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ISSN 0104-3293 (Versão impresso) ISSN 2447-5246 (Versão on-line) Vol. 20, nº 3 Vol. 20, nº 3 nov.2015 / fev.2016 E D U C A Ç Ã O em F O C O EDUCAÇÃO em FOCO Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias Eda Maria de Oliveira Henriques Mônica Maria de Azevedo Inspetor de ensino e diretor escolar na legislação educacional de Minas Gerais (1906-24) Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Formação continuada do professor universitário: Orientação de estágio com pesquisa Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria Morita Vasconcellos Neusi Aparecida Navas Berbel Preencher potências e inventar educações possíveis Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Cansadas de esperar Godot quebramos espelhos Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professor na E.I Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado A criação do Grupo Escolar Silveira Brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930) Denilson Santos de Azevedo Talitha Estevam Moreira Cabral Higienismo, imprensa e educação na Parahyba do Norte: O papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Charliton José dos Santos Machado Larissa Meira de Vasconcelos Ludicidade, expressividade e formação da criança no primeiro ano do E.F. Patrícia Vieira Bonfim Lucia Helena Pena Pereira “Compaixão pela Messe” : Filhas do divino zelo e as pedagogias missionárias em ação na Vila Operária de Içara” Alcides Goularti Filho Giani Rabelo A documentação pedagógica como instrumento de formação profissional Amanda Cristina Teagno Lopes Marques Maria Isabel Almeida Historia de la infancia observada desde los ejes del juego, juguete y desigualdad Patricia Castillo-Gallardo Entre o seminário e o grupo escolar: a história da educação em Mariana-MG (XVIII XX) Tatiana Aparecida Pereira Sumário Temas em educação Capa v20 n3.indd 1 17/03/2016 14:12:23 Ed. Foco Juiz de Fora V.20 n.3 p. 01-355 Novembro 2015/Fevereiro 2016 Temas em educação Juiz de Fora – MG - Brasil ISSN: 0104-3293 Reitor: Marcus Vinicius David Vice-Reitor: Girlene Alves da Silva Diretor da Editora: Fernando Perlatto Diretor da Faculdade de Educação: Prof. Dr. André Silva Martins Endereço para correspondência: Faculdade de Educação / Centro Pedagógico Campus Universitário da UFJF CEP: 36036-330 - Juiz de Fora MG Telefone/Fax: (32) 2102-3656 E-mail: revista.edufoco@ufjf.edu.br Home Page: www.ufjf.edu.br/revista.edufoco Editora UFJF Rua Benjamin Constant, 790 MAMM - Museu de Arte Moderna Murilo Mendes Centro - Juiz de Fora - MG CEP: 36015-400 Telefax: (32) 3229-7646 / 3229-7645 E-mail: editora@editoraufjf.com.br / distribuicao.editora@ufjf.edu.br Home Page: www.editoraufjf.com.br Home Page: educacaoemfoco.ufjf.emnuvens.com.br/edufoco Ficha Técnica Diagramação Henrique de Abreu Oliveira Bedetti Fabrício Angelo Soares Arte e Diagramação da Capa Henrique de Abreu Oliveira Bedetti Foto capa Jardim Sensorial da UFJF Bolsistas da Revista Larissa Oliveira Marianna Palace Cardoso Revisão Geral Marianna Palace Cardoso Indexadores - http://www.geodados.uem.br - http://ibict.br/comut/htm - www.inep.gov.br - www.bve.cibec.inep.gov.br - www.latindex.unam.mx - diadorim.ebict.br - Livre Revistas de Livre Acesso - CNEN - Portal de Periódicos CAPES Ficha Catalográfica Educação em Foco: revista de educação / Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Educação, Centro Pedagógico – Vol. 20, n. 3 (nov. 2015/fev. 2016) – Juiz de Fora: EDUFJF, 2015 – 355 p. Quadrimestral Disponível em: http://educacaoemfoco.ufjf.emnuvens.com.br/edufoco ISSN 0104-3293 (Versão impressa) ISSN 2447-5246 (Versão on-line) 1. Educação – Periódicos. I. Universidade Federal de Juiz de Fora. Faculdade de Educação. Centro Pedagógico. CDU 37 Ficha catalográfica elaborada por Adriana A. Oliveira – Bibliotecária – CRB6/1537 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização da editora. educação em Foco – IssN 0104-3293 coNselho edITorIal execuTIvo Prof. Dr. Jader Janer (Editor-Chefe) Prof. Dr. Aimberê Guilherme Quintiliano Rocha do Amaral Prof.ª Dr.ª Cristhiane Cunha Flor Prof. Dr. Daniel Cavalcanti Albuquerque Lemos Prof.ª Dr.ª Luciana Pacheco Marques Técnico Administrativo Israel Pinheiro Marques coNselho cIeNTíFIco INTerNacIoNal Prof. Dr. Abdeljalil Akkari - Universidade de Genebra - Suíça Prof. Dr. Adrian Ascolani - Universidade Nacional de Rosário - Argentina Prof.ª Dr.ª Ana Cecilia Vergara Del Solar - Universidade Diego Portales - Chile Prof. Dr. Antônio Gomes Ferreira - Universidade de Coimbra - Portugal Prof. Dr. Bernard Fichtner - Universidade de Siegen - Alemanha Prof. Dr. Carlos Bernardo Skliar - Flacso - Argentina Prof. Dr. Fernando Bárcena - Universidade Complutense de Madrid - Espanha Prof. Dr. Fernando Hernandez - Universidade Barcelona - Espanha Prof. Dr. Hubert Vincent - Universidade de Rouen - França Prof. Dr. Jean Hébrard - École des Hautes Études en Sciences Sociales - França Prof. Dr. Manuel Sarmento - Universidade do Minho - Portugal Prof. Dr. Michalis Kontopodis - Universidade de Roehampton - Inglaterra Prof.ª Dr.ª Margarida Louro Felgueiras - Universidade do Porto - Portugal Prof.ª Dr.ª Patricia Eliana Castillo Gallardo - Universidade Diego Portales - Chile coNselho cIeNTíFIco NacIoNal Prof.ª Dr.ª Ana Ivenicki (ex - Ana Canen) - UFRJ Prof.ª Dr.ª Ana Chystina Venancio Mignot - UERJ Prof. Dr. Amarilio Ferreira Junior - UFSCAR Prof. Dr. Carlos Henrique de Carvalho - UFU Prof.ª Dr.ª Suzani Cassiani - UFSC Prof.ª Dr.ª Clarice Nunes - UFF Prof. Dr. Cleiton de Oliveira - UNIMEP Prof.ª Dr.ª Daniela Barros da Silva Freire Andrade - UFMT Prof.ª Dr.ª Diana Gonçalves Vidal - USP Prof.ª Dr.ª Edméia Oliveira dos Santos - UERJ Prof.ª Dr.ª Ilka Santos Schapper - UFJF Prof. Dr. Irlen Antônio Gonçalves - CEFET-MG Prof. Dr. José Silvério Baia Horta - UFAM Prof. Dr. Laerthe de Moraes Abreu Junior - UFSJ Prof.ª Dr.ª Lia Ciomar Macedo Faria - UERJ Prof. Dr. Luciano Mendes de Faria Filho - UFMG Prof.ª Dr.ª Magda Becker Soares - UFMG Prof. Dr. Marcelo Soares Pereira da Silva - UFU Prof. Dr. Marcio da Costa - UFRJ Prof.ª Dr.ª Maria de Lourdes de A. Fávero - UFRJ Prof.ª Dr.ª Maria Lidia Bueno Fernandes - UNB Prof.ª Dr.ª Maria Teresa Assunção Freitas - UFJF Prof.ª Dr.ª Maria Teresa Eglér Mantoan - UNICAMP Prof.ª Dr.ª Marisa Bittar - UFSCar Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrósio - UNICAMP Prof.ª Dr.ª Neuza Salim - UFJF Prof.ª Dr.ª Nilda Alves - UERJ Prof. Dr. Osmar Fávero - UFF Prof.ª Dr.ª Rosemary Dore Heijmans - UFMG Prof.ª Dr.ª Rosimar de Fátima Oliveira - UFMG Prof. Dr. Rubem Barbosa Filho - UFJF Prof.ª Dr.ª Sandra Zakia - USP Prof.ª Dr.ª Sonia Maria de Castro Nogueira Lopes - UFRJ Prof.ª Dr.ª Terezinha Oliveira - UEM Prof. Dr. Orlando Ednei Ferretti - UFSC Prof.ª Dr.ª Rosangela Duarte - UFRR Prof.ª Dr.ª Vânia Alves Martins Chaigar - FURG Prof. Dr. Wenceslau Gonçalves Neto - UFU sumárIo Apresentação .......................................................................9 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias .......................................................15 Eda Maria de Oliveira Henriques Mônica Maria de Azevedo Inspetor de Ensino e Diretor Escolar na Legislação Educacional de Minas Gerais (1906–24) ...........................37 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa .....................................................67 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria Morita Vasconcellos Neusi Aparecida NavasBerbel Preencher Potências e Inventar Educações Possíveis: pela experimentação de uma Formação-Sem-Órgãos ................99 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Cansadas de esperar Godot quebramos os espelhos ..........117 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil .......137 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930)......................................................165 Denilson Santos de Azevedo Talitha Estevam Moreira Cabral Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos ................187 Charliton José dos Santos Machado Larissa Meira de Vasconcelos Ludicidade e formação da criança no primeiro ano do ensino fundamental ....................................................................215 Lucia Helena Pena Pereira Patrícia Vieira Bonfim “Compaixão pela messe!”: Filhas do divino zelo e as pedagogias missionárias em ação na Vila Operária Mineração de Içara (SC-Brasil) 1959 a 1968 .....................................237 Alcides Goularti Filho Giani Rabelo A Documentação Pedagógica como instrumento de formação profissional .......................................................269 Amanda Cristina Teagno Lopes Marques Maria Isabel Almeida Historia de la infancia observada desde los ejes del juego, juguete y desigualdad ......................................................289 Patricia Castillo-Gallardo reseNha Entre o seminário e o grupo escolar: a história da educação em Mariana-MG (XVIII XX) ..........................................325 Tatiana Aparecida Pereira auTores Autores ............................................................................337 summary Presentation ........................................................................9 Narratives and Formation Trajectory: A Dialogue Between Literature and Memories ...................................................15 Eda Maria de Oliveira Henriques Mônica Maria de Azevedo School-inspector and school-director in the educational legislation of Minas Gerais (1906-24) ................................37 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Continuous development of the higher education teacher: internship supervision with research ..................................67 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria Morita Vasconcellos Neusi Aparecida Navas Berbel Fill powers and invent possible educations: the trial of a – Without-organs Training ...................................................99 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Tired of waiting for Godot broken mirrors ......................117 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Commitment and love as core elements of representations of being early childhood education teacher ..........................137 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado The creation of the School Silveira Brum Group and its first years of operation : relations between the republic and the school holidays ................................................................165 Denilson Santos de Azevedo Talitha Estevam Moreira Cabral Hygienism, press and education of north parahyba: the woman's paper and pedagogization of the habits .............187 Charliton José dos Santos Machado Larissa Meira de Vasconcelos Playfulness and education of children in the first grade of elementary school ...........................................................215 Lucia Helena Pena Pereira Patrícia Vieira Bonfim "Compassion for the harvest": Daughters of Divine Zeal and the missionary pedagogies in action on workers' village mining Içara (Brazil-SC)? 1959-1968. .............................237 Alcides Goularti Filho Giani Rabelo Documentation as a teaching tool for training .................269 Amanda Cristina Teagno Lopes Marques Maria Isabel Almeida Historia de la infancia observada desde los ejes del juego, juguete y desigualdad ......................................................289 Patricia Castillo-Gallardo reseNha Between the seminary and the school group: the history of education in Mariana, Minas Gerais (XVIII XX) .............325 Tatiana Aparecida Pereira auTores Autores ............................................................................337 9 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 9-14, nov. 2015/ fev. 2016 apreseNTação O Conselho Editorial da Revista Educação em Foco nos solicitou que prefaciássemos este número a fim de realizar um balanço da longa gestão de 18 anos em que estivemos à frente da editoria da revista. Aproveitamos a oportunidade para constituir nessas linhas que foram oferecidas certa memorização institucional não apenas da revista, mas também da unidade acadêmica a que ela está ligada, a Faculdade de Educação da UFJF. Ainda que todo recorte já esteja comprometido com a interpretação, não se trata em sentido forte de historiar o quadro evolutivo da instituição, pois é cedo para o voo noturna da coruja. Os sentidos fortes da interpretação estabelecem-se com o tempo. Por outro lado, o nosso envolvimento com os acontecimentos não nos faz o melhor autor desta história. Quando chegamos à Universidade, no início do ano de 1993, na primeira gestão da Profª Diva Sarmento na direção da Faculdade, já havia sido lançado em 1992 o número zero, em comemoração aos 45 anos de fundação da Faculdade de Filosofia , Ciências e Letras, origem da Faculdade de Educação, contendo a sua história.. O volume 2, n. 1, de meados de 1993, também fora lançado com artigos exclusivamente de professores da Casa. Ingressamos no corpo editorial da revista precisamente quando da preparação do volume 3, n.2, do qual participamos com artigo. No prefácio deste número se diz que a finalidade precípua da publicação é repercutir artigos de professores e alunos da Faculdade, embora já neste último número apareçam alguns professores de fora, como Solange Jobin, professora da PUC-Rio, e Tiago Adão Lara, da UFU. Estamos no ano de 1995. Ano seguinte, fez-se uma reforma no Conselho Editorial do qual assumimos a coordenação. Naquele momento, ocorria em âmbito nacional o início de uma classificação de periódicos pelo CAPES. As categorias classificatórias então vigentes eram: publicações nacionais, regionais e locais, sendo as primeiras classificadas entre A e C. Também nesse momento assume como diretor da Editora da Universidade o artista plástico Profº. Jorge Arbach, buscando estabelecer uma política para todas as revistas da Universidade, 10 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.9-14 , nov. 2015/ fev. 2016 tais como critério comum de numeração e formatação, tanto em tamanho como no miolo. A equipe de arte da Editora, com ele à frente, passa a assumir as capas das revistas. Ao longo da nossa, gestão procurei preservar a formatação por ele proposta, pois oferecia ao leitor melhor arejamento do texto, tornando-o menos compacto e permitindo anotações em suas margens, tão importante ao bom leitor. Diga-se que, no âmbito interno da Faculdade, viveu-se um momento muito criativo, onde núcleos de pesquisa começam a proliferar. Foi também o tempo de criação na Faculdade da pós-graduação stricto senso. A nossa revista teria necessariamente que corresponder ao novo tempo. Aquela formulação explicitada no prefácio do v.3, n.2, de se pretender como veículo de publicação fundamentalmente de trabalhos internos ao corpo de professores da Casa, teria deser mudada. Atingir a classificação Nacional, segundo os critérios do CAPES, implicava precisamente em superar o caráter endôgeno da publicação. Optamos então por constituir revistas temáticas, cada qual ligada a um núcleo de pesquisa. Havia núcleos mais antigos existentes, outros estavam em processo de formação. O fato novo é que esses núcleos proliferavam, como se disse, inaugurando ali uma nova fase da própria Faculdade, agora também voltada para a pesquisa e a pós-graduação. Não foi sem resistências que essa transformação ocorreu. O fato é que tais núcleos se encarregariam de expressar na revista os trabalhos internos que ali se faziam, bem como dos contatos externos, de colaboradores do núcleo, solicitando deles artigos, critério fundamental para sair do localismo. Os núcleos se revessavam nessas tarefas organizatórias de cada número. Mais tarde, quando os núcleos tornaram-se grande demais para abrigar a diversidade de temas e questões de pesquisa que ali se alocaram, a organização da revista passou a ser feita por um ou dois professores ligados a um grupo de pesquisa, às vezes inclusive incorporando professores de fora, quiçá estrangeiros, colaboradores da pesquisa. A saída por nós encontrada para evitar a endogenia, tão repudiada pelas agências classificatórias e as de fomento, pareceu adequada, 11 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 9-14, nov. 2015/ fev. 2016 pois ao mesmo tempo que incorporava autores externos não perdia o foco na produção da Casa. Foi surpreendente conseguirmos obter, já no triênio seguinte, após a publicação dos três primeiros números da nova fase (um a cada semestre), a classificação de Nacional C. Sair de uma revista meramente local para outra de caráter Nacional, ainda que no menor nível (C), não foi pouca coisa. Aparentemente tarefa muito árdua para um corpo de editores executivos inicialmente de 3 membros, todos professores, e que um ano depois se reduziu apenas ao coordenador, com a secretaria formada por aluna bolsista. Foi o trabalho dos núcleos de pesquisa no encaminhamento dos números temáticos que tornou a tarefa bem mais palatável. Restou ao corpo editorial o fechamento da revista, com as revisões necessárias, bem como os encaminhamentos de impressão feitos com a colaboração de Editora da Universidade. Com o tempo, a revista tornou-se mais conhecida e começaram a surgir demandas espontâneas que chamamos de “balcão”. Inevitavelmente a revista abriu-se a essa demanda, publicando a cada número dois a três artigos de balcão, passados pelos crivos dos critérios de seleção (aprovação de dois pareceristas). Ao longo da nossa gestão a revista foi sempre de demanda induzida, tornando-se porém crescentemente de demanda espontânea, como este número de agora, inteiramente composto segundo este critério. Em classificações posteriores da CAPES, fomos, no triênio seguinte, mantidos na mesma qualificação. Já no seguinte, após recurso nosso, conseguimos a classificação Nacional B, demonstrando que cumprimos a exigência da colaboração internacional em todos os nossos números do triênio, conforme o exigido para a nova qualificação. Logo em seguida, no triênio que se seguiu, houve reformulação dos critérios classificatórios da CAPES, estabelecendo nos periódicos de nível Nacional as sub-categorias 1 e 2 para A; e 1 a 5, decrescente, para B. Obtivemos na reclassificação a categoria B 2, considerada então o limite mínimo para a melhor pontuação do professor no ranking das publicações. Em seguida, concorremos a edital da ANPED, voltado exclusivamente para publicações B 2. Os 12 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.9-14 , nov. 2015/ fev. 2016 vencedores publicariam, com financiamento dessa entidade, trabalhos premiados por ela, com o compromisso da ANPED de se empenhar junto ao CAPES para uma redefinição ascendente na próxima classificação. Fomos uma das quatro revistas premiadas nacionalmente. E assim ascendemos para a qualificação B 1. Estávamos então no ano de 2012. Esta é a classificação que a nossa revista permanece. Com o uso intensivo da internet, já na década passada, nos preocupamos em colocar a revista on-line, com acesso livre a todo conteúdo dos números a partir do primeiro semestre de 2002. Infelizmente os números anteriores, guardados em disquetes, se tornaram de difícil recuperação. Hoje o movimento, iniciado no final da nossa gestão, é o de colocar outro acesso on-line, não apenas o do site da revista acoplado ao da Faculdade. Agora também via sistema SEER. Ao longo desses anos a revista teve aprovado inúmeros projetos para financiamento por agências de fomento como o CNPq, a FAPEMIG, a própria CAPES e a ANPED. O primeiro financiamento deu-se pelo CNPq, de três números, com contrapartida pela Casa de mais três. Isso ocorreu entre os anos de 2000 a 2003 (até v.7, Nº 2 – set./fev. 2002/2003). Seguiram-se mais três financiamentos da FAPEMIG entre os anos de 2008 e 2015. Em 2012, o tal financiamento premiação pela ANPED, que nos elevou a categoria B 1. Houve ainda dois números financiados pela CAPES, nos anos de 2012 e 2013. Enfim, durante a nossa gestão, ocorreram sete projetos financiados, num total de onze números da revista com financiamento público, sem contar os números de contrapartida e os números especiais vinculados a outros projetos com verba designada a publicação. De todos esses projetos, cinco foram por nós formulados. Outra dimensão importante do nosso empenho deu-se na preocupação com a indexação da revista. Trata-se de um campo de resultados demorados. A nossa primeira indexação deu-se na geodados (www.geodados.uem.br),. Seguiu-se as tradicionais indexações do ibict (http://ibict.br/comut/htm) e do Inep (www.inep.gov.br) , além naturalmente do Qualis da CAPES (Web Qualis: www.qualis.capes.gov.br). A primeira 13 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 9-14, nov. 2015/ fev. 2016 internacional conseguida foi a latindex (www.latindex.unam. mx), do México. A nova gestão editorial corre atrás de outros tantos indexadores nacionais e internacionais. Para a área de periódicos de educação, o EDUCA, da Fundação Carlos Chagas, é fundamental. Esta indexação substitui o SCIELO na área da educação, já que este hoje em dia é de muito difícil acesso. Nos dois anos finais da nossa gestão, tomamos iniciativas para tal indexação, ainda não conseguida. Educação em Foco é órgão oficial da Faculdade de Educação e como tal por ela financiado. No entanto, durante a nossa gestão, poucos foram os números da revista financiados ou inteiramente financiados pela Faculdade. Além do financiamento dos projetos, assinale-se aqui que tivemos uma grande colaboração da Pro- Reitoria de Pesquisa (PROPESQ), especialmente na gestão da Profª Marta D’Agosto, custeando diversos números. Não poderia fechar a breve história da Revista Educação em Foco, durante a nossa gestão, sem fazer referência à dedicação da Profª Jane de Souza na secretaria da revista, a qual se vinculou desde o ano de 2004. Inicialmente como bolsista, e permanecendo nesta condição por muito tempo, até se tornar funcionária CLT da Casa, na segunda gestão da Profª Diva, ela não poupou esforços em sua dedicação. Já nos anos finais da nossa gestão, tornou-se Gerente Executiva, orientando bolsistas de treinamento profissional. Qualquer mérito que nos possa ser atribuído nessa longa gestão, divido-o com ela. Saúdo nossos leitores, Marlos Bessa Mendes da Rocha (Editor-Chefe da Revista Educação em Foco – 1996/2014) 15 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias NARRATIVAS E TRAJETÓRIAS DE FORMAÇÃO: UMDIÁLOGO ENTRE LITERATURA E MEMÓRIAS Eda Maria de Oliveira Henriques1 Mônica Maria de Azevedo2 Resumo O desprestígio crescente da profissão docente vem afetando um grande número de alunos que chegam às Licenciaturas com sérias dúvidas em relação à carreira docente. Diante deste quadro, desenvolveu-se uma pesquisa que procurou entender de que forma os alunos significam a sua trajetória de formação. Para conhecer tais trajetórias concebeu-se uma metodologia inspirada na proposta do memorial de formação de acordo com a concepção de Passeggi. Para deflagrar as narrativas utilizou-se o potencial discursivo e produtor de sentidos de crônicas da literatura brasileira, com as contribuições de Benjamin, Vygotsky e Iser. A partir da leitura da crônica, os alunos tornaram suas trajetórias um espaço de narrativa, análise e reflexão. Palavras-chave: Trajetória de formação; Narrativas; Memória. Abstract The teaching profession's increasing discredit has affected a large number of the teaching course undergraduated students who have had serious doubts about the teaching profession. Facing this situation, a research was developed trying to understand how students have directed their trajectories towards graduation. To know such trajectories a methodology was designed based on written memories, 1 Eda Maria de Oliveira Henriques – Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: dahenriques@gmail.com 2 Mônica Maria de Azevedo – Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: azevedo-monica@uol.com.br 16 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo related to professional formation processes according to Passeggi. To trigger the narrative it was used the discursive potencial and the different meanings from the Brazilian chronicle literature plus Benjamin, Vygotsky and Ise contributions.From the chronicle readings, students transform their trajetories into a space of narrative, analyses and reflection. Keywords: Trajectory; Formation; Narratives; Memory. 17 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias NARRATIVAS E TRAJETÓRIAS DE FORMAÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E MEMÓRIAS. INTRODUÇÃO Ao final do século XX, segundo Villa (1998), uma série de fatores heterogêneos torna problemática a situação em que se encontram os professores, desenhando um quadro negativo para o professorado atual que remete a aspectos como a diminuição do prestígio da profissão, um mal-estar indefinido que se associa a uma certa crise de identidade. Para o autor, tal mal estar pode ser atribuído ao fato de que a figura do professor vem sofrendo um enfraquecimento, uma diluição que ele atribui a três tendências que podem ser definidas como: a dessacralização da ciência e da cultura, o surgimento de novas tecnologias e o enfraquecimento dos papéis sociais tradicionais. Independente do peso que cada um destes aspectos possa ter no enfraquecimento do prestígio e da crise de identidade do professor, o que se constata é que a profissão parece ser cada vez menos atrativa para os jovens e no que se refere a este trabalho, paradoxalmente, para os próprios jovens licenciandos, uma vez que a opção por este tipo de formação é fruto de sua própria escolha. Nesta direção, se observa que um número crescente de alunos que chega às Licenciaturas já vem com a certeza de que não irão seguir a carreira docente, ou então segui-la como última opção, com dificuldades de articular motivos para uma ou outra possibilidade. Assim, este trabalho apresenta o relato parcial de uma pesquisa realizada junto a turmas de licenciatura da Universidade Federal Fluminense, que procurou entender de que forma os alunos significam sua trajetória de formação e como articulam suas escolhas. 18 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo Para conhecer tais trajetórias concebeu-se uma metodologia inspirada na proposta do memorial de formação de acordo com Passegi (2008), procurando organizar fatos relacionados a atividades de formação, pondo em foco experiências e expectativas em relação a estas trajetórias. A autora situa o memorial como um gênero acadêmico autobiográfico que propicia ao profissional “tecer uma figura pública de si”, registrando recortes sobre processos de formação intelectual e trajetória profissional no magistério, formação inicial e continuada, incluindo relatos sobre a vida familiar e escolar e o define como: Um gênero acadêmico autobiográfico, por meio do qual o autor se (auto) avalia e tece reflexões críticas sobre seu percurso intelectual e profissional, em função de uma demanda institucional. O interesse de sua narrativa é clarificar experiências significativas para a sua formação e situar seus projetos atuais e futuros no processo de inserção acadêmica e ascensão profissional. Por se tratar de um documento institucional, o memorial autobiográfico caracteriza-se como uma escrita semipública de si, podendo, ou não, ser objeto de defesa pública. (Passegi, 2008, p.120). Partindo então do termo memorial autobiográfico como uma designação genérica do espectro das escritas de si, Passegi (2008) se propõe a distinguir dois tipos de memorial: o memorial acadêmico e o memorial de formação. O primeiro se refere aos que são elaborados por professores e pesquisadores em concurso público, ingresso ou ascensão funcional na carreira docente ou outras funções no âmbito de instituições do ensino superior. O segundo designa memoriais escritos ao longo do processo de formação inicial ou continuada para fins de trabalho de conclusão de curso no ensino superior. Embora a pesquisa apresentada neste trabalho, não lance mão de memoriais produzidos em nenhuma das duas 19 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias circunstâncias acima, aposta no potencial das escritas de si, no que se referem à possibilidade de acompanhar o outro, no caso o aluno das Licenciaturas, em sua reflexão sobre o modo e as formas nas quais ele dá sentido às suas escolhas em sua trajetória de formação. Concordando com Passegi (2008), trata-se de permitir que este aluno possa tecer e entretecer os fios que relacionam fatos entre si explicando os efeitos e os reflexos dos mesmos nos direcionamentos e encaminhamentos da sua formação profissional. E não menos importante, viabilizar um olhar que priorize o processo e não o produto criando um espaço de reflexividade sobre sua história como processo de formação. Um outro aspecto importante a ser assinalado é que, embora esta pesquisa tenha acontecido em um contexto institucional, não apresentou as mesmas injunções institucionais presentes nos memoriais acadêmicos e de formação, que remetem ao fato dos mesmos se darem muitas vezes em situações de avaliação explícita. O que não isenta que as narrativas dos alunos das licenciaturas, ao serem solicitados a escrever sobre suas trajetórias de formação, corram o risco de uma avaliação implícita ou de uma autocensura, decorrentes de padrões e estruturas de uma escrita que se dá em um contexto acadêmico no qual prepondera como uma de suas características marcantes a valorização da resposta certa ou, no mínimo, a resposta esperada a partir de determinados cânones do discurso deste contexto. Nesta perspectiva, pensou-se em uma metodologia que, ao recorrer ao potencial simbólico dos diversos textos literários, procura viabilizar e mediar narrativas que pudessem contornar a questão das respostas prontas e estereotipadastão comuns nas entrevistas tradicionais promovendo novas possibilidades de leitura da experiência de formação. Tais experiências muitas vezes são responsáveis pela constituição de concepções e modelos de ensino que perpetuam as mais tradicionais crenças sobre a escola e os processos em torno do ensinar e aprender. Assim, entendemos que as diversas experiências e 20 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo práticas de formação podem instituir formas de relação com o conhecimento, atribuindo-lhe os mais variados sentidos, que através de seus registros simbólico e imaginário podem ser transmitidos e conservados sem nenhum tipo de formalização sem perder sua força produtiva de valores e subjetividades. Desta forma, para propiciar esta compreensão e uma (re) leitura de sentidos sobre experiências e trajetórias no âmbito da formação do professor, pensou-se em uma metodologia onde a leitura de contos e crônicas da literatura brasileira e universal, que poderiam versar ou não sobre o universo da escola, se constituíssem em um poderoso mediador de narrativas sobre as experiências nas trajetórias de formação. Nessa direção, a crônica é compreendida na perspectiva da narrativa a partir de Benjamin (2012) e a leitura compreendida como uma experiência subjetiva, que se alimenta de impressão artística imediata, denominada por Vygotsky (1999) de “crítica de leitor”. Tal concepção de crítica literária, segundo Bezerra (1999), antecipa em algumas décadas, a crítica da recepção e a discussão sobre o papel do leitor no jogo com autor e o texto questão que, neste trabalho, será ampliada por Iser. Tal abordagem favorece o que para Passegi (2008) é a atual configuração do memorial, ou seja, uma tentativa de subjetivar o discurso objetivo ou objetivar a escrita subjetiva. BENJAMIN E VYGOTSKY: UM BREVE DIÁLOGO. Ao buscarmos o conceito de narrativa no dicionário Aurélio nos deparamos com os termos narração, história ou conto. Etimologicamente, a palavra narrativa deriva do vocábulo latim narrare que quer dizer ato de contar, relatar ou expor uma história ou fato. No entanto, para Benjamin (2012), o conceito de narrativa está permeado por muitos outros sentidos/significados que vão além da ação de relatar ou contar uma história ou fato. Este conceito carrega em si um significado histórico e social apresentado e discutido em seu ensaio “O Narrador”. No prefácio das Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política, Gagnebin (2012) aponta que 21 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias Benjamin discute formas distintas de narrativas tais como a utilizada na historiografia progressista que trata da ideia de um progresso inevitável e cientificamente previsível e a utilizada na historiografia burguesa que diz respeito ao historicismo, “oriundo da grande tradição acadêmica” e que “pretendia reviver o passado através de uma espécie de identificação afetiva do historiador com seu objeto”, ambas se apoiando numa concepção de tempo cronológico e linear, homogêneo e vazio. Seguindo o pensamento de Benjamin, a autora mostra que o historiador materialista deveria então criar um novo conceito de tempo, o tempo de agora, que implicaria na constituição de uma experiência com o passado sobre a qual a obra de Benjamin irá desenvolver. Dessa forma, Benjamin (2012) em seu texto “O Narrador”, ao destacar a experiência como fonte da narrativa, resgata sua importância e ligação com uma tradição viva e coletiva, onde a arte do narrador é a arte de contar preservando aos acontecimentos sua força secreta, sem encerrá-los em uma única versão. Ao mesmo tempo, segundo Gagnebin (2012), o autor observa que a arte de narrar se torna cada vez mais rara porque se baseia, sobretudo, em uma transmissão de experiência cujas condições de expressão plena já não existem na sociedade capitalista moderna. Experiências que seriam comuns ao narrador e ao ouvinte e que segundo Gagnebin (2012), possibilitariam a inserção de ambos dentro de um fluxo narrativo comum onde a história permaneceria aberta a novas propostas e a novas continuidades. Este conceito de experiência permitiria a escrita de uma anti-história, porque ao invés de encerrar o passado em uma interpretação definitiva, reafirma a abertura de seu sentido, de seu caráter inacabado. Assim, como nos diz Benjamin (2012), o extraordinário e o miraculoso são narrados com grande exatidão, sem que o contexto psicológico da ação seja imposto ao ouvinte, que é livre para interpretar a história como quiser, o que de acordo com Gagnebin (2012), se constituiria em uma teoria antecipada da obra aberta. Assim, o cronista se torna o narrador da história, 22 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo que não se preocupa com a exatidão dos fatos, mas com a sua inserção no fluxo de outras histórias, tecendo uma rede de histórias que se articulam e se constituem entre si, preservando suas forças e seu potencial inesgotável de significação. Essa ideia de não acabamento essencial vai estar presente também, como nos mostra a autora, em alguns ensaios literários de Benjamin, como por exemplo, no ensaio sobre a obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, intitulado “A Imagem de Proust”. Neste ensaio, entre outras coisas, o autor tece uma interessante relação entre experiência, memória, passado e presente, mostrando que a genialidade de Proust está justamente no fato de transformar uma experiência particular e privada de uma existência individual burguesa em uma busca universal, através da lembrança, pois para Benjamin (2012, p.37) “...o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois”. O que retrata, de acordo com Gagnebin (2012), que Proust não estava em busca do passado em si, mas da presença do passado no presente e do presente que já se encontrava anunciado no passado. Nesta perspectiva, a lembrança poderia subtrair os acontecimentos das contingências do tempo, mostrando as semelhanças e analogias entre passado e presente inscritos nas linhas do atual. Assim, compreender contos e crônicas da literatura numa perspectiva de obra aberta e como veículo de narrativas pode também trazer a possibilidade de novas conexões que atualizam o passado e redimensionam o olhar do presente sobre as experiências de formação, viabilizando novas construções de sentido sobre as mesmas. É dentro desse espírito, que o jovem Vygotsky (1999) vai, em um trabalho de conclusão de curso escrito em 1915, tratar da relação do crítico com o autor e sua obra em “A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca” no qual faz uma crítica desta obra de Shakespeare a partir do que ele denomina “crítica de leitor”, onde defende a ideia de que a obra de arte após sua criação separa-se de seu autor e é recriada pelo leitor a partir da multiplicidade polissêmica de toda obra, adiantando em 23 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias algumas décadas a crítica da recepção. Nesta perspectiva, a obra é apenas uma possibilidade que o autor realiza, podendo o mesmo inclusive desconhecer a sua profundidade, e levar o crítico a revelações que ele como autor nem sequer suspeitava. Isto faz com que a força da obra não esteja naquilo que o autor subentendeu por ela, mas na maneira como age sobre o leitor. Desse modo, a leitura não está presa a um modelo semântico fechado, mas se abre sempre e infinitamente para a diversidade e universosde onde o leitor a enfoca. Universos que podem conter experiências de vida, experiências de leitura, experiências em torno do ensinar e do aprender. Assim, é o texto que se oferece com seu potencial simbólico na construção de outras narrativas, para a superação da “angústia da palavra” (Vygotsky, 1999), do inexprimível de alguns sentidos, do indizível do discurso interior. Neste trabalho, o autor antecipa sua futura discussão sobre a relação pensamento-linguagem, onde se destaca a questão da complexidade da passagem do pensamento à palavra, que nesta perspectiva não se trata de uma tradução direta da linguagem interior para a linguagem exterior, nem de uma simples incorporação do aspecto sonoro ao aspecto silencioso da fala, ou seja, não é apenas a vocalização da linguagem interior, mas: ... a reestruturação da linguagem, a transformação de uma sintaxe absolutamente original, da estrutura semântica e sonora da linguagem interior em outras formas estruturais inerentes à linguagem exterior” (Vygotsky, 2001, p. 474). Dessa forma, a passagem da linguagem interior para a exterior consiste em uma transformação dinâmica, ou seja, na transformação de uma linguagem predicativa e idiomática em uma linguagem sintaticamente decomposta e acessível a todos. Assim, o pensamento é sempre algo integral, compacto, maior em sua extensão e volume do que uma palavra isolada. O que no pensamento existe em simultaneidade, na linguagem se desenvolve sucessivamente. Para Vygotsky (2001), a 24 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo complexidade da decomposição do pensamento e sua recriação em palavras se devem ao fato de que o pensamento não coincide com as palavras e com os significados das palavras, o que faz com que a transição do pensamento à palavra passe pelo significado e que em nosso pensamento sempre exista um subtexto oculto. Nesse sentido, há uma imperfeição da palavra na possibilidade de expressar o pensamento, pois o pensamento nunca é igual ao significado direto das palavras. O que leva o autor a afirmar que o caminho entre o pensamento e a palavra é um caminho indireto, internamente mediatizado pelo significado. Tal constatação tem como consequência o fato de que a comunicação imediata entre as consciências seja impossível psicologicamente, só podendo ser atingida via mediata, pelo significado das palavras. Ao que o autor acrescenta que para entendermos o discurso do outro não é necessário entendermos apenas algumas palavras, mas é preciso entender também seu pensamento e principalmente o motivo que o levou a emiti-lo. Assim, a compreensão efetiva e plena do pensamento de outrem só se torna possível quando descobrimos o que Vygotsky (2001) denomina de “causa profunda afetivo-volitiva”, que encerra o desejo que está na origem de todo o pensamento. Dessa forma, a crítica de leitor oferece a possibilidade de superar o indizível, o inexprimível do discurso interior que Vygotsky (1999) metaforicamente remete a tirar sons de um instrumento rebelde enquanto ouve com o “ouvido da alma” uma melodia potente e triste. Assim o criar com a própria alma a obra alheia, significa compromisso apenas com a sua interpretação, sem a preocupação a respeito de outros estudos sobre a obra. A possibilidade de transformar a experiência da leitura no que Vygotsky denominou de crítica estética promovendo o crítico a crítico artista, crítico criador, traz não só novas possibilidades de significação através do potencial simbólico do texto, como também novas possibilidades de ressignificação dos sentidos em torno das experiências do ensinar e do aprender. Tais experiências geralmente se apresentam marcadas por práticas educativas 25 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias escolarizadas, que por suas próprias características, muitas vezes não viabilizam uma maior comunicação entre pensamentos de professores e alunos e dos próprios alunos entre si, através da compreensão dos desejos e necessidades, interesses e emoções, que estão na base do significado das palavras. Esta abordagem viabiliza ao professor conhecer não só o conteúdo objetivo da experiência do aluno, mas também o sentido da mesma e os atos de pensamento que os apreendem. Nesta