pudesse permitir um pensamento social novo. 65 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL Segundo o autor, a adoção de hábitos supera e questão econômica na determinação do estamento. Por esse motivo, pessoas ligadas ou oriundas de um estamento vão ter a mesma ideologia. Podemos dessa forma entender porque algumas pessoas vivem uma realidade econômica muito distinta da ideologia que proferem e, até os dias de hoje, acabam votando de acordo com a ideologia e não de acordo com sua realidade econômica. Ao adotarem o mercantilismo, os portugueses não pensaram nos moldes da realidade. Havia sempre a tentação de permanecerem defendendo as idéias religiosas medievais, que tornavam o dinheiro e o comércio instrumentos da usura. Os interesses econômicos tinham de continuar se subordinando à salvação da alma, que era o verdadeiro sentido da vida. A atividade econômica determinava uma suspeita da conduta moral do indivíduo, ditada pela moral teológica. Qualquer motivação econômica, que não contivesse inspirações éticas, era suspeita de pecado. No século XV, se o comerciante vendia íntegra e intransformada uma mercadoria, ou seja, apenas especulava com sua compra e venda, devia ser expulso do templo de Deus por ser praticante da usura (a agiotagem). A ética medieval sobreviveu, no pensamento dos letrados e da corte, durante toda a aventura ultramarina. Essa ideologia explica porque o reino expulsou sem motivos e de repente a riqueza judaica em nome de valores obsoletos, não ajustados ao comércio do século XV. O poder do dinheiro era visto como estranho, anormal, perturbador, sem articulação na ordem estatal, controlado pelo estamento e não merecia reconhecimento. Excluído do corpo da nação, os judeus tentavam criar uma categoria burguesa independente, a única camada autônoma se afastava da solidariedade da nobreza política que vivia na corte. Portanto, se voltaram contra eles os interesses dos que se beneficiavam sem trabalhar, recebendo os lucros do comércio da Coroa. Somente no século XVIII, já em plena decadência do comércio ultramarino, que o mercantilismo praticado de fato conquistou o espírito da sociedade portuguesa. Antes disso, houve apenas o capitalismo politicamente orientado, que era o único que podia existir à margem da lei que condenava explicitamente a usura. Podiase emprestar dinheiro ao rei e cobrar juros desse empréstimo para que a Coroa assegurasse as subvenções aos nobres e ao clero, os reais detentores do pensamento oficial. Até às reformas pombalinas, a concepção dominante em Portugal e no Brasil era a escolástica, aristotélica e tomista. Os problemas econômicos eram pensados dentro de um quadro de princípios éticos do tomismo, conforme o pensamento medieval. Os comerciantes que se revoltavam contra o estado das coisas em Portugal, e em particular contra certos princípios dominantes, eram homens que tinham vivido muito tempo no estrangeiro e que também escreveram as suas obras no estrangeiro, não publicadas em Portugal até a revolução pombalina. O próprio Pombal foi um diplomata e a sua estadia no estrangeiro, particularmente em Londres, exerceu grande influência na orientação que deu ao seu governo. Essa tradicional discrepância entre a prática e o pensamento fomentou a hipocrisia nas camadas dominantes, pois se, de um lado defendiam ideais éticos, de outro, tinham os pés afundados no comércio. A ideologia coerente com a realidade teria sido o mercantilismo só tardiamente aceito pelos portugueses. Faoro (2001) percebe que esse mercantilismo prático português foi herdado pelo Estado brasileiro. Assim, vemos que no Brasil a ideologia continua separada da realidade das necessidades do comércio e da indústria e, principalmente, da valorização do trabalho. 66 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Isso acentuou claramente o papel diretor, interventor e participante do Estado na atividade econômica. O Estado organizava o comércio, incrementava a indústria, assegurava a apropriação da terra, estabilizava os preços, determinava os salários, tudo para o enriquecimento da nação e o proveito do exclusivo do grupo dirigente. O mercantilismo operava como agente unificatório e centralizador. O Estado, dessa forma, ganhou poder internamente contra as instituições e as classes sociais e, externamente, se estruturou como a nação em confronto com outras nações. Assim, nasceu o absolutismo português, consagrado como razão de estado. Entretanto, a atividade mercantil, desvinculada da agricultura e da indústria, não permitiu a