Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CAMPBELL, Joseph. Isto és tu: redimensionando a metáfora religiosa. Trad. Edson Bini. São Paulo: Landy, 2002. 192 p. Isabela Mallis Martinho de Araujo * O estadunidense Joseph Campbell, mais conhecido por sua produção voltada para estudos de mitologia e religião comparada, deixou aos seus leitores uma obra extensa, que abrange livros, ensaios e um documentário. Com críticas sensatas e sem ataques intolerantes contra religiões, Campbell constituiu um repertório de aproximadamente 18 obras das quais se destacam O Herói de Mil Faces, As Máscaras de Deus e O Poder do Mito. Após a sua morte, em 1987, o autor passa a sofrer duras críticas. Durante o prefácio da obra aqui resenhada, Eugene Kennedy, autor do prefácio, esclarece que a maior parte dos críticos invejam a súbita fama de Campbell ou interpretam mal as suas obras. Escrito em 2001 e traduzido em 2002, o livro Isto és tu é um compilado de conferências, ensaios e palestras. Campbell, por meio de uma perspectiva da tradição judaico-cristã, tem como um dos principais focos resgatar símbolos e mitos recorrentes para fazer uma dura crítica àqueles que encaram as metáforas religiosas através do sentido denotativo. O título do livro é uma sentença trazida do hinduísmo e que posteriormente foi utilizada por Schopenhauer, a frase revela a tendência do autor pela compaixão nas relações pessoais e na procura pela realização espiritual. Segundo Schopenhauer, “Isto és tu” seria a identificação do ser com aquele que não é ele mesmo. Logo no início do primeiro capítulo, o autor se depara com um entrevistador extremamente tendencioso, entretanto consegue se esquivar com uma desenvoltura que é marcante ao longo do livro. A revolta do entrevistado se estabelece por conta da errônea concepção que o jornalista tem do conceito de mito – tanto é que um dos objetivos do autor nesse capítulo é definir a função do mito e mostrar como as metáforas nele contidas *Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Faculdade de Educação, Campinas, São Paulo, Brasil. isabelamallis@gmail.com são encaradas de maneira errada no contexto contemporâneo. De jeito ácido e com um tom extremamente crítico, mas necessário, o autor termina a primeira parte do primeiro capítulo mostrando que “o resultado é que temos pessoas que se consideram crentes porque aceitam metáforas como fatos, e temos outros indivíduos que se classificam como ateus porque acham que as metáforas religiosas são mentiras”. (2002, p.18) Ainda seguindo a linha da interpretação das metáforas, existe uma perspectiva interessante que o autor ressalta, ele enxerga as instituições religiosas como responsáveis por dissociar a pessoa do princípio divino. A religião é uma das responsáveis pela falta de experiência religiosa, ela entrega a interpretação pronta aos fiéis. É como se as religiões tornassem as pessoas alienadas a partir do momento em que a fé é baseada em algo nomeado antes que você conhecesse por conta própria. Acontecimentos místicos presenciados pelas pessoas são responsáveis por dar validade à experiência humana individual. Essa parte do livro revela uma abordagem típica e extremamente válida do autor: o uso da religião comparada para provar seu ponto. Nesse caso, por exemplo, Campbell utiliza a diferença entre a tradição cristã, que vê Deus como homem único e verdadeiro, e a tradição do Oriente, que vê um fragmento de Deus em cada pessoa. Sendo que na segunda tradição a experiência individual é mais valorizada. Por mais que o autor seja criticado por muitos que alegam que ele fala de modo genérico sobre as religiões, outra comparação feita por ele é pertinente para ser destacada. A lógica aristotélica e a tradição do Ocidente afirmam que a criatura e criador não podem ser os mesmos, o que os relaciona são rituais realizados pelas religiões. Já na tradição do Oriente, criatura e criador se igualam, a criatura usa a encarnação de seu messias como modelo para sua própria encarnação. Tanto essa diferença, tanto o fato da imagem de um Deus masculino, que reafirma a ideia da submissão de vítimas matriarcais a conquistadores patriarcais, demonstra a visão que o autor tem da tradição do Ocidente. Essa tradição permite que o autor analise valores que estão intrínsecos em cada povo, como a submissão diante de um Deus todo poderoso e a exaltação da imagem do homem em detrimento da imagem da mulher. Algo que merece seu destaque é a referência que o autor faz sobre a influência que o movimento feminista pode exercer na simbologia religiosa. Isso se levarmos em conta que a figura de uma Deusa foi substituída por uma visão patriarcal na qual todo o poder, que a imagem do feminino