perspectiva, entendendo que o texto literário pode vir a tornar-se veículo de revelação e ressignificação de experiências e concepções que nem sempre encontram espaço de expressão na sala de aula é que se acredita que deixar falar a obra pelo leitor é também deixar o leitor se falar pela obra. Assim a leitura do texto instaura um jogo entre autor e leitor, que Iser vai ampliar em sua discussão. ISER: O JOGO DO TEXTO Para Iser (2002), um dos principais representantes da corrente literária Estética da Recepção, a ideia de que autor, texto e leitor estão intimamente conectados em uma relação que produz algo que antes não existia, se contrapõe à noção tradicional de representação, relacionada a uma realidade pré- dada que se pressupõe estar representada. Assim, a idéia de jogo do texto pretende privilegiar o aspecto performativo da relação autor-texto-leitor, onde o pré-dado não é concebido como objeto de representação, mas como a relação através da qual algo novo é modelado. Nessa perspectiva, autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo (Iser, 2002, p. 107) e nesse jogo, o texto é composto por um mundo que desafia o leitor a imaginá-lo e a interpretá-lo levando o mesmo a visualizar as múltiplas formas possíveis de imaginar o mundo do texto, que nesse sentido, começa a sofrer modificações. De acordo com o autor, não importam as novas formas que o leitor produz, todas transgridem e modificam o mundo contido no texto. O aspecto ficcional do texto invoca então, 26 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo um contrato entre autor e leitor onde o mundo textual deve ser concebido, não como realidade, “mas como se fosse realidade” (p. 107), isto é, embora possa repetir uma realidade identificável, o que acontece dentro dele não acarreta as conseqüências relativas ao mundo real referido. Essa dimensão assinala a esfera ficcional em que tudo deve ser considerado como se fosse o que parece ser, ou seja, como um jogo. Dessa forma, o jogo que se encena no texto não é um espetáculo que o leitor apenas observa, mas um evento em processo que demanda sua participação nos procedimentos e na encenação, e ao realizar o jogo do texto a seu modo, o leitor produz um –“suplemento”- individual, que considera como o significado do texto. O significado do texto torna-se uma espécie de -“suplemento”- que é gerado por meio do jogo, como algo que se adiciona ao texto, não havendo, portanto, significado prévio ao jogo. De acordo com o autor, a produção do -“suplemento”- por meio jogo, compreende diferentes desempenhos por diferentes leitores no ato da recepção, que incluem desde o alcance da -“vitória”- com o estabelecimento do significado, ou com a manutenção do jogo livre, com a conservação em aberto do significado. A unicidade do jogo estaria, então, no fato de que ele produz (suplementos) e, ao mesmo tempo permite que o processo de produção seja observado, o que leva o leitor a uma duplicidade inexorável, isto é, participa de uma ilusão sabendo que é uma ilusão. Será, então, nessa oscilação entre ilusão fechada e ilusão revelada que a transformação efetivada pelo jogo do texto se faz sentir pelo leitor. A PESQUISA: REVELANDO ALGUMAS NARRATIVAS E SIGNIFICADOS A partir destas concepções de narrativa e de leitura, pensou-seem uma metodologia que privilegiasse o potencial simbólico dos textos literários na mediação de narrativas de 27 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias alunos de Licenciaturas sobre suas experiências e expectativas em relação à sua trajetória de formação. A pesquisa foi realizada no primeiro semestre de 2014, na Universidade Federal Fluminense, com alunos de turmas de Licenciaturas (Letras, História, Geografia, Ciências Sociais, Matemática, Filosofia) num total de cem alunos aproximadamente. Como procedimento de pesquisa e coleta de dados, os alunos foram convidados a fazer uma leitura da crônica “Escola e sofrimento”, de Rubem Alves e a redigir um pequeno texto onde as impressões suscitadas por esta leitura fossem relacionadas com fatos e aspectos das experiências do contexto escolar que pudessem remeter a reflexões sobre tal contexto e às trajetórias de formação do futuro docente. A análise das narrativas resultantes da leitura e discussão da crônica acima citada foi realizada através da análise de conteúdo de Bardin (2011) através da unidade de significação ou unidade de registro temático, onde o “tema” se constitui na unidade de base que promove a busca de núcleos de sentido que compõem a comunicação. Na crônica em referência, o autor mostra sua preocupação pelo fato de que a grande maioria das crianças vai para a escola ansiosa e amedrontada, comportamento este que não condiz com o perfil das crianças que são ensinadas a serem felizes. Aborda também que a escola não está interessada na felicidade dos alunos por exigir o aprendizado de uma quantidade enorme de conhecimentos, mas não fazer nenhuma relação desses conhecimentos com a vida dos alunos. Fala do comportamento dos professores que causam a impressão de que seus alunos são seus inimigos e que acabam por intimidar a inteligência dos alunos. Enfim, fala de uma escola que, ao invés de felicidade, causa sofrimento aos alunos por ter se esquecido do seu papel de despertar o potencial único presente em cada aluno. A seguir, apresentaremos algumas narrativas suscitadas pela leitura da crônica onde procuraremos observar e analisar 28 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo como os alunos significam fatos, escolhas e expectativas relacionados à sua trajetória de formação. Aluno A – “A partir da leitura do texto Escola e Sofrimento de Rubem Alves, tive a possibilidade de lembrar meu período escolar, que hoje me traz magníficas lembranças e enormes saudades. Tive em meu processo de formação, momentos que são bem destacados no texto em questão, onde a pressão e a ideia de obrigação atormentavam os alunos diariamente. As aulas eram na sua maioria um tanto monótonas e cansativas, segundo o modelo de ensino padrão utilizado pela sociedade. Eram matérias com conteúdo absurdamente grande e, por vezes, complexos, ensinados de modo acelerado, com o intuito de passar o máximo de conhecimento em um curto espaço de tempo e para que o cronograma escolar fosse obedecido e concluído. Eram nos momentos de intervalo e descanso que eu mais me divertia e me alegrava. A mente relaxava, o corpo acelerava e o sorriso abria, tendo em minhas amizades um mantra para a felicidade. Contudo destaques podem ser feitos, já que nem todas as aulas serviam como forma de alienação. Ótimos professores passaram por minha vida, contribuindo cada um com seus ensinamentos e vivências tão importantes para a minha formação como aluna. Eram educadores que amavam o que faziam e passavam a todo momento o quanto eram felizes por exercer aquela profissão, servindo de influência para o meu futuro”. Aluno B – “Entrando em retrospectiva, é inevitável que me deixe ser levado a memórias que remetem à minha formação durante o ensino médio, período tão importante na minha vida e que definiu, pouco a pouco, as escolhas que faria no futuro. Durante toda a vida fui seduzido pelo raciocínio lógico e analítico, tão presente nas ciências 29 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias exatas, o que culminou na minha escolha profissional. Hoje como aluno e professor de matemática, concluo que a minha formação básica como um todo não foi o fator exclusivo que norteou essa sequência de eventos. O fator marcante foi a inspiração que o meu professor me passou durante todo o ensino médio. Seu nome é Juarez dos Santos, protagonista dessa história. Tudo no trabalho do professor Juarez era metódico, mas não escondia sua paixão pela docência, tampouco pela disciplina. Enquanto era rígido com as turmas mais novas, passava serenidade as turmas mais velhas uma vez que estas já o respeitavam imensamente e não questionavam a sua pedagogia. Era conhecido de todo o colégio, dos pais aos alunos, até mesmo de outras instituições. Não se gabava porém de sua notoriedade, pelo contrário, refletia humildade por onde passava. Me senti totalmente imerso e apaixonado pela matemática, graças ao grande mestre Juarez. A paixão pela docência também é seu mérito, uma vez que hoje uma das maiores certezas que eu tenho é a de que o professor pode moldar futuros brilhantes. Espero seguir os passos de meu querido mestre e buscar resultados semelhantes aos dele”. Aluno C – “Baseado na minha vida acadêmica, lembro de terem sido os piores anos da minha vida, “taxada” de mais burra da turma por ter grandes dificuldades com as matérias de ciências exatas, também tive dificuldade de me relacionar com os colegas de turma. Sendo assim eu tive sempre poucos amigos na escola e na faculdade não mudou muita coisa. Quando cheguei no ensino médio um professor despertou em mim um imenso carinho pela literatura, então passei a me dedicar mais a tal matéria, deixando de lado o apelido adquirido no 30 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo ensino fundamental. Deixei de ser “a burra” e me tornei viciada em leitura. Aos 17 anos estava no último ano do ensino médio, louca para me ver livre da escola, porém com o sonho de ser professora. Meio contraditório querer voltar para um local onde durante anos me fazia sentir como se fosse o pior ser humano da face da terra. Mas minha vontade vai além do que sofri. Meu desejo é voltar as salas de aula e mostrar que ninguém é melhor do que ninguém. Cada um é bom a sua maneira, cada um vai se sair melhor em alguma matéria, porém achará o seu lugar. Não serei uma professora que agrega rótulos aos alunos, quero ser a base que faça o imaginário dele voar. Assim como eu queria ter tido. Eu quero e vou ensinar a felicidade”. Aluno D – “Acredito que quando entramos no ginásio a escola, ou talvez o sistema de educação, passa a nos ver como pré-adultos. De uma hora para a outra (ou melhor de um ano para outro) perdemos os motivos mais felizes de estar na escola: nos tiram a hora da soneca, nos tiram a possibilidade de dialogarmos com nossos amigos durante as aulas, até mesmo se quisermos comentar o próprio assunto da aula. Nos dizem também que agora o esquema vai mudar e colocam uma professora que não podemos mais chamar de “tia” em cima de um tablado, tudo isso assim junto e de uma só vez. E então temos que passar a encarar a escola como um lugar sério (pois é o que nos dizem) e não podemos falar, levantar, é como se a sala de aula fosse um lugar de regime militar. E para piorar tudo, as escolas estão cada vez mais cedo preparando os alunos para o vestibular.Então a sala de aula não é um lugar de aprender, mas sim um lugar de aprender a passar em uma prova que irá decidir toda a nossa vida. Dessa forma, fica difícil para o aluno conseguir aprender. 31 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias A gente tem a tendência a gostar daquilo que a gente entende e com o sistema de ensino atual, está difícil gostar de qualquer coisa. Me parece que não temos hoje a chance de realmente saber se gostaríamos de determinadas matérias, pois elas nos são ensinadas de uma maneira tão quadrada, que nos tornam gaveteiros do conhecimento, e então quando nos deparamos com um professor diferente, nos agarramos a ele e a matéria que ele ensina e passamos a adorá-la e queremos seguir aquela área. Mas será que se tivéssemos mais professores assim, não teríamos uma chance mais justa de aprender nossas matérias e escolher nossas carreiras?“ Aluno E – “Lembro-me de que era uma tortura ir à escola das primeiras vezes, não conhecia ninguém e nem entendia porque tinha que sair de casa, deixar de conversar e brincar com meus amigos, para ir a um outro lugar fazer tarefas com outras crianças até então desconhecidas. As coisas começaram a mudar quando me familiarizei com o ambiente e as pessoas ao meu redor. Tornou-se divertido ir à escola. Como no ensino fundamental não tinham muitas obrigações, o dia no colégio se resumia em conversas descontraídas e brincadeiras. No final desse período (acredito que sétima ou oitava série) tive a oportunidade de conviver, e de admirar muito, dois professores: o de matemática, um cara simples, genial e sincero que é meu amigo até hoje, e a de ciências, uma professora muito divertida que me mostrou como essa disciplina está relacionada a tudo e quão surpreendente ela poderia ser. Chegando ao ensino médio compreendi que a escola era também lugar de aceitação, que os outros te observam, te julgam e que ser nova e estar longe dos seus amigos é angustiante. Nessa fase, a escola tomou outro significado, tornou-se 32 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo objeto de pressão e delineadora do futuro. Percebi que o estudar era seletivo, que o mundo pede pessoas aplicadas e, assim, o aprender deixou de ser tão gostoso para tornar-se algo obrigatório. Ao final, tinha de escolher o que iria fazer depois do colégio, e acabei de decidir pela química que era a matéria que mais gostava e tinha facilidade. Não fui influenciada por ninguém, e essa minha escolha ainda está muito confusa. A faculdade nos traz uma carga muito pesada de conhecimento. Meu estudo é sempre pressionado, quase não me sobra tempo para visualizar as coisas que aprendemos na teoria. Com isso não consigo saber se estou no caminho certo, se isso vai me fazer feliz. Não vejo os meus próximos passos. Não tenho em mente o que esperar para mim. E o estudar, parece-me pouco lógico e útil sem a experiência de vida, que é o que me falta tempo para obter”. Nestas narrativas, alunos de licenciatura de vários cursos trazem relatos que identificam, o ambiente escolar como “monótono”, “cansativo”, “piores anos de minha vida”, “lugar de regime militar”, trazendo alguns dramas pessoais vividos nesse contexto, geralmente, relacionados a não aceitação ou a algum tipo de discriminação como o vivido pela aluna que foi vista como a “mais burra da turma por ter grandes dificuldades com as matérias de ciências exatas”. As poucas menções ao ambiente escolar caracterizado como “divertido”, parecem estar relacionadas aos primeiros anos do ensino fundamental e a educação infantil, onde “não haviam muitas obrigações” e o dia na escola se resumia a “conversas distraídas e brincadeiras”. Assim, de modo geral, esses alunos identificam a entrada no “ginásio” (atualmente anos finais do ensino fundamental), com a “perda dos motivos mais felizes de estar na escola” e assim, a escola vai se tornando cada vez mais cedo uma preparação para o vestibular ou “um lugar de aprender a passar em uma prova que irá decidir toda a nossa vida” o que é agravado 33 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias com a entrada no ensino médio, tornando-se então “objeto de pressão e delineadora do futuro”, processo acompanhado de muitas angústias e incertezas, acentuadas pelo fato de que “com o sistema de ensino atual, está difícil de gostar de qualquer coisa”. Nesse contexto, em vários relatos surge como “fator marcante”, “inspiração”, um professor “diferente” que faz com que “nos agarremos a ele e a matéria que ele ensina e passamos a adorá-la e queremos seguir aquela área”. Vários relatos apontam professores como “fator marcante” e mesmo como “protagonista desta história”, tal a importância que os mesmos parecem ter nos direcionamentos destas trajetórias de formação. Em uma das narrativas um aluno chega a colocar que “será que se tivéssemos mais professores assim, não teríamos uma chance mais justa de aprender nossas matérias e escolher nossas carreiras?”. Escolhas que se dão de outra forma também trazem um nível de angústia e incerteza como a do aluno que escolheu o curso que ia seguir pela “matéria que mais gostava e que tinha facilidade” porém, reafirma que “não consigo saber se estou no caminho certo e se isso vai me fazer feliz”. Enfim, nestas narrativas a forma como os alunos de licenciatura significam alguns fatos e experiências em sua trajetória de formação apontam o contexto escolar como um cenário de boas e más lembranças, sendo que estas últimas muitas vezes, coincidem com os últimos anos do ensino fundamental e o ingresso no ensino médio, período em que, segundo os mesmos, inicia a maior pressão para as escolhas profissionais e para o vestibular. Assim, de um modo geral, apontam o ambiente escolar e as situações formais e não formais de aprendizagem proporcionadas por ele, como um contexto de cobranças e exigências quanto a escolhas e definições relativas ao encaminhamento de sua vida profissional, mas sem oferecer o suporte necessário para que isso aconteça. 34 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.15-36 , nov. 2015/ fev. 2016 Eda Maria de O. Henriques Mônica Maria de Azevedo CONSIDERAÇÕES FINAIS Como considerações finais e provisórias, torna-se importante destacar, a inspiração proporcionada pelo memorial de formação, tal como entendido por Passegi (2008), com o seu potencial de deflagrar uma escrita de si organizando fatos relacionados a propostas de formação e pondo em foco experiências e expectativas em relação a esta trajetória. Nesta mesma direção, foi interessante observar que a leitura da crônica como experiência, abriu a possibilidade da inserção de uma história no fluxo de outras histórias, que se articulam e se constituem entre si, preservando seu potencial inesgotável de significação e de expressão de subjetividade deixando, como diz Benjamin (2012), “a marca do oleiro na argila do vaso”. Assim, a narrativa do autor, se entrelaça com as experiências, memórias e concepções do leitor, nos revelando nestas narrativas, alguns sentidos construídos em torno de experiências de um passado/ presente escolar que se tornam presentes no fio condutor do relato da crônica. Neste sentido, a mediação da crônica nesta pesquisa, ofereceu o texto e o seu potencial simbólico para que os alunos das Licenciaturas expressassem suas lembranças, ideias e concepções sobre a escola, mas como também mostra Yunes (2003), a possibilidade de ressituá-los em relação à experiência que está sendo contada, numadupla oportunidade, a de se conectar com suas lembranças, suas formas de pensar e a de repensar sobre as mesmas. Isto porque, embora os alunos das licenciaturas sejam universitários e possuírem, portanto, vários anos de escolaridade, de um modo geral, não fazem das memórias de suas experiências neste contexto, objeto de reflexão. As narrativas aqui registradas apontam que uma das possíveis causas para esta questão pode estar relacionada ao fato de que a escola não tem favorecido espaços de reflexão sobre o processo de formação, ou seja, promove a leitura de conteúdos disciplinares, mas não viabiliza possibilidades de “leitura” e objetivação crítica sobre o processo de formação vivido. 35 Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 15-36, nov. 2015/ fev. 2016 Narrativas e Trajetórias de Formação: Um Diálogo entre Literatura e Memórias REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução por Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Braziliense, 2012. BEZERRA, P. Prefácio In: A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GAGNEBIN, J. M. Prefácio In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução por Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Braziliense, 2012. ISER, W. 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O estudo objetiva analisar tanto o efeito da força político-legal na administração e estruturação técnico-pedagógica para controlar a ação escolar quanto seus reflexos no ensino primário, sobretudo de Minas. Os resultados mostram que os cargos de inspetor (criado em 1835) e diretor (criado em 1906) deviam ser exercidos por homens; e que sua atividade fiscalizadora previa fazer a escola funcionar, fiscalizar tal funcionamento e atestá-lo mediante documentos para o governo. O estudo mostra que a ação desses sujeitos supunha outros conhecimentos que não os pedagógicos e administrativos. Mais que isso, 1 Betânia Oliveira Laterza Ribeiro – Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: laterzaribeiro@uol.com.br 2 Luciana B. O. B. Carvalho – Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: lucianabeatrizcarvalho@yahoo.com.br 3 Sandra M. Oliveira – Rede Municipal de Uberlândia. E-mail: sandra-olivy@hotmail.com 38 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 reforça a ideia de centralização das decisões educacionais a ser tomadas com base em documentos da burocracia escolar que faziam a interface do governo mineiro com a escola. Palavras-chave: Ensino Primário; Grupo Escolar; Fiscalização; Administração; Burocracia. Abstract In Brazil, between 1889 and 1930, legislation helped to think of the organization of education. Educational reforms spread across the country to consolidate a school model to educate a model of citizen, which meant to control and create an administrative hierarchy that included school- inspector and principal. This study focuses on the profile of these agents in laws and edicts, which are taken as historical sources analyzed in the field of educational policies genesis and schools organization and functioning. The analysis considers not only the effect of the legal and political force on schools’ pedagogical and technical management as a way of controlling the schooling action, but also its echoes on primary education, especially in Minas Gerais state. Results show that according to the law it was men who’d held school-inspector and principal positions (created in 1835 and 1906, respectively); and that the inspecting and administrative activity meant to make schools work in classrooms, oversee such functioning and prove it through documents delivered to the government. If it points an action dependent on knowledge other than the pedagogic and administrative ones, it reinforces a centralization of the decision-making process based on bureaucratic documents to keep government informed of the schooling activity as well. Keywords: Primary Education; School; Overseeing; Administration; Bureaucracy. 39 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) CONSIDERAÇÕES INICIAIS No Brasil da primeira República (1889–1930), a burguesia liberal usou a legislação como instrumento para pensar na escola pública e em sua organização coerentemente com a nova feição política e social: o republicanismo e a cidadania. Fenômeno de pouca manifestação até então, as reformas educacionais, concebidas e executadas por intelectuais que se alçaram à condição de políticos, espalharam-se país afora nas primeiras décadas do século XX. A legislação ajudou a institucionalizar uma escola primária para formar o cidadão republicano; isto é, projetou-se num período marcante para consolidar um ideário: o do progresso, para o qual a alfabetização maciça seria essencial, daí a necessidade de novas concepções de educação e escola. Se assim o for, então inquirir leis educacionais e demais documentos reguladores da educação como fonte histórica mostra ser uma via profícua para refletir sobre a história da educação e as relações entre esta e a sociedade; permite compreender a constituição da escola na ótica do Estado e o significado de sua construção num contexto econômico, político e social que exigia da educação ora um fim (por exemplo, estimular o progresso e formar mão de obra para a nascente indústria); ora outro (por exemplo, aumentar o eleitorado). Entre as duas — talvez — pode ter havido contradições que, se não puseram em xeque a execução das proposições legais, denunciaram o jogode interesses de grupos de poder, seja econômico ou político. 40 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 Tomar a lei educacional como fonte histórica pressupõe considerar que não se trata de um registro neutro, “inócuo” — diria Le Goff (1990, p. 548) — do passado. A legislação contém marcas da sociedade que a engendrou: concebeu, articulou, elaborou, redigiu, publicou num processo de “[...] montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade” cuja significação pode ter mudado nas “[...] épocas sucessivas durante as quais continuou a viver [...]” — talvez esquecida, talvez em “silêncio” — em atividades variadas de manipulação; seja no momento mesmo de sua produção material, seja depois como vestígio daquele momento. Como matéria manipulável pelos sujeitos históricos em épocas distintas, as fontes estabelecem uma relação com o passado que exige problematizá-las como objeto que permite reconstruir não só a história, mas também sua historicidade. Não ignoramos a importância da historicidade dos documentos de valor histórico, mas neste trabalho consideramos as fontes históricas para reconstituir a história da educação mineira e a gênese das políticas educacionais republicanas para a educação. Na condição de estudo que permeia a história da educação, este trabalho toma como fontes leis e decretos educacionais mineiros, lidos e analisados com base em estudos (acadêmicos) que enfocaram a ação pedagógico-administrativa do inspetor de ensino e do diretor. Situamos a leitura de tais fontes no campo da organização e do funcionamento do grupo escolar de 1906 a 1924. Em parte, problematizamos sua constituição social à luz da lei: a criação legal de cargos e as exigências para o cumprimento das funções pelos titulares; em parte, sua instituição ao enfocarmos prescrições (regulamentos, normas, decretos e programas), seu cumprimento e seu efeito sobre sujeitos e relações sociais (de poder, políticas, pedagógicas, pessoais etc.) na escola. No plano geral, o estudo objetivou identificar e analisar mudanças e transformações associáveis com a gênese e consolidação do grupo escolar. Especificamente, objetivou analisar o efeito da força político-legal na administração e 41 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 estruturação técnico-pedagógica dessa instituição, sobretudo por intermédio do inspetor de ensino e do diretor escolar: agentes controladores da ação educacional e o funcionamento do grupo escolar na prática, tendo em vista seus reflexos no ensino primário de Minas Gerais, cuja educação ostentava porcentuais preocupantes na virada do século XIX para o XX. SITUAÇÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA Quando a República foi proclamada, certas condições da educação primária davam o tom da crise (econômica) por que passava Minas Gerais. Havia muito trabalho a ser feito para reduzir as taxa de analfabetismo e tornar a escolarização pública em fator de progresso, como queriam os republicanos; afinal, o propósito de escolarizar maciçamente reverberava em Minas, sobretudo porque havia contrastes entre matrícula e frequência — 51% de desistência e 5% de aprovação relativa aos frequentes. Uma educação que apresentasse índices tais não se coadunava com os anseios da sociedade que se encorpava com a proclamação da República nem com o propósito de fazer o país progredir à custa da alfabetização pública. O então secretário do Interior Wenceslaw Braz Pereira Gomes se incomodou; eis o que diz, na transcrição de Faria Filho e Vago (2000, p. 34): “Escolas havia que tinha apenas 1, 2 e 3 alunos! Era recorrente a referencia à necessidade de superar ‘os gravos’ inconvenientes produzidos por casas de escolas sem luz e sem ar, e pelos miseráveis assentos que ai estão espalhados por quase todas as escolas do estado”, que “não raro compromete o futuro de inúmeros alunos”, como escreve ele no ano seguinte. Para o presidente do estado Silviano Brandão (1898– 1902), a “[...] completa decadência [...] do ensino primario [...]” estava nas condições materiais das escolas, em “[...] predios que não são proprios, acanhados, sem as necessárias 42 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 condições hygienicas, desprovidos quasi todos de mobília e material escolar convenientes [...]”; e na administração, pois as escolas não eram “[...] inspeccionadas e ás vezes nem [...] visitadas pelas auctoridades litterarias [...]” (MINAS GERAIS, 1893, p. 18). Vejamos esse último ponto para ver o que foi feito para mudar tal “[...] estado de cousas [...]” — diria o presidente. Isso porque, no discurso da legislação educacional, a frequência é alvo de controle da inspeção e direção escolar. Essa ação de controle, além de outras, aconteceu num lócus específico: o grupo escolar.4 Grupo escolar Na edIFIcação da educação públIca Coube ao inspetor do Ensino Estevam Oliveira instituir o grupo escolar após conhecê-lo em São Paulo, em 1902; quando “[...] ficou deslumbrado com o espetáculo de ordem, civismo, disciplina, seriedade e competência que disse observar nas instituições de instrução primária da capital paulista” — diria Faria Filho (2000, p. 27). Oliveira (1902) viu um modelo de educação eficiente e organizado que poderia tirar da Minas da “decadência” a situa educacional mineira. Para ele, criar grupos escolares e organizar seu funcionamento na lógica pedagógico-administrativa destes poderia anular as dificuldades mediante o cultivo de uma cultura escolar, formação e profissionalização mediadora das relações entre cidadãos e sociedade. Essa escola ideal, para Oliveira (1902), supunha uma educação organizada à luz do conhecimento 4 A concepção de grupo escolar surgiu na cidade de São Paulo. Era a tradução, no campo educacional, dos propósitos republicanos para a escola no processo de fazer o país progredir. Em essência, o grupo escolar reunia escolas dispersas, isoladas, não graduadas; mais: supunha um sistema de ensino ao qual subjaziam novas concepções de escola, de educação e aluno fundadas numa pedagogia embasada, por exemplo, em estudos sobre o desenvolvimento psicológico e biológico da criança. Além da seriação e renovação pedagógica, a concepção de grupo escolar supunha uma feição arquitetônica, supostamente, apropriada à prática da escolarização (FARIA FILHO; VAGO, 2000): prédios específicos para substituir as escolas “inapropriadas” e “acanhadas”. 43 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 de profissionais e especialistas, dos preceitos higienistas e da pedagogia moderna. O Estado mineiro — dizem Gatti Júnior et al., (1997) — já havia mostrado aceitação a tal ideal em 1891: atas da Assembleia Legislativa citam uma associação das noções de democracia e civilidade (civismo) com a ideia de modernizar a educação e formar cidadãos, de educação pública e obrigatória, de moralização pública. Ao estado caberia concretizar tal ideal; isto é, reformar a educação primária: redimensionar a face administrativa e pedagógica sob orientação e acompanhamento de profissionais técnicos e competentes. A reforma coube a João Pinheiro, que governou Minas de 1906 a 1910. Formalizada pela lei 434, de 28 de setembro de 1906, sua proposta reformista determinou “[...] a construção de espaços próprios para a educação escolar, a fim de reunir e de abrigar em um só prédio as escolasque estavam isoladas, provocando, então, o aparecimento das Escolas Agrupadas e dos ‘Grupos Escolares’” (FARIA FILHO, 2000, p. 37). Como instituição para suprir as necessidades de expansão da escola primária, os grupos escolares — símbolo da modernização e do progresso — substituíram a escola isolada — símbolo do “atraso”. Assim, surgia o grupo escolar mineiro, o ensino laico se sobrepunha ao confessional, e a razão dava lugar à fé (o grupo escolar aboliu a instrução religiosa nas escolas públicas, assim como o Estado aboliu os subsídios aos seminários). Presidente do Estado e republicano, João Pinheiro investiu na educação (na escola) como recurso civilizatório e para fazer Minas progredir ao ritmo almejado pela República. Tal desenvolvimento em âmbito educacional, segundo Araujo (2007, p. 233–4), previa a “[...] centralidade da inspeção escolar e do seu papel fiscalizador e do andamento pedagógico-escolar”. Essa perspectiva reformista — diria Bomeny (1994) — explicitava um projeto modernizador para educação ao qual subjazia o binômio trabalho–educação: a convicção de que esforço e dedicação ao trabalho podem resultar em ascensão social e aprimoramento pessoal — 44 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 convicção fundada, talvez, nas origens de João Pinheiro, cuja educação fora custeada por um irmão no início, depois por um tio. Diz ele, segundo transcrição de Bomeny (1994, p. 145): “Sou fanático dos grandes obstáculos que exigem as forças supremas; o imprevisto me deslumbra e a necessidade das grandes ocasiões me fascina”. INSPETOR E DIRETOR: CONTROLE E ADMINISTRAÇÃO NO GRUPO ESCOLAR “Forças supremas” (seriam forças divinas?) sugerem a capacidade de superar obstáculos e imprevistos, a convicção de alguém que encara os entraves sem se intimidar. Por outro lado, a força suprema pode ser lida como poder de mando: autoridade com força de decisão, palavra final, voz que ordena. Não seria implausível reconhecer esse sentido na proposta reformista educacional de João Pinheiro, pois submete a ação de professores — e seu poder de decisão em sala de aula — ao controle fiscalizador de um poder hierárquico e centralizador que passou a regular as relações internas na administração do nascente grupo escolar. Dentro deste, tinha “voz suprema” o diretor: topo da hierarquia; fora, a “supremacia” de sua voz se relativizava ante a do inspetor de ensino; e ambos se submetiam à fiscalização administrativa e técnica da voz maior, mais alta: a do secretário do Interior... INspeção e coNTrole A Lei Orgânica do Ensino Primário, de 1835, introduziu o inspetor — então chamado de delegado — no cenário educacional como fiscalizador e controlador de atividades e cargos escolares. O art. 29 atribuía às províncias o direito de designar “[...] Delegado para cada comarca [...]”; enquanto o art. 30 especificava suas funções: “[...] nomear visitadores, suspender professores, nomear substitutos, autorizar funcionamento das aulas”. A nomeação do inspetor cabia ao governo estadual. O cargo incluía funções elementares como visitar escolas públicas — para ver se os professores cumpriam 45 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 seus deveres e informar sobre frequência discente e população escolar — e escolas particulares — para verificar as condições de funcionamento daquelas subvencionadas pelo Estado e propor subvenção às que merecessem; tal indicação supunha informar “[...] minuciosamente sobre as habilidades de seus professores, frequencia de alumnos e numero dos approvados nas materias de ensino obrigatorio nos exames do anno lectivo precedente” (MINAS GERAIS, 1892, p. 48–9). Em 1892 — esclarece Mourão (1962) —, o sistema de inspeção mudou, por força do primeiro governo republicano mineiro: Afonso Pena. A lei 41, de 1892, criou o cargo de inspetor ambulante: “[...] encarregados da fiscalização das escolas e mais estabelecimentos de instrucção do Estado [...]” (MINAS GERAIS, 1892, p. 48–9). Sua nomeação caberia ao presidente do estado, mediante “[...] concurso perante uma commissão composta por professor de pedagogia da Escola Normal da Capital, como presidente, e de dois professores do Gymmasio, eleitos pela respectiva congregação” (MINAS GERAIS, 1892, p. 48–9). Afonso Pena estendeu a fiscalização a um conselho municipal para, supostamente, dar mais eficiência e agilidade à ação fiscalizadora. Como se lê no art. 32, o conselho atuaria nas “[...] escolas no districto escolar da séde do municipio, creadas [...], subvencionadas pelo Estado ou particulares”; isso significava, sobretudo, verificar a aplicação da “[...] da lei e regulamentos da instrucção publica, especialmente pela execução das medidas relativas ao ensino obrigatório”: por exemplo, conhecer — e registrar — as “[...] escusas dos reponsaveis pelo ensino das crianças que estiverem isentas da frequencia obrigatória [...]”; “Julgar as causas de falhas de alumnos, de confirmidade com art. 80” (MINAS GERAIS, 1892, p. 48–9). O ensino obrigatório ao discente não poderia ocorrer sem a obrigatoriedade da presença de docentes, daí a função de “Prestar ao governo ou ao inspector escolar as informações que forem exigidas, em relação aos professores [...]”: “Certificar e attestar, a requerimento dos professores do municipio, 46 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 e informar seus requerimentos sobre licenças e remoções, relativamente á veracidade dos motivos justificativos que allegarem” (MINAS GERAIS, 1892, p. 48–9) Havia funções indiretamente menos fiscalizadoras; por exemplo, conhecer a realidade local mediante a “[...] organização da estatística das escolas publicas e particulares [...]” — cujo mapa seria remetido “[...] annualmente [...] ao Secretario do Estado [...]” (§ 2º) — e o “[...] recenseamento da população escolar [...]” — cuja aprovação tinha de ocorrer em 15 dias (talvez após “[...] receber reclamações sobre elle e decidil-as” [§ 5º]). Os resultados deviam ser submetidos ao poder competente. Com dados da realidade escolar local, talvez o conselho tivesse condições de propor medidas convenientes para o bem da educação local, a “[...] creação de novas cadeiras, e a suspensão do ensino nas que não tiverem frequencia legal e sua restauração” (§ 12) (MINAS GERAIS, 1892, p. 48–9). As funções menos fiscalizadoras não anulavam os mecanismos de controle, pois a ação devia ser reportada ao governo de Minas, ainda que o conselho estabelecesse “[...] fiscalização do ensino público pelo povo” — diria Torres (1980, p. 1.432). Isso porque o conselho devia ser eleito — embora a lei não diga por quem nem como; se não o fosse, caberia “Nomear três cidadãos conceituados que acompanham o conselho districtal nas localidades onde a eleição não haja sido feita” (MINAS GERAIS, 1892, p. 48–9) — embora a lei não diga quem nomearia. Nesse caso, seria implausível cogitar, na formação de conselhos, critérios mal resolvidos, para não dizer ambíguos? Se sim, então isso não põe em xeque a condição de fiscalização popular de que fala Torres? Não está claro se o povo elegia o conselho. Se há quem diga que, entre 1882 e 1900, a fiscalização inspecional fundada em relatórios, mapas estatísticos e demais documentos da burocracia escolar tendeu a dar lugar a uma atividade mais interpretativa e judiciosa da atuação de docentes e discentes (VEIGA, 1990), não se pode negar que 47 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃOEDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 a inspeção fiscalizante tenha sido ação prevalente na primeira década do século XX. Em 1903, o presidente Francisco Salles (1902–6) afirmou faltar “[...] inspecção de ensino” (MINAS GERAIS, 1903, p. 30). Em 1906, ela se tornou objeto de reforma: o decreto 1.947, de 30 de setembro, reviu a função e importância da inspeção na direção e administração escolar; e a revisão a projetou de tal modo que o traço fiscalizar deu lugar a outra identidade: a de “[...] alma do ensino [...]”, afirmada no Regulamento da Instrução Primária e Normal do Estado de Minas Gerais; e trouxe outros agentes: “[...] pessoal técnico, susceptível de apaixonar-se pela causa que lhe vai ser confiada” (MINAS GERAIS, 1906d, p. 8). O art. 18 da lei 439, de 28 de setembro de 1906, criou o cargo de inspetor técnico, cuja ação se alinhava à do inspetor ambulante da lei de 1892. “[...] agente da confiança do Governo, [...] de comprovada capacidade moral e de competencia profissional manifestada em trabalhos anteriores” (MINAS GERAIS, 1906a, p. 183), os inspetores ressurgiam, então, como “[...] auctoridades escolares creadas em lei [...]”, que se reportava ao “[...] Presidente do Estado [...] por intermedio do Secretario do Interior” (MINAS GERAIS, 1906a, p. 182). Mais que isso, sua ação se estenderia à vida extraescolar: dele se esperava conhecimentos mais amplos que os pedagógicos, isto é, conhecimentos das condições e dos determinantes culturais, sociais, econômicos e políticos que poderiam fazer avançar ou retardar o desenvolvimento (da educação escolar) da comunidade onde ficava a escola. Ora, à inspeção caberia conhecer as “[...] causas que influem sobre a instrucção do povo, mediante a observação attenta das escolas, da sociedade e do territorio do Estado e a favorecer o seu progresso, agindo sobre o professor, no meio social e as auctoridades” (MINAS GERAIS, 1906a, p. 182). Contudo, relatório técnico de visita ao Grupo Escolar de Lavras cujo diretor era Firmino Costa aponta uma apreensão ainda fiscalizadora e atenta ao domínio escolar: prédio — “[...] novo, vasto e apropriado edifício [...]”, doado ao estado pela 48 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 municipalidade de Lavras e onde funcionam “[...] cinco para o sexo masculino e três para o feminino”; frequência — média diária de “[...] de 280 [dentre] 427 alunos”; ao diretor — senhor Firmino Costa, “[...] criador previdente e carinhoso de tal estabelecimento, que vai atingindo vitória e eficazmente os elevados fins a que se destina”; asseio, ordem, regularidade e disciplina no grupo — “[...] irrepreensíveis”; e ao programa de ensino — “[...] tem tido amplo e eficaz desenvolvimento por parte dos docentes e é bastante apreciável o aproveitamento dos discentes [...]”, supostamente notável nos próprios alunos, cujos rostos exibiam “[...] um ar agradável de saúde e bem- estar [...]” (VIDA ESCOLAR, 1908, p. 1). O art. 198 do decreto 1.947 prescreveu as atribuições do inspetor técnico. Em essência, sua ação supunha aferir e atestar o cumprimento da lei no grupo escolar, sobretudo na dimensão pedagógica: “[...] programma do ensino primario [...] bem e fielmente praticado”; caso não estivesse, ele devia assistir ao funcionamento das aulas para “Dar ao professor as necessarias instrucções caso verifique não ter elle bem comprehendido o espírito do programma”, indicando-lhe “[...] tudo quanto repute necessario modificar no methodo por elle seguido”; o inspetor devia averiguar a quantidade de alunos matriculados e frequentes; a “[...] capacidade e a solicitude do professor no desempenho de sua missão [...]”; na “[...] disciplina, ordem e regularidade dos trabalhos [...]”; no material didático: “[...] compêndios [...] livros [dos] alumnos e o estado em que se acharem” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 185–6). Funções mais pedagógico-administrativas conviviam com outras mais administrativo-burocráticas, como verificar “O estado da escripturação das escolas, examinando os livros de matricula, ponto diario e outros” e enviar à Secretaria do Interior documentos escritos e outras registros com “[...] descripções, vistas photographias e plantas dos edifícios das escolas e do respectivo material de ensino”, com um quadro “[...] das escolas e estabelecimentos particulares e municipaes 49 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 [...]” com os “[...] nomes dos respectivos professores, directores, o numero de alumnos matriculados e freqüentes” e, quinzenalmente, um “[...] relatorio synthetico da inspecção que tiver feito, o qual será publicado no jornal official, a juiz daquella auctoridade” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 185–6). Havia ainda funções com propósitos mais ideológico- partidários, tais como “[...] Propagar o espírito de associação para o fim de realizar os intuitos do ensino publico”, especialmente entre “[...] auctoridades e outras pessoas prestigiosas das localidades [...] [para] despertar o seu interesse pela causa do ensino [...]” (assiduidade discente e melhoria das condições técnicas e materiais da escola), pela “[...] fundação de bibliothecas e museus escolares”; enfim, “Inaugurar [...] as escolas de creação nova ou restauradas [...]” como um acontecimento ser comemorado, mediante “[...] actos em que tomem parte os professores, paes de familia ou auctoridades locaes, salientando o alcance do facto” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 185–6; grifo nosso), função que deixa entrever a propaganda estatal (publicizar sempre que possível as ações do estado). A importância da inspeção aumentou a tal ponto, que foi preciso criar duas instâncias: uma administrativa, outra técnica. A primeira seria “[...] exercida, permanentemente, pelos inspectores escolares municipaes e districtaes e, extraordinariamente, pelos inspectores technicos ambulantes” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 183) e supunha controlar e acompanhar “[...] todos os atos e relações das professoras com a secretaria [...]” no âmbito do regulamento mediante os chamados inspetores escolares municipais (FARIA FILHO, 2000, p. 94); a segunda seria “[...] exercida por inspectores ambulantes” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 183), “[...] responsáveis pela relação mais direta com as professoras, as diretoras e os alunos [...]”; isto é, com processos e sujeitos educacionais de fato (FARIA FILHO, 2000, p. 94). O art. 194 do decreto 1.947 prescreveu as atribuições dos inspetores municipais e distritais — ainda fiscalizadoras; afinal, 50 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 tinham de “Velar pela fiel observancia da lei e regulamentos da instrucção publica, relativos ao ensino oficial”. A fiscalização supunha atividades de controle hierárquico-burocráticas: § 4.