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Doutrina Embriaguez: Aspectos Penais DANIEL CARNIO COSTA Juiz de Direito na Comarca de Miguelópolis/SP. JULIANA VELHO COSTA Advogada em Ribeirão Preto/SP. SUMÁRIO:I Introdução;II Visão panorâmica da embriaguez no sistemajurídico penal brasileiro;III Classificação da embriaguez e suas conseqüências jurídico penais. I INTRODUÇÃO A embriaguez é considerada uma intoxicação aguda e transitória, causada pela ingestão de álcool ou outra substância de efeitos análogos, que causa distúrbios comportamentais e fisiológicos. Tratase de evento de grande incidência na vida cotidiana da população brasileira, devido à difusão das bebidas alcoólicas e à fácil acessibilidade a tais substâncias. A relação entre a embriaguez, decorrente da ingestão de álcool ou de drogas, e a criminalidade violenta é evidente, dispensando até maiores comentários. A relevância jurídicopenal está na medida em que, além de ser prevista como tipo autônomo (contravenção), pode atuar como circunstância agravante, como causa de exclusão da imputabilidade, como causa de diminuição de pena e até como crime. A contravenção da embriaguez (art. 62 da LCP) tem contado com a tolerância pública, demonstrando, destarte, pouco interesse prático. Depois do advento do novo Código de Trânsito, especialmente em seu art. 306, a embriaguez ao volante passou a ser considerada crime grifei: "conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool..." Exige se para que haja delito, tais requisitos: a) a condução de veículo automotor em via pública; b) o consumo de substância alcoólica ou de efeitos análogos; 18 RDP Nº 6 FevMar/2001 DOUTRINA c) mudança do sistema nervoso central, com redução da capacidade da função motora, distúrbios comportamentais e fisiológicos, implicando prejuízo na capacidade de dirigir veículo automotor; d) conduta anormal, imprudente, perigosa ou desatenta; e e) nexo de causalidade entre a condução anormal e a ingestão de substância alcoólica. II VISÃO PANORÂMICA DA EMBRIAGUEZ NO SISTEMA JURÍDICO PENAL BRASILEIRO O crime, segundo conceito formulado pela doutrina mais autorizada, pode ser definido como fato típico e antijurídico. Todavia, o agente que pratica um ato assim definido somente será punido na medida de sua culpabilidade. Segundo a teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro (teoria limitada), são elementos da culpabilidade: a imputabilidade; a potencial consciência da ilicitude; e a exigibilidade de conduta adversa. A imputabilidade é conceituada como sendo a capacidade para entender o caráter ilícito do fato e de determinarse de acordo com esse entendimento. DAMÁSIO E. DE JESUS em mais um de seus estalos de genialidade leciona: "A capacidade de entender o caráter criminoso do fato não significa a exigência do agente ter consciência de que sua conduta se encontra descrita em lei como infração. Imputável é o sujeito mentalmente são e desenvolvido que possui capacidade de saber que sua conduta contraria os mandamentos da ordem jurídica" (Direito Penal, vol. I, p. 410). Em regra, todo agente com mais de dezoito anos é imputável, a não ser que sobre ele incida alguma causa de exclusão da imputabilidade. São causas que excluem a imputabilidade: a doença mental; o desenvolvimento mental incompleto; o desenvolvimento mental retardado; e a embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior. (Obs.: a menoridade penal indivíduos com menos de 18 anos de idade é causa de exclusão de imputabilidade que encontrase abrangida pela expressão "desenvolvimento mental incompleto") Dessa forma, o agente que comete um crime em algumas das condições acima elencadas, apesar de ter praticado um fato típico e antijurídico, estará isento de pena por falta de culpabilidade, ante a sua inimputabilidade, ou seja, ausente estava sua capacidade de entender e de querer a prática do ato criminoso. Assim, a embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, atua como causa de exclusão da imputabilidade e culpabilidade do agente. Caso o estado de ebriez não retirar totalmente a capacidade de entender e querer o caráter ilícito do fato (embriaguez incompleta), a embriaguez atuará como causa de diminuição de pena, ou seja, o agente responde pelo crime, mas terá sua pena atenuada de um a dois terços (art. 28, § 2º do CP). Todavia, tratandose de embriaguez preordenada esta atuará como circunstância agravante da pena. RDP Nº 6 FevMar/2001 DOUTRINA 19 III CLASSIFICAÇÃO DA EMBRIAGUEZ E SUAS CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICOPENAIS A embriaguez pode ser acidental, não acidental, patológica ou preordenada, sendo que cada uma dessas modalidades possui uma implicação jurídicopenal. A embriaguez acidental é a decorrente de caso fortuito ou força maior e subdividese em completa ou incompleta, conforme retire total ou parcialmente a capacidade de entendimento e autodeterminação do agente. Será ela completa quando o agente ao tempo da ação ou omissão for inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento. Sua seqüência será a exclusão da imputabilidade. O agente não responderá pelo crime praticado por falta de culpabilidade e a sentença será absolutória. Devese ressaltar que, tratandose de embriaguez momentânea que não represente perigo para a sociedade ou para o próprio agente, não se deve aplicar medida de segurança. Segundo o festejado penalista ROBERTO