acumulação de capitais no país. A prata e o ouro, depois de passarem pelo reino, acabavam nas manufaturas das outras cidades europeias. O conhecimento científico serve para desenvolver técnicas de fabricação, uma das bases da expansão do capitalismo industrial. Mas em Portugal e no Brasil, esse conhecimento sempre foi importado. Quem estudava ciência não estava interessado em transformar o conhecimento cientifico em algo útil para a nação. Para viver uma vida voltada para o passado, não havia nenhuma necessidade da aplicação da ciência para suprir as necessidades materiais de Portugal, o que impediu o desenvolvimento da indústria e mesmo das formas de agricultura. Restou ganhar dinheiro com o comércio de especulação. Podemos dizer que as classes dominantes monopolizavam a cultura espiritual. Quem se opusesse a isso era forçado a emigrar para a distante Europa. 5.3 Questões do direito O direito português também serviu quase exclusivamente à organização política. Para Faoro (2001), o direito articulouse no Estado de estamento, como elo de união, cimento de solidariedade de interesses, expressando sua doutrina prática e sua ideologia. A ideia de regular as relações jurídicas por meio de normas gerais, e não de regras válidas caso a caso, coincidiu com o aumento da autoridade do rei, sobretudo contra os privilégios do clero e da nobreza. O soberano deixou de lado sua função de árbitro dos dissídios e fonte das decisões para o papel de chefe do governo e chefe do Estado. O rei se comunicava com os seus vassalos por meio do regulamento, que reconhecia os direitos do estamento, mas limitavaos. As leis serviam para ressalvar a supremacia real e eram capazes de organizar, por meio dos cargos e privilégios, a ordem política do reino. As Ordenações Manuelinas (1521) introduziram reformas administrativas e financeiras, que modernizaram a administração local. Essas ordenações promoveram uma reformulação de todo direito português, mas deixaram de fora a legislação sobre as finanças reais, que foram depois organizadas pelas Ordenações da Fazenda.Entretanto, com a descoberta de novos mundos, Portugal logo se ajustou à nova realidade, e, em 1603, foram editadas as Ordenações Filipinas, o mais duradouro código legislativo de Portugal e do Brasil. As Ordenações Filipinas são o estatuto da organização políticoadministrativa do reino. Contêm uma descrição minuciosa das atribuições dos delegados do rei, tanto daqueles que cuidam da justiça, quanto dos demais funcionários da corte e da estrutura municipal. Essas ordenações determinaram 67 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL a intervenção do Estado na economia, nos negócios, no comércio marítimo, nas compras e vendas internas, no tabelamento de preços no embargo de exportações aos países mouros e à Índia. Permitiram também o predomínio incontestável e absoluto do soberano e a centralização política e administrativa. Ao mesmo tempo que os mercadores estrangeiros invadiam Lisboa, o comércio vivia à custa dos privilégios concedidos pelo rei. Assim, os comerciantes portugueses limitavamse à atividade de carregar e descarregar as mercadorias importadas, o que começou como um “comércio de trânsito” e se expandiu para um “comércio de dinheiro”. Essas atividades não gozavam de nenhuma qualificação social, independentemente da importância dos financiadores estrangeiros da aventura da África e da Índia e da empresa do Brasil. Não havia nenhuma garantia jurídica dessas atividades. Mesmo os italianos, ingleses, alemães e flamengos, que se associavam ao rei em seus empreendimentos, aceitavam que a garantia era o próprio rei, e nem ousavam exigir nenhum direito próprio. A disciplina imposta sobre os particulares não respeitava a riqueza econômica, era puramente inspirada pela política. Servia ao Estado e ao estamento, e não ao comerciante, nem ao comércio lucrativo. Em uma estrutura de predomínio absoluto das interferências estatais, a realidade jurídica foi sempre uma sombra ameaçadora do poder político. As atividades econômicas, os interesses e os contratos dentro desse contexto social não podiam expressamente visar ao lucro e às vantagens materiais. Tudo se subordinava à glória de Deus e à honra dos nobres, que eram os valores que o estamento corporificava, atolado na cobiça, mas com a cabeça nas nuvens. O Estado, envolvido por esse estamento burocrático, se alimentava da classe comercial, que ele desprezava e aviltava. Entre os dois grupos havia as relações em um plano econômico, mas não um estilo de vida comum. Só