º Prestar ao governo as informações que lhe forem exigidas em relação aos professores e ás escolas do município [...] § 9.º Certificar a frequencia dos professores do districto da séde do município [...] § 15. Chamar a attenção dos professores do municipio para a fiel e exacta observancia dos seus deveres [...] § 11. Visar os boletins e mappas escolares, lançando nelles as observações resultantes da sua inspecção, as copias das actas de exames e de visitas, as listas nominaes de alumnos, depois deconfrontal-as com o livro de matricula e, bem assim, quaesquer outros documentos, que para esse fim lhes forem apresentados pelos professores públicos [...]§ 17. Fiscalizar os exames e promoções de alumnos nas escolas publicas, nos termos regulamentos. (MINAS GERAIS, 1906b, p. 183–5). Também previa atividades de administração de pessoal e recursos materiais: § 5.º Informar os requerimentos dos professores, relativos a licença e remoções [...] § 7.º Communicar á Secretaria do Interior as vagas de cadeiras, logo que estas se verifiquem [...] § 8.º Communicar á Secretaria do Interior, o dia em que os professores publicos assumirem ou reassumirem o seu exercício, entrarem no goso de alguma licença ou fecharem a escola por motivo de permuta, remoção ou exoneração; § 10. Receber o compromisso dos professores publicos primarios e dar-lhes posse no município [...] § 13. Justificar durante o mez, até tres, as falhas dos professores [...] § 14. Conceder licença aos professores, dentro de um anno, até 30 dias, sem vencimentos [...] § 16. Nomear examinadores para as escolas 51 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 publicas no districto da séde do municipio, presidir os exames e delegar essa atribuição as pessoas idôneas [...] § 19. Fazer inventariar a mobília e o material technico das escolas, quando os respectivos professores entrarem no exercício de suas funções e retificar o inventario quando os mesmos tenham de deixar e exercício [...].(MINAS GERAIS, 1906b, p. 183–5).. A princípio, “Os inspectores municipaes e districtaes, [eram] agentes gratuitos da confiança do governo [...]” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 183). Para Oliveira (1902, p. 179), a “[...] gratuidade [a falta de remuneração] do cargo enfraquece a responsabilidade daquele que a exerce, a inspeção não tem regularidade necessária, não é exercida com a firmeza que requer o interesse de instrução e a educação do povo”. Ele via a remuneração como central para remodelar o ensino público mineiro. A gratuidade motivou debate, a ponto de a lei mudar a redação no decreto 3.191, que se refere a agentes “nos cargos” de confiança. Talvez a não remuneração se justificasse porque os nomeados ao cargo de inspetor já eram remunerados, pois o art. 46 de um decreto 3.191, de 1911 previa que “[...] para as nomeações de inspectores municipaes serão preferidos: a) os promotores de justiça; b) como premio, os professores de merecimento excepcional” (MINAS GERAIS, 1911, p. 181). O art. 56 do decreto 3.191, de 1911, prescreveu que “[...] aos inspectores districtaes cabem [...] como aos auxiliares [...] as mesmas attribuições e deveres conferidos neste regulamento aos inspectores municipaes” (MINAS GERAIS, 1911, p. 184); e o art. 98 do decreto 6.655, de 1924, previu a condição do cargo nestes termos: “Os inspectores districtaes são, como os municipaes, agente de confiança do Governo, e, como elles, livremente nomeaveis e demissiveis” (MINAS GERAIS, 1924, p. 244); igualmente, o art. 99 propõe que, “[...] nos povoados e colônias, a inspecção do ensino será feita por inspectores auxiliares, também livremente demissíveis” (MINAS GERAIS, 1924, p. 244). 52 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 A substituição de um inspetor — por exemplo, demitido — seguia o art. 48 do decreto 3.191 (que replicava o de 1906), onde se lê que: “[...] os inspectores municipaes e districtaes serão substituídos em suas faltas ou impedimentos pelos respectivos supplentes, também de nomeação do Presidente do Estado”; e o art. 55 aponta as condições para substituição do inspetor distrital: “[...] a) nas faltas e impedimentos, por supplentes; b) nos povoados e colônias, por auxiliares, uns e outros de nomeação do governo” (MINAS GERAIS, 1911a, p. 181; 184). Se a nomeação de inspetores técnicos previa critérios fundados na moral social republicana e no desempenho profissional, a designação se vinculava ao lugar onde iriam atuar, isto é, as “[...] circumscripções literarias5 que lhes forem designadas [...]”, onde permaneceriam mais “[...] que 6 mezes” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 183). Havia um pré-requisito à posse: pagar antes “[...] os direitos do respectivo titulo” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 183). Como tinham de atuar fora de seu domicílio, a legislação oferecia garantias — vide o art. 191 do decreto: “[...] vencimentos 3:600$00 annuaes e bem assim a diaria de 8$000 e passagem nas estradas de ferro [...]” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 183). O decreto de 1911 mantém esses valores, mas o de 1924 extinguiu a garantia: “Os inspectores regionaes são obrigados a residir e permanecer nas circumscripções para que foram designados” (MINAS GERAIS, 1924, p. 239). Todavia, residisse ou não na “circumscripção” designada, o inspetor tinha de se deslocar para cumprir suas funções; e o deslocamento devia ser relatado ao governo nestes termos: “I. O itenerario seguido pelo fiscal e as povoações encontradas em seu trajecto [...]”; não bastava informar dados factuais (lugar, data, tempo despendido...) do deslocamento; era preciso dar provas verbais de que de fato houve visita, pois o relatório supunha, por exemplo, “[...] descripção dos predios escolares e 5 Conforme Araujo (1997), equivaliam às atuais superintendências de ensino. 53 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 si são estaduaes, municipaes e particulares; dimensões de seus commodos e si sua situação facilita a frequencia dos meninos da localidade” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 185–6). A lei não só estabelecia meios de (auto)controle da ação do inspetor; também o obrigava a agir ao exigir relatórios quinzenais. Os recortes da legislação apresentados até aqui mostram que a função do inspetor ia além da fiscalização inspecional propriamente dita. Dentro da escola, além de ações burocráticas, o inspetor tinha de usar sua percepção para observar seus sujeitos e a ação deles de modo que pudesse delinear (e relatar) perfis morais, profissionais e de comprometimento; afinal, tinha de instruir professores primários e diretores quanto a seus deveres, à maneira de vestir, à postura, à importância da cooperação de familiares para ações cívicas e culturais no grupo escolar e da participação de autoridades (políticas) na vida escolar; sobretudo, cabia-lhe organizar e reger a direção do grupo escolar, isto é, “[...] dar instrucções [...] quanto ao cumprimento de [...] deveres” (MINAS GERAIS, 1924. p. 240). a dIreção e a admINIsTração O decreto 1.947 introduziu o (papel do) diretor na instrução pública mineira. Como se lê no art. 24: cada grupo escolar teria “[...] um diretor incumbido de sua superintendencia administrativa e technica, que será especificada em regimento especial”; enquanto o art. 26 estabeleceu sua competência: “[...] fiscalizar e disciplinar os alumnos, os professores e todos os funccionarios que servirem sob sua direcção, solicitando do inspector escolar as providencias necessarias, que esse por sua vez pedirá ao governo quando fora da sua alçada” (MINAS GERAIS, 1906b, p. 159). O gênero masculino na escrita da lei deve ser tomado em sentido literal, porque a legislação prescrevia que homens — supostamente mais aptos ao papel de controlar as atividades da escola — desempenhassem o cargo de diretor escolar. Para Souza (1998, p. 80), se isso reforçava relações de gênero 54 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 desiguais de um universo social mais amplo, havia exceções: diretoras de escolas-modelos como “[...]Marcia Browne, Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e Eliza de Andrade Macedo”; mais que replicar as desigualdades das relações de gênero no espaço escolar, atribuir a homens apenas cargos superiores de instrução pública “[...] pode ser visto como uma reserva de mercado no qual os professores normalistas podia contar com os melhores salários e prestigio social”. Daí a afirmação de Demartini e Antunes (1993) de que magistério primário era profissão feminina e carreira masculina. O decreto 3.191 diversificou sua ação, ainda fiscalizadora, pois tinha de “[...] Inspeccionar a frequencia dos alumnos e dos professores”, de percorrer classes, “[...] fiscalizando o ensino e a disciplina e dando as providencias que se fizerem necessárias”, deixar o professorado ciente das “[...] irregularidades de ensino e disciplina, verificadas nas suas classes ou fora dellas”; e, sobretudo, tomar providências em “[...] occurrencias extraordinarias, dando de tudo conta ás auctoridades escolares [...]”; se preciso, “Substituir, na regencia da classe [...]”; “[...] observar o programma e o horário”, velando pela “[...] disciplina do grupo e asseio do prédio”; se fosse preciso, “Impor penas disciplinares”. Ampliou o contato com o público escolar em funções como “[...] dar posse aos professores e empregados do grupo”, matricular e classificar “[...] alumnos, e designar a cada professor uma classe e a sala [...]” e “Entender-se por escripto ou pessoalmente com as auctoridades escolares locaes, ou com os paes e tutores sobre a matricula e frequencia de alumnos”. A atividade burocrática incluía organizar “[...] ‘boletim diário’ de occurrencias do estabelecimento [...]” (presença/ausência docente/discente, visitas); cuidar da “[...] escripturação e correspondencia escolares, remettendo á Secretaria do Interior, até o dia 5 de cada mez, o boletim mensal e, até 10 dias depois de findo cada semestre, o mappa semestral dos trabalhos escolares [...]”; elaborar um “[...] relatorio annual sobre o movimento do 55 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 grupo [...] durante o anno lectivo [...]” e enviar ao secretario do Interior (MINAS GERAIS, 1911, p. 187–9). Como se lê, a “superintendencia administrativa e technica” tem de ser entendida como atividade que previa fazer a escola funcionar na sala de aula, fiscalizar tal funcionamento e atestá- lo mediante documentos de interface com o governo e com pais e tutores. Trata-se de função pedagógico-administrativa, pedagógico-docente e mediadora, pois o profissional tinha de responder, ao governo estadual, sobre questões e problemas internos da escola. Essas atribuições — diz Guimarães (2007, p. 202) — davam ao diretor uma função centralizadora: “[...] pode-se considerar que o perfil de uma escola dependia, em grande parte, de postura gestora empreendida pelo ocupante desse cargo, da maneira que pensava e agia”. O diretor não perde sua condição de educador; em compensação — diz Leão (1945, p. 167) — ganha a de “[...] coordenador de todas as peças da máquina que dirige, o líder de seus companheiros de trabalho, o galvanizador de uma comunhão de esforços e de ações em prol da obra educacional da comunidade”. A dimensão pedagógica supunha não só observar a atividade discente e docente; também analisar e julgar métodos e processos para apreciar resultados, orientar e conduzir o trabalho. Assim, ao conhecimento didático- pedagógico presumível, agrupava-se o conhecimento da política educacional e dos saberes técnico-administrativos, pois cabia ao diretor pensar nas diretrizes e linhas gerais e pô- las em prática. O decreto 6.655, de 19/8/1924, reiterou as atribuições modulando-as aqui e ali; por exemplo, ao prever apoio de “[...] mais professores por elle designados, e do porteiro [...]” para manter a disciplina”; aumentar a quantidade de documentos a ser vistos e preenchidos — “portarias de licença”, “termos de visitas” —, inventariar “[...] o material escolar sob sua guarda e responsabilidade, e escripturar as despesas auctorizadas, bem como as quotas pecunarias destinadas á compra de expediente e utensílios de hygiene”. Mais que isso, amplia-se o contato 56 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 com autoridades externas à educação ao ter de “Communicar á auctoridade sanitaria os casos de moléstia infecciosa, verificados em alumnos matriculados” (MINAS GERAIS, 1924, p. 235–6). Relatório sobre o movimento do Grupo Escolar de Uberaba (MG) expõe o contato com autoridades educacionais — a “V. Excia”— e convergência ao regulamento geral da instrução pública de então: As aulas funccionarem regularmente nos 208 dias lectivos do anno. Não houve feriado extraordinario. Observou-se com escrupulo, nos dous turnos, o que dispõe o Regulamento quanto aos trabalhos nos institutos de ensino publico primario. O ensino, directamente fiscalizado por mim, foi ministrado de accordo com o programma em todas as classes. Tenho a satisfação de informar a V. Excia, que os professores do estabelecimento, cuja nominata consta dos boletins mensaes que enviei á Secretaria, deram aos alumnos, durante todo o anno, o bom exemplo de assiduidade aos trabalhos escolares. (ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, 1916, p. III). Essa passagem mostra uma atividade intensa do diretor na administração de frequência, licença e substituição. Além de organizar o funcionamento das aulas e o programa de ensino, tinha de fiscalizar; por isso se diz que à “[...] direção cabia a mesma atribuição dada ao inspetor, em nível micro” (GONÇALVES, 2006, p. 77); e talvez por isso o secretário Carvalho Brito tenha afirmado a importância dos diretores em relatório: O êxito dos grupos escolares depende, em regra, da sua direção. Os diretores são a alma desses estabelecimentos, depende de sua boa vontade, de seus esforços, de sua competência, de seu patriotismo, a divisão regular dos trabalhos escolares, a fiscalização permanente, a uniformidade na execução dos programas, o estímulo ao professores e 57 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 alunos, a ordem, a disciplina e a higiene, sem o que não realizam os grupos escolares os intentos de sua vocação. (MINAS GERAIS, 1908, p. VII). Como “alma do [estabelecimento de] ensino” tal qual o inspetor, os diretores deviam — segundo prescreviam o art. 73 do decreto 3.191, de 1911, e o art. 74 do decreto 6.655, de 1924 — chegar “[...] quinze minutos, pelos menos, antes da hora de começarem os trabalhos escolares” (MINAS GERAIS, 1924, p. 234). Chegar mais cedo supunha preparar funcional, administrativa e pedagogicamente o grupo escolar para receber os alunos. Vago (2009, p. 117–8) dá o tom da cobrança relativa ao horário do diretor em carta de um pai reclamando do diretor do grupo escolar de Carangola (MG), José Francisco Lopes Nunes, em 4 de junho de 1912: “Ilmo. Sr. Venho a presensa de V. Sa. para representar a V. Sa. os desmandos do Grupo Escolar daqui desta cidade. O director chega sempre ao Grupo duas horas depois das profeçoras e alega de ser doente para chegar assim tarde, embora apesar de morar numa casa mesmo juntinha do grupo.” O caso não se desdobrou e foi arquivado pelo diretor de Instrução. O art. 363 do decreto 6.655 salientou a responsabilidade pelo prédio e pelos objetos da dimensão material do grupo escolar em certas atribuições, a exemplo destas: 1.º Proceder, perante a auctoridade escolar local, ao inventario a que se refereo art. 203 — Do mobiliario e material constantes dos artigos anteriores, a direcção de cada estabelecimento fará, sempre que fôr mudada, com a presença da auctoridade escolar local, um inventario minucioso, descrevendo o estado de conservação dos mesmos, e do predio, quando de propriedade publica. Paragrapho unico. Este inventario será lançado em livro proprio, e delle se enviará copia, visada pela mesma auctoridade, á Directoria da Instrucção; [...] 3.º Conservar o predio e o material escolares, pelos quaes responderá 58 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 na fórma do art. 211. Os professores, directores de grupos e mais funccionarios do ensino, a quem competirem a guarda e a conservação do mobiliario e material escolares, são por elles responsaveis civil, criminal e adminstrativamente. Paragrapho unico. Não poderão, sob qualquer pretexto, cedel-o por emprestimo, bem como o predio, nem delles utilizar-se para fins extranhos ao ensino, sob as mesmas responsabilidades. [...]. (MINAS GERAIS, 1924, p. 305–6; grifo nosso). Se essa passagem do texto legal aponta a incumbência do diretor de preservar e zelar do prédio e do mobiliário escolares, a passagem de um relatório das atividades do Grupo Escolar de Uberaba dirigido ao secretário de Estado dos Negócios do Interior de Minas Gerais revela o receio de sanções legais — afirmadas pelo decreto — por causa de descumprimento. O texto se refere a mobiliário que havia sumido: “Duas peças, de cuja falta se ressentia o mobiliario, foram feitas no corrente anno pelos alumnos do Curso Technicos; uma caixa de madeira envernizada para a Bandeira e um armario pequeno para a pharmacia escolar” (ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, 1916, p. V). Mais que isso, a referência à bandeira sugere a formação de um espírito republicano e o culto a um símbolo seu. Ao diretor cabia influenciar os corpos docente, administrativo, operacional e, sobretudo, discente a aprender a amar a pátria sob os auspícios da escola e respeitar à simbologia da sociedade republicana. Nagle (2001, p. 64) afirma que “[...] as primeiras manifestações nacionalistas aparecem, de maneira mais sistemática e mais influenciadora, no campo da educação escolar”; e Schueler e Magaldi (2008, p. 45) reiteram essa afirmação dizendo que a escola pública primária propagou “[...] mensagens de caráter moralizante e cívico [...], por meio de formas diversas, como presença de símbolos patrióticos no dia-a-dia e nas situações festivas”. Outra passagem do relatório citado há pouco reforça esse 59 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 patriotismo na escola pela relevância que tinha a solenidade comemorativa de datas cívicas: O Grupo Escolar comemorou, por meio de festas organizadas com caracter educativo, as datas nacionaes de 21 de abril, 7 de setembro de 19 de novembro. Ao ensejo da comemoração da data de 7 de setembro, realizamos a festa da arvore, de accordo com as instrucções expedidas pela Secretaria do Interior. (ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, 1916, p. V). Se o cargo era de confiança, também era confiável a poucos: do candidato a ocupá-lo exigia-se formação normal ou origem em grupo de cidadãos interessados na educação. Talvez por isso o decreto 3.191, de 1911, tenha determinado que o ocupante fosse nomeado: “Para as nomeações de directores de grupos serão preferidos: a) os professores normalistas das escolas urbanas, mantidas no exercício do cargo as actuaes directoras. b) os cidadãos notaveis por serviços prestados á instrucção” (MINAS GERAIS, 1911, p. 187). Vieira (2011, p. 101) exemplifica esse tipo de nomeação em Mariana, onde em lugar de um professor de carreira foi indicado ao cargo de diretor escolar o cidadão José Ignácio, que supostamente prestou serviços à educação e era personagem de renome na sociedade, pois fora “[...] vereador e um dos principais farmacêutico da cidade [...]”; isso sugere que o cargo não só era prestigioso, como também dava “[...] centralidade administrativa. O art. 72 do decreto 6.655, de 19/8/1924, avança um pouco quanto a prescrever condições para nomear diretores, sobretudo o mérito: Em cada grupo escolar haverá um director, nomeado dentre os professores públicos ou particulares, de reconhecido merecimento, e demissível a juízo do Governo. Paragrapho único. Na falta de professores, será nomeado qualquer cidadão, maior de 21 annos, que apresentar os seguintes documentos: a) folha corrida; b) attestado de aptidão pedagogica 60 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 e pratica profissional, dado pelo director do estabelecimento de ensino que lhe fôr designado pelo Secretario do Interior para um estagio de 30 a 90 dias. (MINAS GERAIS, 1924, p. 234). Ainda assim, é provável que o critério mérito não excluísse nomeação fundada em vínculos partidários e sociais. Firmino Costa, educador indicado para dirigir grupo escolar em Lavras (MG) — diz Hamdan (2007, p. 47) —, era amigo de Fabriciano Carvalho de Brito, político que trabalhou pela criação de grupos escolares no estado. Esse autor não questiona o mérito do diretor; mas não descarta a importância de sua rede de sociabilidades. Mesmo em caso de demissão, o mérito parecia prevalecer. O art. 72 do decreto de 1911 previa que diretores “[...] dispensados do cargo teriam direito a ser providos; independente do concurso, em qualquer escola vaga” (MINAS GERAIS, 1911, p. 187). Em vez de não poder trabalhar noutra escola, a exoneração de um cargo garantia o direito a outro. Eis algumas justificativas para exonerar: Art. 380 [...] a) a falta de preparo profissional ou inaptidão pedagógica; b) o abandono injustificavel do cargo; [...] Art. 381. Serão exonerados a bem do serviço publico: 1.º os funccionarios condemnados por sentença definitiva, em juízo criminal, a pena que acarrete a de perda do emprego, com ou sem inhabilitação para exercer outro, ou os que o forem pelos crimes previstos nos numeros 2.º aos que tiverem sido condemnados por crime de falsidade, estellionato, ou qualquer outro considerado infamante e 4.º aos que tiverem sido condemnados por crimes contra a independencia, integridade e dignidade da Patria do art.9 deste regulamento; 2.º os que praticarem actos contrarios á moral e aos bons costumes. (MINAS GERAIS, 1924, p. 309–10). 61 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 Ora, a possibilidade de realocar um diretor exonerado por motivos tais — inaptidão pedagógica, abandono do cargo, condenação criminal — põe em xeque as intenções do governo relativas à qualidade e ao compromisso com a escola — com a educação —, bem com o controle e a conduta disciplinar. Como manter a ordem e a disciplina nos grupos escolares com diretores cuja postura não é ilibada nem profissional? No início da República, uma visão tal contraria os que queriam reformar a sociedade segundo “[...] uma nova hegemonia política e social, através de um novo conteúdo, em que a formação da moral e do caráter deveriam ser ensinadas [sic]” (SILVA, 2004, p. 12). Diferentemente dos decretos de 1906 e 1911, o de 1924 regulou a remoção do diretor no art. 369: “Os directores de grupos escolares poderão ser livremente removidos por conveniência do ensino a juízo do governo” (MINAS GERAIS, 1924, p. 308). O texto legal não explana o processo de remoção, mas passagemde carta do ex-diretor Francisco Mello Franco comentada por outrem e transcrita por Guimarães (2007, p. 203) dá pistas: a nova lei “[...] incompatibiliza a função de diretores em grupo onde existam parentes professores [...]”. O decreto de 1924 não aponta justificativas para remover dado diretor por tais razões, e Guimarães (2007) não especulou essa ausência. Uma vez removido o diretor, suas funções, segundo o art. 370 do decreto de 1924, “[...] cessarão immediatamente [...]”, e ele terá 30 dias para assumir o novo cargo, [...] salvo si aquella se fizer de um estabelecimento para outro na mesma localidade. § 1.º Este prazo poderá ser prorrogado por mais trinta dias, si o requererem, provando legitimo impedimento. § 2.º O primeiro prazo será contado da data em que fôr publicado, no orgão official, o acto da remoção. (MINAS GERAIS, 1924, p. 308). 62 Betânia O. Laterza Ribeiro Luciana B. O. B. Carvalho Sandra M. Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.37-66 , nov. 2015/ fev. 2016 Como a remoção do diretor poderia o afastar do convivo familiar, a lei garantia “[...] direito a passes nas estradas de ferro, para si e pessoa de sua família, ou a uma ajuda de custo, arbitrada pelo Secretario do Interior, no caso do respectivo transporte haver de ser feito por outro meio” (MINAS GERAIS, 1924, p. 309). A remoção ordenada — conforme o art. 373 — poderia ocorrer [...] em qualquer época do anno [...]” (MINAS GERAIS, 1924, p. 309); mas a remoção pedida pelo diretor pedida só poderia ser acontecer “[...] na vigência das férias escolares” (MINAS GERAIS, 1924, p. 309). É provável que a ida repentina do diretor para outra escola, para outra cidade fosse motivada por divergência pessoal ou política com professores, alunos, pais, inspetores e demais funcionários da instituição ou autoridades locais; isto é, por razões pouco associáveis com a competência profissional, a qual o obrigava a permanecer até a ocasião das férias na escola de onde queria sair. Se assim o for, então é provável também que tais motivações tivessem de ser atestadas por outra voz que compunha o sistema de controle, fiscalização e administração escolar como responsável por fazer cumprir as atribuições que a legislação prescrevia ao cargo de diretor: o inspetor de ensino: representante direto do governo que acompanhava a escolarização nos distritos e municípios segundo os interesses oficiais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conceber o inspetor e o diretor como “almas” da escola permite vê-los como “almas gêmeas” quanto a agir nos grupos escolares de Minas, sobretudo do ponto de vista da fiscalização (do cumprimento da lei). Na ação fiscalizadora, a hierarquia reservava uma posição centralizadora para o diretor — porque atuava direta e cotidianamente com o ensino — e intermediária para o inspetor — porque mediava a relação entre governo e diretor: a ele cabia não o controle constante dos grupos escolares, mas a orientação direta pela burocracia documental. Nesse sentido, alinhavam-se mais ao governo, 63 INSPETOR DE ENSINO E DIRETOR ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL DE MINAS GERAIS (1906–24) Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 39-66, nov. 2015/ fev. 2016 e menos à escola; por isso podem ser vistos como figuras centrais na consolidação da educação proposta pela reforma João Pinheiro, que centralizava a educação. Um e outro traduziram uma nova estrutura burocrático-administrativa da escola que racionalizava o ensino e o submetia à presença diária de um representante do governo: fiscal do ensino primário: do trabalho docente e de sua efetivação no ambiente escolar, da disciplina, da conduta. Agir como inspetor de ensino e diretor de grupo escolar supunha ir além dos muros da escola: esperava-se que tivessem conhecimentos que não só os pedagógicos, didáticos e administrativos, pois tinham de estimular e articular a educação sob o brasão da escola republicana para desenvolver a sociedade que circundava o grupo escolar. Assim, agiam em prol da consolidação e manutenção não só de um modelo escolar, mas também de uma sociedade (a modelar). Para isso, esperava-se que tivessem conhecimentos que não só os pedagógicos, didáticos e administrativos para agir de modo a contribuir para desenvolver a sociedade que circundava o modelo do grupo escolar. FONTES LEGAIS MINAS GERAIS. 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Entre os conhecimentos gerados, houve a preocupação de destacar os componentes de formação continuada da equipe de docentes envolvidas. O processo registrado pelas supervisoras / pesquisadoras, decorrente das observações e discussões, e os relatórios de estágio dos alunos formaram o conjunto de informações tratado na pesquisa, de cunho exploratório-descritivo. Como resultado, as lições extraídas confirmam a viabilidade de desenvolvimento do processo de ensino com pesquisa em cursos de graduação, a importância do papel da supervisão permanente, intencional e sistematizada no estágio e a possibilidade de desenvolvimento de trabalhos com a Metodologia da Problematização como alternativa efetiva para os objetivos de estágio, para o propósito de formar o professor-pesquisador e para a formação continuada do docente do ensino superior. 1 Cláudia Chueire de Oliveira – Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: cchueire@uel.br 2 Maura Maria Morita Vasconcellos – Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mauramorita@uel.br 3 Neusi Aparecida Navas Berbel – Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: berbel@uel.br 68 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 Palavras-chave: Formação de professores; Ensino superior; Prática pedagógica. Abstract This study is one of the results obtained from the research entitled “Theory and Practice of the Problematization Methodology with Maguerez’s Arch: a process under construction”. The objective was to withdraw lessons from the theoretical-practical knowledge construction within this methodology’s experience during a Pedagogy course’s curricular internship. Amongst the generated knowledge, there was a concern to emphasize the involved team of professors’ continuous education components. The progress recorded by the supervisors/researchers deriving from the observations and discussions, in addition to the students’ internship reports, composed the set of information which was worked on in this research, of an exploratory-descriptive nature. As a result, the lessons extracted have confirmed the viability of the teaching process development allied with research in undergraduate courses, as well as the important role of permanent, intentional and systematized supervision during internship. And it also reveals the possibility of developing studies with the Problematization Methodology as an effective alternative for meeting internship objectives, with the aim of preparing the teacher-researcher and with the intention of promoting the higher education teacher’s continuous pedagogical improvement. Keywords: Teachers’ education; Higher education; Pedagogical practice. Resumen Este texto es uno de los resultados de la investigación “La teoría y la práctica de la Metodología de la Problematización con el Arco de Maguerez: un proceso en construcción”. El objetivo fue extraer lecciones de la experiencia de construir conocimientos teórico-prácticos de la vivencia de esa metodología en la práctica curricular del curso de Pedagogía. Entre los conocimientos generados, hubo la preocupación de destacar los componentes de formación continuada 69 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 del equipo de docentes envueltos. El proceso registrado por las supervisoras/ investigadoras decurrentes de las observaciones y discusiones y los informes de práctica de los alumnos formaron el conjunto de informaciones tratado en la investigación, de cuño exploratorio descriptivo. Como resultado, las lecciones extraídas confirman la viabilidad del desarrollo del proceso de enseñanza con pesquisa en cursos de graduación, la importancia del papel de la supervisión permanente, intencional y sistematizada en la práctica y la posibilidad de desarrollo de trabajos con la Metodología de la Problematización como alternativa efectiva para los objetivos de la práctica, para el propósito de formar al profesor investigador y para la formación continuada del docente de la enseñanza superior. Palabras clave: Formación de profesores;Enseñanza superior; Práctica pedagógica. 71 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR UNIVERSITÁRIO: ORIENTAÇÃO DE ESTÁGIO COM PESQUISA O presente texto aborda uma instância da educação brasileira merecedora de atenção especial, em razão de que as pesquisas relativas ao tema ainda se caracterizam por estudos que estão em constituição rumo à sólida produção científica. Trata-se do docente da educação superior e dos processos de sua formação pedagógica. “Estas linhas ousam pensar a educação e o educador a partir do que o educador faz. Um caminho tão óbvio quanto raro”. Com estas palavras, Codo e Vasques-Menezes (1999, p. 17) nos convidam à reflexão sobre a prática social – educação, como objeto de estudo completo e complexo. Isto porque é impossível pensar educação sem considerar filosofia ou política educacional, ou ainda, teoria pedagógica. Da mesma forma, segundo os mesmos autores, “[...] também é inócuo pensar a educação na ausência do que faz o educador” (p. 17). Como pedagogas, docentes e pesquisadoras da área da Didática, renovamos, constantemente, o propósito de pesquisa sobre a educação superior e os aspectos pedagógicos que se voltam para a formação do professor neste e para este nível. Consideramos que a prática da construção de conhecimento nas salas de aula das universidades é favorecedora dos processos de formação docente. Nesse campo amplo e fértil de construção, verificamos que uma das possibilidades de investigação, surgida da necessidade de entender parte da nossa prática profissional docente, estava relacionada aos estágios supervisionados na graduação. O estágio no Curso de Pedagogia, na nossa instituição de ensino, é considerado: 72 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 [...] conjunto de atividades elaboradas com o objetivo de promover oportunidades de aprendizagem profissional, social e cultural, através da participação em situações reais de trabalho, envolvendo supervisores, estudantes e campos de estágio. A especificidade do Curso de Pedagogia é lidar com o espaço educacional, sendo seu objeto de trabalho as situações de ensino e aprendizagem em suas múltiplas manifestações (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA, 2005, p. 59) Por outro lado, enquanto desenvolvemos e orientamos trabalhos com a Metodologia da Problematização por meio do Arco de Maguerez, temos tido a oportunidade de refletir com nossos alunos e outros interessados, além de ouvir muitas observações e manifestações de interesse em conhecer sobre as implicações de seu uso. Desse modo, em consonância com os aspectos acima descritos, a disciplina de estágio foi tomada como oportunidade de pesquisa e considerou-se a Metodologia da Problematização como uma alternativa que poderia contribuir para o processo de formação do professor, incluindo a investigação e a ação transformadora. Consideramos ainda que a proposta permitiria a superação da: [...] formação estritamente técnica, uma vez que o profissional da educação é, por dever de oficio, uma pessoa. A complexidade do ato educativo, que envolve seres humanos em interação, exige a participação total de todos os seus protagonistas, especialmente daqueles que são profissionalmente responsáveis por essa ação. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA, 2005, p. 5) Com inspiração em trabalhos com a Metodologia da Problematização através do Arco de Maguerez – M. P. (BERBEL; OLIVEIRA; VASCONCELLOS; GOMES; SOUZA, 2001 e OLIVEIRA; BERBEL; VASCONCELLOS, 2006), elegemos 73 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 como problema de estudo a questão: “Quais as possibilidades de utilização da Metodologia da Problematização – M. P. em estágios acadêmicos junto à realidade escolar?”. Para responder ao problema formulado, priorizamos o objetivo de ampliar a construção do conhecimento teórico-prático sobre a Metodologia da Problematização com o Arco de Maguerez em situação de ensino com pesquisa no âmbito da formação de professores no ensino superior. Focalizamos a pesquisa nos estágios curriculares no Curso de Pedagogia de nossa instituição, registrando o processo vivenciado e contando com a análise de 24 relatórios de estágio, elaborados pelas alunas. Tal proposta orientou-se pelo desafio de estabelecer um processo efetivo de relação entre a teoria e a prática, de modo que as ações de cada etapa da M. P. fizessem sentido e contribuíssem para a formação profissional não só das alunas, como nossa. Consideramos que “o exercício da docência nunca é estático e permanente, é sempre processo [...] e a relação da teoria com a prática é sempre mediada pela cultura, e essa condição precisa ser percebida pelo professor” (CUNHA, 2007, p. 16). Os cursos de formação de professores preocupam- se cada vez mais em estabelecer como meta a formação de profissionais que reflitam sobre o seu fazer, sejam capazes de analisá-lo criticamente e de confrontá-lo com os saberes teóricos construídos na academia e possam produzir, a partir desse confronto crítico, novos conhecimentos. Assim, ao mesmo tempo que as estagiárias passariam pelas atividades relativas a cada etapa prática do estágio com a Metodologia da Problematização, incluindo a fundamentação teórica e o registro de todo o percurso, o planejamento, o acompanhamento e a avaliação da execução aconteceriam por parte das professoras supervisoras (pesquisadoras), por intermédio de reuniões constantes da equipe e do registro descritivo e analítico do processo. Nossa pretensão foi também construir sínteses reveladoras de lições extraídas da prática com a M. P., no trabalho de reflexão teórico-prática em equipe, como condição 74 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 de formação continuada na área da Didática da universidade a que pertencemos. Isaia (2000, p. 21) expressa que a trajetória profissional: “[...] envolve uma multiplicidade de gerações que não só se sucedem, mas se entrelaçam na permanente tarefa de produzir o mundo. Assim cada uma, em um mesmo percurso histórico, possui papel diferenciado nessa tessitura” Nosso percurso metodológico de pesquisa qualitativa, descritiva e analítica, teve apoio em Lüdke e André (1986) e Richardson (1999), entre outros. A existência de uma “[...] relação dinâmica entre o sujeito e o objeto em vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito”, destacada por Chizzotti (1991, p. 79), justificou nossa opção metodológica, visto que ele alerta que: [...] o conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa; o sujeito-observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro; está possuído de significados e relações que os sujeitos concretos criam em suas ações (p. 79). Orientadas por tais pressupostos, pensamos que a explicitação dos aspectos e condições do uso da Metodologia da Problematização nas diferentes situações poderia vir a servir de referência para outros usos, sempre com a necessária consideração do contexto e das particularidades de cada caso. Além disso, a variedade de situações descritas e analisadas, pelas lições delas extraídas, poderia constituir uma forma de enriquecer essas referências para outros momentos,outros sujeitos e outros contextos, entendendo, como Bogdan e Biklen (1994), que a utilidade de determinado estudo é a capacidade que tem de gerar teoria, descrição e compreensão. Para estes autores: “os investigadores qualitativos acreditam que as situações são complexas e, deste modo, tentam descrever muitas dimensões e não restringir o campo de observação” (p. 68). 