LYRA, são requisitos da inimputabilidade na embriaguez acidental: a causalidade, ou seja, a embriaguez deve ser proveniente de caso fortuito ou força maior; o aspecto quantitativo, vale dizer, a embriaguez ser completa; o aspecto cronológico, ou seja, a embriaguez deve estar presente ao tempo da ação ou omissão; a conseqüencialidade, ou seja, a embriaguez deve causar a ausência de capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento. Por outro lado, a embriaguez acidental será incompleta se o agente ao tempo da ação ou omissão, tiver relativa capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento. Sua conseqüência será que o sujeito responde pelo crime, mas terá sua pena atenuada de um a dois terços, desde que haja efetiva redução de sua capacidade intelectiva ou volitiva. A sentença será condenatória. Ainda segundo a orientação de ROBERTO LYRA, são requisitos da redução da pena na embriaguez acidental: a causalidade, ou seja, a embriaguez deve ser proveniente de caso fortuito ou força maior; o aspecto quantitativo, vale dizer, a embriaguez deve ser incompleta; o aspecto cronológico, ou seja, a embriaguez deve estar presente ao tempo da ação ou omissão; a conseqüencialidade, a embriaguez deve causar a redução de capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento. 20 RDP Nº 6 FevMar/2001 DOUTRINA A embriaguez não acidental pode ser voluntária ou culposa e também subdividese em completa e incompleta. Será voluntária quando o agente ingerir a substância alcoólica ou de efeitos análogos, com consciência e intenção de tornarse ébrio. E por fim, será culposa, quando o agente não quer embriagarse mas, agindo de forma imprudente ou negligente, ingere álcool ou drogas em excesso tornandose ébrio. A embriaguez não acidental, segundodispõe o art. 28, II do CP, não exclui a imputabilidade do agente, seja ela culposa ou voluntária, completa ou incompleta. O agente responde pelo crime. Isso porque, segundo a teoria da actio libera in causa (Ações Livres na Causa), o agente podia optar entre ingerir a substância ou não no momento em que o fazia. Assim, a conduta criminosa posterior, mesmo praticada por alguém em estado de completa embriaguez, originouse de um ato de livre arbítrio. Considerase, assim, o momento da ingestão da substância e não o momento da prática do ato. No crime de embriaguez ao volante, a ingestão de substância alcoólica pode ser anterior ou concomitante ao delito. Todavia, não é possível a aceitação no Direito Penal brasileiro da responsabilidade objetiva, visto que a responsabilidade penal moderna tem como fundamento a existência de dolo ou culpa. Desse modo, o art. 28, II do CP, deve ser interpretado de modo a não admitir a responsabilidade objetiva. A moderna doutrina penal não aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa à embriaguez completa, voluntária ou culposa e não preordenada, em que o sujeito não possui previsão, no momento em que se embriaga, da prática do crime. Assim, se o sujeito se embriaga prevendo a possibilidade de praticar o crime e aceitando a produção do resultado, responde pelo delito a título de dolo. Por outro lado, se o sujeito se embriaga prevendo a produção do resultado e esperando que não se produza, ou não o prevendo quando deveria, responde pelo delito a título de culpa. Somente nessas hipóteses é plenamente possível a aplicação da teoria da actio libera in causa. Outro caso é se o agente não desejou, não previu, nem tinha elementos para previsão da ocorrência do resultado delituoso no momento em que ainda era imputável, ou seja, antes de embriagarse completamente. Podese afirmar que não agiu com dolo ou culpa em relação ao referido resultado e, portanto, o fato será atípico. A embriaguez patológica, segundo definição de HÉLIO GOMES, citada por DAMÁSIO E. DE JESUS, "é a que se verifica nos predispostos, nos tarados, nos filhos de alcoólatras. Nesses indivíduos, extremamente suscetíveis às bebidas alcoólicas, dose pequena pode desencadear acessos furiosos, atos de incrível violência, ataques convulsivos" (Medicina Legal, Freitas Bastos, 1968, v. 1, p. 147, apud ob. cit.). RDP Nº 6 FevMar/2001 DOUTRINA 21 ENRICO ALTAVILLA observa em sua obra Psicologia Judiciária, também citada por DAMÁSIO E. DE JESUS, que o alcoolismo exerce um trabalho de destruição progressiva dos poderes psíquicos, levando o sujeito a um estado de fraqueza próprio da demência. A embriaguez pode representar uma doença mental ou perturbação da saúde mental e até provocar uma anormalidade psíquica. Nesses casos, ela excluirá a imputabilidade quando retirar totalmente a capacidade intelectual ou volitiva do sujeito, aplicandose o art. 26, caput do CP. Mas, se houver apenas uma redução dessas capacidades, aplicase o art. 26, parágrafo único do CP, reduzindose a pena de um a dois terços. Por fim, temse a embriaguez preordenada, que ocorre quando o agente se embriaga propositadamente para cometer um crime. É o célebre caso de o agente colocarse propositadamente em situação de inimputabilidade para a prática de crimes. Na prática forense é assaz comum estórias de réus que "tomaram dois dedos de coragem (aguardente de cana) antes de praticar um delito". Aplicase, nessas hipóteses, a teoria da actio libera in causa em sua integralidade. A embriaguez preordenada além de não excluir a imputabilidade, agrava a pena.
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