o estamento era aristocrático, só ele pertencia à Corte e influenciava as decisões da Coroa. Enquanto o comércio enriquecia, o estamento consumia senhorialmente, pouco preocupado com a produção. Contudo, havia um pacto obscuro e incerto. O estamento e os comerciantes visavam aos inventimentos e lucros das navegações, mas tinham propósitos muito diferentes. A corte e os nobres eram os parasitas. Os comerciantes cuidavam do lucro que vinha cheio de cobiça e de pecado. Somente o rei, a casa do rei e a gente do rei podiam conciliar o comércio com a grandeza moral. O comércio controlado era uma obra grata a Deus e necessária à pátria. O padrão de comportamento do estamento é outra característica percebida por Faoro (2001) e que veio também se instalar no Brasil. 5.4 As regras do comércio e da vida do reino O rei acumulava os títulos de regente e senhor. A regência era a jurisdição sobre todos os que viviam no reino, mas o rei era impedido de dar ou vender aquilo que pertencia aos vassalos. Fora do reino, ele era senhor das terras e dos mares que eram descobertos. O comando de Portugal nos continentes novos vinha com o direito de conquista de novas terras, e fortalezas militares foram estabelecidas para defender esse direito. Quanto ao comércio, as relações 68 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II de Portugal tiveram três comportamentos diferentes. O primeiro quando se conquistava uma terra e se nomeavam senhorios que contratavam com os povos subjugados uma relação de vassalagem, em que o direito maior era da Coroa de Portugal. No segundo modo, eram contratos perpétuos com os reis e senhores da terra conquistada, que tinham de respeitar um tabelamento para venderem suas mercadorias e comprarem as portugesas. Isso aconteceu principalmente no Oriente, onde os reis dos territórios indianos eram senhores das terras nas quais se produziam as especiarias. Somente as especiarias eram tabeladas e obrigatoriamente vendidas aos oficiais do rei que ali residiam em suas feitorias. Todas as outras coisas que não eram especiarias podiam ser negociadas livremente. O terceiro modo é o comércio geral por toda parte, que era feita por livre preço com os outros povos. Nas terras portuguesas, tanto o comerciante estrangeiro, quanto o português só podiam exercer o comércio mediante uma concessão ou delegação real com a outorga de privilégios. Na armada de Cabral, o rei mandou dois protegidos seus, além do banqueiro florentino Bartolomeu Marchioni, que representava o interesse da família dos Médicis. O rei comerciante confundia a exploração econômica com a guerra e a administração pública. Para Faoro (2001), tudo acabou em grossa corrupção, com o excesso do luxo que uma geração desperdiçou, deixando o povo na miséria e o fidalgo avesso ao trabalho. A corte, povoada de senhores e embaixadores, tornouse o local preferido dos comerciantes, que disputavam os favores econômicos e os pedidos de cargos, de capitanias e de postos militares. Para alcançar esses favores, não adiantava só ser nobre. Nada precisava de merecimento porque a conquista do emprego, do posto e da dignidade se fazia à custa da intriga bem tecida e da conversa doce. Não há como não reconhecer no Brasil do século XXI ecos desse tipo de comportamento junto ao poder. Isso criou em Portugal uma imensa burocracia presidida pelo rei. O funcionário estava por toda parte, dirigindo a economia, controlandoa e limitandoa de acordo com sua vontade própria e seus pequenos poderes. A realidade política se entrelaçou na realidade social, e o cargo público conferia fidalguia e riqueza. A maldade acompanhava o funcionário, preocupado em se perpetuar no exercício do cargo que lhe conferia o pequeno poder que o acompanhava. Para Faoro (2011), a expressão completa dessa comédia se revela em uma arte cultivada às escondidas: a arte de furtar. Sua posição pessoal de crítica e de censura dessa prática caracterizava o enriquecimento no cargo como atividade ilícita, sem respeito nem à ética medieval, nem à ética burguesa. Onde havia comércio, havia governo. A administração seguia a economia, organizandoa para proveito do rei. Disso resultava uma enxurrada de servidores e pretendentes a servidores, de soldados e dependentes, de reivindicadores de pensões para a velhice, todos eles promovendo corrupção que os beneficiasse pessoalmente. Consultado pelo rei Dom João IV sobre a pertinência de ordenar um ou dois capitãesmores, o padre Antonio Vieira não mediu suas palavras: Digo que menos mal será um ladrão que dois; e