75 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 Complementando a ideia acima descrita, Bogdan e Biklen (1994, p. 67) afirmam que “os objetivos dos investigadores qualitativos é o de melhor compreender o comportamento e experiência humanos. Tentam compreender o processo mediante o qual as pessoas constroem significados e descrever em que consistem esses significados”. Trazendo estas ideias para nosso campo de atuação, deduzimos que não basta ao professor, enquanto profissional, e ao profissional que ele prepara, o conhecimento teórico já acumulado da área científica com a qual eles lidam. É preciso inserir o conhecimento teórico sobre a sua prática social como profissional e como homem que participa da construção da história de seu tempo. Entre os aspectos que merecem ser esclarecidos pelo homem, está a sua própria prática social. Para que ele possa cumprir plenamente sua dimensão mais propriamente humana, é preciso ascender ao plano da criação, ao plano da instauração de uma nova realidade que não existe por si só, mas somente pela sua própria atividade transformadora. Com base neste princípio, orientamos nossas alunas de Pedagogia a vivenciarem as cinco etapas da Metodologia da Problematização, para construírem seu processo de problematizar a realidade escolar, estudar e se preparar até o ponto de poderem intervir sobre esta parcela da realidade com algum grau de contribuição/transformação, atribuindo sentido científico, pedagógico e político a essa atividade curricular de seu processo formativo. Vale destacar que o processo de orientação das alunas foi para nós um exercício de problematizar nossa realidade, estudar e intervir sobre a parcela da realidade com a qual estávamos envolvidas, mas, sobretudo, atribuímos maior sentido científico, pedagógico e político às nossas atividades acadêmicas em nosso processo formativo docente. Consideramos ainda que, em cada ação docente, há o coletivo dos participantes nela envolvidos, seja no ensino ou na pesquisa, como fontes de conhecimentos ou 76 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 de ressignificação dos mesmos. Leite (2000) é quem oferece suporte para esta reflexão: O que parece qualificar essa ação é o próprio processo que a sustenta, o processo de dar voz a conhecimentos antes ausentes, oprimidos ou subjugados. Na busca e no processo, experimentam-se rupturas. No horizonte, está presente a idéia de uma sociedade mais justa e igualitária, está a questão da sobrevivência, da satisfação das necessidades humanas, das mais básicas às mais complexas. O conhecimento construído responde a essas necessidades, que têm contornos diversos, que são trazidas da prática concreta para a discussão e o aprofundamento na universidade. Esse conhecimento se gera e se nutre a partir do coletivo, formado, muitas vezes, por categorias subalternas da sociedade (longe da sala de aula), pela categoria dos trans-indivíduos – estudantes, junto com a categoria dos professores. Os docentes passam a ser, nessa relação, os mediadores de um conhecimento que, enquanto se constrói no coletivo, contribui para sua autoformação. Sobre essa base, a das necessidades humanas refletidas no coletivo, assenta-se a valorização das coisas através do trabalho – físico, manual, intelectual –, mas tendo sempre presente seu caráter de transformação (p. 57). Esforçamo-nos ainda para garantir, de acordo com Severino (2000), o desenvolvimento de um trabalho de pesquisa e de reflexão que fosse “pessoal, autônomo, criativo e rigoroso”. “Pessoal”, no sentido de que o nosso envolvimento com os objetivos da investigação fizesse parte de nossa vida profissional, tal como afirma o mesmo autor: A temática deve ser realmente uma problemática vivenciada pelo pesquisador, ela deve lhe dizer respeito. Não obviamente num nível puramente sentimental, mas 77 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 no nível da avaliação da relevância e da significação dos problemas abordados para o próprio pesquisador, em vista de sua relação com o universo que o envolve. (SEVERINO, 2000, p. 145) O caráter “pessoal” do trabalho de pesquisa, segundo este autor, tem uma dimensão social que lhe confere um sentido político, sua contribuição para o mundo dos homens. Neste caso, o olhar das estagiárias trouxe considerações relacionadas à nossa atuação como supervisoras, demonstrando nossa parcela de contribuição. Trazemos, aqui, alguns dos exemplos relatados e registrados pelas alunas em seus relatórios de estágio: Vale destacar que a professora [...] com seu jeito [...] de orientar, provou que o professor realmente influencia na formação do aluno, passando segurança, gosto pela investigação, disciplina e ordenamento lógico da reflexão. (Relatório 15). A concretização do trabalho não seria possível sem o acompanhamento das professoras envolvidas, que sempre estavam atentas ao ato de orientar e educar todas as alunas [...]. (Relatório 20). As manifestações das alunas nos levaram a confirmar que é necessário estabelecer uma relação pessoal e social inerente à formação de professores, visto que o olhar e o agir “atentos” na supervisão das atividades foram marcados também pela certeza da natureza investigativa da docência. Portanto, o caráter pessoal ampliou-se para o social e político do processo de docência no qual estamos envolvidas cotidianamente. Em outras palavras, vivenciamos docência tomando por base a investigação sobre uma maneira de exercê-la, supervisionando estágios em curso de formação de docentes, e atribuímo-nos a possibilidade de intervir no mundo dos homens por meio de nós mesmas e de nossas alunas, procurando atingir o objetivo de expandir a construção do conhecimento teórico- 78 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 prático de uma situação de ensino com pesquisa. Como resultado deste processo, o desenvolvimento pessoal foi visto no trajeto do grupo, já que cada sujeito interagiu com outros que possibilitaram a pavimentação de um conhecer mais coletivo, construído na relação educativa que estabelecemos, na mediação ensino com pesquisa que proporcionamos, tendo como protagonistas docentes e alunas. Cunha (2000) ajuda nesta discussão quando expressa a importância do componente pessoal: [...] pois só a sensibilidade humana pode intervir interpretativa e interativamente no conhecimento. Essa função é ser ponte entre o conhecimento disponível de todas as maneiras e as estruturas cognitivas, culturais e afetivas dos educandos. Venho defendendo que é nessa direção que precisamos reconstruir a função docente, aceitando o desafio de uma nova perspectiva para a profissionalização (p. 48). Outro ponto enfatizado por Severino (2000) é o trabalho “autônomo”, entendido como fruto de um esforço próprio dos pesquisadores, num trabalho que, ao mesmo tempo em que incorpora a contribuição de outros, busca superá- lo pelo pensamento autônomo. Isto significa afirmarque o sentido de nossa formação nos levou a um aprofundamento científico-profissional e didático-pedagógico para conduzir e tratar, teoricamente, a nossa própria prática, superando-a pela relação estabelecida entre ensino e pesquisa. Como anuncia um relatório de estágio: Esta metodologia [...] é diferente do que estou acostumada. Em todos os trabalhos que realizei, pude verificar e comprovar em livros, nas opiniões dos autores para escrever sobre o assunto. Agora vou poder escrever, além da opinião dos autores, a minha própria opinião, através do que pude verificar da realidade [...] (R22). 79 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 A manifestação das alunas no Relatório 22 permitiu que verificássemos que a situação da pesquisa no ensino favorece a apreciação de um dado objeto de estudo por três diferentes caminhos: na tomada de posse da literatura pedagógica ou na percepção dos cientistas da área sobre o assunto, no saudável confronto com a realidade em questão, e na expressão de outro olhar, próprio de quem vê, em relação aos dois primeiros. Sob a perspectiva acima descrita e com base em Bogdan e Biklen (1994) e Lüdke e André (1986), colocamos em prática algumas das características da pesquisa qualitativa. Procuramos descrever as informações colhidas em diferentes momentos e analisá-las, considerando o processo de desenvolvimento dos estágios, na forma de construção de abstrações sobre a realidade em busca de significados, componente de vital importância na pesquisa. Da ação contida na realidade e da compreensão inicial sobre ela, extrai-se um tipo de saber, um tipo de pensar e agir sobre o meio. Pela ação de investigação e reflexão durante o processo, chega-se a outro nível de compreensão, mais organizado, mais justificado teoricamente e mais consciente política e socialmente. Tais movimentos permitiram a nós, alunas e docentes, a conquista de graus diferenciados de autonomia e liberdade pelo conhecimento, pelas habilidades intelectuais desenvolvidas e graus diferenciados de consciência política, pela percepção do nosso papel social dentro de um contexto multideterminado. Leite (2000) é quem auxilia na percepção do processo vivido ao explicitar as categorias de autoria, protagonismo e complementaridade na construção do conhecimento. Autoria e protagonismo: Todos produzem conhecimento e, por isso, são autores, qualquer que seja a condição da sua possibilidade de abstração; os sujeitos são protagonistas da ação de produzir; os conhecimentos estão em circulação e, a cada nova necessidade, problema, interesse, precisam ser puxados da gaveta do cotidiano, 80 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 da gaveta teórica, da gaveta do laboratório, da gaveta da tecnologia, de uma, de muitas ou de todas as gavetas ao mesmo tempo. O grupo, tanto quanto cada sujeito, é presença nucleada, central, protagonista da construção coletiva. [...] Complementaridade: Os conhecimentos e saberes estão em ebulição permanente; os fragmentos são instâncias de um todo que se refaz em um processo vital (com vida porque atende a necessidades); a complementaridade pode ser trans e interdisciplinar; pode ser inter e/ ou correlacional; pode se dar entre a prática concreta relatada e a teoria repensada e revisitada com diferentes olhares (LEITE, 2000, p. 57, grifos da autora). Neste caso, a multideterminação da autoria, do protagonismo e da complementaridade na formação de professores ocorreu em três dimensões: das alunas de Pedagogia em relação aos cursos de formação de docentes em nível médio; da nossa, enquanto formadoras de formadores de professores; e como pesquisadoras da educação que ocorre nos processos gerais de formação de professores. Ainda de acordo com Severino (2000), o desenvolvimento do trabalho de pesquisa deve ser criativo. Ser “criativo” consiste em não só aprender e apropriar-se de conhecimentos acumulados, mas, em avançar nesse conhecimento, almejando o seu desvendamento e sua explicação, numa busca de esclarecimentos originais para o assunto, até então não percebidos. Esta é uma perspectiva distinta da apropriação do conhecimento, porque é decorrente de uma ação didática, no nosso caso, a de possibilitar a um grupo de alunas a produção de conhecimento e, simultaneamente, produzir conhecimento a partir daquela produção e de forma intencional. O depoimento escrito em um relatório explicita: [...] trabalharmos com a realidade, isto é, com o concreto, foi de grande valia. Agora entendemos o que é uma pesquisa, uma 81 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 investigação, acreditando que esta não deva ficar só no papel, mas que, ao levantarmos os problemas, temos clareza que devemos retornar à realidade a fim de contribuir para a solução do problema (R15). Autores, como Pimenta (1995), Piconez (2001), Moraes (1982), entre outros, têm chamado a atenção para situações precárias de estágios, mesmo dentro de um currículo em que se estabelece a docência como base da formação do Pedagogo. Concordamos com Alves e Garcia (1993) quando afirmam: [...] a teoria precisa ser permanentemente confrontada com o concreto social/escolar, e este ser olhado a partir da teoria, recuperando- se a unidade dialética teoria-prática. Mas apreender o real exige mais do que o olhar da Filosofia, Sociologia, Psicologia ou Antropologia. Exige a articulação das diferentes áreas do conhecimento na interdisciplinaridade, redefinindo métodos e categorias (p. 77). De modo especial, a nosso ver, o papel do supervisor de estágio contempla a função de mediador junto aos alunos no confronto teórico-metodológico das mais diversas situações, propiciando-lhes vivenciar formas inovadoras de interação com a realidade e entre os saberes. Tal aspecto permite que os espaços/tempos de estágios para supervisores e alunos sejam locus da produção de conhecimento (PICONEZ, 2001). Percebemos, durante o processo, que a adoção de uma postura crítica permitiu estabelecer relações dialógicas entre os saberes acadêmicos e os fazeres profissionais da nossa prática pedagógica, que não está circunscrita apenas à academia, mas ao sentido dela na formação de pessoas. Por último, preocupamo-nos em realizar um trabalho de pesquisa “rigoroso”, caracterizado pela logicidade, pela competência, pelo empenho e compromisso, sem os quais não há ciência e nem resultados válidos. Como pesquisadoras, descrevemos as informações colhidas em diferentes momentos 82 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 antes de analisá-las. Tivemos a preocupação com o processo de desenvolvimento dos estágios e, consequentemente, com a elaboração dos nossos registros escritos sobre o mesmo. Encontramos nos relatórios das alunas indicação do rigor científico, favorecedor da aprendizagem, tal como o exemplificamos: Realizar este trabalho utilizando a Metodologia da Problematização foi uma experiência gratificante, pois a forma como as etapas dessa metodologia é organizada permite visualizar passo a passo uma pesquisa científica em todo o seu rigor e sistematização (R 22). Tivemos o cuidado de nos manter centradas no eixo da investigação e na atuação comum na orientação e no acompanhamento das estagiárias (seja em duplas, como a maioria se organizou, seja individualmente ou em trios),porque sabíamos que convivíamos com uma variedade de manifestações, as quais pudemos confirmar pelos relatórios, em relação à construção de processos e resultados bastante variados. Este fato nos levou a algumas ponderações. Em primeiro lugar, o nosso reconhecimento das inúmeras especificidades relativas à nossa formação e experiência como supervisoras de estágio. As múltiplas expressões das estagiárias, em termos de conhecimentos e experiências prévias, de capacidade de elaboração pessoal dos objetivos de estudo e até mesmo de captação das orientações recebidas, foi outro ponto importante para ponderar. Para explicar os dois destaques relatados anteriormente, encontramos em Marques (1989) a afirmação de que, sendo parte do sistema escolar, a universidade atende à demanda da produção permanente do saber que implica a superação de um saber anterior e até mesmo a negação de um saber já estabelecido. É nesse momento que a universidade produz conhecimento, exercendo a crítica do saber. Portanto, a função do docente-pesquisador não pode ser exercida abstratamente, 83 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 ela se constrói e, ao mesmo tempo, é construída, recriada e atualizada por meio das ações e práticas de indivíduos e grupos que atuam numa determinada organização social, administrativa e pedagógica. Entre outras atividades, o ensino pode contribuir para a criação de um clima de efervescência intelectual que desemboca num determinado problema de pesquisa, e a pesquisa pode trazer algo novo que se expõe a uma avaliação determinativa de limites e possibilidades que o conhecimento produzido traz para a transformação da prática social. (MARQUES, 1989). Entendemos que tal diversidade se constituiu em fator de enriquecimento quando colocada à disposição do outro, em situação de estudo/investigação. Não tivemos por objetivo controlar tais variáveis presentes no grupo e sim verificar a viabilidade e validade da utilização da M. P. num estágio curricular do Curso de Pedagogia. Importava-nos muito mais a provocação para o desenvolvimento de habilidades de pensamento de nossas alunas para construir uma postura mais científica diante das questões da educação do que o próprio tema, já que este último poderia ser um entre muitos associados ao problema eleito e aos objetivos do estágio. Desta forma, a construção do processo de pesquisa das alunas foi um grande aprendizado para nós, considerando-se que, além dos rituais de desenvolvimento de uma pesquisa, havia a preocupação com a elaboração de um processo de ensino parceiro na construção de conhecimentos pedagógicos. Esta parceria é, primeiro, conceitual, visto que: [...] educação e formação são fenômenos políticos e sociais e têm interesse público, [portanto] as funções da instituição educativa têm seu foco central na formação, entendida aqui em seus sentidos plenos de emancipação pessoal e participação ativa na construção da sociedade democrática, conjuntamente com o desenvolvimento da ciência, o enfrentamento crítico [...]. (DIAS SOBRINHO, 2003, p. 8-9) 84 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 Sob esta perspectiva, podemos asseverar que nossa formação baseada no conhecimento didático-pedagógico foi sendo incorporada por ações sistemáticas que foram experienciadas em uma proposta dupla de docência e pesquisa em seus sentidos plenos. As reflexões geradas pelas práticas significaram mais uma fonte de transformação do agir cotidiano, conjuntamente com o desenvolvimento da ciência. Em outros momentos, anunciamos que o peso de analisar o ensinar e o aprender em um dado contexto cultural não é restrito ao que se passa no ambiente de formação, mas está no relacionamento e no movimento do significado social do que é vivido dentro e fora desse espaço. Frigotto (1995, p. 32) é quem nos ajuda a esclarecer este processo: Os desafios no plano da realidade que se quer conhecer não são menores sobretudo quando o objeto do conhecimento é a própria práxis humana. Quando nos esforçamos para conhecer determinado aspecto ou fato das múltiplas práticas e relações sociais que os homens estabelecem num determinado tempo, numa determinada cultura, percebemos que mediata ou imediatamente o sujeito que busca conhecer este aspecto da realidade está nela implicado. Ampliando um pouco mais a ideia de construção do conhecimento mediante a articulação de método e teoria em um conjunto de “conexões estruturais”, Noronha (2002) faz considerações sobre a pesquisa educacional, lembrando que “os dados não surgem nem falam por si mesmos. Eles são sempre respostas a indagações teoricamente claras que o pesquisador deve fazer do real [...] sempre articulados a uma problemática determinada historicamente” (p. 14-17). Na continuidade dessa ideia, está posto que não se trata de “[...] colecionar dados e ler documentos teorizando-os a partir de suas manifestações visíveis e aparentes”, que resultam na parcialidade de compreensão e inutilidade de abstração sobre a realidade. O rigor teórico-metodológico na leitura dos dados 85 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 deve constituir o “concreto pensado” (FREITAS, 1995). Para tanto, foi necessário que as manifestações da realidade investigada emergissem na ampliação da reflexão realizada a cada encontro com as alunas, através dos dados, elementos e conceitos trazidos por elas. Refletindo sobre os textos das alunas, seus relatórios e depoimentos, consideramos positivo o impacto causado em alunas do 4º ano de Pedagogia pelo contato com uma metodologia de investigação que não separa instâncias muitas vezes dicotomizadas em cursos de formação de professores: a teoria e a prática; o ideal e o real; a reflexão e a ação. Tais pares de conceitos são frequentemente utilizados nos nossos discursos educacionais, mas, efetivamente, os momentos que são concretamente vivenciados no interior dos cursos de formação não correspondem ao ideal proclamado. Nosso processo de formação continuada nos fez ver que as orientações são momentos muito ricos e construtivos do ponto de vista do desenvolvimento de um espírito científico, não só para nossas alunas da graduação, mas também para nós, que reconfiguramos nosso trabalho pedagógico docente, distanciando-o do ensino tradicional e transmissivo em direção ao desenvolvimento de uma autonomia intelectual. Acreditamos que, no processo de formação do professor, o caráter de apropriação da história vivida se transforma na relação entre os homens e a apropriação/transformação da realidade. Trata-se de participar de um processo histórico, coletivo, social de objetivação singular da produção da humanidade. Para tanto, todas as dimensões – cognitivas, científicas, culturais, políticas – devem ser consideradas no processo de formação (OLIVEIRA, 2005). Chauí (2003, p. 9) muito acrescenta à nossa reflexão ao expressar: O que significa formação? [...] Podemos dizer que há formação quando há obra de 86 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 pensamento4 e que há obra de pensamento quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como questão, pergunta, problema, dificuldade.Qualificar melhor o professor, com aprofundamento dos conhecimentos para maior domínio no exercício da função, decorre do fato de que a docência universitária tem sua natureza científica no ensino ligado à pesquisa e à socialização dos conhecimentos. No caso específico do Curso de Pedagogia, Bianchetti e Meksenas (2004, p. 72) fornecem respaldo para a ideia quando afirmam: O fazer pesquisa empírica em pedagogia apresenta-se como uma atividade reflexiva e intimamente relacionada com as interações sociais. Aqui não há espaço para pensarmos a dicotomia entre sujeito e objeto ou do sujeito-que-pesquisa com o sujeito- pesquisado. Quando pensamos no ‘objeto’ de uma pesquisa empírica em pedagogia, não há como escapar da idéia da qual esse ‘objeto’ corresponde a uma ou mais pessoas, inseridas em práticas sociais. Mesmo quando nos referimos a documentos, detrás deles encontramos práticas e interações sociais. Assim como nas ciências humanas o ‘objeto’ dos homens e mulheres são os próprios homens e mulheres, na pedagogia esse mesmo ‘objeto’ ainda converge para situações de educação: do “aprender-e-vir-a- ensinar”. 4 “A obra de pensamento só é fecunda quando diz o que sem ela não poderia ser pensado nem dito, e sobretudo quando, por seu próprio excesso, nos dá a pensar e a dizer, criando em seu próprio interior a posteridade que irá superá- la.” (CHAUÍ, 2003, p. 7). 87 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 Para os autores, o ‘objeto’ de uma pesquisa em Pedagogia converte-se no outro com quem o pesquisador interage e participa da vida, que conduz o compromisso do pesquisador em estar com os outros na história. Como supervisoras, percebemos que a forma como a investigação foi desenvolvida, combinando diversas fontes e campos de coleta de informações e dando oportunidade às alunas de desenvolverem habilidades de pesquisa por meio de uma experiência diferenciada de estágio, permitiu reconhecer que as dificuldades que normalmente ocorrem no percurso, tanto de uma investigação quanto da realização de estágios, podem revelar exatamente o caminho de superação. Bianchetti e Meksenas (2004, p. 74) mais uma vez nos oferecem pontos para reflexão: A que isso interessa à Pedagogia? [...] Romper dicotomias e assumir a contradição da práxis do fazer a pesquisa no ensino de Pedagogia significa, num primeiro e importante momento, pensar a relação sujeito e objeto como uma relação sujeito e sujeitos na construção do conhecimento, que permite rever o real. [...] Uma construção que não é apenas reflexiva, mas, sobretudo, de ação, intervenção e interação. A pesquisa educa porque a pesquisa é, antes de mais nada, uma qualidade das relações sociais. Pode-se afirmar que ocorreram aprendizados de diversas ordens, em graus variados, tanto em relação ao conteúdo quanto em relação à forma de abordá-lo. O segundo tipo de aprendizado foi considerado por nós como mais importante, porque, por meio dele, alcançou-se o primeiro, de modo mais efetivo e com significado para os envolvidos no desenvolvimento da consciência profissional. Desta forma, a metodologia de pesquisa por nós adotada trouxe-nos discussões a respeito das mediações entre os particulares e os gerais, manifestados na vida cotidiana do nosso exercício docente. Aprendemos que 88 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 há condições limitantes entre o plano idealizado e a ação propriamente dita. Com as palavras de Leitão (2004), temos outro ângulo para consideração da experiência pedagógica vivenciada: Os processos de formação estão relacionados ao que saber, por que saber e aos modos de saber na relação entre as pessoas [...] esse entendimento traz em seu interior incertezas, inseguranças e necessidades de mudanças, e com elas perdem-se algumas certezas, descobrem-se outras, sobre as quais não temos garantias (p. 280). O grande esforço empreendido, tanto da parte das supervisoras quanto da parte das estagiárias, nem sempre apresentou todos os resultados esperados. Se, pelo nosso olhar, há aspectos que deixaram a desejar para se poder considerar o trabalho das estagiárias como um trabalho nos moldes de uma iniciação científica, por outro lado, há que se considerar que as alunas foram bastante desafiadas, muitas vezes realizando esforços novos de busca e elaboração em relação a um tema de estudo, relacionando elementos teóricos e de campo. Acreditamos que nossa postura, no acompanhamento dos trabalhos, foi decisiva para que assim acontecesse, tal como exemplificado em um relatório: O que me levou a enxergar os problemas em tudo aquilo que havia observado foram as reuniões, principalmente aquelas feitas com a supervisora. As reuniões têm sido muito produtivas. (R20, grifo das alunas). Uma das questões centrais nesta discussão está na consideração do singular, que, cotidianamente, é produzido nas práticas educativas por aqueles que as fazem, professores/ supervisores/orientadores de estágio supervisionado e alunos de Pedagogia, em um movimento que envolve prática, teoria e prática. Nóvoa (1995, p. 33) afirma que é esta uma das grandes possibilidades que os professores têm de se apropriarem “[...] 89 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 dos saberes de que são portadores e os trabalhem do ponto de vista teórico e conceptual”. Significa dizer que a prática docente universitária é modificada com a produção teórico- metodológica que a produz, em constante movimento dialético. Oliveira (2001) ilustra o movimento da produção docente-acadêmica ao defender que é necessário: [...] pensar, por exemplo, a formação de professores a partir da idéia de tessitura do conhecimento [...] como um processo investigativo constante que se faz solidariamente com parceiros na própria caminhada. A troca de experiências e de saberes tece/destece/retece espaços/tempos da formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e de formando [...] Quando quem faz coletiviza esse fazer, por meio da linguagem do saber-fazer, ensina e aprende com seus pares (p. 71). Entre as lições extraídas do processo vivido, podemos destacar que ensinar valendo-se da pesquisa permitiu, a nós docentes, vivenciarmos uma diversidade de conhecimentos e práticas, reconhecermos algumas das muitas relações de poder que se estabelecem no interior das instituições de ensino e, assim, olharmos mais criticamente para a nossa realidade, locus do nosso exercício profissional. Carvalho (2005), em pesquisa sobre a formação e valorização do magistério, envolvendo vozes de profissionais da educação, traz uma ideia bastante pertinente a nós, a qual contribui para entendermos o que vivenciamos: Uma escola ou academia geométrica e arquitetonicamente definida é transformada em espaço pelos professores, alunos e outros agentes [...]. Os espaços exibem operações que permitem percursos, passagens, intercâmbios, trocas, compartilhamentos, e não apenas a determinação da ‘lei de um lugar próprio’, 90 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 de autoria marcada e/ou do individualismo brilhante de um educador solitário, que cerca o conhecimento, mesmo em grupo, e segue o modelo da ordem dos lugares, coerente com o discurso científico moderno. [...] Dessa forma, a formaçãocontinuada, visualizada a partir da constituição da escola como comunidade compartilhada, pressupõe duas condições: o poder argumentativo das pessoas e grupos; a pretensão de construir processos de formação continuada voltados para a “utópica” de constituição de um novo coletivo escolar (p. 107). Além disso, outra lição se deu na reconfiguração do nosso trabalho pedagógico: o desenvolvimento de uma autonomia intelectual das pedagogas em contínua formação. Há um depoimento, em um relatório de estágio, que ilustra a lição: Esta metodologia em questão supera a questão tão comum nos cursos de graduação de realizar apenas mais um trabalho, já que a participação das alunas é ativa em todas as etapas, o que proporciona uma aprendizagem mais significativa vinculada à realidade e comprometida com sua formação (Relatório 22). A possibilidade de ampliação das fronteiras do que somos e fazemos como docentes formadoras de outros professores se fez em intrincadas redes de relações que aconteceram nos múltiplos espaços/tempos complexos e desafiadores da prática pedagógica cotidiana, política e coletiva da academia. O esforço realizado na tentativa de superação das dificuldades e o estímulo ao desenvolvimento criativo de um trabalho de pesquisa, acompanhado por orientações e supervisões pertinentes em todas as etapas previstas do estágio com a M. P., constituíram-se, a nosso ver, numa experiência muito rica e construtiva do trabalho com a perspectiva de envolvimento do aluno no ensino com pesquisa. 91 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 O exercício cotidiano de supervisionar/orientar e produzir conhecimento em equipe demonstrou que é preciso investir na dimensão do trabalho coletivo, compreendendo que o aluno, futuro colega, é interlocutor legítimo na construção e socialização dos conhecimentos pedagógicos. Além disso, a tomada de consciência sobre o que realizamos durante o processo foi um elemento fundamental para o despertar do olhar crítico em relação às inovações pedagógicas que permitem processos de formação continuada no exercício profissional. Acreditamos que nosso propósito de ampliar a construção do conhecimento teórico-prático sobre a Metodologia da Problematização em situação de ensino com pesquisa no âmbito da formação de professores foi plenamente atingido, uma vez que a experiência que realizamos foi inédita e inovadora e proporcionou a produção de um conhecimento novo, evidenciando a amplitude do potencial de uso da M. P. na formação de professores. Consideramos ainda que, no exercício de supervisionar/ orientar alunas, conviver com elas e, especialmente, com as colegas professoras, a nossa prática docente universitária foi influenciada e provavelmente modificada pela diversidade e riqueza de conhecimentos e práticas encontradas, indo ao encontro de nossa intenção inicial de exercitar o trabalho de reflexão teórico-prático em equipe como condição de formação continuada na área da didática. Linhares (2000) nos auxilia a expressar a questão quando descreve uma situação pedagógica semelhante, que requer: [...] falar de questões que trazem importantes conseqüências para todos nós, como educadores e aprendizes, que integramos estas configurações sociais, onde nenhum de nós está dispensado de atuar, não podendo crer-se ou supostamente comportar-se como um elo mecânico numa engrenagem que correria independente de sua atuação [ou] como se o aprender fosse uma conseqüência da deliberação de fazê-lo, decorrência de um processo de conscientização dos benefícios escolares. (p. 47). 92 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. Vasconcellos Neusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 A relação entre estagiárias e supervisoras saiu do universo circunscrito do par original professor-aluno para um coletivo de professoras e alunas. No conjunto dessas ideias, apresentamos o reconhecimento do nosso processo de formação do professor junto às possibilidades e limitações concretas do exercício profissional, ou seja, as clássicas perguntas da didática, “o que ensinamos, como ensinamos, para quem ensinamos” alimentaram diretamente nosso fazer didático-pedagógico de pesquisadoras em educação, em uma síntese de reconfiguração, de dimensões, de instâncias, de lugares e movimentos... Temos a nítida consciência de que “talvez seja possível mudar além de nós mesmos, o que não é pouca coisa, os espaços nos quais atuamos [...] entre a ação, participação, reflexão [...], restaurando conexões entre os diferentes saberes práticos e teóricos, valores, desejos, crenças, atitudes etc.” (LEITÃO, 2004, p. 38). Gostaríamos, ainda, de lembrar Pistrak (2000), o qual considera que a caminhada da construção dos processos de formação docente requer a explicitação de que: [...] a educação do professor não é absolutamente fornecer-lhe um conjunto de indicações práticas, mas armá-lo de modo que ele próprio seja capaz de criar um bom método, baseando-se numa teoria sólida de pedagogia social; o objetivo é empurrá- lo no caminho desta criação [...]. É claro que um professor isolado, abandonado a si mesmo, não encontrará sempre a solução ao problema que enfrenta, mas se trata de um trabalho coletivo, da análise coletiva do trabalho de uma escola, o esforço não deixará de ser um trabalho criador (p. 25-26). Bianchetti e Meksenas (2004) nos permitem ampliar a concepção do “trabalho criador” para o campo do pedagógico, considerando que as percepções da “multiplicidade das ciências aparecem como resultado de contradições históricas” ou seja, o 93 Formação continuada do professor universitário: orientação de estágio com pesquisa Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 71-98, nov. 2015/ fev. 2016 debate acerca do “[...] resultado desse processo didático leva a posturas menos ingênuas frente ao que se costuma definir por ciência e por pesquisa empírica no campo da educação” (p. 80). Convém, ainda, trazer o registro de Leite (2000) ao tratar do conhecimento da academia, entendido como uma forma de conhecer e, portanto, exercer o caráter de contaminação. Contaminação: O movimento do conhecimento vivo, da prática, contamina; progride, avançando aos poucos, em doses homeopáticas, e pode interferir, desacomodar os saberes científicos, que podem até não ter respostas às situações criadas em sala de aula, dizem os alunos universitários. Envolve paciência histórica de repensar a própria prática; a repercussão é homeopática, diz o professor mediador. Interfere na comunidade, não só nos que estão trabalhando; ensina pais, filhos e vizinhos, dizem os papeleiros. Clareia as propostas, interfere na vida cotidiana, no todo da comunidade, na organização voltada para a pessoa humana, resgata a identidade das pessoas, joga para cima, dá força e elementos para lutar; é uma troca de experiências, dizem os educadores populares. A contaminação homeopática produz aprendizagem motivada por reflexão e sensibilização, ambas trazidas pelo trato com o conhecimento vivo, palpitante (LEITE, 2000, p. 58) Finalizando nosso relato, reafirmamos que a experiência com a M. P. no estágio supervisionado do Curso de Pedagogia é uma possibilidade de educação problematizadora, de superação da dicotomia teoria-prática, de evidência da relação de ensino/pesquisa e incentivadora da formação continuada de docentes universitários, considerando que, ao transformar um paradigma de ensino, de transmissão, para produção do conhecimento, transformamos, com melhor qualidade, os sujeitos do processo. 94 Cláudia Chueire de Oliveira Maura Maria M. VasconcellosNeusi Aparecida N. Berbel Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.67-98 , nov. 2015/ fev. 2016 REFERÊNCIAS ALVES, Nilda; GARCIA, Regina Leite. A construção do conhecimento e o currículo dos cursos de formação de professores na vivência de um processo. In: ALVES, Nilda (Org.). 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Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 PREENCHER POTÊNCIAS E INVENTAR EDUCAÇÕES POSSÍVEIS: PELA EXPERIMENTAÇÃO DE UMA FORMAÇÃO-SEM-ÓRGÃOS Cristian Poletti Mossi1 Marilda Oliveira de Oliveira2 Resumo O artigo busca, a partir da frente filosófica instaurada por Deleuze e Guattari na obra Mil Platôs (1995a, 1995b, 1996, 1997a, 1997b), pensar o campo educativo – o qual implica nas relações entre corpos, espaços, práticas, metodologias – como um fenômeno de estratificação de agenciamentos territoriais. Desse modo, a prática do Corpo-sem-Órgãos, enunciada por Artaud (Para acabar com o julgamento de Deus, 1947) e evidenciada também por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, pode se tornar cara no sentido de gerar alguns movimentos de desterritorialização/desestratificação dos agenciamentos territoriais estratificados que formam o campo educativo. Isso implica pensar em pequenas educações, enquanto práticas marginais, que se alojam em uma grande Educação, já deveras instituída e legitimada, possibilitando aos corpos envolvidos em tais processos o “preenchimento de uma potência” (DELEUZE, 1988/1989, s/p) que lhes confere alegria produtiva e inventiva. Por fim, o artigo problematiza uma educação/formação sem órgãos que desinstitui as relações entre aprendizes, docentes e espaços educativos de formação de uma relação hierárquica, intentando tramar desvios sinuosos dos caminhos 1 Cristian Poletti Mossi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: cristianmossi@gmail.com 2 Marilda Oliveira de Oliveira – Universidade Federal de Santa Maria/RS (UFSM). E-mail: marildaoliveira27@gmail.com 100 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 incessantemente pisados, invencionando outros percursos que se distanciam de receituáriose identidades fixas. Palavras-chave: Corpo sem Órgãos; Educação; Formação. Abstract This article aims, through the philosophical front established by Deleuze and Guattari in the work Mille Plateaux (1995a, 1995b, 1996, 1997a, 1997b), at thinking the education field – which implies relations between bodies, spaces, practices, methodologies – as a phenomenon of stratification of territorial agencies. Thus, the Body without Organs practice, enunciated by Artaud (Pour en finir avec le jugement de dieu, 1947) and evidenced by Deleuze and Guattari in Mille Plateaux as well, can become highly valued in the sense of generating some moves of deterritorialization/destratification of stratified territorial agencies which constitute the education field. This implies thinking of ‘small educations’ as marginal practices located within a larger Education, which is already instituted and legitimated, allowing the bodies involved in such practices the “fulfillment of a potency” (DELEUZE, 1988/1989, s/p) that gives them productive and inventive joy. Finally, the paper aims at problematizing a education/formation without organs which deinstitutes the relations among apprentices, teachers and educative spaces of formation of a hierarquical relation, trying to design sinuous deviations in the tirelessly steped pathways and creating new routes that are distanced from prescriptions and fixed identities. Keywords: Body without Organs; Education; Formation. 101 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 PREENCHER POTÊNCIAS E INVENTAR EDUCAÇÕES POSSÍVEIS: PELA EXPERIMENTAÇÃO DE UMA FORMAÇÃO-SEM-ÓRGÃOS MAQUINARIAS CURTO-CIRCUITADAS E UM CORPO-SEM- ÓRGÃOS PARA A EDUCAÇÃO O homem é enfermo porque é mal construído, Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo que o corrói mortalmente, deus e juntamente com deus os seus órgãos (...) não existe coisa mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade. (ARTAUD, in: WILLER, 1983, pp. 161-162) A terra, ainda desterritorializada, era um corpo-sem- órgãos. Mais ou menos com essas palavras Deleuze e Guattari (1995a) iniciam o Platô três, pertencente ao primeiro volume de sua obra Mil Platôs3, fazendo clara referência à prática enunciada por Artaud em sua conferência radiofônica Para acabar com o julgamento de deus (1947/1983). 3 Deleuze e Guattari (1995a, 1995b, 1996, 1997a, 1997b). 