emanava, foi transferido para o masculino. Seguindo esse raciocínio, Mary Daly, filósofa, teóloga e feminista radical, expressa em sua obra Beyond God the Father que colocar Deus como um ser do sexo masculino, é colocar o homem em um pedestal e dar a ele a importância de Deus. Campbell foi muito consciente ao reconhecer o chauvinismo masculino nos símbolos religiosos, ainda mais se for considerado que ele estava inserido em uma sociedade ainda mais machista do que a do século XXI – no Brasil, por exemplo, havia menos de 10 anos que o divórcio havia sido aprovado. Um grande exemplo da influência do movimento feminista na teologia e na simbologia religiosa em uma época de forte presença patriarcal foi um projeto coletivo de revisão e reinterpretação da bíblia sob uma perspectiva feminista divulgado por Elisabeth Cady Stanton entre 1895 e 1898. Publicado no final dos anos 60 do século XX, esse trabalho, que recebeu o título The Woman’s Bible, é o início de um longo e fragmentado processo que levará à constituição de uma Teologia feminista. Percebe-se que a comparação entre religiões não é infundada a partir do momento que Campbell afirma que os símbolos religiosos são “arquétipos psicológicos conhecidos de todas as mitologias” (2002, p.37). É possível confirmar essa afirmação através do livro Símbolo Perdido de Dan Brown. Apesar do seu caráter ficcional o livro contém detalhes reais, como é o caso do personagem Robert Langdon que compara elementos da mitologia egípcia com características da religião católica. Outro especialista que destaca aspectos semelhantes entre as religiões ocidentais e a mitologia é o Doutor Edin Sued Abumanssur, especialista em sociologia da religião. Ele afirma que a própria imagem do diabo – os chifres, os pés de bode e o rabo – tem contribuições advindas do deus Pã da cultura grega. Assim como o tridente, também associado ao diabo, é advindo do Posseidon – outro deus grego. A ideia é inverter o papel dos personagens das culturas que eles consideram pagãs, dando a imagem de seres maléficos a eles. Um exemplo atual dessa ideia é a inversão da figura de Exu, oriunda da religião africana dos iorubanos. Enquanto em sua religião de origem Exu é visto como bom, as igrejas cristãs o identificam como o demônio. Por meio de exemplos de metáforas distorcidas o autor consegue provar seu ponto com clareza e trazer uma crítica a uma situação recorrente até hoje. Isso pode ser visto no exemplo da metáfora da terra prometida. A interpretação dessa metáfora através do uso do sentido denotativo causou e causa muitos conflitos. “A terra prometida é um canto no coração ou é qualquer ambiente que haja sido mitologicamente espiritualizado” (2002, p.44) e não um lugar físico que deve ser motivo de guerra. Um exemplo que pode ser acompanhado nos noticiários é o conflito entre Israel e Palestina. A religião judaica diz que a área em que Israel foi fundado é a terra prometida porDeus ao primeiro patriarca, Abraão, e seus descendentes. Sendo assim, os palestinos foram expulsos de seu território, já que os judeus têm respaldo de grandes potências, e conflitos por essas terras ocorrem até hoje. Durante o prefácio, Carl Sagan é chamado com desdém de “conferencista popular” por Eugene Kennedy por conta de uma suposta estranheza à profundidade teológica. Entretanto, em seu livro O mundo assombrado pelos demônios, Sagan confirma fatos expostos por Campbell. O astrônomo apresenta metáforas que foram encaradas como fatos por muitos cristãos e que geraram consequências por meio do fanatismo. Se os líderes religiosos institucionais fazem caricaturas de suas religiões baseadas em interpretações superficiais das metáforas, espera-se que estejam dispostos a receber críticas. Mesmo que Kennedy considere Sagan um estranho diante da profundidade teológica, as críticas traçadas pelo cientista não são inverídicas. Por fim, é notória a atemporalidade das falas de Campbell. As metáforas religiosas ainda são muito usadas como fatos por instituições religiosas de modo proposital ou não. Muitas dessas metáforas são usadas para reforçar discursos preconceituosos e, mesmo em um Estado laico, livros religiosos são usados por grupos religiosos que conseguem marcar sua presença nos postos de poder para justificar possíveis projetos de leis que beneficiem sua interpretação errônea dos mitos. Por mais cobiçada que seja a ideia transmitida pela sentença “Isto és tu”, a humanidade ainda está longe de enxergar-se no outro e de empregar compaixão nas suas relações pessoais. Espera-se que Campbell, após ter esclarecido de modo acessível inúmeras questões sobre simbologia, tenha encontrado a sua tão sonhada realização espiritual.
Compartilhar