que mais dificultosos serão de achar dois homens de bem que um [...] Tais são os dois capitãesmores 69 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL em que se repartiu este governo: Baltasar de Sousa não tem nada, Inácio do Rego não lhe basta nada; e eu não sei qual é maior tentação, se a necessidade, se a cobiça (VIEIRA apud FAORO, 2001, p. 100). Faoro (2001) apontou que tudo isso acabou em uma grande ressaca. Havia ricos e opulentos, mas o reino não ficava mais rico nem crescia. As subvenções, os ordenados e as pensões devoravam o Estado para o proveito da fidalguia detentora de cargos públicos. O Estado no papel de empresa patrimonial não deu apoio à produção doméstica, que eventualmente teria sido capaz de expandir a indústria. Outras nações enriqueceram com a indústria, enquanto Portugal ficou congelado no passado de sua arquitetura política barroca, sugando o Brasil. Ainda de acordo com o autor, a organização política do patrimonialismoestava fechada em si mesma, formando um estamento burocrático. Essa burocracia não tinha o sentido moderno exposto por Weber de aparelhamento racional do Estado, mas visava apenas à apropriação dos cargos. Cada cargo dispunha de um poder próprio articulado com o rei. O Estado ainda não tinha se tornado uma pirâmide autoritária, mas estava estabelecido em um feixe de cargos que, reunidos, mantinham a aristocracia longe dos subordinados. Com a adoção do comércio para a base da economia, o dinheiro que entrava assegurava o pagamento das despesas e permitia a contratação dos funcionários. O comércio, controlado ou explorado pelo rei, era a fonte que alimentava o caixa da Coroa. O rei era o bom príncipe, preocupado com o bemestar dos súditos, premiando os serviços e assegurando a participação nas rendas. Em um reino onde todos eram dependentes do rei, surgia a figura do pai do povo, voltado para o socorro aos pobres, como no governo de Getúlio Vargas. O sistema de educação obedecia à estrutura reinante. A função da escola era produzir os funcionários, os letrados, os militares e os navegadores. Os funcionários ocuparam o lugar da velha nobreza, adotando sua ética e seu estilo de vida. O gosto pelo luxo e a vontade de ostentar levavam à imitação da vida aristocrática. Era interessante ser improdutivo, mas ter dinheiro, pois isso dava prestígio, que era utilizado como instrumento de poder entre os pares e o rei e sobre as massas, sugerindolhes grandeza, importância e força política. O capitalismo que existiu foi o politicamente orientado. A empresa do rei, para alegria da corte e do estadomaior que viviam dela, podia ser comercial, industrial ou agrícola. Toda a produção era obra do soberano, por ele orientada e estimulada do alto, em teórico benefício da nação. Onde havia atividade econômica, lá estava um funcionário delegado do rei para compartilhar de suas rendas e lucros. Tudo era tarefa do governo, tutelando os indivíduos eternamente menores e incapazes. Aqui Faoro (2001) indica como se mantém a impossibilidade de participação do povo nos destinos da nação. Por semelhança, percebemos que Faoro não estava apenas falando de Portugal do passado, mas do Brasil em que viveu. Toda tentativa de importação de técnicas de produção de bens sofria o efeito triturador e nacionalizador do estamento, que retardou a modernização de Portugal. O mercantilismo, que levara o 70 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 Unidade II Estado ao comércio, impedia que o setor privado pudesse florescer. Essa solução era uma ameaça aos funcinários e nobres sustentados pelo rei, porque qualquer crise que atingisse a entrada de dinheiro afligiria a todos no reino. Para Faoro (2001, p. 103): “Nem o açúcar do Brasil, nem o escravo africano, nem o ouro de Minas Gerais, nada salvou este mundo condenado à mansa agonia de muitos séculos”. Essa agonia não matava, mas paralisava. O único segmento da nação que poderia promover um renascimento econômico, os judeus portugeses, não estavam submetidos ao controle público, mas foram expulsos do país por causa de pretensos brios nacionalistas ou por medo de um monopólio do poder político. A fúria da Inquisição expulsou os judeus portugueses, abrindo mão do dinheiro e do conhecimento que seria trazido através dos acordos feitos com os ingleses. Os judeus portugeses tentavam ser burgueses modernos, que conseguiam compreender os novos tempos. A incompatibilidade do português com o espírito capitalista recebeu muitas explicações. Contudo, em todas as tentativas de definir o mal que acometeu Portugal, há o reconhecimento de que a nação foi sufocada pela falta de modernização de um sistema social, que há dois séculos tinha sido responsável por sua grandeza. 