102 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 Esse corpo sem órgãos era atravessado por matérias instáveis não-formadas, fluxos em todos os sentidos, intensidades livres ou singularidades nômades, partículas loucas e transitórias (DELEUZE & GUATTARI, 1995a, p. 53). Ao mesmo tempo, ponderam os autores, outro fenômeno – o da estratificação – ocorria paralelamente, fixando singularidades e aprisionando intensidades. “Os estratos eram juízos de Deus” (DELEUZE & GUATTARI, 1995a, p. 54) que operavam por codificação e territorialização da terra. Distantes de um intuito meramente literário, os autores nos apresentam com isso possibilidades para pensar uma geologia da moral, como eles mesmos denominam, ou seja, nos convidam a movimentar o pensamento na perspectiva de compreender de que forma o que era somente um fora absoluto – a terra desestratificada e desterritorializada – foi ganhando pontos de coagulação, enrijecimento e organismos hierarquizados mediante agenciamentos territoriais estratificados: deus e seus órgãos, nos diria Artaud. Destarte, é de grande importância mencionar que tal ponto de vista tomado pelos autores não considera qualquer tipo de diferenciação entre formas naturais e formas culturais/ artificiais, tampouco há qualquer pretensão com vistas a competir frente a alguma disciplina de História Natural. O que nos parece mais viável é compreender esse viés filosófico como uma história (não legitimada, marginal, amplamente flexível) da própria História (já instaurada como verdade universal, absoluta, rígida, estável). Talvez, um modo contemporâneo de curvar o fluxo do pensamento no sentido que Aganbem (2009) propõe, ou seja, como uma relação singular com o tempo a qual, na mesma medida que a este adere, dele toma distâncias através de uma dissociação e de um anacronismo, sugerindo- se, nesse sentido, participar das dinâmicas para nelas provocar brechas, torções e problematizações. 103 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 Iniciando o terceiro volume dessa mesma coletânea de textos – Mil Platôs – o Platô seis (1996), logo em seu título, lança um questionamento no mínimo intrigante: como criar para si um corpo-sem-órgãos? Ou seja, como desterritorializar-se, desestratificar-se – visto que nós humanos e nossos corpos, nosso pensamento, até mesmo nossas ações, também participam desses fenômenos de territorialização/ estratificação anteriormente pontuados – sem que isso signifique necessariamente uma reversão, um retrocesso, uma busca por alguma essência perdida, mas uma abertura a outras intensidades no preâmbulo de uma produção inventiva de si mesmo? Neste artigo, procura-se trazer para a discussão o campo educacional e os corpos de toda ordem que dele participam e o colocam em funcionamento, como parte desses fenômenos de territorialização e estratificação mencionados por Deleuze e Guattari. Intenta-se, portanto, problematizar: de que forma fazer da prática de um corpo-sem-órgãos um mecanismo (maquínico, não mecânico), a fim de precipitar alguns pontos já estratificados no modo como nos individuamos, especialmente na esfera da formação e da relação entre aprendizes, docentes e ambientes educativos? Para tanto, na sequência, discute-se o que significaria inventar educações possíveis (como um devir minoritário) às margens de uma grande Educação já deveras estratificada, no sentido de trazer para os corpos que a habitam e a colocam em funcionamento (aprendizes, docentes, ambientes educativos, entre outros) a alegria e o impulso inventor enquanto preenchimento de potências (Deleuze, 1988/1989, s/p). Essas e outras questões fazem parte do que há algum espaço de tempo vem sendo problematizado na escrita da tese de doutoramento momentaneamente intitulada ‘um corpo-sem-órgãos para curto-circuitar maquinarias na educação’, produzida pelo autor desse artigo sob orientação de sua co- autora. Na pesquisa supracitada, o campo educacional, longe de se restringir somente à escola – ambiente educativo por 104 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 excelência e uma de suas instituições fundamentais – ou ainda ao ofício do professor frente a seus aprendizes – papéis estes que contribuem para sua legitimação em nossa cultura ocidental – é entendido enquanto conjunto de agenciamentos territoriais estratificados (onde participam corpos, lugares, saberes, metodologias, discursos, entre outros) que oferecem microespaços para que nele sejam provocados movimentos de desterritorialização/desestratificação, devir e fuga4 frente à prática do corpo-sem-órgãos. Tal prática, conjura possibilidades para pensar um corpo de intensidade zero, antes do organismo estratificado que, embora precise dele enquanto superfície por onde passam intensidades, não se confunde com o mesmo. Portanto, um corpo antes do corpo, não como essênciaou origem, mas como plano de imanência onde imantam-se possibilidades produtivas as quais procuram se distanciar do já instituído/ legitimado. No âmbito da formação de aprendizes/docentes e de sua relação em/com ambientes educacionais, como a escola e a universidade, por exemplo, isso implica pensar que certas normas, rotinas, métodos e metodologias, e até mesmo conformações de espaços, corpos, visualidades, entre outras práticas, podem ser repensadas e precipitadas no sentido de um fora onde o que há são somente potências com infinitas possibilidades de outras composições, readequações. Nesse sentido, antes de propor as curto-circuitagens que se fazem presentes tanto no título provisório da tese descrita, como no atual subtítulo deste artigo – enquanto falência ou defasagem de sistemas – propõe-se pensá-las enquanto desencadeamento, disparo ou funcionamento inesperado 4 Compreendendo devir não enquanto imitação ou fixidez de algum ser, mas enquanto vir a ser minoritário, individuação constante e fluente; Desterritorialização enquanto desestratificação de territórios aparentemente cristalizados (que sempre pressupõem, já em seguida, novas territorialidades, porém sem nunca retomar à territorialidade antiga) e linhas de fuga como criações, desvios, fendas e vazamentos dos estratos (DELEUZE & GUATTARI, 1995a; 1995b; 1996; 1997a; 1997b). 105 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 de maquinarias as quais, segundo Deleuze e Guattari (1997a), se definem por engendramentos que acoplam-se em agenciamentos territoriais estratificados, fazendo com que os mesmos fujam, escapem, delirem, traçando assim variações e infindáveis mutações. Considera-se importante mencionar que na perspectiva aqui buscada, ou seja, ponderando o que propõem Deleuze e Guattari, não se torna viável visualizar o papel do professor de forma separada do aprendiz, tampouco tais papéis sem conexão com os ambientes educativos que participam, como, por exemplo, a universidade e a escola. O que aqui está em jogo é mais a relação que se estabelece na ponte entre esses papéis e esses espaços. Busca-se assim propor uma formação não enquanto identificação com uma função a ser desempenhada (produção identitária do ser aprendiz/docente), mas enquanto busca por uma individuação pessoal e intransferível em conexão com o que cada corpo em sua produção subjetiva – inclusive do docente como aprendiz – pode explanar de forma deliberada e inventiva. Isso significa que todo e qualquer espaço, entre eles as instituições de formação, mas também a cidade, a casa, os ambientes virtuais, os meios midiáticos, entre muitos outros, também contribuem de modo a produzir quem estamos sendo. A partir do até então exposto, um dos questionamentos que podem surgir é: que possibilidades há mediante uma instância prática, visto que tais curto-circuitagens propostas são resultantes somente de injunções e articulações teóricas? Gallo (2010, p. 56), também amparado pelo pensamento deleuzeano, nos ajuda a elucidar tal demanda pontuando que (...) à teoria não compete explicar a prática ou mesmo possibilitá-la, assim como não compete à prática alimentar a teoria ou manifestá-la na luta social. É impossível dissociá-las, sobretudo porque, se saímos do âmbito da representação, as totalizações já não fazem mais sentido e deixam inclusive de ser possíveis. 106 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 Visto isso, ao invocar a prática do corpo-sem-órgãos no intuito de curto-circuitar maquinarias no campo educativo e de minimamente repensar algumas das relações que se estabelecem em seu âmbito mediante os corpos, papéis, práticas e ambientes que o fazem funcionar organicamente, também se está lançando possibilidades experimentativas no sentido prático, para além de mecanismos simplesmente teóricos. Ainda segundo Gallo (2010, p. 58), se a teoria é uma ferramenta, ela faz sentido enquanto é usada e gera circuitos imediatos com as várias práticas, que por sua vez operam alterações nas ferramentas ou mesmo implicam na construção de novas ferramentas teóricas. Exercitar o pensamento e, portanto, colocar as teorias em funcionamento, já se trata de uma ação prática que, em seu próprio ato, modifica o que está sendo teorizado, intervindo em outras possibilidades produtivas da própria ação. PARA A EDUCAÇÃO, EDUCAÇÕES POSSÍVEIS Deleuze e Guattari (1995b) propõem que todo o agenciamento territorial pertencente aos estratos, é constituído por uma dupla articulação que implica por um lado em formas de conteúdo – misturas de corpos5 – as quais estão sempre em pressuposição recíproca, por outro lado, a formas de expressão – enquanto mistura de expressos incorporais de toda a ordem, uma interferindo sobre a outra, porém jamais uma sendo confundida com a outra. Essa dupla articulação, estaria sempre voltada para um fora que não reconhece tal distinção e que incita os estratos a se desestratificarem/desterritorializarem, Há estratos por todos os lados, assim como há territórios. Não há como fugir completamente dos estratos e suas articulações, 5 Os autores dão, a partir de uma leitura bastante singular da filosofia estoica, a maior extensão para palavra corpo, entendendo-o como todo o conteúdo extenso, formado. Ou seja, não está ligada somente ao corpo humano, orgânico. 107 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 contudo, todo estrato (bem como todo o território) possui vetores de desestratificação, direcionados para um plano de consistência onde só há linhas de fuga, matérias não formadas e intensidades desestratificadas. Se nos reportarmos ao campo educativo e, mais especificamente, ao campo que agencia as relações formativas de indivíduos aprendizes/docentes em ambientes educacionais como parte desses agenciamentos territoriais estratificados, passaremos a pensá-los sempre constituídos por formas de conteúdo (agenciando corpos, pessoas, espaços, lugares, conjuntos arquitetônicos que produzem saberes e os colocam em prática) e por formas de expressão (teorias, conceitos e métodos os quais são cuidadosamente tecidos a fim de interferir diretamente sobre os corpos envolvidos em tais ações) as quais estão sempre prestes a se desestratificar. Portanto, partindo do que propõe Deleuze e Guattari, nenhuma dessas instâncias é completamente fixa, cristalizada, ou seja, elas se interpenetram e não podem ser completamente separadas. Quanto aos estratos que elas compõem, apresentam sempre a possibilidade de se desestratificar, de serem precipitados ou arrastados num movimento de dissolução, de se abrirem deixando que intensidades marginais os coloquem em outra direção de funcionamento, não para serem extintos, mas para se tornarem sempre outra coisa em um movimento de devir minoritário contínuo. Ainda nesta seara, partindo de que curto-circuitar maquinarias no campo educativo está distante de provocar defasagens ou falências no mesmo, mas sim, impulsionar starts inesperados que façam com que seus agenciamentos territoriais minimamente se desestratifiquem/desterritorializem ao perseguirem devires e linhas de fuga, tal ação não está pautada em sugerir uma nova Educação, tampouco sua completa inexistência. Se trata sim de pensar educações possíveis – com letra minúscula, visto seu descompromisso com verdades e universalismos absolutos, bem como suas possibilidades de abertura e transitoriedade – que possam habitar uma grande 108Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 Educação, esta sim, com letra maiúscula, já legitimada e marcada por diversos códigos, normativas e conceitos pré- existentes. Gallo (2010), a partir de Kafka: por uma literatura menor (DELEUZE, 1977) estabelece, frente às ferramentas teóricas que lhe são disponíveis nessa obra, o que seria uma educação maior e uma educação menor. Enquanto a educação maior é, para o autor, “do âmbito do instituído, dos protocolos que definem de antemão o que deve ser feito” (GALLO, 2010, p. 60), a educação menor (...) trata-se de uma produção que se coloca – ou é colocada – às margens dos cânones e das instituições e, por esta mesma razão, é uma produção mais livre, que frequentemente subverte estes cânones e cria possibilidades até então insuspeitas. Ou seja, distante de querer tornar o campo educacional melhor ou mais apurado em um sentido evolutivo, repensá-lo na crença de reformá-lo, destruí-lo para construí-lo novamente ou ainda transitar pelas suas bases com vistas a reafirmar certas práticas, busca-se criar no fora dessa Educação que já conhecemos, contudo, em conexão com ela e em direção a um plano de consistência que envolve seus estratos, educações possíveis que se fazem visíveis em pequenas práticas as quais se instauram a margem do que procede como rotina instituída. Nesse sentido, o menor não se opõe ao maior, tampouco é melhor ou pior que ele ou cria com o mesmo uma relação dialética (GALLO, 2010). Trata-se, sim, de um reconhecimento de dois âmbitos distintos de pensamento e de produção e atuação, um estriado, isto é, com protocolos muito definidos; e um outro liso, isto é, sem protocolos definidos, aberto ao sabor do acontecimento (GALLO, 2010, p. 60). Tal postura insurge no sentido de não reconhecer formas como sendo eternamente fixas e verdadeiras, mas 109 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 resultantes de complexas tramas. Veyne (2011), a partir de Foucault, pondera que aquilo que chamamos de conhecimento não é o espelho fiel da realidade, já que nem se quer existiria uma realidade em si. Tudo o que existe, existe enredado em uma rede discursiva a qual produz o que viemos então chamar de realidade. Esta é plural e multifacetada, não podendo ser suprimida de forma unidirecional e unidimensional. Desse modo, não há a educação ou a formação, mas uma educação ou uma possibilidade formativa, assim como não há o docente e o aprendiz, mas um docente e um aprendiz. Tais enlaces dependem de um espaço específico e de um acordo discursivo enquanto expressos incorporais que agem diretamente sobre os corpos envolvidos nesses fenômenos/campos de atuação, bem como nessas individualidades/singularidades. CORPO-ALEGRIA: FUGA E LIBERDADE Breve diálogo com uma criança: Eu: - Quando você entra em férias de inverno? A criança responde: - Hoje foi o último dia. As aulas voltam no final do mês. Eu sigo o papo: - Coisa boa! Vai ter um bom tempo para descansar, brincar, dormir até tarde... Ela retribui: - É... Hoje, quando saímos da escola gritamos: “LIBERDADE!” Eu, e todos os meus colegas...6 Deleuze e Guattari (1997a) afirmam que dois planos paralelos sustentariam, respectivamente, estratos e vetores de desestratificação. Um plano de organização ou desenvolvimento 6 Este excerto é parte dos registros de pesquisa do primeiro autor deste artigo. Trata-se de um diálogo via site de relacionamento com uma criança de apenas nove anos, sobre sua rotina escolar. 110 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 sustentaria órgãos, funções, sujeitos e relações entre estratos, já, um plano de consistência ou imanência, sustentaria somente movimentos e repousos entre partículas ainda não formadas, implicando em uma desestratificação de toda a Natureza7. Nesse sentido, o plano de consistência ou imanência seria, segundo os autores, o próprio corpo-sem-órgãos e não preexistiria aos movimentos de desterritorialização que o desenvolvem, às linhas de fuga que o traçam e o fazem subir à superfície, aos devires que o compõem. O plano de organização, por sua vez, não pararia de tentar barrar as linhas de fuga e interromper os devires e desterritorilizações do plano de consistência, assim como este último não pararia de levar partículas a fugirem e se desterritorializarem de seus estratos, traçando linhas de fuga e invencionando devires de toda a ordem (DELEUZE & GUATTARI, 1997a). Intentando tensionar ainda mais as relações entre aprendizes, docentes e ambientes educativos, como epígrafe deste subtítulo, apresento parte de minhas anotações de pesquisa por entender que, o desejo de liberdade da criança mencionada e de seus colegas ao saírem da escola e entrarem em férias, parece elucidar o trabalho de um plano de consistência (as desterritorializações, os devires e as linhas de fuga buscadas e percorridas nesse ato) sobre um plano de organização e desenvolvimento (a escola, seu prédio arquitetônico padronizado, seus rituais e rotinas, seus horários, sua rigidez, suas proibições). Ou seja, parece trazer à tona a busca por um corpo-sem-órgãos coletivo das crianças, agora distantes do organismo escolar. Não se trata aqui de denunciar um dos planos como se fosse algo benéfico e outro como algo macabro, não há juízos de valores em ambas as instâncias. Nenhum dos planos é fixo e pode ser tido como eterno, não há como construir morada em algum deles. Há somente a constatação de ambos os planos 7 A opção pela letra maiúscula na palavra Natureza é da própria tradução da obra Mil Platôs (1997a). 111 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 agindo paralelamente, um sobre o outro. Não se trata de uma briga entre o bem e o mal, mas do que escorre e é arrastado para fora desses e de qualquer valor absoluto, bem como dos devires e desterritorializações que tais crianças se submetem ao supostamente percorrerem uma possível linha de fuga, conquistando o que para elas significa alegria e liberdade. A quem damos ouvidos e sobre que discursos sobrecodificamos as teorias que interpenetram-se às nossas práticas no campo educativo? Que vozes são trazidas para a discussão e que tantas outras são suprimidas? Gallo (2010), embasado em um diálogo entre Foucault e Deleuze – onde este último afirma que se as crianças fossem capazes de fazer entender seus protestos no período escolar isso geraria profundas modificações no campo educacional – pondera que não permitimos que as mesmas sejam ouvidas em nossas produções as quais pretendem embasar práticas docentes no cotidiano da educação e que quando o fazemos, partimos sempre de pressupostos, de pré-concepções, ou seja, ouvimos o que queremos ouvir. As teorias educacionais são totalizações da teoria, imposições de poder. Por outro lado, mesmo as práticas educativas são totalizações e imposições de poder, na medida em que se fazem sempre pensando para crianças e não pensando com elas (GALLO, 2010, p. 60, grifo do autor). Nesse viés, mais uma vez menciono que, embora se esteja falando de aprendizes ao relatar um breve diálogo com uma criança, não se deixa necessariamente de falar de formação de docentes, tampouco de ambientes educacionais. Não há binômios possíveis em tais relações estabelecidas. Há talvez uma ponte, uma superfície que liga corpos, instituições e práticas, as quais se sustentam de formaestrática sobre um plano de organização que tenta burlar linhas de fuga, territorializar partículas desterritorializadas e sanar qualquer tipo de devir que traça um plano de consistência ou imanência 112 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 desestratificado. Há talvez a possibilidade de repensarmos, com e a partir das crianças, algo do qual elas também fazem parte. Há talvez uma busca por um corpo-sem-órgãos teórico, o qual não sustenta prerrogativas deveras instauradas: de que uma produção teórica necessita insurgir verticalmente, do intelectual (adulto, experiente, titulado) para os que se sujeitam e colocam suas prescrições em prática. Partindo, portanto, do que podem nos ajudar a pensar as crianças aqui mencionadas, a liberdade de que elas nos falam, está distante da concepção de liberdade ideológica proposta por qualquer tipo de corrente de pensamento ou paradigma filosófico. Não se trata de uma liberdade utópica que dependeria de complexas estratégias de conquista, mas de uma liberdade praticável enquanto efetuação e “preenchimento de uma potência”, como nos diz Deleuze pautado por Spinoza em seu Abecedário8. Nesse sentido, não há potências que sejam ruins, o que é ruim não é... O ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém efetue a sua potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes maus. (Deleuze, 1988/1989, s/p). Assim que uma potência é preenchida, a alegria e as potências de agir do corpo afloram e aumentam em vazão e intensidade, invencionando espaços, gestos, percursos, expressões e novas cartografias em composições com toda e qualquer imagem possível ao subverterem poderes e autoridades. Nesse sentido é que devir alguma coisa – devir- criança, por exemplo – nunca será imitar uma criança, mas compor com sua imagem (DELEUZE & GUATTARI, 1997a) um corpo até então não visto. Não se trata de representar a criança, mas de inventar uma criança que estreita suas relações 8 Série de entrevistas concedias à Claire Parnet, filmada nos anos 1988-1989. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. Tradução e Legendas: Raccord [com modificações]. 113 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 com o mundo ao se sentir ‘livre’ da escola pelo período de férias, mas o mantém em potência para as incertezas e as surpresas que virão. É claro que essa liberdade de que se fala nunca é absoluta, visto que as normativas e os poderes estão por todos os lugares em uma trama que cobre um plano de organização que se estende não só pelos ambientes escolares ou institucionais de qualquer tipo, mas pelas cidades, pelas famílias e até mesmo pelos espaços de entretenimento. Há nessa concepção de liberdade somente uma linha de fuga a ser percorrida enquanto vetor de desterritorialização, entendendo que, como afirma Deleuze (1988/1989), “não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”. Justamente por isso que, ao menos nessa escrita, ela não tem conexão com qualquer tipo de compromisso ideológico no sentido de um modelo a ser buscado e seguido. POR UMA EDUCAÇÃO/FORMAÇÃO-SEM-ÓRGÃOS Deleuze e Guattari (1996) buscam em Artaud possibilidades para pensar a experimentação, a fabricação de um corpo-sem-órgãos. Dessa forma, evidenciam que a mesma não se trata de um mero conceito, mas sim de uma prática a qual envolve não unicamente o corpo físico, biológico, cotidiano, mas especialmente um corpo que serviria de plano de imanência/consistência para o desejo9. Desse modo, o corpo-sem-órgãos não declara guerra aos órgãos, ao corpo em si – visto que precisa dele para abrir-se às intensidades a que se propõe – mas sim ao organismo hierarquizado. Não é o corpo físico nem se confunde com ele, porém dele precisa para que nele as intensidades transitem. 9 Na perspectiva esquizoanalítica de Deleuze e Guattari, o desejo não é a falta e nem depende de fatores unicamente externos tal como na perspectiva psicanalítica (falta de algo, de alguém, de alguma coisa), mas sim produção de intensidades (ideia de fábrica, usina), imanência. 114 Cristian Poletti Mossi Marilda Oliveira de Oliveira Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.99-116 , nov. 2015/ fev. 2016 Trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não haja mais nem eu nem o outro, isto não em nome de uma generalidade mais alta, de uma maior extensão, mas em virtude de singularidades que não podem mais ser consideradas pessoais, intensidades que não se pode mais chamar de extensivas. O campo de imanência não é interior ao eu, mas também não vem de um eu exterior ou de um não-eu. Ele é antes como o Fora absoluto que não conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundiram (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 18). Pensar a educação/formação, ou se preferirmos, o próprio exercício da aprendizagem da docência, bem como sua relação com os aprendizes e ambientes educativos envoltos por uma prática que interage com a experimentação de um corpo-sem-órgãos, implica entende-los, primeiramente, não enquanto um receituário, ou como um modelo a ser seguido, mas sim enquanto singularizações que se desenvolvem e que são construídas através de devires, individuações os quais buscam antes a multiplicidade, ou seja, a “inexistência (...) de unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito” (DELEUZE & GUATTARI, 1995a, p. 16). Não há, portanto, a universalização de qualquer procedimento ou método que seja, tampouco identidades, papéis e posturas fixas. Nesses devires, há também inúmeras invenções de caminhos possíveis, caminhos que se constituem como desvios se levarmos em conta o que já está deveras instituído e legitimado organicamente. Há sempre aquilo que escapa, que foge à usualidade da tentativa de totalidade e que pode passar a ser produtivo na improdutividade, se assim o fizermos. Blanchot (2010, p. 60) contribui com tal imagem ponderando que “a questão a mais profunda, é esta experiência do desvio no modo de um questionamento anterior ou estranho, ou posterior a toda a questão”. Um fora talvez? 115 Preencher potências e inventar educações possíveis: pela experimentação de uma formação-sem-órgãos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 99-116, nov. 2015/ fev. 2016 Nesse sentido, o que pode haver são encontros de corpos que afetam-se em seus percursos, aumentando e/ ou diminuindo suas potências de agir (SPINOZA, 2010). Retomando Deleuze em seu Abecedário (1988-1989), não há maus encontros, apenas encontros improdutivos, que não geram outros percursos e possibilidades. Nesses encontros de que falamos, não há eu e o outro, eu e o espaço educativo, o docente e o aprendiz, porque não há sujeitos e identidades, mas singularidades que ao se individuarem acessam a um fora absoluto enquanto espaço aberto e profícuo para experimentações múltiplas, onde as categorias binárias dentro/ fora, acima/abaixo por exemplo, não são mais suficientes, tampouco cabíveis. Há sempre a possibilidade de traçar uma cartografia sinuosa que atravessa subterraneamente os caminhos já incessantemente pisados. Falar de uma educação/formação que almeja tal iniciativa é falar, de certo modo, sobre subverter um campo que tradicionalmente se instaura sob a égide da disciplina, da organização, das normase das rotinas rígidas, do distanciamento entre docentes e aprendizes. Contudo, tal subversão procura aqui ser pensada dentro da mesma acepção que a liberdade enunciada pelas crianças anteriormente descritas: não se trata de uma subversão revolucionária, mas de uma subversão que se instala no que quer subverter, conhece de forma apurada seu funcionamento e resiste ao mesmo de modo produtivo, inventivo, muitas vezes fazendo uso de certas tradições para o que lhe convém. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios ? [tradução de Vinícius Nicastro Honesko]. Chapecó/SC: Argos, 2009. ARTAUD, A. Para acabar com o julgamento de Deus (1947). In: WILLER, C. [tradução, seleção e notas]. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita [tradução de João Moura Jr.]. São Paulo: Escuta, 2010. DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. No Brasil, foi divulgado pela TV Escola, Ministério da Educação. 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Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 CANSADAS DE ESPERAR GODOT QUEBRAMOS OS ESPELHOS Carmen Lúcia Vidal Pérez1 Luciana Pires Alves2 Resumo As práticas pedagógicas disseminadas no cotidiano escolar respondem/correspondem a uma concepção de cognição que expulsa dos bancos escolares a imaginação, o rememorar, a herança cultural e os modos de fazer de todos aqueles que não se limitam a quantificar e ou pensar de forma a classificar, segregar, separar e ordenar o conhecimento. O modelo cognitivo escolar deixa de fora possibilidades de conhecer de diferentes grupos sociais que beberam em outra tradição, desprezando suas formas de aprender, colocando a margem outros conhecimentos e outros processos cognitivos. A busca por práticas pedagógicas mais justas dá visibilidade à injustiça cognitiva, que se faz sentir na escola quando os sistemas de significação, os saberes e as práticas culturais são sufocados ou historicamente desvalorizados em nome do progresso ou de uma única forma de ser e estar no mundo. Questionar o modelo de conhecimento fundado na representação é questionar o fracasso da escola. Na pesquisa nos dobramos sobre as questões relativas à formulação de novas possibilidades para a ação educativa da escola a partir da revisão-ampliação do conceito de cognição, articulando-o a uma perspectiva político-epistemológica fundada na concepção de injustiças cognitiva. Palavras Chave: Representação; Cognição; Aprendizagens. 1 Carmen Lúcia Vidal Pérez – Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: clvperez@gmail.com 2 Luciana Pires Alves – Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias – RJ. E-mail: lualpires@gmail.com 118 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 Abstract The pedagogical practices disseminated daily in schools respond / correspond to a conception of cognition that expelled students banks imagination, remembering the cultural heritage and ways of doing all of those who are not limited to quantify and to think or rating , segregate, separate and organize knowledge. The cognitive model school leaves out opportunities to learn from different social groups who drank in another tradition, disregarding their ways of learning, putting the margin other knowledge and other cognitive processes. The search for pedagogical practices fairer gives visibility to cognitive injustice that is felt in school when systems of meaning, knowledge and cultural practices are historically undervalued or suffocated in the name of progress or a single way of being in world. Questioning the model of knowledge representation is founded on questioning the failure of the school. In the research we doubled on issues relating to the formulation of new possibilities for educational activities from reviewing school-extended concept of cognition, linking it to a political-epistemological perspective founded on the concept of cognitive injustices. Keywords: Representation; Cognition; Learning. 119 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 CANSADAS DE ESPERAR GODOT QUEBRAMOS OS ESPELHOS “Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender (...) Aprender é tão somente o intermediário entre não-saber e saber, a passagem viva de um a outro” (Gilles Deleuze). A pratica pedagógica escolar é fruto de uma tradição. Uma tradição, que nos ensinou a pensar e a agir a partir de um universo discursivo considerado único e verdadeiro. Na escola o conhecimento é transmitido, difundido e socializado a partir de uma ordenação lógica que tem como fundamento uma concepção de totalidade em que o todo tem primazia sobre cada uma das partes, que só existem em função do todo e, de uma temporalidade abstrata que sustenta a ordenação e a progressão do conhecimento [curricular] estruturado numa seqüência gradual do simples ao complexo, criando pré- requisitos para o ensino e para “aprendizagem”. O modelo escolar de conhecimento engendra [e é engendrado por] um processo cognitivo em que a atenção focal, a percepção [auditiva] e a memorização constituem a base da “aprendizagem”. Para aprender na escola a criança deve ser capaz de ouvir [atentamente uma explanação sobre determinado assunto], ler [reconhecer novos conhecimentos sobre o assunto no livro didático disponível] e escrever [reproduzir de modo preciso] o “aprendido”. Tal modelo toma a cognição em sua função intermediária: através dela o sujeito [cognoscente] entra em relação com o objeto [do conhecimento], o que resulta num conhecimento como representação do objeto. Na escola o conhecimento é concebido como aprendizagem de uma perícia: o conhecimento é tratado 120 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 como reconhecimento - conhecer é representar o conhecido. Na moderna sociedade contemporânea a escola cumpre a função de formar peritos. Fundada numa perspectiva políticoepistemológica que reduz a teoria do conhecimento a uma teoria do conhecido, a prática educativa escolar se estruturaa partir de uma ordenação lógica em que o conhecimento é tratado como representação do conhecido. Tal lógica sustenta as discussões sobre o currículo, a aprovação/reprovação e o destino acadêmico/profissional dos estudantes. Vivemos no cotidiano da escola o teatro da representação – no sentido que lhe atribui Deleuze (2003) – que se nutre e se realiza no fluxo significado-significante fabricando padrões de comportamento ao mesmo tempo em que engendra formas e modos de pensar e agir produzindo desejos e sentidos. Na escola [e na vida social] a representação opera na/para a reprodução do mesmo. - “Nada a fazer". Diz Gogo (Estragão) em baixo de uma árvore no meio de uma estrada, em lugar nenhum, em qualquer lugar. -“Não podemos fazer nada”. Dizem uma, duas, dez, cem professoras, diante dos impasses do cotidiano da sala de aula, uma sala de aula, duas salas de aulas, dez salas de aulas, cem salas de aulas, de uma escola, qualquer escola, todas as escolas... Como Estragão (Gogo) e Vladimir (Didi), personagens de Beckett, muitas professoras também esperam por Godot: um acontecimento ou pessoa que venha a modificar a vida cotidiana da sala de aula, ou, um método que lhes oriente como agir e um material didático que lhes ajude a ensinar.... As professoras esperam, mas Godot não vem e não virá. Godot já chegou, está presente no cotidiano da escola sob a forma do tem que ser assim! A lógica do tem que ser assim fundada na representação generaliza-se em hábito. Aí reside a força da representação - fazer do hábito uma segunda natureza – ou seja, a representação naturaliza as relações de poder [e as normas e 121 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 sanções], legitima conhecimentos e formas de produção do saber [produzindo epistemicídios e injustiças cognitivas], organiza pensamentos e sentidos [limitando experiências e reflexões], define comportamentos [controlando a criatividade e o desejo] e, constitui a subjetividade humana. A obediência a norma do tem que ser assim [crianças em fila seguindo para a sala de aula, carteiras enfileiradas umas atrás da outras, pedir permissão para falar, para se locomover, para ir ao banheiro, para beber água e aprender a escrever para depois ler; professoras atônitas diante das recomendações de: ensinar primeiro as vogais, depois sílabas simples e paulatinamente as “complexidades” da língua, trabalhar todo o livro didático, preparar as crianças para as avaliações externas, etc.] produz a angústia de uma expectativa que nunca se realiza. No cotidiano da escola a obediência gera angústia, frustração e cansaço. Muitas professoras vivem o cotidiano da escola como Estragão e Vladimir - que esperam em baixo de uma árvore numa estrada deserta em que ninguém vem ninguém vai e nada acontece – paralisadas e resignadas esperam desesperançadamente. A organização do trabalho na escola se funda na estrutura sedentária da representação (Deleuze, 2003, p. 54). A hierarquia - mando e obediência, superior e inferior, forte e fraco – empobrece e restringe as experiências educativas e limita a ação escolar à reprodução do mesmo. Enquanto esperam silenciosamente que nada aconteça Estragão e Vladimir são surpreendidos com a chegada de dois “estranhos”, embora muito familiares Pozzo e Lucky. Pozzo puxa uma corda que está amarrada ao pescoço de Lucky, que por sua vez carrega uma mala pesada que não larga um só instante, uma banqueta dobrável, uma cesta e um casaco. Pozzo carrega um chicote, com o qual controla as atitudes de Lucky e garante à obediência as suas vontades: alto, casaco! Para trás, cesta, banqueta. Extração e Vladimir não se espantam com o desconforto da situação de Lucky, com seu esforço para executar as ordens recebidas ou com os castigos por não conseguir realizar a tarefa 122 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 a contento. “O que de fato os deixa abismados é a descoberta de que Lucky é capaz de pensar:” Pense!”diz Peso E Samuel Beckett nos mostra o pensamento de Lucky: Dada a existência tal como se depreende dos recentes trabalhos públicos de Poinçon e Wattmann de um Deus pessoal quaquaquaqua de barba branca quaqua fora do tempo e do espaço que do alto de sua divina apatia sua divina athambia sua divina afasia nos ama a todos com algumas poucas exceções não se sabe por que, mas o tempo dirá atormentados atirados ao fogo às flamas às labaredas que por menos que isto perdure ainda e quem duvida acabarão incendiando o firmamento, a saber, levarão o inferno às nuvens tão azuis às vezes e ainda hoje calmas tão calmas de uma calma que nem por ser intermitente é menos desejada, mas não nos precipitemos e considerando por outro lado os resultados da investigação interrompida não nos precipitemos à investigação interrompida, mas consagrada pela Academia de Antropopopometria [...] (BECKETT, 2005, p. 85) Para nós é impossível ler/ver esta passagem da peça de Beckett sem nos reportarmos às condições de produção do pensamento/conhecimento na escola. Mais do que um pensamento “sem coerência”, o que Lucky nos mostra é uma aprendizagem, do pensar e do agir, objetificada: o ato de pensar e seu conteúdo resultam da pobreza de suas experiências e de sua existência objetificada. Mais do que um modelo de conhecimento, a racionalidade indolente – que engendra e é engendrada pela representação - produz [e reproduz] um sistema de signos e valores que, fundados na lógica da reduplicação do mesmo, difunde “verdades” que se configuram como saberes 123 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 universais3. A razão indolente fundamenta tanto a organização curricular do conhecimento, quanto os procedimentos didáticos e metodológicos subjacentes às práticas escolares. Os dispositivos pedagógicos engendrados na e pela razão indolente cumprem a função de marginalizar e ocultar a diversidade de saberes - que se organizam e se estruturam a partir de outras lógicas de pensamento e ação – que caracterizam outros modelos de racionalidade e divergem da lógica operante da escola e, por conseguinte, outros modos de aprender e produzir conhecimentos, que circulam [e são invisibilizados] no cotidiano da sala de aula. Impactadas diante de tais constatações nos debruçamos sobre as implicações do teatro de representação na educação. Questionamos as possibilidades de fazerpensar uma prática educativa para além do condicionamento de ações (e pensamento), de memorização de conteúdos, de controle de subjetividades e de fixação de significações dominantes. Quais as reais possibilidades de pensarpraticar uma educação, que para além das estruturas sedentárias de representação, tome como fundamento a experiência e o movimento da vida cotidiana? Em nossa busca praticoteorica nos deparamos com o conceito de memória longa (Deleuze e Guattari): [...] a memória longa diz respeito às estruturas sedentárias da representação dominante e autorrefenciada que, como em um jogo de espelho, desdobra o mesmo significado e atribuição de valor para as coisas. É uma imagem que, no lugar de 3 A ciência moderna promulga como saberes universais aqueles que sustentam as leis gerais, que regulam o mundo e seus habitantes. A Ciência como projeto da modernidade, confere um caráter universal a representações “verdadeiras”, daquilo que recorta como objeto de investigação, operando com demarcações que consistem em delimitar o que há de universal sob as particularidades e/ ou contingências. Os saberes universais emergem de um projeto de totalização (e totalitário) queexclui outras formas de racionalidade, lógica e relações cognitivas que não se adaptam ao modelo de hegemônico de representação de mundo. A esse respeito ver LATOUR, 1994. 124 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 obedecer à característica singular do objeto que deve ser refletido, ao contrário, forja nele uma mutação constante para ele obedecer ao padrão da imagem de antemão concebida. A memória longa (família, raça, sociedade ou civilização) decalca e traduz, mas o que ela traduz continua a agir nela, à distância, a contratempo, intempestivamente, não instantaneamente. (2004, p. 26). Instigadas por tal formulação buscamos em nossas ações de investigação-formação desfazer esse jogo de espelhos subjacente as práticas cotidianas da/na escola. A escola, professores, crianças, jovens e suas famílias encontram-se num labirinto de espelhos que reproduzem a mesma imagem infinitamente criando a ilusão de que estamos diante de novas perspectivas ou de novas imagens. Imagens que refletem imagens e que se apresentam [e são percebidas como] novidade. Mas neste labirinto não existe o novo, somente o mesmo. O que fazer? Esperar a chegada de Godot? Não! Juntamente com as crianças e suas professoras partimos para a grande aventura de quebrar os espelhos! QUEBRANDO ESPELHOS: CONHECER E APRENDER NA TRANSVERSALIDADE Quebrar espelhos na educação é uma tarefa árdua, difícil e muitas vezes dolorosa. Por acreditarmos na potência da criação, assumimos as possibilidades de outra educação, ,-ou melhor, dizendo, de muitas outras educações – em que as certezas são provisórias e as verdades, sempre parciais, expressam um ponto de vista, uma possibilidade, uma experimentação... (PÉREZ, 2003, p.4). Afirmamos outros funcionamentos para a prática educativa: a aula é um acontecimento, que traduz outras/novas experiências de criação e de encontro de formas singulares de aprender, conhecer e viver. A aula como acontecimento é uma experiência de encontros entre o aprender e o ensinar, portanto, para além dos métodos e teorias totalizantes elegemos alguns 125 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 princípios que organizam nossas ações [de investigação- formação] com as crianças e suas professoras: (i) pensamento é criação; (ii) conhecimento é autoria; a aprendizagem é um processo coletivo - aprender não é fazer como, mas fazer com; (iii) educar não é conduzir (como postula a perspectiva moderna da pedagogia), mas alimentar: a prática educativa potencializa (no sentido de nutrir) a criação e é a professora quem alimenta o fazer com, o fazer junto, a conquista da autonomia e a afirmação da autoria - o fazer por si mesmo. Quebrar o espelho em que se reflete a racionalidade indolente da escola é uma ousadia. O que os estilhaços desse espelho quebrado nos revelam? Revelam como faz diferença afirmar para a criança porque não, ou ajudá-la a se perguntar por que não? O exercício da pergunta (por que não?) nos coloca outras possibilidades e experiências que nos fazem pensar, força a invenção e rompe com a naturalização do não saber ou da ignorância. Praticar a Pedagogia da Pergunta (FREIRE, 1991), é apostar na invenção como produção de conhecimentos suprimindo a intermediação da representação: a criança produz conhecimento pela ação inventiva [conhecer é criar], não representativa. O senso comum científico, característico do conhecimento escolar, não possibilita que professoras e crianças pratiquem a “pedagogia da pergunta”. A ênfase no conhecimento como um processo de assimilação de informações, impede que se instale o processo de investigação da realidade e, a potencialização da curiosidade e da descoberta como formas de conhecer. O exercício da pergunta colocou as professoras e as crianças diante de outras possibilidades e experiências que forçam o pensamento, a invenção e rompem com a naturalização do não saber ou da ignorância. Metodologicamente entendemos nossa pesquisa inter(in)venção como um acontecimento resultante do compartilhar e do movimento coletivo de crianças, professoras e professoras que fazem do cotidiano da sala de aula uma possibilidade de aventuras. Temos investido na configuração 126 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 de metodologia(s) e práticas produzidas em parceria com as crianças, que apostam na potência da autoria e na invenção de outras formas de aprenderensinar, a partir de um paradigma ético-estético que se distancia das lógicas, práticas e teorizações tecnocráticas4. Os cacos do espelho quebrado também revelam que é possível romper com o signo da convergência do mesmo e do fechamento do sistema cognitivo5, pela afirmação do diálogo entre diferentes formas de ser, pensar e produzir conhecimentos. Em nossa empreitada de quebrar espelhos, ou, de romper os limites [e as limitações] da representação nos deixamos guiar pela curiosidade da criança: é a curiosidade que move a busca, dando energia para permanecer a procura, mas há uma diferença ou uma exigência, quem busca não se apodera da curiosidade entrega-se a ela, num movimento de ruptura com a visão do cotidiano como mesmice ou rotina - que oblitera nossa percepção da diferença, nos distanciando da aura da inventividade, como indica Benjamin ao comparar o rastro e a aura: O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que a evoca. No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós (1994, p.40). 4 A pesquisa Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no cotidiano escolar refere-se à investigação que desenvolvemos ao longo de 03 anos, com crianças de classes populares, alunas do Ciclo de Alfabetização da rede municipal de Educação de Duque de Caxias – cidade situada na Baixada Fluminense na periferia do Rio de Janeiro. 5 Segundo Kastrup, no quadro dos grandes sistemas, a cognição é entendida como idêntica a si mesma, fechada aos efeitos imprevisíveis do tempo, marcada pela repetição, por um funcionamento que se mantém sempre o mesmo. As condições da cognição são invariantes, correspondem a um sistema fechado onde o tempo não opera transformações significativas (2007, p.66). 127 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 A passagem de Benjamin nos obriga a questionar as relações de perspectiva: o próximo e o distante, o possível e o impossível. A pesquisa com as crianças e suas professoras tem nos obrigado a fazer o movimento de ruptura com a racionalidade dominante, resgatando a possibilidade como categoria modal da existência. Procurando estabelecer uma dinâmica diferente da lógica seriada acreditamos que a sala de aula pode funcionar como um coletivo de intercâmbio de experiências e, por isso mesmo, de criação de percursos com o conhecimento. Tal possibilidade se materializa no cotidiano da escola como um processo que chamamos de aula como acontecimento, pois a organização inventada exige que a escola funcione como espaço da pergunta, da curiosidade, da investigação... Estudar ótica ou eletricidade e magnetismo ou moléculas, no terceiro ano do ciclo de alfabetização do ensino fundamental é do ponto de vista do modelo lógico-cognitivo operante inaceitável, pois a razão indolente - que nos (de) forma - postula a progressão do conhecimento em seus diferentes níveis de complexidade. Dessa forma somos levadas a acreditarque nesta fase de seu desenvolvimento, as crianças ainda não possuem ‘maturidade psíquica’ que as capacitem a apreender relações físicoespaciais complexas e formulações científicas mais “abstratas”. Uma câmera de filmar e uma turma de 26 crianças, o que pode acontecer? As crianças da escola pública na Baixada Fluminense podem fazer um filme? Logo com essas crianças! Uma loucura! As crianças vão quebrar a câmera! O grupo é muito grande! É impossível fazer um filme.... (cf. Pérez &Alves apud Gouveia &Nunes, 2009, p.117) Apresentamos para as crianças a idéia: fazer um filme coletivamente. Um filme feito na altura dos olhos das crianças - o outro. A câmera e as filmagens despertaram diferentes sentimentos: assombro, dúvida, desejo de participar, proximidade, conflito e curiosidade. 128 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 Uma curiosidade que nos coloca diante do aparelho de filmar, diante da relação entre magia e técnica, crianças ao redor da câmera vendo umas as outras e se perguntando como? Como paramos aí dentro? Dominar o aparelho: liga/desliga, conecta e desconecta a bateria, aperta o botão – a aprendizagem acontece rápida e naturalmente. Ah! A curiosidade da criança! Aquela companheira tantas vezes esquecida e/ou relegada ao segundo plano na sala de aula. Mentes curiosas e inquietas fuçam daqui, perguntam dali e muito rapidamente põem tudo para funcionar. Dominar o instrumento é o desafio que a curiosidade suscita. Vencido o desafio vem o assombro: como as imagens entram na câmera? Entrelaçando a aula com a experiência de fazer o filme, à inteligência prática e a paixão de conhecer, as experiências vividas e os estudos realizados com as crianças, vivemos cotidianamente um processo de emergência, em que conceitos científicos e conceitos cotidianos se integram para alimentar a curiosidade e a busca do grupo. A aventura humana de fixar imagens [desde a câmera escura à imagem em movimento], nos possibilita a experiência com a técnica e com o instrumento – à câmera de filmar faz parte do estudo da fotografia, da ótica, do cinema e da memória. A câmera como um instrumento, nos conduziu aos estudos de ótica. O instrumento não só de filmagem, mas em seu sentido histórico e cultural - em seu conceito de aparelho óptico. A curiosidade como princípio auto-organizador nos possibilitou ampliar a busca e, ao mesmo tempo em que encontrávamos algumas respostas às nossas questões íamos, paulatinamente, nos apropriando [e reconstruindo] a história do instrumento e de suas técnicas. (cf. Pérez &Alves apud Gouveia &Nunes, 2009, p.117) A câmera escura nos levou, em muitas tardes de sol, para o pátio em busca do melhor ponto de observação e da luz que inundasse as caixinhas, para que a imagem invertida se fizesse em nossas pequenas telas de papel fino. Diante da última tecnologia, lá estávamos nós mergulhados no passado 129 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 de um olhar, que não tem a rapidez e a nitidez do hoje, mas é borrado e esperado como peripécia. A câmera escura, o eletroscópio, a decomposição da luz, o campo visual, os jogos de espelho e ilusões de ótica, assim como as máquinas de ver, o olho biônico, a lupa, o óculos, as sombras..., vamos elaborando nosso currículo praticado e a aula vai acontecendo. A conjugação de linguagens desenho, escrita e oralidade, fotografia e cinema, nos permite ampliar nossa compreensão sobre os processos cognitivos das crianças. A informação veiculada pelo desenho é complementada pela 130 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 escrita e ampliada pelo relato oral. A pesquisa com as crianças tem confirmado as formulações de Michel de Certeau (1998), ao apontar que as lógicas operatórias são plurais, por que são plurais as experiências dos praticantes. Fotografias das crianças filmando as cenas cotidianas foram tiradas pelas próprias crianças e fazem parte do registro iconográfico das aulas. Também foram produzidos slides nas idas à Lan House (novidade – aprender a fazer Power point) e ainda estudamos o funcionamento o olho humano, os 131 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 mecanismos da visão e os conceitos de ótica, eletricidade e o sistema solar – para compreender “os diferentes tipos de luz”, tudo devidamente registrado no caderno de investigação. A pesquisa com as crianças tem sido para nós uma experiência estética, com elas temos aprendido que o exercício de olhar o olhar das crianças - que nos possibilita captar as singularidades no/do processo de conhecer de cada uma. O exercício do olhar estético no cotidiano da sala de aula implica mobilizar os diferentes sentidos e as redes de significados 132 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 que tecem as idéias, as imagens, as concepções presentes nos diferentes estilos cognitivos das crianças. Implica ainda em pensar-fazer uma escola em que O estudo se faz de desfazer-se: não há mais que o risco entre ler e escrever, o desconhecido que volta a começar, algo (se) passa, o gesto de apagar o que acaba de ser lido ou escrito para que a página continue em branco, ainda por ler, por escrever (Larrosa, 2003, p.113). Na perspectiva de um estudo que se faz de desfazer-se a ênfase está na conexão entre os diferentes campos do saber – fazer um filme significou também, estudar física, geografia, astronomia, etc., além de mobilizar nossos saberes sobre leitura, escrita, matemática, etc. A sala de aula ao funcionar como uma comunidade investigativa aponta para “... uma transversalidade entre as várias áreas do saber, integrando-as, senão em sua totalidade, pelo menos de forma muito mais abrangente, possibilitando conexões inimagináveis através do paradigma arborescente” (GALLO, 1999, p.32). A transversalidade além de promover diferentes trânsitos pela multiplicidade dos saberes, possibilita policompreensões infinitas. A sala de aula como uma comunidade investigativa procura articular e se funda, numa epistemologia conectiva, que ao promover outra abordagem do conhecimento lhe confere outro funcionamento que nos permite superar a fragmentação do conhecimento - que ignora a interação entre o todo e as partes e separa o pensamento científico e o pensamento humanista - rompendo com hierarquizações e disciplinarizações a partir de uma configuração políticoepistemológica, que ao articular conhecimento e experiência cotidiana nos possibilita pensar as questões humanas e enfrentar as incertezas de nossas próprias aprendizagens. O paradigma rizomático orienta nossa investigação-ação com as crianças e suas professoras. O paradigma rizomático tem como imagem um tipo de caule radiciforme, formado por 133 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 pequenas raízes emaranhadas. O rizoma é um conjunto complexo que compreende linhas segmentadas que se entrelaçam. No rizoma qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro. O rizoma é conectivo, reversível, susceptível a modificações constantes, caracteriza-se pela circulação (de estados e elementos), pelo movimento, pela transformação permanente, é real e virtual ao mesmo tempo – traz sempre a possibilidade de não ser o que é, de ser o que não é e de tornar-se. As crianças constroem rizomaticamente seu conhecimento do mundo.No paradigma rizomático os saberes transitam pelos diversos campos do conhecimento e articulam inúmeras conexões e possibilidades de compreensão. Em nossas investigações tomamos o princípio da transversalidade como um imperativo metodológico fundamental para captar, as intensidades dos acontecimentos e das práticas cotidianas, colocando-as em conexão com os diferentes campos do saber. A transversalidade caracteriza-se no paradigma rizomático do saber, como uma forma de trânsito entre os inúmeros devires de um rizoma, transita e integra conectivamente diferentes áreas do conhecimento. Do ponto de vista da prática educativa, a transversalidade representa uma ruptura político-epistemológica: os saberes já não são mais disciplinarizados ou compartimentalizados em rígidas fronteiras, estão conectados, mesclados, hibridizados, numa forma de conhecer em que as possibilidades de trânsito e de articulação são infinitas. Entendendo o cotidiano como território da multiplicidade, vislumbramos na noção de transversalidade uma ferramenta conceitual fundamental à construção de novas configurações no campo da pesquisa educacional e da prática educativa: o princípio da transversalidade reorienta o foco de análise para a apreensão da complexidade, da pulverização, da multiplicidade e da fragmentação das relações cotidianas. A transversalidade nos coloca o desafio de pensar outros sistemas de referência, ao mesmo tempo em que nos lança num movimento que busca apreender/compreender a realidade e o 134 Carmen Lúcia Vidal Pérez Luciana Pires Alves Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.117-136 , nov. 2015/ fev. 2016 cotidiano em outros termos. Vamos exercitando nosso olhar investigativo e articulando conexões que, transversalmente produzem outras significações e novos caminhos para o conhecimento e para as aprendizagens na escola. CONCLUSÃO: ALGUNS ESTILHAÇOS DOS ESPELHOS QUE QUEBRAMOS Em nossas pesquisas com as crianças buscamos colocar no centro da investigação [e do debate acadêmico- pedagógico], a lógica, como instrumento fundamental à leitura do mundo. A escola ensina a criança a pensar o mundo na perspectiva da lógica formal - o que do ponto de vista do processo de aprendizagem, tem resultado num conhecimento do mundo, ineficaz, impedindo a aquisição de novas posturas e a construção de respostas necessárias ao enfrentamento dos desafios que o cotidiano nos coloca. Trazer a lógica para o centro do debate é evidenciar a necessidade de superar [principalmente na educação] a racionalidade operante, substituindo-a por um novo aprendizado: um aprendizado capaz de promover uma leitura do mundo [e da palavra] fundamentada numa relação dialética-dialógica capaz de resgatar as "contra-racionalidades, ou melhor, "racionalidades paralelas (e não irracionalidades) que foram jogadas embaixo do tapete da história e recusadas nos estudos de nossas faculdades" (SANTOS 1998). Pensar a produção de conhecimento na escola para além da representação é problematizar o modelo cognitivo operante [que confunde a matéria com a forma dos objetos], substituindo-o por relações cognitivas abertas ao novo, imprevisíveis, que produzam tanto a inquietação, quanto a instabilização da própria cognição. Quebrar os espelhos das representações implica romper com os limites da recognição [condições demarcadas e previamente definidas, invariantes e inultrapassáveis], substituindo-os pela produção de outras práticas cognitivas 135 Cansadas de esperar godot quebramos os espelhos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 117-136, nov. 2015/ fev. 2016 [resíduos - tudo o que escapa aos limites e aponta para outros modos de funcionamento cognitivo], que afirmem outras formas de conhecer. As experiências vividas com as crianças em nossa investigação nos permitem tecer argumentos em favor do resgate das experiências compartilhadas no cotidiano da escola e dos saberes que emergem de tais experiências, como alternativas epistemológicas fundamentais à reinvenção da sala de aula e da escola. Apesar da profunda crise instaurada em todos os campos da realidade social, as instituições escolares ainda podem serem espaços privilegiados Para produção de subjetividades potencializadas, o que nos desafia a investir na (re) invenção da escola como lugar privilegiado para a recriação de saberes. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I - magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994 BECKETT, Samuel. Esperando Godoy. São Paulo: Cosac Naify Editora, 2010. CASTELLO, L. A.; MÁRSICO, C. T. Oculto nas palavras: dicionário etimológico para ensinar e aprender. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. CERTEAU, Michel de. . A Invenção do Cotidiano 1. Artes de fazer. 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Data de recebimento: maio de 2014 Data de aceite: junho de 2015 137 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 COMPROMISSO E AMOR COMO ELEMENTOS CENTRAIS DAS REPRESENTAÇÕES DO SER PROFESSORA DE EDUCAÇÃO INFANTIL Idélia Manassés de Barros Silva1 Laêda Bezerra Machado2 Resumo Este artigo identifica a estrutura das representações sociais que professoras de Educação Infantil construíram da própria profissão, enfatizando o componente mais forte dessa estrutura: o núcleo central. O referencial orientador da pesquisa foi a abordagem estrutural das representações sociais. Representações funcionam como guias para as ações, constituem um sistema de pré-decodificação da realidade A pesquisa tomou como campo empírico o município de Jaboatão dos Guararapes-PE. Participaram do estudo 134 professoras de creches e pré-escolas vinculadas a instituições públicas e privadas. O procedimento de coleta utilizado foi a associação livre de palavras. Para análisedas evocações utilizou-se software EVOC. Os resultados indicaram como elementos centrais dessa estrutura representacional os termos comprometimento, amor, dedicada, dinamismo, carinhosa, alegria e criatividade. Esses elementos constituem o núcleo estruturador dessa representação. Pode-se inferir que as professoras tem uma representação profissionalizada de si e procuram assumir a função com compromisso. Palavras-chave: Professora; Educação Infantil; Representações Sociais. 1 Idélia Manassés de Barros Silva – Faculdade Guararapes (FG), Faculdade Metropolitana do Grande Recife (FMGR) e da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA). E-mail: idelia@uol.com.br 2 Laêda Bezerra Machado – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Email: laeda01@gmail.com 138 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 Abstract This article identifies the structure of social representations that kindergarten teachers built the profession itself, emphasizing the strongest component of this structure: the central core. The framework guiding the research was the structural approach to social representations. Representations act as guides for action, constitute a system of pre-decoding of reality. The research took as the empirical field Jaboatão Guararapes. The study included 134 teachers from nurseries and pre-schools, in different stages of their careers, linked to public and private institutions. The collection procedure used was the free association of words. The results showed that the core elements that structure the terms representational commitment, love, dedicated, dynamic, caring, joy and creativity. These elements are the core structuring this representation. It can be inferred that the teachers have a representation professionalized themselves and seek to assume the function with commitment. Keywords: Professor; Early ; Childhood Education; Social Representations. 139 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 COMPROMISSO E AMOR COMO ELEMENTOS CENTRAIS DAS REPRESENTAÇÕES DO SER PROFESSORA DE EDUCAÇÃO INFANTIL INTRODUÇÃO A expressão Educação Infantil no nosso país compreende o atendimento educacional às crianças de zero a cinco anos3, mas nem sempre foi assim. Como em muitos países subdesenvolvidos, o atendimento à infância no Brasil foi tardio, até bem pouco tempo não se garantia a educação de crianças pequenas. Como consequência, a preocupação com a formação de professores para a Educação Infantil é recente. A não exigência por qualificação e não garantia do direito das crianças pequenas à educação contribuíram para que a atividade em creches e pré-escolas fosse assumida como extensão do lar, voltada para a assistência. Até os anos 1970 o atendimento a criança pequena no Brasil ocorreu de maneira tímida e precária. O crescimento do número de creches, no final desses anos, deveu-se em grande parte, aos movimentos reivindicatórios da sociedade civil, sobretudo, no contexto do movimento feminista. Esse atendimento vai assumir uma função assistencialista e, sobretudo, as creches se voltam para garantir cuidados referentes à alimentação, sono, saúde e higiene das crianças. A expansão vincula-se aos programas compensatórios que 3 A Lei de Nº 11.274 de 20 de fevereiro de 2006 alterou a redação dos artigos 29, 30, 32 e 87 da Lei Nº 9.394/96. Dispõe sobre a duração de 9 (nove anos) para o ensino fundamental reduzindo a Educação Infantil de 0 a 6 para de 0 a 5 anos. 140 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 visavam o suprimento de déficits educacionais das crianças e garantir seu sucesso escolar futuro. (KRAMER, 1985). Na década de oitenta, no contexto das lutas pela democratização do país, diferentes setores da sociedade, como organizações não governamentais, pesquisadores na área da infância e sociedade civil uniram forças para garantir o direito da criança a uma educação de qualidade desde o nascimento. A pressão desses movimentos fez com que a Constituição Federal de 1988 se constituísse como um marco decisivo na afirmação dos direitos da criança no Brasil. Nos últimos anos não se pode deixar de reconhecer certos avanços para com a Educação Infantil, além de passar a ser considerada a primeira etapa da Educação Básica, assume a função de favorecer seu desenvolvimento físico, motor, emocional, social, intelectual, e bem-estar infantil. A LDB (nº 9394/96) e outras conquistas legais colocaram para o poder público e sociedade o desafio de garantir um atendimento voltado à educação e desenvolvimento das crianças pequenas, capaz de conciliar de modo indissociável as funções de educar e cuidar. (CERISARA, 2002; KRAMER, 2005). Frente às mudanças legais, teóricas e práticas no campo da Educação Infantil e todas as injunções delas decorrentes, este artigo, resultado de uma pesquisa mais ampla desenvolvida no mestrado em educação, identifica a estrutura das representações sociais que as professoras de Educação Infantil construíram da própria profissão, enfatizando o componente mais forte dessa estrutura: seu núcleo central. Para revisão da literatura sobre o tema ser professora da Educação Infantil, utilizamos as produções apresentadas no Grupo de Trabalho GT-07 - Educação da criança de 0-6 anos - da ANPED, no período de 1997-2007. Privilegiamos essa entidade científica pela relevância que ela assume no campo da produção científica em educação no país. A escolha dessa década deveu-se ao reconhecimento de que esse é o período de divulgação e consolidação da legislação que consagra o direito de crianças pequenas à educação. Além da produção 141 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 da ANPED, lançamos mão de alguns periódicos, teses e dissertações do banco de dados do portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que trataram sobre a docência na Educação Infantil. Os relatos de pesquisas apresentados nestes dois grandes espaços de divulgação do conhecimento indicaram que os estudos são de maneira geral pesquisas empíricas que ouviram professoras e auxiliares de Educação Infantil, estagiárias de creche, estudantes de pedagogia, famílias e funcionários de instituições que atendem crianças pequenas. Nesses trabalhos, localizamos alguns estudos que utilizaram o aporte teórico das Representações Sociais, quais sejam: Portilho, Matos e Cruz (2011), Haddad e Cordeiro (2011), Lemos (2010), Haddad (2009), Campos (2008), Sales (2007) Monteiro (2007). As duas últimas, Haddad (2009) e Lemos (2010) utilizaram a abordagem estrutural proposta por Abric (1998). Os objetos de representação social estudados nesses trabalhos diziam respeito à representação que a professora tem de si; a representação que estudantes universitários têm da identidade docente; representações sobre a Educação Infantil, a infância, a criança, a docência e o papel do professor. O investimento feito em localizar e estudar a produção sobre a Educação Infantil nos fez reconhecer a relevância da pesquisa que realizamos, que pode vir a favorecer a ampliação do debate em torno das dimensões simbólicas que envolvem a docência na Educação Infantil. Assim, retomando o já colocado antes, partimos do pressuposto que as mudanças vivenciadas pela Educação Infantil podem ter afetado as representações sociais que as professoras construíram da própria profissão.A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS O referencial das representações sociais auxilia na compreensão do homem enquanto ser social, que vai se constituindo através de processos de interações sociais com outros sujeitos. Estudar representações sociais significa investigar como se formam e como funcionam os sistemas de 142 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 referência dos quais lançamos mão para classificar pessoas e grupos, interpretar os acontecimentos da realidade cotidiana (ALVES-MAZZOTTI, 1994). As representações sociais são compartilhadas e produzidas nas interações dos sujeitos com os objetos e com outros sujeitos, constituem um conjunto organizado e estruturado de informações, crenças, opiniões e atitudes que orientam as práticas e condutas dos sujeitos. De acordo com Sá (1998) a Teoria das Representações Sociais vem se ampliando e desde a obra pioneira de Moscovici e na atualidade podemos nos reportar a, pelo menos, três de seus desdobramentos. O primeiro, mais próximo do pensamento original e que valoriza os métodos etnográficos, é liderado por Denise Jodelet. Willem Doise conduz, em Genebra, uma corrente que valoriza as condições de produção e circulação das representações sociais e por fim, em Aix-en-Provence, destacamos a abordagem estrutural, de Jean Claude Abric e seguidores, que dá ênfase a dimensão cognitivo-estrutural das representações sociais. Foi a abordagem estrutural ou Teoria do Núcleo Central que deu suporte pesquisa da qual resultou este artigo. A Teoria do Núcleo Central, considerada uma das maiores contribuições para o refinamento conceitual e metodológico do estudo das representações sociais, foi proposta por Jean-Claude Abric, em 1976, através de sua tese de doutoramento. Constitui um corpo de proposições que oferece à teoria original um caráter mais heurístico para compreensão da prática social (LIMA, 2009). A abordagem estrutural foi desenvolvida procurando compreender a relação existente entre as representações sociais e as práticas sociais dos indivíduos. A relação práticas e representações sociais é ao mesmo tempo sutil e complexa, transversaliza a teoria. Abric (1998) insiste que toda representação funciona como um sistema de interpretação da realidade que rege as relações dos indivíduos com o seu meio físico e social determinando, portanto, seus comportamentos e práticas. 143 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 Conforme o autor, a representação social se estrutura em torno de um núcleo central e um sistema periférico. O núcleo central está relacionado à memória coletiva e é determinado pelas condições históricas, sociológicas e ideológicas do grupo. Nele se situam os elementos mais permanentes da representação, sendo, portanto, estável e resistente a mudanças e relativamente independente do contexto social imediato. Esse núcleo desempenha três funções: uma função geradora – através da qual se cria ou se transforma uma representação; uma função organizadora - que determina a natureza das ligações entre os elementos constituintes de uma representação e uma função estabilizadora que assegura a permanência de seus elementos e protege o núcleo central fazendo com que ele se mantenha rígido, não se modifique facilmente. Os elementos estáveis ou mais permanentes de uma representação social são de natureza normativa e funcional. Os aspectos “normativos” estão relacionados ao sistema de valores e normas sociais do grupo de pertença do sujeito, enquanto que os “funcionais” estão associados à natureza descritiva, características do objeto representado (ABRIC, 2003). Em torno do núcleo central encontra-se o sistema periférico da representação, que promove a interface entre a realidade concreta e o sistema central. Esse sistema diz respeito a parte operatória da representação e desempenha um papel essencial no funcionamento, dinâmica das representações. Conforme Abric (1998), ele é dotado de maior flexibilidade voltando-se as funções: a) de concretização, pois permite que a representação seja formulada em termos concretos e compreensíveis; b) regulação garante a adaptação às mudanças no contexto, integrando elementos novos ou modificando outros em função de situações concretas com as quais o grupo é confrontado; c) prescrição de comportamentos, pois possibilita o funcionamento instantâneo da representação como grade de leitura de uma dada situação, orientando as tomadas de posição; d) modulação personalizada preserva as representações individualizadas relacionadas às experiências 144 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 individuais e por fim, função de proteção uma vez que absorve e reinterpreta as informações novas ou eventos suscetíveis que colocam os elementos centrais em questão. O sistema periférico relativiza a contradição entre, rigidez, estabilidade e consensualidade permitindo a flexibilidade, sensibilidade às transformações e as diferenciações individuais que caracterizam as representações sociais. As representações sociais funcionam com guias para a ação, elas orientam os comportamentos e relações sociais. Constituem um sistema de pré-decodificação da realidade porque determinam um conjunto de antecipações e expectativas dos sujeitos para com a realidade. Essas representações dão o sentido de pertença do indivíduo ao grupo. Elas definem as identidades e salvaguardam as especificidades dos sujeitos e grupos. (ABRIC,1998). meTodoloGIa Para investigar as representações sociais do ser professora de Educação Infantil, fizemos a opção por usar uma abordagem de natureza qualitativa. A opção por esta abordagem deveu- se ao seu caráter descritivo e possibilidade de reconhecer que as pessoas agem em função de suas crenças e valores que determinam comportamentos. A pesquisa que deu origem a este artigo foi desenvolvida junto a professoras que atuavam em instituições municipais e privadas de Educação Infantil do município do Jaboatão dos Guararapes-PE. A escolha deste campo empírico ateve- se ao fato desse município ter integrado à Educação Infantil ao seu sistema de educação logo após a promulgação da LDB (em 1997) o que, pelo menos em termos formais, sugere uma compreensão do caráter educacional e não assistencial dessa educação. procedImeNTo de coleTa de dados Como procedimentos de coleta de dados, utilizamos a técnica de associação livre de palavras. Conforme Oliveira et al (2005), a técnica de associação livre de palavras consiste em 145 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 solicitar aos sujeitos que falem ou registrem em instrumento próprio, de modo livre e rápido, palavras ou expressões que lhes vêm imediatamente à lembrança a partir de um estímulo indutor. O estímulo pode ser uma palavra impressa, um objeto, figura etc. Trata-se de um tipo de investigação aberta que permite colocar em evidência os universos semânticos relacionados a um determinado conteúdo representacional. Para esta pesquisa utilizamos estímulo indutor: ser professora de Educação Infantil ... Para realizar a associação livre de palavras utilizamos um protocolo que continha na primeira parte a própria tarefa de Associação e na segunda constavam questões de natureza sócio econômica e profissionais. As professoras foram orientadas da seguinte forma: a) escrever as cinco primeiras palavrasque lhe viessem à lembrança quando pensavam na expressão ser professora de Educação Infantil; b) hierarquizar ou ordenar as palavras de 1 a 5, da mais para a menos importante e c) justificar, por escrito, no protocolo, a razão da escolha da palavra colocada em primeiro lugar. Após responderem a associação livre, as participantes responderam às questões de natureza sócio econômica e profissionais do protocolo. caracTerIzação do Grupo parTIcIpaNTe Participaram da pesquisa 134 professoras de Educação Infantil, com diferentes tempos de atuação profissional que atuavam em creches e pré-escolas das redes pública e privada do município. Elas apresentaram diferentes níveis de formação acadêmica e estavam em diversas faixas de idade. Das 134 participantes, 106 eram professoras de instituições públicas (79%) e 28 professoras (21%) atuavam em instituições privadas. Do total de professoras participantes vinculadas à rede pública, 34 atuavam em creches (32%) e 72 professoras (68%) atuavam em pré-escolas. A maioria das participantes da rede privada, em número de 16, atuava em pré-escola e uma minoria, 12 delas, atuava em creches, berçários e similares. 146 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 O conjunto geral das participantes concentrava-se na faixa de idade entre 20 a 40 anos. No que se refere à formação superior, 61% das professoras participantes eram graduadas em Pedagogia, 20% estavam cursando esta mesma graduação e 13% informaram ter feito outro curso de licenciatura. Um grupo de 6% cursou o normal médio. aNalIse dos dados Para tratamento dos dados da Associação Livre de Palavras, utilizamos o software Ensemble de programmes permettant I’analyse des evocations (EVOC), versão 2003, criado por Pierre Vergés e seus colaboradores. O software EVOC é um recurso que auxilia na organização dos dados. É utilizado para análise de vocábulos, possibilitando a realização de cálculos estatísticos das médias simples e ponderadas culminando com a construção de um quadro de quatro casas. No referido quadro, as palavras evocadas são distribuídas e organizadas, permitindo captar a estrutura geral da representação, seu possível núcleo central e seu sistema periférico. O EVOC, processado na plataforma Windows, é composto por dezesseis programas que executam diferentes funções, aos quais as palavras são submetidas e tratadas. Para processamento do material, utilizamos cinco dos programas que compõem o software, são eles: Lexique, Trievoc, Nettoie, Rangmont e Rangfraq. Após todo esse processamento do software, chegamos a um quadro de quatro casas, ou seja, de quatro quadrantes, conforme Vergés (2002). De acordo com Oliveira et al. (2005) as palavras localizadas no quadrante superior esquerdo (primeiro quadrante) são, possivelmente os elementos do núcleo central das representações socias do objeto de investigação. Aquelas situadas no quadrante superior direito (segundo quadrante) são consideradas da primeira periferia, ou seja, os elementos que mais se aproximam do núcleo central. Trata-se de termos que durante a associação livre foram citados em últimas posições, mas obtiveram frequência alta. Os elementos desse 147 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 quadrante indicam a possibilidade de já terem pertencido ou virem pertencer ao núcleo central das representações. No quadrante inferior esquerdo situam-se os elementos da zona de contraste, dizem respeito a termos pouco evocados (com baixa frequência), porém ordenados em primeiro lugar pelas professoras. No quadrante inferior direito (quarto quadrante) encontram-se os elementos da segunda periferia, ou periferia distante. São os elementos mais afastados do núcleo central. aNálIse e dIscussão dos resulTados: o Núcleo ceNTral das represeNTações socIaIs do ser proFessora de educação INFaNTIl Com a associação livre de palavras chegamos a um total de seiscentos e setenta (670) palavras evocadas que, quando submetidas e processadas no EVOC, resultou em um conjunto de vinte e seis (26) palavras diagramadas em quatro regiões do Quadro 1. Estas palavras, conforme mecanismo utilizado pelo software, foram selecionadas com base nos critérios: número de evocações igual ou superior a cinco e ordem média de importância (OMI). As palavras do quadrante superior esquerdo, identificadas como provável núcleo central das representações do ser professora de Educação Infantil foram: alegria, amor, carinhosa, comprometimento, criatividade, dinamismo e dedicada. Reconhecemos a dinâmica da representação social (núcleo central e sistema periférico), mas nos limites deste artigo discutiremos os elementos referentes ao possível núcleo central dessas representações. 148 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 QUADRO 1 - Quadro de quatro casas gerado pelo EVOC (Frequência Mínima: 5 / MF: 10 / OMI: (2,5)4 F >= 5 / OMI< 2,5 F >= 5 /OMI>= 2,5 f OMI f OMI Alegria 17 2,471 Amor 18 1,667 1ª periferia2 Carinhosa 18 2,333 Comprometimento 14 1,643 Criatividade 33 2,485 Dedicada 39 2,282 Dinamismo 17 2,294 F < 5 /OMI< 2,5 F < 5 / OMI>= 2,5 Zona de contraste 2ª periferia As palavras que integram o quadrante superior esquerdo do quadro 1, alegria, amor, carinhosa, comprometimento, criatividade, dinamismo e dedicada foram as mais frequentemente evocadas e hierarquizadas como as mais importantes pelas participantes da pesquisa. A palavra comprometimento, embora com a menor frequência de evocação do quadrante, foi a que obteve a menor OMI (1,643). Sabemos que quanto mais baixa for a OMI do quadrante mais importante a palavra foi considerada pelos que a evocaram. O lugar ocupado pelo termo comprometimento no quadrante superior esquerdo do quadro e as justificativas apresentadas pelas professoras, permitem inferir que o compromisso constitui para essas docentes o requisito principal para o ser professora de Educação Infantil. Convém lembrar que o comprometimento foi sempre associado de maneira articulada ao preparo e conhecimento do profissional para lidar com crianças. Justificaram as professoras: É necessário, por parte do educador, um preparo pessoal e um comprometimento 4 Em função do recorte feito para este artigo omitimos as palavras contidas nos demais quadrantes do quadro de quatro casas. 149 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 com o papel desempenhado em sala de aula. (Profa.81 CR PUB)5 É preciso ter compromisso... respeitar nossos alunos desempenhando um trabalho de qualidade, mas principalmente com amor. (Profa.42 P-E PUB) O que pudemos constatar foi uma vinculação do ser professora de Educação Infantil ao comprometimento e preparação para trabalhar com as crianças. Das justificativas acima podemos depreender que há um indício de profissionalização na representação social do ser professora de Educação Infantil. As professoras articulam compromisso, amor e respeito como elementos que possibilitam qualidade da Educação Infantil. Podemos afirmar que, aspectos relacionados à formação e a profissionalização para o atendimento da primeira infância vem sendo defendidos no cenário educacional brasileiro. Pesquisas sobre a profissão docente, saberes docentes, histórias de professores tem se ampliado desde a década de 80, mas ainda são poucos os estudos voltados para a professora e trabalhodocente em creches e pré-escolas (Rocha, 1999; Cerisara, 2002). Nesse sentido, inferimos que as discussões mais recentes sobre a profissionalização, mesmo de maneira discreta, estão sendo incorporadas às representações sociais do ser professora. Isto é, as professoras reconhecem a importância do preparo para lidar com crianças pequenas. Apelam por formação profissional, o que nos leva a entender que aquela idéia quase cristalizada de que qualquer um pode ser professor de crianças pequenas não faz parte das representações sociais das participantes. Ilustramos com a justificativa abaixo: 5 As participantes da pesquisa foram codificadas da seguinte maneira: abreviatura da palavra professora (Profa.) seguida do número de ordem do protocolo que cada uma respondeu; letras CR ou P-E indicando, respectivamente, se atuavam em creche ou pré-escola seguida da abreviatura PUB ou PRIV que significavam, respectivamente o vínculo a instituição pública ou privada. Por exemplo, a codificação Profa.23 CR PUB. significa que se trata de uma professora de creche pública que respondeu ao protocolo de nº 23. 