5.5 Como a Revolução Industrial foi combatida em Portugal e como surgiu o estamento de funcionários do Estado A camada superior desdenhava o trabalho e a produção ou qualquer outra virtude burguesa. A Revolução Industrial passou longe de suas praias, incompreendida pelo lucro fácil das especulações ultramarinas ainda no século XVIII. Os servidores públicos, nobres e burocratas, vestiamse com as roupas das fábricas inglesas, cobriam as mulheres de joias feitas na Holanda, comiam o trigo importado, tudo à custa do ouro do Brasil, que não durava em suas mãos. Quando o pessimismo apontava para a crise e a miséria que se aproximavam, exigiase uma solução do Estado. Assim nasceu a ideia ainda presente entre nós de que o Estado é a fonte de todas as desgraças e de todos os benefícios. Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, eram atividades impróprias da nossa fidalguia. Por isso, as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem. Havia (talvez haja até hoje) um preconceito universal contra o trabalho manual, que sempre foi caracterizado como uma atividade servil. Faoro (2001) percebe que, apesar de o trabalho permitir a democracia em todo o mundo, e enriquecer as nações, nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos do que ser uma democracia próspera de trabalhadores. Para ele, é o fruto que colhemos de uma educação secular de tradições equivocadas. A perda da independência de Portugal em 1580 estava na lógica dos acontecimentos. A União Ibérica assegurava uma melhor exploração por parte da nobreza das oportunidades oferecidas pelo Estado. A nobreza, o alto clero, o grande comércio, todos preferiram levar Portugal falido ao florescente Império espanhol, mas isso foi feito pela nobreza dos funcionários que viviam do tesouro. Nesse período, a Espanha se apropriou da soberania nacional portuguesa e controlou o governo sem conceder autonomia do reino. A Inquisição tornouse um instrumento de poder contra a expansão de forças econômicas que tentavam se desvincular do Estado. Daí por diante o mundo barroco aprisionou Portugal e a colônia brasileira. 71 Revisão: Carla/Marcilia - Diagramação: Jefferson - 19/05/17 FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA DO BRASIL O estamento, o quadro administrativo e o estadomaior de domínio configuravam o governo de uma minoria. Poucos dirigiam, controlavam e impingiam seus padrões de conduta aos demais. O grupo dirigente não exercia o poder em nome da maioria, nem mesmo inspirado pela confiança que irradiava do povo. Assim, a própria soberania se tornou privilégio de uma camada restrita, sem nenhum respeito pela maioria. De acordo com Faoro (2001), a história de Portugal e do Brasil é um cemitério de elites. As brigas pelo poder não dizem respeito ao povo; são disputas entre funcionários do Estado. Assim, a classe dirigente de hoje nunca será a mesma de ontem. Em uma linha progressiva, a classe dirigente no Estado moderno tomaria maior consistência com o desenvolvimento da burocracia, que, no final do século XX, se transformou em tecnocracia. Os valores da supremacia política, cujas raízes teriam sido plantadas por Maquiavel, por força da própria dinâmica de controle pelos funcionários do Estado, se desumanizariam para se tornarem eficientes no controle do governo. Isso impediu por muitos anos a convivência democrática. Conforme Faoro (2001), o governo dessas elites, em substituições sucessivas, negaria todo o conteúdo de representatividade das forças sociais. O autor reconhece que essa crítica partiu do campo marxista, no qual, a despeito da concepção do Estado como expressão da classe dominante, o elitismo também conquistou indisfarçáveis posições. Dessa forma, Faoro (2001) consegue explicar a falência da República Velha, do Estado Novo, do período democrático, da Ditadura Militar, da crise econômica do governo Fernando Henrique Cardoso e a destituição do poder do Partido dos Trabalhadores. Por baixo de todos esses movimentos políticos persistiu a ideia do estamento de funcionários do Estado brigando pelo poder, não para estimular o trabalho e o crescimento econômico, mas simplesmente para poder se beneficiar das rendas do Estado. A classe dirigente, a elite ou a classe política seria sempre uma consequência de qualquer sistema, aristocrático ou democrático.

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