150 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 Acredito que a professora de educação infantil deve ser profissional em primeiro lugar pois, ela está formando crianças... (Profa. 69 P-E PUB) Constatamos que as professoras, com justificativas mais próximas de uma dimensão profissionalizada da Educação Infantil são aquelas profissionais que mais recentemente concluíram ou estão em processo de formação no curso de Pedagogia e aquelas com menos de dez anos de atuação na docência. A palavra amor foi a palavra com a segunda menor OMI do quadrante referente ao núcleo central, isto significa que, depois de comprometimento, foi a palavra mais indicada em primeiro lugar quando as professoras fizeram a hierarquização de suas evocações. Ao evocarem o amor as docentes destacaram o amor à criança e à profissão, como requisitos para o ser professora de Educação Infantil. Ficou evidente nas justificativas que o amor é assumido pelas docentes como condição para o exercício da função. Ao justificarem o amor como palavra mais importante, as professoras afirmaram: Se você não tiver amor por criança mude de profissão. (Prof.47 P-E PUB)6 Para ser professor de Educação Infantil temos que ter muito AMOR pela profissão, em trabalhar com crianças. (Profa.15 CR PRIV) Ser professora de educação infantil não é para qualquer um. Temos que ter amor pela nossa profissão, nossa sala de aula e principalmente nossos alunos. (Profa.30 CR PRIV) Ensinar requer ter amor por sua profissão, pois é uma vocação e só desperta a paixão de ensinar (aprender) quem tem paixão de ensinar. Segundo Paulo Freire não se 6 Transcrevemos para este artigo as justificativas das professoras do modo como elas escreveram no protocolo. 151 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 pode falar de educação sem falar de amor. (Profa.13 P-E PRIV) Trabalhar com a Educação Infantil requer amor pelas crianças... (Prof.55 P-E PUB) As docentes destacaram em suas justificativas para a escolha da palavra amor, que assumir a função de professora de Educação Infantil não é tarefa para qualquer pessoa. Mas, para aqueles que amam a profissão, os alunos e a sala de aula. Como ilustramos acima, uma das participantes recorreu a Paulo Freire para reforçar a importância do amor no exercício docente. Conforme o autor, o ato de ensinar exige do profissional “amorosidade, criatividade e competência científica. É impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada e bem cuidada de amar”. (FREIRE, 2002, p.10) Convém lembrar que ao tratar da amorosidade como um dos saberes necessários à docência, Freire (2002) não perde de vista as dimensões afetiva, epistemológica e política do fazer pedagógico. Não se trata de um amor romântico, permissivo, mas um amor engajado que corrige e ajuda o outro a crescer como gente, como sujeito. Embora identifiquemos na literatura e história da Educação Infantil vinculação ao feminino, essa associação direta ao amor, ao materno na Educação Infantil não foi evidenciada diretamente nas justificativas das professoras. Elas deram mais ênfase ao amor à criança e à profissão, como requisitos para o desenvolvimento do trabalho. Nas associações e justificativas das professoras para o termo amor, as referências à profissão e às crianças aparecem como razões principais para se tornarem e permanecerem professoras. É o que podemos perceber nas suas justificativas para escolha desta palavra como mais importante: Eu há 25 anos atrás escolhi ser professora por amor, nunca pensei em outra profissão. Sou apaixonada pela Educação Infantil. Mas tem que saber sobre elas.. se preparar, não é pra qualquer um... (Profa.53 P-E PUB) 152 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 Para trabalhar com os pequenos, nós professoras temos que ter muito amor pelo que fazemos, pois não é fácil, tem que ter preparo, mas tudo que você faz com amor, você faz bem feito. (Profa.40 P-E PUB) O amor é a base de tudo e motiva a realização de um bom trabalho. Mas, tem que ser profissional para trabalhar com elas. (Prof.28 P-E PUB) Ao triangularmos as justificativas dadas para a palavra amor pelas participantes, tomando por base às variáveis faixa etária e tempo na profissão, constatamos que são as professoras de mais idade (acima de 50 anos) e com mais tempo de profissão àquelas que mais associam o ser professora de Educação Infantil ao amor. Na literatura, vários estudos que abordam a docência na Educação Infantil dão destaque ao amor como elemento comum quando ouvem professoras a respeito da profissão. Estudo desenvolvido por Alves (2006) junto a professoras de Educação Infantil indicou o amor à profissão como um dos significados do ser professora de crianças pequenas. No caso desta pesquisa, embora as justificativas para a associação livre destaquem um amor das professoras ao que faziam e às crianças com as quais trabalhavam, o amor à profissão assumiu um enfoque diferente do estudo anterior. Os elementos indicaram um sentido de amor à profissão aliado a importância e necessidade de preparo profissional. Evidenciaram a formação e qualificação específica com requisitos para atuar na Educação Infantil. Ainda em relação ao termo amor, percebemos que, algumas poucas vezes, nas justificativas o termo foi articulado à vocação. Isto ocorreu quando as professoras se referiram ao amor à profissão. Para elas só amor é capaz de superar as adversidades da docência principalmente a falta de reconhecimento e os baixos salários: 153 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 Conseguir lecionar é uma tarefa difícil diante das questões: financeira e reconhecimento. Só com amor e vocação para superar essas questões e fazer um bom trabalho. (Profa.03 P-E PRIV) Ensinar requer ter amor por sua profissão, pois é uma vocação e só desperta a paixão de ensinar (aprender) quem tem paixão de ensinar (Profa.13 P-E PRIV) Vocação no contexto das justificativas apresentadas pelas professoras acima aparece como algo construído socialmente diferente de dom ou predisposição natural para o desempenho de determinada ocupação. Alves (2006) a estudar a profissão docente, a vocação foi relacionada a uma carreira adequada para mulher,sua docilidade e bondade naturais. Em pesquisa sobre os significados da docência em Educação Infantil, Alves (2006) revelou que, para as professoras a vocação é sinalizada como uma predisposição para servir e ajudar o outro, a profissão foi associada ao sacerdócio. De modo parecido, Arce (2001), em pesquisa junto a alunos de pedagogia sobre as habilidades necessárias ao trabalho na Educação Infantil, constatou forte referência a imagem da profissional de Educação Infantil associada a mulher sem formação ou qualificação para o exercício de seu trabalho. No estudo do qual resultou este artigo não localizamos essa associação do ser professora de Educação Infantil ao ser mulher, sem qualificação ou formação. De maneira geral todas as participantes de nosso estudo, principalmente em outra fase da pesquisa quando tiveram oportunidade de falar mais sobre a profissão, reconheceram o valor e necessidade do preparo profissional para lidar com as crianças de zero a cinco anos. Ressaltamos que é frequente aparecer nos trabalhos que abordam o magistério ou a docência em diferentes níveis a referência ao amor. Santos (2010), por exemplo, investigando as representações sociais do ser professor, construídas por professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, 154 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 constatou que essas professoras associam o ser professor à vocação, gostar de criança, amor e maternagem. Sales (2012), ao estudar as representações sociais de docência no ensino superior, identificou o amor como elemento dessas representações. No seu estudo o amor, ao qual se referiram os estudantes, relacionou-se ao gosto pela docência. Também, Monteiro (2007), ao investigar como professores de Educação Infantil representam seu próprio trabalho, identificou o amor como parte dessa representação. Em seus achados percebeu o esforço dos professores de pré-escola para se diferenciarem dos professores da creche. Constatou entre os professores da pré-escola um possível núcleo central das representações de docência focado nos termos amor e paciência, enquanto que os professores de creche representaram sua própria atividade centrada no cuidar de criança. No que se refere ao núcleo central, não localizamos nesta investigação diferenças entre professoras de creche e pré-escola. Em ambos os grupos o amor à criança e ao trabalho que desenvolvem ganhou destaque nas representações do ser professora para o grupo. Para Abric (1998) a representação é um sistema de pré- codificação da realidade porque ela determina um conjunto de antecipações e expectativas, desta forma, representar é significar, dar sentido as condutas de um grupo e compreender a realidade em que estão inseridos. Assim, inferimos que as representações do ser professora e Educação Infantil centradas no amor à profissão determinam o modo de interação e relação das professoras com as crianças pequenas. O que conseguimos depreender das evocações a justificativas ao termo amor nesta pesquisa, embora colocado como atributo para docência na Educação Infantil e articulado à vocação e ao gostar de criança, não ganhou conotação romântica, dócil e peculiaridade do feminino. As professoras deram maior destaque ao amor como elemento de superação das adversidades financeiras, desvalorização, baixos salários. Para elas com amor é possível, ir adiante realizando um bom trabalho. 155 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 Dedicação foi a terceira palavra mais forte do núcleo central. Foi o termo mais evocado pelas professoras quando pensaram no ser professora de Educação Infantil. As docentes relacionaram dedicação ao compromisso, estudo, empenho, zelo com a construção do conhecimento das crianças e busca de formação para atuar na docência. A dedicação nos leva a estar estudando sempre, conhecendo nossos alunos, trabalhando com amor e acima de tudo nos conscientizando a cada dia da responsabilidade que temos quanto a construção do conhecimento dos nossos aluno. (Profa. 87 P-E PRIV) Temos que nos dedicar o bastante para transmitir bons conhecimentos aos alunos. (Profa. 112 CR PUB) Diferentemente do que constatamos, Alves-Mazzotti (2007) identificou a dedicação, como elemento central da representação social do ser professores dos anos iniciais do ensino fundamental associada à vocação, missão, dom como algo intrínseco à docência. Em estudo posterior enfatizando os processos de objetivação e ancoragem da representação do ser professor, com o mesmo grupo de professores, Alves-Mazzotti (2008) localiza a dedicação como o principal atributo da docência. Segundo ela, devido às dificuldades enfrentadas no cotidiano escolar, desqualificação da profissão, carência dos alunos, a dedicação é naturalizada, objetivada por esses profissionais. O que pudemos depreender do que foi justificado pelas professoras que participaram desta pesquisa é que com dedicação é possível superar os obstáculos enfrentados no dia a dia da docência desenvolvendo um bom trabalho nas creches e pré-escolas. Dinamismo foi outro termo que ganhou destaque nas representações sociais do ser professora de Educação Infantil. A palavra dinamismo foi associado à iniciativa, empenho, envolvimento com o fazer pedagógico de modo a atender aos 156 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 interesses e necessidades dos grupos de crianças matriculados em creches e pré-escolas. Justificaram as professoras: A professora de educação infantil tem que ser dinâmica. Com dedicação e dinamismo irá desenvolver um bom trabalho com os pequenos. (Profa.131 CR PUB) Todo professor que trabalha com a educação infantil deve ser dinâmico para que possa desempenhar bem o seu trabalho com seus alunos. (Profa.50 P-E PUB) [...] .a educação infantil exige uma dinâmica mais envolvente que atrai as crianças... (Profa.81 CR PUB) Sobre o termo criatividade, quarto termo mais justificado como importante e o segundo mais evocado pelas professoras, foi uma palavra relacionada ao prazer, ao novo, ao interessante na prática com crianças pequenas. As participantes se referiram a capacidade desse profissional para inovar e estimular as aprendizagens e desenvolvimento infantis. Sobre a criatividade as professoras justificaram: Criatividade - quando a professora é criativa suas aulas se tornam mais prazerosas. (Profa.19 P-E PUB) Criatividade - pois temos que buscar a cada dia algo novo, interessante que chama a atenção. (Profa.21 P-E PUB). Ter criatividade, conforme justificaram nos trechos abaixo, consiste em estimular a criação e a curiosidade das crianças. Ser criativa é considerado um indicativo de qualidade do trabalho da professora de Educação Infantil. Elas justificaram: A criatividade é uma qualidade inerente a professora de educação infantil, pois ao tratar com essa faixa etária é necessário a busca por aprimoramento para estimular a curiosidade 157 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 da criança de modo que venha a desenvolver suas habilidades. (Profa.34 P-E PUB) O trabalho na educação infantil exige da professora o exercício da criatividade para elaborar atividades que atendam da melhor forma a criança na construção do conhecimento. (Profa.62 P-E PUB) Pelas justificativas apresentadas podemos admitir que a criatividade foi consideradapelas professoras como a capacidade de estimular de diferentes formas o desenvolvimento e aprendizagem na Educação Infantil favorecendo a construção do conhecimento. Esse termo associou-se a outras palavras presentes no quadrante do núcleo central como alegria e dinamismo. A palavra carinhosa também integra o núcleo central. Ao evocarem e justificarem a palavra carinhosa como requisito para ser professora de Educação Infantil, as professoras deixaram entrever que assumem esse comportamento, porque as crianças, ao deixarem ao lar, precisam desse aconchego na instituição, ou devido as carências de afeto vivenciadas na própria família. Assim elas afirmaram oferecer esse suporte às crianças. Justificaram: Temos um papel muito importante na vida de nossas crianças em sala de aula e fora dela também, pois nossas crianças estão precisando de muito carinho e compreensão porque a realidade familiar às vezes deixa a desejar. (Profa. 82 CR PUB) [... ] a criança ao chegar ao sair do seio familiar, busca na escola... aconchego, cabe ao profissional dar ao aluno este apoio... (Profa. 07 P-E PRIV) O termo carinhosa e as justificativas que lhe foram conferidas revelaram uma certa preocupação das professoras em substituírem famílias ausentes. Em relação ao que justificaram sobre este termo, embora possamos inferir uma vinculação 158 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 à Educação Infantil compensatória de carências afetivas, necessitaríamos de maiores investigações para confirmá-la. Contudo, não podemos deixar de admitir que vários estudos, no âmbito do ensino fundamental, reclamam a ausência da família ou desestruturação familiar como obstáculo ao desenvolvimento e aprendizagem. Falsarella (2008, p.36) destaca a necessidade de uma redefinição do conceito de família como algo mais abrangente. Segundo a autora: [...] o lar ainda oferece abrigo proteção e calor humano em um mundo de dura sobrevivência econômica e emocional, mas novos modelos de família são possíveis. [...] o que define a nova família são as funções desempenhadas por seus membros em suas interrelações com características de lealdade, afeição e pertinência sendo que nenhuma configuração familiar pode ser considerada melhor ou pior do que outra. Entendemos que, embora a família assuma diferentes modelos de organização, ela ainda é a fonte de proteção social de seus membros, espaço de relações do diálogo, amor, carinho, respeito, disciplina e limites. Desse modo, as professoras às vezes por perceberem as crianças pequenas chegam ao ambiente escolar sem os devidos cuidados ou orientações que competem à família, demonstram sensibilidade e acabam por assumir responsabilidades que não lhes são próprias. Foi nesse contexto em que, sobretudo as professoras vinculadas a instituições públicas que atendem crianças de zero a três anos, destacaram “o ser carinhosa com as crianças”, como requisito da professora de Educação Infantil. Também presente no quadrante referente ao núcleo central situa-se a palavra alegria que apresentou frequência e OMI relevantes. Para as participantes da pesquisa, a alegria foi também considerada um atributo para a docência na Educação Infantil. Como é possível depreender das justificativas, dadas para a escolha dessa palavra, ela foi relacionada ao bom 159 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 humor e descontração no exercício das práticas docentes. As professoras justificaram: Alegria porque o bom humor deve prevalecer com as nossas crianças. (Profa.74 P-E PUB) Porque é com alegria (bom humor) que faço meu trabalho. Mostrar alegria no que faz para os alunos é uma forma de incentivá-los. (Profa.94 P-E PUB) Depreendemos que a alegria a que as professoras se referem diz respeito ao bom humor, descontração, animação para estimular o desenvolvimento e aprendizagem infantis. Elas parecem resistir a um modelo de professor sisudo, mal humorado, que certamente não estaria disposto a interagir com as crianças facilitando seu desenvolvimento e aprendizagem. As justificativas, também, não nos autorizam afirmar que as professoras que ouvimos nesta pesquisa estejam defendendo que a alegria deve fazer parte da natureza da docente. O núcleo central, de acordo com Abric (1998), é determinado pela natureza do objeto representado, relações estabelecidas o sistema de valores e normas sociais do grupo. Conforme aqui exposto, o núcleo central estruturador das representações sociais do ser professora de Educação Infantil é marcado por elementos de ordem subjetiva (como o amor, alegria e carinho) e de natureza objetiva como (comprometimento, dedicada, dinamismo e criatividade). Um misto desses elementos. Apesar dessa mescla de elementos de ordem subjetiva e objetiva o ser professora de Educação Infantil não foi vinculado à guarda ou proteção e assistência às crianças nas instituições. Mesmo o termo amor, na maioria das justificativas foi relacionado à dedicação, apego ao trabalho, considerado como desvalorizado. O amor foi justificado como um sentimento que mobiliza e impulsiona o desenvolvimento do trabalho e superação das dificuldades impostas à profissão. A presença de termos de ordem mais objetiva no quadrante superior esquerdo do quadro nos leva a inferir 160 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 que o proclamado pela LDB nº 9394/96, para a Educação Infantil, sobretudo, as exigências para com a formação dos profissionais, pode depois de mais de uma década, estar tendo ressonância, afetando as representações sociais das docentes dessa etapa da educação básica. Identificamos, portanto, um núcleo central das representações sociais do ser professora de Educação Infantil que incorpora elementos normativos, originados do sistema de valores, ligados a história e a ideologia do grupo e elementos considerados funcionais, relacionados às novas condutas frente ao objeto representado, de ordem profissional vinculados à defesa da cidadania da criança e necessidade de formação do professor. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma podemos afirmar que caminhamos na direção de um núcleo central das representações do ser professora de Educação Infantil vinculado a profissionalização. As professoras, mesmo quando destacaram o amor o termo não foi evocado na perspectiva romântica, da abnegação da vocação, ou sacerdócio. Foram muito pontuais as justificativas nesse sentido. Isto quer dizer que algo normativo muito presente e arraigado em relação docência na Educação Infantil parece estar dando lugar ao que vem despontando ou se modificando no contexto das práticas, ou seja, da formação a que tem acesso e os ditames da política educacional. O termo dedicação, por exemplo, aludiu muito mais ao compromisso ou comprometimento, termo mais escolhido pelas professoras como o mais importante no conjunto geral de todas as evocações. A dedicação e o compromisso ganharam contornos semelhantes como elementos funcionais do núcleo central de busca pela formação e profissionalização. As evocações das professoras explicitaram a dinâmica e o movimento da representação, ou seja, evidenciaram que elas estão no cotidiano tendo acesso a informações, 161 Compromisso e amor como elementos centrais das representações do ser professora de educação infantil Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 137-164, nov. 2015/ fev. 2016 comunicações diversas e não são passivas. Mas, ao contrário, como apropriadamente pontua Moscovici(1978) são “sábias amadoras” reagem ativamente ao que está sendo posto e exigido em relação ao segmento em que atuam. Respondem ao novo, às políticas, a formação, as próprias práticas que desenvolvem, o trabalho com os pares, literatura a que tem acesso, entre outros. REFERÊNCIAS ABRIC, Jean-Claude. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, Antonia Silva Paredes; OLIVEIRA, Denize Cristina de (Orgs.). Estudos interdisciplinares de Representação Social. Goiânia: AB, p. 27-38, 1998. _________. 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Disponível em http://www.anped.org. br acessado em 07 de outubro de 2011. 162 Idélia Manassés de Barros Silva Laêda Bezerra Machado Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.137-164 , nov. 2015/ fev. 2016 ARCE, Alessandra. Compre o kit neoliberal para a educação infantil e ganhe dez passos para se tornar em professor reflexivo. Educação & Sociedade, Campinas, v.22, n.74 p. 251-283, abr. 2001. CAMPOS, Jamerson Ramos. “Era um sonho desde criança”: a representação social da docência para os professores do Município de Queimadas – PB. 2008. 174f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008. CERISARA, Ana Beatriz. Professoras de educação infantil: entre o feminino e o profissional. São Paulo: Cortez, 2002. FALSSARELLA, Ana Maria. E a família, como vai? Rev. Presença Pedagógica. vol.14 n.84, nov/dez 2008. FREIRE, Paulo. Professora, sim; tia, não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho D’água, 2002. HADDAD, Lenira. 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Denilson Santos de Azevedo1 Talitha Estevam Moreira Cabral2 Resumo Este artigo versa sobre aspectos referentes ao processo de criação e os primeiros anos de funcionamento do primeiro Grupo Escolar público fundado no município de Muriaé (Minas Gerais), denominado Grupo Escolar Silveira Brum (GESB). A investigação aqui problematizada, especificamente, aborda questões relativas à criação e consolidação do educandário, dando ênfase aos assuntos referentes às festividades escolares ocorridas no estabelecimento de ensino suprarreferenciado. O recorte temporal se justifica em virtude da data de fundação dessa instituição (1912) e o fim da Primeira República no Brasil (1930). Para a consecução do trabalho foram consultados documentos como relatórios do Grupo, ofícios e correspondências enviados à Secretaria do Interior, atas de eventos e outras fontes oriundas de visitas ao Arquivo Público Mineiro (APM), com sede em Belo Horizonte/ MG, e ao acervo existente na atual Escola Estadual Doutor Silveira Brum, em Muriaé/MG. Esta análise permitiu identificar que as comemorações no Grupo atendiam aos interesses dos republicanos, que pretendiam se instituir no 1 Denilson Santos de Azevedo – Universidade Federal de Viçosa (UFV). E-mail: dazevedo@ufv.br 2 Talitha Estevam Moreira Cabral – Universidade Federal deViçosa (UFV). E-mail: talitha.cabral@ufv.br 166 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 poder e difundir os ideais de civismo e amor à pátria no Brasil, no início do século XX. Palavras-chave: História da educação; Grupos escolares; Festas escolares Abstract This paper discusses aspects related to the process of creation and the first years of operation of the first Public School Group founded in the city of Muriaé (Minas Gerais), called Grupo Escolar Silveira· Brum (GESB). Research problematized here specifically addresses issues related to the creation and consolidation of the breed, with emphasis on issues related to school festivities took place at the school cited. The time frame is justified because the date of the founding of this institution (1912) and the end of the First Republic in Brazil (1930). To the achievement of labor were consulted documents as Group reports, offices and letters sent to the Secretary of the Interior, minutes of meetings and other sources by visits to the Arquivo Público Mineiro (APM), based in Belo Horizonte/MG, and the existing acquis in current Escola Estadual Doutor Silveira Brum in Muriaé/MG. This analysis revealed that the celebrations in Group met the interests of Republicans, who wanted to be instituted in power and spread the ideals of good citizenship and love of country in Brazil, in the early twentieth century. Keywords: History of education; School groups; School parties. 167 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 A CRIAÇÃO DO GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM E SEUS PRIMEIROS ANOS DE FUNCIONAMENTO: RELAÇÕES ENTRE A REPÚBLICA E AS FESTAS ESCOLARES (1912-1930). O presente artigo apresenta alguns resultados da investigação sobre o processo de criação e os primeiros anos de funcionamento do primeiro grupo escolar público fundado no município de Muriaé (Minas Gerais), o Grupo Escolar Silveira Brum (GESB), criado em 1912. Com o intuito de analisar a cultura escolar produzida neste estabelecimento de ensino até a década de 1930, foram consultados documentos e outras fontes que tratam da trajetória do referido educandário, enfatizando a questão das festas escolares, que supostamente representavam, naquele momento, uma tentativa de valorização dos preceitos republicanos. A análise feita nesse trabalho permitiu identificar características da organização e do funcionamento da escola, bem como da cultura escolar instituída nos primeiros anos de sua criação e as práticas pedagógicas ali incorporadas e difundidas, especialmente por meio das festividades que ocorriam no ambiente escolar. A CRIAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DOS GRUPOS ESCOLARES NO BRASIL E SUA INFLUÊNCIA PARA O ENSINO PRIMÁRIO MINEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XX Muito já foi escrito sobre a formação dos grupos escolares no Brasil. Dentre os estudos que realizamos, o debate a respeito da criação e difusão desses educandários vêm sendo objeto de estudo por diversos pesquisadores em História da Educação nos últimos anos, tais como Carvalho (1989); Faria 168 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 Filho (2000); Pinheiro (2002); Reis (2006). O acúmulo das investigações sobre essa temática tem propiciado a elaboração de balanços críticos e um volume considerável de publicações. Essas reflexões servem de referência e ponto de partida para a pesquisa que nos dispusemos a apresentar nesse texto. Conforme a literatura sobre o assunto nos apresenta, no final do século XIX e início do século XX, um novo modelo de escola passou a vigorar no Brasil. A partir de 1889, com a instalação da república, o modelo educacional que vigorava até aquele momento, baseado no preceito das escolas domésticas3, passa a ser visto como ultrapassado e incapaz de atender aos ideais propagados pelos defensores do novo regime, como democracia, ordem, progresso e amor à pátria. Os republicanos pretendiam, a partir desse momento, disseminar seus valores, preparando a criança para viver em uma sociedade capitalista. Segundo Corsetti (2002, p.2): a política educacional dos republicanos buscou preparar o homem adequado ao processo de consolidação do capitalismo, para que os aspectos relacionados com a disciplina, o respeito à hierarquia e à autoridade, o controle rigoroso das atividades e o uso produtivo do tempo, bem como os demais valores decorrentes de uma prática com base nesses elementos, constituíram-se em “ingredientes” permanentes do cotidiano escolar. Para atender aos intuitos propostos pelo novo modelo educacional, ocorre um movimento de renovação da escola primária por meio do surgimento dos grupos escolares. Essa transformação teve um profundo significado social, político e cultural visto que não representava apenas a “democratização” do acesso à leitura e à escrita, mas a implantação de uma 3 Nesse modelo educacional, as aulas aconteciam em ambientes cedidos e preparados pelos responsáveis, sem vínculo com o Estado. O pagamento do professor era de responsabilidade do contratante individual ou de um grupo de contratantes. (FARIA FILHO, 2000). 169 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 instituição educativa responsável em difundir novos valores, hábitos e deveres. O modelo “grupo escolar” representava um novo ideal de racionalização e uniformização do trabalho escolar, no que diz respeito a conteúdo, condutas, práticas pedagógicas, horário e cultura escolar; era uma tentativa de homogeneizar o currículo e fiscalizar o trabalho realizado nesses espaços. Especificamente no estado de Minas Gerais, esses estabelecimentos de ensino foram criados no governo de João Pinheiro, através da Lei nº 439, de 1906. Na imprensa mineira, notas referentes à nova organização do ensino demonstravam a importância conferida à educação nesse novo modelo educacional. A questão da arquitetura dos prédios é bastante valorizada, a fim de demonstrar a centralidade conferida à educação nesse período. Tão importante quanto a estrutura dos edifícios que sediavam os grupos escolares, eram as práticas difundidas nesse ambiente. Num discurso veiculado na Imprensa Oficial de Minas Gerais, um dos secretários do Interior escreve que: A fusão de diversas escolas num só instituto, subordinado a uma única direção traz, como conseqüência, melhor orientação e mais suave difusão do ensino, devido à especialização de funções resultantes da divisão do trabalho de cada docente. A aplicação da Lei econômica da divisão do trabalho nos grupos escolares apresenta os mais robustos resultados. (MINAS GERAIS, 1913). Essas transformações incluíram também o currículo das escolas. Saviani (2006) nos lembra que nos programas escolares foram reorganizadas várias disciplinas. Com a nova exigência curricular, modifica-se também a forma de ensinar. A nova metodologia adotada para esse modelo educacional foi denominada como método intuitivo ou lição das coisas, o qual implicava na adoção de um projeto concreto, racional e ativo de escolarização. 170 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 Com tantas exigências, transformações e regulações, este modelo de escola se tornou referência naquele momento histórico, seja pela metodologiaentão adotada ou pelo modo de organização da prática pedagógica, com a racionalização do trabalho e a divisão de tarefas, seja pela estrutura tida como adequada para as atividades escolares, obedecendo às prescrições sanitaristas e higiênicas. Feitas essas breves considerações acerca da criação dos grupos escolares no Brasil, percebe-se, portanto, que as práticas difundidas com a criação desses educandários em Minas Gerais, tendo como pano de fundo no caso desta pesquisa o GESB, foram fundamentais para a consolidação de uma nova maneira de se fazer a escola primária. E é nesse sentido que abordaremos a seguir aspectos referentes ao cotidiano do grupo escolar muriaeense, enfatizando as comemorações ocorridas no interior dessa instituição de ensino nos anos de 1912 a 1930. GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM: AS RELAÇÕES ENTRE A REPÚBLICA E AS FESTIVIDADES ESCOLARES O modelo educacional da cidade de Muriaé praticamente não se difere das demais propostas recomendadas a partir da criação dos grupos escolares. Tanto no que diz respeito à organização do trabalho, bem como na sistematização das práticas pedagógicas difundidas no espaço escolar, inclusive no que diz respeito à realização das festividades escolares. Para compreender melhor essa situação, analisaremos alguns aspectos dos primeiros anos de funcionamento do GESB que nos forneceram pistas para compreender como estavam ocorrendo as situações de comemorações nesse Grupo. Criado pelo decreto 3.305, de 5 de setembro de 1911, o GESB foi inaugurado em 07 de agosto de 1912 sob a direção do professor José Gonçalves Couto, que depois de nomeado por ato do Sr. Governador do Estado, Júlio Bueno Brandão, em 12 de janeiro de 1912, permaneceu no cargo até 13 de abril de 1936, quando se aposentou. 171 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 A respeito da estrutura do Grupo Escolar Silveira Brum, a Revista de Historiografia Muriaeense (1979) aponta que o edifício sobressaía-se como um dos melhores prédios da cidade. Criado exclusivamente para o fim da instrução, o prédio foi edificado dentro do conjunto arquitetônico da Praça Coronel Pacheco de Medeiros, um dos principais pontos de referência da cidade no início do século XX. Abaixo podemos ver uma foto do Grupo durante os primeiros anos de funcionamento: Figura 1: Prédio do Grupo Escolar Silveira Brum (1916) – Fonte: Arquivo Municipal Na continuidade da análise dos documentos encontrados, como os diversos relatórios escolares, bem como em relatórios de visitas de inspeção, percebemos que o primeiro diretor, José Gonçalves Couto, cumpria as tarefas a ele designadas. Nos ofícios enviados à Secretaria do Interior percebemos a distinta atenção dada às questões relacionadas com as práticas pedagógicas, de modo a garantir que a disciplina e a ordem fossem cumpridas nas salas de aula. Também encontramos, em um relatório datado de 28 de dezembro de 1912, a descrição do método pedagógico desenvolvido no GESB. Neste trecho foi possível identificar como as lições de coisas proposta pelo método intuitivo estava sendo trabalhada. A equipe de visitantes particulares escreveu que o educandário se configurava como um exemplo de modelo escolar: 172 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 É que nelle se conjugam e admiravelmente se casam os melhores mhetodos pedagógicos com a mais séria disciplina e ordem. As licções ministram-se por processos brandos e altamente profícuos fiados na intuição e analyse dos factos múltiplos que constituem a essência da escola moderna. A noção das coisas caminha da mais simples para a menos complexa, ensinando a mente infantil para dellas se apreender suavemente para a vida independente e autônoma do individuo na sociedade [...] nunca imaginamos que em quatro escassos mezes de aulas tanto se conseguisse de resultados esplendidos nesta casa [...] (RELATÓRIO DE VISITA DE PARTICULARES, 1912, s/p). Não obstante, a respeito de algumas informações contidas nos documentos pesquisados, cabe salientar que esses materiais são aliados importantes na construção da realidade cotidiana do Grupo. No entanto, é conveniente que tenhamos cautela na análise desses escritos localizados pelo fato de que, algumas informações localizadas, podem ser tendenciosas no sentido de exaltar em demasia determinados aspectos positivos e tapar as lacunas e problemas existentes no estabelecimento, pois nem sempre foi possível identificar, com a leitura do material localizado, quem eram essas pessoas que documentavam as informações. É necessário, então, que se acrescentem os demais elementos obtidos dos variados materiais estudados, elaborando um paralelo e um comparativo do que poderá ou não ser o mais próximo da realidade, haja vista que, em se tratando de história, torna-se uma tarefa complexa resgatar completamente uma realidade, sem que fiquem dúvidas e/ou outras considerações a serem analisadas a posteriori. Apesar dessa dificuldade da área, podemos nos apropriar de algumas informações pesquisadas para tentar explicar uma dada situação. Nesse sentido, no que tange aos professores que atuaram no ensino primário do GESB, podemos inferir através dos documentos investigados que, em sua maioria, possuíam 173 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 formação de normalistas, obtidas nas Escolas Normais do Estado e do próprio município. Foi possível perceber que o acesso e a ascensão na carreira profissional do magistério dependia tanto da competência profissional quanto da influência política e pessoal do docente pois na cidade de Muriaé os contratos não se davam apenas por indicações políticas, mas também eram resultado dos concursos realizados pelo Grupo. Como se supõe do documento localizado no Arquivo Público Mineiro, que apresenta um concurso de “Uma vaga adjuncto - Grupo Escolar de S. Paulo do Muriahé Interior, 6ª secção, 27-XI-1917”. Após a contratação e antes de iniciar o trabalho docente no Grupo, os professores deveriam apresentar sua origem familiar e atestar sua boa conduta moral e sanidade física. Nos documentos consultados, esses três tipos de declarações eram pré-requisito para o exercício de seu cargo: atestado de bons antecedentes criminais, de boa saúde e de filiação. O corpo de profissionais compunha-se, inicialmente, de oito professores da cidade, muitos lecionando gratuitamente. Sobre a rotina escolar da instituição, ainda no primeiro relatório escrito pelo diretor José Gonçalves Couto à Secretaria do Interior, são apontadas características desse cotidiano, determinadas através de uma programação regrada e pré- estabelecida: De 12 de agosto a 22 de janeiro de 1913, diariamente às 10,50 foi encerrado o ponto de entrada dos professores [...]. Das 10,50 as 11 assistiam, em posição militar corretíssima, ao hasteamento da bandeira [...] Um alumno, previamente designado por mim, saudava com enthusiasmo a bandeira, terminando sempre a sua saudação com um vibrante Viva ao pavilhão Nacional, no que era compreendido pelos colegas. Às 11 em ponto, já em classe, feita a revista, começavam as professoras os seus trabalhos escolares. 174 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 No dia 22 de janeiro de 1913, de acordo com o artigo 291 parágrafo único doregulamento vigente, passaram as aulas a funcionar das 7 às 11 da manhã, seguindo-se a mesma ordem referida. Os exercícios physicos são feitos no pateo do edifício [...]. Nos 10 minutos de recreio, durante o qual são os alumnos fiscalizados por dois professores que se revezam durante a semana, os rapazes passam para um pateo [...] separado por uma tella de arame. (RELATÓRIO DO MOVIMENTO ESCOLAR, 1913, s/p). Nesse excerto é interessante perceber a exaltação que era feita ao elemento patriótico, representado – nesse caso – pela bandeira nacional. Diariamente, os alunos eram convidados a reverenciá-la, o que nos permite supor que, essa ação, era uma maneira de reforçar o caráter nacionalista e republicano do novo modelo educacional. Essa exaltação dos ideais de “Ordem e Progresso” trazidos pela República são identificados em diversos outros momentos no GESB. Outro documento que indica a disseminação dos ideais republicanos é um relatório de visita de particulares, em que um dos visitantes escreve: Depois de percorrermos todos os salões de estudo, onde apreciei graciosos e complicados trabalhos manuaes, e outras cousas, soou, eloquentemente, a sineta que nos annunciava o recreio infantil. Instantes depois passava, em formatura elegante, a alegre criançada. A nota destaque do momento foi a continência á bandeira nacional. O que mais me admirou foi o respeito com que [...] saudaram o auriverde pendão. [...] todos os apparelhos exigidos pela pedagogia hodierna alli se encontram, no mais perfeito estado de asseio e conservação, prestando os seus relevantes serviços á causa da vida pratica [...] a mnemotechnia é observada com todo 175 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 o rigor [...] (RELATÓRIO DE VISITA DE PARTICULARES, 1913, s/p). Outro momento específico de exaltação dos preceitos republicanos diz respeito às festividades escolares. Nos relatórios anuais localizados podemos perceber que as datas da Independência do Brasil e da Proclamação da República sempre eram muito comemoradas. De acordo com Roger Chartier (1987) a realização de festas cívicas foi impulsionada por meio da Revolução Francesa. Essas comemorações revolucionárias carregavam em si um interesse pedagógico de complementar a educação escolar formal, além de garantir a formação integral do sujeito, baseada na educabilidade natural do homem. As festas escolares do Grupo Escolar Silveira Brum aconteciam com frequência desde a sua fundação. Eram momentos que estavam intimamente relacionados às datas cívicas e aos princípios patrióticos, e que pretendiam refletir o movimento comum a outros grupos escolares mineiros que aproveitavam destas solenidades para disseminar os ideais republicanos. No educandário suprarreferenciado até o espaço foi pensado para a realização dos eventos escolares, conforme se infere de documento localizado no arquivo da atual Escola Estadual Doutor Silveira Brum: Os seus salões, em número de doze: oito para as aulas, um para o gabinete do director, um para o museu escolar, outro – o nobre – destinado à reunião dos alumnos nos dias de festas escolares, e, (...) o vestíbulo (...) são vastíssimos e mui bem arejados. (...) (RELATÓRIO DO MOVIMENTO ESCOLAR, 1913, s/p, grifo nosso). Sobre as festividades, de acordo com o relatório do diretor, o dia da inauguração do prédio escolar foi marcado de muitas comemorações, com a presença de pessoas ilustres: 176 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 A este acto, que se reveste de toda a solenidade, compareceram quasi todas as auctoridades locaes, a câmara municipal incorporada e muitas famílias. O governo foi representado pelo Exmo. Sr. Dr. Antonio da Silveira Brum. [...] Ao acto da installação compareceram, dos 568 matriculados, 420 alumnos. No dia 7 deste, ao meio dia, houve a solennidade da benção do prédio pelo Revmo. Sr. Pe. João Pio, que pronunciou bella allocução. A este acto, compareceram muitas pessoas gradas. [...] Usando da palavra, o Sr. Silveira Brum agradeceu [...] as manifestações de apreço que lhe foram dirigidas [...] e me fez a entrega do prédio. Recebendo-o, agradeci a preciosa dádiva, promettendo enviar todos os meus esforços para que o Grupo, que é um dos primeiros do Estado, quanto ao prédio, o seja também, quanto a parte intellectual e moral [...]. Os alumnos cantaram o “Hymno a Tiradentes” [...] O Sr. Inspector escolar, depois de varias considerações sobre a instrução, tratou de fundar a Caixa Escolar, que recebeu o nome de V. Excia [...] Ás seis da tarde, encerrou-se a sessão, retirando-se em seguida todos os alumnos e convidados .[...] (RELATÓRIO DO DIRETOR, 1912, s/p) Em outro relatório enviado à Secretaria do Interior no ano de 1914, o diretor, Gonçalves Couto, relata que “algumas datas nacionaes, foram festivamente comemoradas” e apresenta que: O ensino primário era ministrado em quatro anos, com um programa enciclopédico com matérias que proporcionavam uma educação integral - a educação física, intelectual e moral. Previa a utilização do método intuitivo [...] Exigia-se uma rígida disciplina dos alunos (assiduidade, asseio, ordem, obediência, etc.). O tempo escolar passou a ser controlado através do calendário. Havia também práticas “ritualizadas” 177 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 e “simbólicas”, como os exames finais, as exposições escolares, as datas cívicas e as festas de encerramento do ano letivo. (RELATÓRIO DO DIRETOR, 1912, s/p, grifo nosso). Nesse trecho, é possível perceber que as festividades no Grupo representavam mais uma forma encontrada pelo diretor da escola para desenvolver, através de práticas “ritualizadas” e “simbólicas”, os ideais republicanos. Num outro documento consultado, Gonçalves Couto informa que os dias 7 de setembro e 19 de novembro foram festejados no GESB, datas referentes à Independência do Brasil (7 de setembro) e Proclamação da República (15 de novembro), respectivamente. No relatório sobre a festa de 7 de setembro, em 1913 (segundo ano de funcionamento do Grupo), o diretor evidencia o patriotismo por meio de uma comemoração à independência do Brasil que (...) Recebendo o mastro, que foi colocado à frente do Grupo Escolar, e a bandeira, que também foi confeccionada na Alemanha, agradeci em nome do governo a preciosíssima offerta. Em seguida, ao som do hymno nacional tocado pela corporação musical – 7 de setembro -, e entoado, vibrantemente, por todos os alumnos do grupo, elevou-se lentamente, garbosamente ao grande mastro a bandeira nacional que foi saudada por uma salva de 21 tiros. (RELATÓRIO DO MOVIMENTO DO GRUPO ESCOLAR DE MURIAÉ, 1913, s/p). Em 1915, temos que: o dia 7 de agosto – aniversário do grupo – 7 de setembro e 19 de novembro foram mais solenemente festejados. No dia 19 deste mez houve a solennidade da entrega de certificados de approvaçação dos alumnos que concluíram o curso. (RELATÓRIO DO DIRETOR, 1915, s/p). 178 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 Nesse relato, temos que a data da proclamação da República também foi festejada (quatro dias depois) para findar o ano letivo das crianças aprovadas. Já no relatório de 1919, o diretor cita outras datas que também eramcomemoradas no estabelecimento de ensino: Como nos annos anteriores, commemorando-se nesta casa de ensino, durante o anno a que se refere este relatório, as grandes datas normaes. Os dias 21 de abril, 7 de agosto – anniversario do grupo, - e 7 de setembro foram festejados com maior solennidades [...]. (RELATÓRIO DO DIRETOR, 1919, s/p). Outra festa que ocorrera no educandário muriaeense era a chamada “Festa da Árvore”, que costumava acontecer em outras localidades mineiras, com influência internacional de modelos de festas que existiam em países norte-americanos e europeus. No exterior, essa iniciativa acontecia através do plantio de árvores e palestras sobre a importância da natureza, a fim de mobilizar os cidadãos para o cuidado ambiental de seus países. Aqui no Brasil, segundo Rodrigues (2010, p.101), a Festa da Árvore consistia numa sessão solene em que era explicado o significado da festa, com palavras repassadas de muito carinho e amor às árvores (como se se operasse a transformação de um objecto profano, a árvore, em sagrado, sendo o sagrado o retorno da intimidade entre o homem e o mundo, entre o sujeito e o objecto). Recitavam-se versos e cantavam- se canções patrióticas durante a marcha que decorria desde a escola até ao local onde eram plantadas as árvores, que eram tidas como elos de ligação entre o tempo passado e o tempo vindouro. 179 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 E é com esse pensamento que, em 1917, o diretor aponta as comemorações do dia da Independência fazendo referência à festa da Árvore: Em comemoração da data da independência da nossa Patria, foram celebradas a festa das arvores, como determina V. Excia em portaria de 24 de agosto p. findo, e a das aves, como em completivo da 1ª; Foi executado o seguinte programma: Ás 12h – Dissertação dos professores, cada um em sua classe, sobre o 7 de setembro; Ás 12 1/2h – Allocução do director sobre as arvores e a celebração da festa das mesmas; Ás 2h – Plantio de arvores no pateo do estabelecimento por professores e alumnos [...] Durante a plantação – Hymnos “A Independência” e “A Bandeira”. Ás 2 1/2h – Liberdade aos pássaros trazidos pelos alumnos para este fim; Ás 3h – Distribuição de prêmios aos alumnos que, em procedimento, aproveitamento e assiduidade mais se distinguirem em agosto p. findo. (RELATÓRIO DO DIRETOR, 1917, s/p). Detalhes como estes citados nos excertos supracitados, percebidos durante as comemorações realizadas no Grupo, como o hasteamento da bandeira nacional, hinos patrióticos cantados em continência e aclamações aos poderes públicos, nos revela aspectos civilizatórios que foram, ao longo do tempo, incutidos nos alunos, fazendo com que sentimentos como o de amor a Pátria estivessem sempre relacionado à formação do indivíduo. Quanto a isso é possível entender que as festas cívicas e o hasteamento da bandeira nacional eram pensados pelos grupos escolares como um espetáculo formativo de sensibilidade 180 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 patriótica e de respeito ao regime republicano. Deve-se a isso, possivelmente, a intensa preocupação em festejar as datas marcantes na organização da República. Isso porque, mediante toda a nova organização do ensino, enquanto local de disseminação dos preceitos republicanos, criava-se também a idéia de uma memória nacional, que era buscada por meio das festividades escolares. Nas palavras de Rodrigues (2010, p.95): As festas contribuem para a constituição de um modo de construir e difundir referências e símbolos nacionais, integrando a memória coletiva nacional. Em momentos de tensão e ruptura históricas, as festas são organizadas para criar consensos e unir o povo a um ideal, conquistando a adesão do mesmo para novas propostas políticas e consolidando uma nova ordem social. A respeito dessas comemorações, Vieira e Marcusso (2009, p.2) nos informam que: Previstas no regulamento da Instrução Pública de Minas Gerais, e também de outros estados, eram momentos de evidência local para os Grupos Escolares, com a divulgação das ações republicanas e dos símbolos da República (bandeira, escudo e hino). Aconteciam com certa frequência, e por reunirem a comunidade escolar tornavam-se uma oportunidade de exaltação da escola e das autoridades presentes. Bencostta (2005) nos aponta que existia uma preocupação em inculcar consciências patrióticas nos discentes através dessas festas. Assim, calendários normatizadores foram instituídos para que se comemorassem datas cívicas. De acordo com Faria Filho (2000, p. 86): o hasteamento da bandeira, as festa cívicas e mesmo a inauguração dos grupos escolares eram momentos organizados e pensados 181 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 como espetáculos formativos, não apenas de comportamento, mas de sensibilidade e sentimentos em face da cidade, do regime republicano, da cultura das classe pobres, dentre outros. Ainda mediante as informações trazidas pelos relatos apresentados anteriormente, percebemos a magnitude concedida às datas cívicas do calendário. Essa era uma maneira de dar visibilidade às novas práticas pedagógicas implementadas nos novos modelos escolares. Indo ao encontro das idéias de Faria Filho, Lopes (2011, p.2) aponta que: em que pese as multiplicidades de usos, intencionalidades e sentidos existentes nas festas, estas eram utilizadas pelas escolas reunidas e grupos escolares, especialmente, para tornar mais visível sua ação pedagógica no contexto escolar, demarcando sua posição de importante inovação no aparato escolar existente. Reunião e movimentação de um número significativo de alunos, as festas escolares demarcavam mobilidade e status das escolas na cidade. Assim, os grupos escolares, no período analisado, situados no topo da hierarquia do sistema de ensino primário, participavam crescentemente das festividades públicas. Seus alunos passavam, cada vez mais, a figurar nas solenidades públicas discursando em nome delas. Na continuidade das análises dos documentos pesquisados, foi possível inferir que as festividades de fim do ano no GESB, na maioria das vezes, se distinguiam das demais comemorações do ano. Existia uma fiscalização que visava avaliar os resultados das tarefas realizadas no estabelecimento, e se estas estavam de acordo com as disposições legais. Não obstante, assim como as outras festas, esta devia ser registrada e divulgada na cidade a fim de fortalecer os ideais republicanos de desenvolvimento, ordem, progresso e amor à pátria. 182 Denilson S. de Azevedo Talitha Estevam M. Cabral Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.165-186 , nov. 2015/ fev. 2016 CONSIDERAÇÕES FINAIS A construção desse trabalho apoiou-se nos estudos dos teóricos da História da Educação Brasileira, particularmente os trabalhos sobre a criação dos grupos escolares no Brasil e em Minas Gerais. O cotejamento dos dados nesse artigo priorizou o estudo sobre as festividades escolares no início do século passado. Os resultados obtidos demonstram que a criação do Grupo Escolar Silveira Brum na cidade de Muriaé foi o marco inicial de um modelo de escolarização que surge em todo o país, incluindo o estado de Minas Gerais. No referido município, o educandário criado pretendia atender às exigênciasda república, com a divisão do trabalho, de modo a controlar os espaços e tempos escolares. A nova metodologia de ensino utilizada contava com a figura do diretor como responsável pela organização do trabalho, com a presença de um professor como regente do ensino elementar a um grupo de alunos divididos por séries no ensino primário. Essas modificações nas práticas escolares contribuíram para concretizar uma aprendizagem progressiva, com a gradativa implantação de um trabalho pedagógico cada vez mais embasado nos princípios republicanos e patrióticos. À guisa de exemplificação podemos compreender as festividades escolares como modos de disseminar os preceitos republicanos na sociedade brasileira naquela época. Nesse viés, a pesquisa mostrou no GESB havia o esforço de tentar alcançar o ideal de nação civilizada e de identidade nacional proposto com a proclamação da República. É possível inferir que as comemorações no Grupo representava o progresso da nação, e contribuía para a construção de um imaginário político voltado para os interesses republicanos capitalistas. Desse modo, o estudo realizado nos leva a crer que a orientação dos currículos escolares hoje são reflexo da 183 A criação do grupo escolar silveira brum e seus primeiros anos de funcionamento: relações entre a república e as festas escolares (1912-1930). Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 165-186, nov. 2015/ fev. 2016 sociedade em que vivemos, assim como no início do século passado o programa educacional estava voltado para os interesses republicanos, que se externaram por meio das festividades escolares. E, nesse sentido, a história da educação auxilia na compreensão de questões atuais, não com o intuito de solucionar os problemas que surgem, mas, com a intenção de lançar luz a aspectos já vivenciados em outros momentos históricos, capazes de orientar possibilidades e caminhos. REFERÊNCIAS Documentos pesquisados em Arquivos: GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM. Atas de Instalação, posse, exames, etc. (Arquivo Escola Estadual Doutor Silveira Brum), 1912-1924 GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM. Ofícios enviados e recebidos da Secretaria de Educação do Estado. (Arquivo Escola Estadual Doutor Silveira Brum), 1912 a 1930. GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM. Termos de Visitas Oficiais; Termos de Visitas Particulares. (Arquivo Público Mineiro e Escola Estadual Doutor Silveira Brum), 1912-1927. GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM. Cadernos de avaliação e certificados de aprovação dos alunos. (Arquivo Escola Estadual Doutor Silveira Brum), 1913-1916. GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM. Relatório do Diretor. (Arquivo Escola Estadual Doutor Silveira Brum), 1913-1919. GRUPO ESCOLAR SILVEIRA BRUM. Atas de Instalação e Exames; Relatórios do diretor; Termos de Assentamento e Posse; Visitas Oficiais e Particulares; diplomas; requerimentos; nomeações; decretos; licenças; procurações; frequência dos professores e/ou alunos. (Arquivo Público Mineiro), 1912-1930. Revista de Historiografia Muriaeense. Ano II, nº 2 – Muriaé/MG. Maio, 1979. MINAS GERAIS. Secretaria do Interior e Justiça. Relatório da Imprensa Oficial. (APM), 1913. Livros, artigos e periódicos: BENCOSTTA, M. L. A. Grupos escolares no Brasil: um novo modelo de escola primária. In: BASTOS, M.H.C. & STEPHANOU, M. (Orgs). Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, p. 68–76, 2005. CARVALHO, M. M. C.de. A escola e a República. São Paulo: Brasiliense, 1989. CHARTIER, R. Lectures et lecteurs dans la France d’Ancien Régime. Paris: Éditions du Seuil, 1987. CORSETTI, B. A escola pública no Rio Grande do Sul e o projeto político republicano (1889/1930): a escola pública, a formação de professores e o controle disciplinar. In: Congresso Brasileiro de História da Educação: História e Memória da Educação Brasileira, 2, 2002, Natal. Anais. Natal: Núcleo de Arte e Cultura da UFRN, p. 1-12, 2002. FARIA FILHO, L. M. de. Dos Pardieiros aos Palácios – Cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UPF, 2000. LOPES, A. C. A escola em festa: Festividades escolares na I República no Piauí. Disponível em: http:<//www.faced.ufu.br/ colubhe06/anais/arquivos/396AntonioPaduaCarvalhoLopes. pdf> Acesso em: 15 nov. 2012. PINHEIRO, A.C.F.. Da era das cadeiras isoladas a era dos grupos escolares na Paraíba. 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In: Congresso Iberoamericano de História da Educação Latino-americana, 9, 2009, Rio de Janeiro. Anais, p. 1-7, 2009. Data de recebimento: agosto de 2014 Data de aceite: junho de 2015 187 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 HIGIENISMO, IMPRENSA E EDUCAÇÃO NA PARAHYBA DO NORTE: O PAPEL DA MULHER E A PEDAGOGIZAÇÃO DOS HÁBITOS Charliton José dos Santos Machado1 Larissa Meira de Vasconcelos2 Resumo Este artigo analisa os discursos pedagógicos voltados à conformação de hábitos e valores comportamentais presentes nos jornais da Parahyba do Norte, na Primeira República. Parte-se da premissa de que o fenômeno educacional não se limita à escola, mas se encontra difundido na sociedade. Logo, consideram-se como dotados de viés educativo, impressos que não se direcionam estritamente ao público escolar. Empreende-se, pois, uma reflexão histórica sobre a construção da mulher como pedagoga da nação. Para tal intento, dialoga-se com a Nova História, a qual propõe repensar os conceitos de leitura e de assimilação dos discursos construídos. Trata-se de problematizar as formas de ler e os modos de arquitetar uma Parahyba saudável e educada. Palavras-chave: Gênero; Higienismo; Educação. 1 Charliton José dos Santos Machado – Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Email: charlitonlara@yahoo.com.br 2 Larissa Meira de Vasconcelos – Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: meiravasconcelos@gmail.com 188 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 HYGIENISM, PRESS AND EDUCATION OF NORTH PARAHYBA: THE WOMAN'S PAPER AND PEDAGOGIZATION OF THE HABITS Abstract This article analyzes the pedagogical speeches focused on the resignation of habits and behavioral values present in the newspaper of North Parahyba, during the First Republic. It originates from the premise that the educational phenomenon is not limited to the school, but it is widespread in the society. Therefore, it is considered as endowed of educational bias, prints that are not targeted strictly to the academic audience. So, is undertaken a historical reflection about the making of the woman as educator of the nation. For this purpose,it dialogues with the New History, which proposes to rethink the concepts of reading and assimilation of the constructed discourses. It's about questioning the ways of reading and the ways of architecting a healthy and educated Parahyba. Keywords: Gender; Hygienism; Education. 189 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 HIGIENISMO, IMPRENSA E EDUCAÇÃO NA PARAHYBA DO NORTE: O PAPEL DA MULHER E A PEDAGOGIZAÇÃO DOS HÁBITOS 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Durante a Primeira República, a Parahyba, ao incorporar as aspirações de um projeto de nação civilizada em voga, voltou-se aos ideais de modernidade, dos quais a abolição da escravidão, a intensificação do movimento imigratório, o advento de um novo sistema político e o influxo da expansão urbana traduziram os desejos de progresso. Neste contexto, emerge um discurso publicizado na imprensa voltado à regeneração dos hábitos e à propagação da higiene, consolidando um saber pautado nas reformas morais e físicas propostas por profissionais médicos. Entrevia-se em um contingente populacional desnutrido e doente um entrave no interior das aspirações de uma sociedade vigorosa e que deveria voltar-se aos desafios do progresso. Portanto, fazia- se necessário, a partir dos preceitos sanitaristas3, normatizar os corpos, os hábitos cotidianos, as formas de morar, de se alimentar, de se vestir (MATOS, 2010). De acordo com Del Fiorentino (1979, p.85), nesse momento inicial da experiência republicana, dedica-se especial atenção à campanha higienista, considerada de suma importância para o desenvolvimento do país, uma vez que as doenças e os costumes anti-higiênicos 3 Ainda que existam estudos defendendo a tese de que o “movimento higienista” ou “sanitarista”, no Brasil, extrapola a periodização tradicional que lhe imputa o término entre os anos de 1930 e 1940, prosseguindo com suas tradições e ideais heterogêneos até o fim do século XX, e muito possivelmente, até hoje, no início do século XXI (GÓIS JÚNIOR, 2007), trabalhamos com a periodização tradicional encontrada em todas as referências bibliográficas citadas no decorrer do artigo. 190 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 eram considerados os principais responsáveis pela degeneração nacional. (DEL FIORENTINO, 1979). Segundo Silva (2006), não se deve circunscrever a atuação dos médicos sanitaristas apenas em termos de “miasmas e drenagens”, pois a “sujeira moral” era igualmente responsável pela desorganização da sociedade e de seus habitantes, impedindo o progresso da civilização. “Em raciocínios como estes, privadas, esgotos, prostitutas, pobres, doentes, loucos e negros são associados numa mesma operação simbólica” (SILVA, 2006, p.101). Diante de tal perspectiva, a educação aparece como uma ferramenta basilar, pois é por meio dela que os indivíduos aprendem a obedecer, incorporando novos padrões de higiene e comportamentos, contribuindo para uma sociedade mais dócil e saudável. De acordo com Silva (2005, p. 51), [...] a ascensão de idéias cientificistas indicavam e estavam na base de um certo “entusiasmo educacional” que caracterizou o primeiro período republicano brasileiro. Neste momento, os ideais republicanos eram apresentados como uma nova perspectiva de organização da sociedade, organização essa, sustentada por um arcabouço liberal, que tornaria possível a entrada do Brasil nos cânones dos países modernos e civilizados, à imagem e semelhança das principais cidades europeias. A educação foi, portanto, estrategicamente vinculada à medicina, à psicologia e à psiquiatria, transformando-se em um elixir para a ignorância. Por meio dela, era possível promover a regeneração física e moral do povo (DEL FIORENTINO, 1979). Todavia, ainda que a escola tenha se configurado em um espaço privilegiado de “adestramento” e “disciplinarização do comportamento infantil” (SILVA, 2011), não desempenhou esse papel sozinha. Por meio de pesquisa em jornais paraibanos, é possível caracterizar o espaço doméstico como aliado decisivo do pensamento higienista, 191 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 atrelando a mulher ao papel de pedagoga, por excelência, aquela que trabalharia em prol da edificação da cidade limpa e saneada; concepção esta, sustentada na ideia de que a “boa mãe” produziria bons cidadãos e que a limpeza e higiene do lar produziriam disciplina, boa moral e ausência de vícios. Para Del Fiorentino (1979, p. 53): “As tarefas educacionais não poderiam ser levadas a bom termo sem a participação da mulher, pois a ela competiam duas funções básicas: propagar a espécie e ser a primeira educadora dos filhos”. 2. PERCURSOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Antes de nos debruçarmos sobre os impressos paraibanos, é necessário tecer algumas considerações teórico-metodológicas adotadas como referências de análise no presente artigo. Nesse intuito, dialogamos com as ideias de Michel Foucault (1979) quando reflete sobre o poder ou sobre as relações de poder. Para esse autor, uma das principais precauções é considerar o poder não como um todo homogêneo ou privilégio de um grupo sobre o outro. Pelo contrário, O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer a sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão (FOUCAULT, 1979, p.183). Da mesma forma, Foucault não acredita em um núcleo central, do qual o poder parte até se prolongar às extremidades. Os mecanismos de dominação são polimorfos e infinitesimais, possuem uma história, um caminho, técnicas e estratégias próprias que podem ser colonizados, utilizados, subjugados, “transformados por mecanismos cada vez mais gerais e por 192 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 formas de dominação global. [Ou seja], não é a dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo.” (FOUCAULT, 1979, p. 184, grifo nosso). Portanto, a análise deve ser “ascendente”, partindo-se do princípio de que o exercício de poder tem uma existência própria no nível mais elementar e cotidiano da sociedade. Ao enfatizar essas precauções, não vislumbramos um poder médico-higienista que incide sobre as mulheres verticalmente. Trata-se de uma multiplicidade de interesses envolvidos. Segundo Bernardes; Almeida; Santos (s.d), “a visão historiográfica moderna, para a qual a mulher é vista como ativa e rebelde, contrapõe-se à visão historiográfica tradicional de submissão e obediência”, reduzindo o debate a uma bipolarização de imagens ou enfoques teóricos cartesianos. Ambas as correntes historiográficas trazem subsídios importantes para reflexão. No entanto, esta forma dicotômica de enxergar a História contribui, sobremaneira, para uma visão generalizante de uma versão particular de mulher. Faz-se necessário, pois, investigar em uma terceira via (BERNARDES; ALMEIDA; SANTOS, s.d.), o que significa considerar os conflitos, tensões e acordos destas particularidades, consentindo insurgir femininos múltiplos, cada vez mais complexos e plurais. Não se trata de considerar a construção da “maternidadecientífica4” (FREIRE, 2006) como imposição de um grupo (médico) sobre outro (mulheres), mas o fruto de uma atuação dinâmica entre vários interesses. É certo que o discurso médico-higienista ratificava a primazia da maternidade como destino, uma missão da mulher e a declaração mais alta de sua feminilidade. O instinto maternal era considerado intrínseco à natureza feminina e sua ausência configurava-se como um desvio da normalidade. Nesse sentido, analisando a medicalização na história brasileira, Priore (1997, p. 84) afirma que: 4 “Entende-se por maternidade científica o exercício materno fundamentado em bases científicas, objeto de práticas educativas próprias e sob supervisão médica”. (FREIRE, 2006, p. 17) 193 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 A mulher “bem constituída”, no entender dos doutores, era exclusivamente a que se prestava à perpetuação da espécie, ungida por uma vocação biológica que fazia da madre uma forma na qual era organizada a hereditariedade. No entanto, a denominada Primeira Onda5 do feminismo enxergou no apoio às proposições científicas da época um caminho oportuno para alterar o seu papel na sociedade. Ou seja, A maternidade científica significou para as mulheres um reforço à sua condição de mãe, transformando a maternidade em profissão feminina, objeto de formação técnica específica. Como a prática da maternidade nesses novos moldes exigia inserção no universo científico, esse aspecto a aproximava do mundo masculino racional, deslocando-a da esfera estritamente doméstica e lhe conferindo novo status. Deslocamento que mantinha certa tensão interna, pois atualizava, em substância, a função maternal, e, ao mesmo tempo, abria brechas para novos comportamentos femininos (FREIRE, 2006, p. 50). É neste sentido que Soihet (2000) afirma que o movimento feminista valeu-se da tática, a fim de subverter, para seus próprios fins, uma representação imposta. Certeau 5 Como consequência de uma proposição metodológica, a história das lutas feministas costuma ser periodizada em três etapas principais: a primeira fase, datada do século XVIII ao início do século XX, consiste na luta pela participação política, na qual o direito ao sufrágio universal se destacou como principal tema. A “Segunda Onda”, pós‐segunda guerra mundial, criticava a suposta harmonia espontânea dentro das relações familiares. Com o slogan “O pessoal é político”, questionava‐se a dicotomia entre público e privado. Entendia‐se que a equidade na esfera pública estava condicionada à equidade na esfera doméstica. A “Terceira Onda”, contextualizada em meados da década de 1980, e intitulada Pós‐Feminismo, subverte o sentido de “Identidade Feminina”, desconstruindo‐a, a fim de revelar as contingências e descontinuidades no processo de sua construção histórica. 194 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 (1994, p. 100) sugere que as táticas são ações calculadas por aquele que “não tem por lugar senão o do outro e por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto, tal como o organiza a lei de uma força estranha”. Embora existam críticas à atuação do movimento sufragista, associando-o a um “feminismo bem-comportado, católico, elegante, ‘feminino’” (MACEDO, 2003, p.100), reduzindo, dessa forma, a luta e direitos conquistados a uma concessão, quando assim interessou à classe dominante (ALVES, 1980), subscrevemos a posição de Costa (2006) quando afirma que os atos políticos do sufragismo não podem ser considerados domesticados, ainda que bem comportados. Faz-se premente enfatizarmos uma última precaução metodológica encontrada em Foucault (1979) e oportuna ao presente artigo. Frequentemente, o poder é percebido como negativo, aquele que impede, nega, coíbe. Nessa perspectiva, as intervenções higienistas sobre os cidadãos se dariam, portanto, apenas de forma repressiva, coercitiva. Esta linha de raciocínio encontra respaldo no exercício da incipiente medicina social, assegurado “por um conjunto de regulamentos e de instituições múltiplas que recebem, no século XVIII, o nome genérico de ‘polícia’” (FOUCAULT, 1979, p. 197). Dessa forma, o surgimento da polícia, enquanto instituição de controle e repressão, não esteve associada apenas às questões criminais, mas também aos domínios de salubridade e gestão da higiene urbana. Configurava-se, pois, como um agente portador de um projeto civilizador. A institucionalização da violência era uma ferramenta legítima utilizada pelos agentes sanitários, cuja ação sustentava-se nos aparelhos policiais disponibilizados pelo Estado. Santos (2005, p. 66) assegura que [...] no Brasil, a vocação da polícia em resolver problemas que não necessariamente diziam respeito à esfera da segurança pública encontra seus ecos na criação da primeira Guarda Real de Polícia, em 1809 no Rio de Janeiro. [...] não é de se estranhar que a polícia tivesse ligações tão estreitas com a 195 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 efetiva implementação de medidas sanitárias, sobretudo considerando que muitas vezes a população se mostrava refratária ao autoritarismo que envolvia projetos como a higienização do espaço público e a vacinação obrigatória. Portanto, enxergava-se na polícia a própria materialização do braço executor das políticas de Estado6. Deve-se, entretanto, atentar para o aspecto positivo do poder, extraindo do termo qualquer juízo de valor moral para considerá-lo como uma “tecnologia” empregada com intuito de obter determinado objetivo (FOUCAULT, 1979). Ora, o poder também produz sujeitos, fabrica corpos dóceis, induz comportamentos. O indivíduo é, pois, produtor e produto de um saber-poder, visto que “para exercer-se nestes mecanismos sutis, o poder é obrigado a formar, organizar e por em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber” (FOUCAULT, 1979, p. 186). Por conseguinte, além da “polícia higiênica”, o século XVIII viu emergir um saber médico que prescrevia a uma população formulações gerais de como se comportar, alimentar-se, vestir-se, relacionar-se sexualmente. 3. RECORTES DE UMA PARAHYBA ASSEADA Silva (2006) descreve com maestria o conflito entre e o novo e o velho no estado da Parahyba do Norte. Ao final da primeira década do século XX, o estado ainda resistia em assimilar as ideias de urbanidade e progresso. A higienização das cidades, estratégia do Estado Moderno, “esbarrava, frequentemente, nos hábitos e condutas que repetiam a tradição familiar e levariam os indivíduos a não se subordinarem aos objetivos do governo” (SILVA, 2006, p. 86). Campina Grande, por exemplo, um forte pólo econômico do estado, experimentava intensos indicadores de insalubridade: dejetos 6 Como exemplo de atuação intransigente do poder público para fazer valer as medidas sanitaristas, citamos a Revolta da Vacina (1904). Ver: SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina. Companhia das Letras: São Paulo, 2010. 196 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 espalhados pelas ruas e porcos que andavam livremente pela cidade intensificavam os maus odores (SOARES JÚNIOR, 2011). Em 1907, no entanto, era inaugurada a estrada de ferro do município, permitindo a entrada de novos padrões de comportamento, da modernidade e, sobretudo, de um visitante indesejado: a peste bubônica7. Na capital da Parahyba, nos primeiros anosdo século XX, segundo Farias (2010, p.116): [...] as residências ainda não recebiam a conduta de postura urbana e eram construídas ao gosto e vontade do proprietário. A cidade enchia-se de becos e vielas onde se acumulavam monturos de lixos, animais mortos e detritos, o esgoto corria a céu aberto, no leito da rua crescia o capim e os sulcos provocados pelas águas pluviais. Todavia, à medida que o Estado se desenvolvia, aumentava a demanda por uma política sanitária, sobretudo, após o registro de casos de varíola e gripe espanhola8, além dos alarmantes casos da peste bubônica. Diante desse contexto, cogitou-se implantar a educação higienista urgentemente. Neste cenário de transformações urbanas, é possível destacar os jornais como interessantes manuais pedagógicos para a população (SOARES JÚNIOR, 2011). Ressaltamos que, para analisar as fontes, dialogamos com a Nova História 7 “A peste bubônica, chamada simplesmente de peste, é uma doença pulmonar ou septicêmica, infectocontagiosa, provocada por Bacillus pestis, que é transmitido ao homem pela pulga do rato. A pandemia mais conhecida da doença ocorreu no fim da Idade Média, ficando conhecida como Peste Negra, quando dizimou grande parte da população europeia. Os infectados com a doença apresentam febre alta, delírio, dores pelo corpo e finalmente, os bubões”. Ver: LE GOFF, Jaques. As doenças tem história. Tradução de Laurinda Bom. Lisboa: Terramar, 1985. 8 Entre 1912 e 1924, uma série de epidemias amedrontaram a população paraibana: a peste bubônica em 1912; a varíola em 1913, 1917, 1921 e 1924; e a gripe espanhola em 1918. Ver: Soares Junior, 2011. 197 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 Cultural, a qual propõe repensar os conceitos de leitura e de assimilação dos discursos construídos (OLIVEIRA, 2012). Trata-se, pois, de problematizar as formas de ler e os modos de arquitetar uma Parahyba saudável e educada. Os periódicos já foram considerados fontes suspeitas, sem credibilidade, por possuírem caráter passional e tendencioso. No entanto, conforme assegura Vieira (2007, p. 16), [...] a tendenciosidade do veículo, evidentemente, não justifica a recusa dessa como fonte de pesquisa, uma vez que não partilhamos da crença de que existem documentos fidedignos, capazes de expressar objetivamente a realidade. Consideramos como ponto de partida que os documentos, as fontes, os vestígios do passado expressam pontos de vista daqueles que o produziram e/ou preservaram. Os jornais apresentam-se, portanto, como um rico e fascinante universo simbólico (LUCA, 2006), por meio dos quais é possível desvendar determinadas facetas socioculturais, fornecendo, desta forma, elementos para a construção da história da educação. Tendo em vista que o fenômeno educacional não se limita à escola, mas se encontra difundido na sociedade, consideramos como dotados de um viés educativo impressos que não se direcionam estritamente ao público escolar ou que abordem matérias relativas ao campo da educação especificamente. De uma forma geral, os periódicos, tal como os estabelecimentos educacionais, contribuem para a modelação de sujeitos. Assim sendo, além dos dispositivos situados na transmissão de conhecimentos formais, destacamos o jornal como ferramenta à conformação de hábitos e valores comportamentais. Não obstante os periódicos serem destinados a um grupo minoritário de paraibanos – indivíduos letrados que tiveram acesso à instrução em escolas ou no interior das casas, como acontecia com muitas mulheres – isso não significa que o conteúdo dos jornais ficava circunscrito a pouquíssimas pessoas. Segundo Conceição, (2001, p. 16), 198 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 Por se caracterizarem como periódicos de produção diária, ao serem descartados para outros usos, como para embrulhar objetos, passavam pelas mãos de diversas pessoas, despertando interesse e sendo lidos de diversas maneiras: pelas imagens, pelos comentários de um leitor ou pela leitura em voz alta de um conhecido ou membro da família alfabetizado. Assim, os textos podiam ser aprendidos, compreendidos e manipulados de acordo com as situações de leitura, as aptidões e expectativas dos leitores. Por conseguinte, as páginas dos jornais são entendidas como documentos que dão suporte e sentido às práticas sociais e que, por sua vez, contribuem no combate à difusão das doenças e de seus agentes e parasitas, como insetos, baratas, ratos e pulgas. Atentemos para as figuras abaixo: 1) Informe Publicitário do Inseticida Flit. Fonte: A UNIÃO, Parahyba do Norte, p. 7, n. 103, ano XXVII, mai. 1919. 199 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 2) Informe Publicitário do inseticida Flit. A UNIÃO, Parahyba do Norte, p. 7, n. 104, ano XXVII, mai. 1919. Trata-se de dois informes publicitários de um mesmo produto, o inseticida Flit, acompanhados do pequeno texto transcrito abaixo: Sabe-se hoje que os insetos são os maiores transmissores de moléstias. Elles se criam no monturo e dahi invadem os lares, transportando os germens de doenças muitas vezes mortaes. Mate-os antes que elles o matem. Pulverize Flit. Flit mata moscas, mosquitos, pulgas, formigas, traças, ratos, percevejos, baratas e seus ovos. É fatal aos insetos, mas inoffensivo ao gênero humano. De uso fácil. Não mancha. Não confunda o Flit com outros inseticidas 9. A partir desses dois recortes, é possível perceber que a divulgação das informações visava prevenir o contágio da doença. Os informes publicitários além de objetivarem a venda de mercadorias, educavam e informavam, pois, através do seu caráter repetitivo, permitiam maior facilidade de memorizar a mensagem (MATOS, 2010). Por se tratar de enfermidades contagiosas, os primeiros cuidados eram destinados ao corpo que deveria ser protegido e resguardado de todo contato com 9 Optamos por manter a escrita original dos textos. 200 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 lugares e objetos suspeitos de infecção. Por meio do asseio doméstico, combater-se-ia diretamente a propagação da moléstia e de seus agentes como os insetos, parasitas, pulgas e os ratos. Mas, conforme assevera Soares Júnior (2012), a emergência de um saber médico-higienista normalizante não era acompanhada pela quantidade de médicos disponíveis. Embora, as etapas profiláticas devessem ser vigiadas por profissionais, [...] a quantidade de médicos que existia na capital paraibana ainda era insuficiente para a população da época. Durante a década de 1920, João Pessoa dispunha de aproximadamente trinta profissionais que se dividiam nas funções de dirigir, clinicar e operar nos hospitais, controlar o saneamento e higiene do porto e da cidade, medicar nas casas e curar os corpos (SOARES JÚNIOR, 2012, p. 10). Como ainda era reduzido o numero de médicos sanitaristas, e os que existiam estavam centralizados na capital, deixando as repartições de higiene das outras cidades em estado de abandono10, compreende-se a importância atribuída à mulher como pedagoga do lar, aquela que recebeu a função política de educar os filhos e conservar a família sobre parâmetros higienistas (OLIVEIRA, 2002). A “salvação do povo” era mais do que um dever do Estado, era um dever da mulher. Durante a primeira república, as tarefas domésticas cotidianasde cozinhar, lavar, limpar e passar eram atribuídas apenas às mulheres. Portanto, no discurso médico-sanitarista, a nova mulher, colonizada pela higiene, estava apta a assumir o destino da família, a unidade mais elementar da pátria, e transformar os filhos em heróicos cidadãos. Neste período, intensificou-se, no Brasil, uma literatura sobre a puericultura 10 Segundo Soares Júnior (2011), a atuação do Serviço Público de Higiene do Estado da Paraíba era ineficiente, fazendo-se presente apenas por meio de discursos, nas edições dos jornais, lançando informes com medidas possíveis de evitar a proliferação da doença. 201 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 e, conforme os excertos relacionados abaixo, a saúde das crianças é cada vez mais alvo de controle: Para as mães: febre de sêde Ha muito vem se observando que a febre na infância é muito freqüente mormente no lactente, cuja causa é sempre a pouca resistência orgânica contra as infecções, por mais banaes que sejam. O que as mães devem evitar de um modo assas enérgico, é no que diz respeito a febre de sede. Quando o lactente se apresentar febril, cuja causa seja desconhecida, procure semrpe saber se o mesmo tem ingerido liquido sufficiente para hydratar os tecidos. As dessordens provocadas pela sede são: perda de peso, agitação, febre, pallidez, pyuria por deshydratação, albuminuria, convulsões etc. O liquido mais aconselhável para o lactente é o sôro de Ringer, não só pelo seu sabor agradável, quando adoçado com sacharina, como pela sua atuação therapeutica. Seu fabrico é muito fácil, podendo mesmo ser confeccionado na própria casa de família sem nenhum incoveniente. Esse líquido, assim preparado, poderá ser mesmo dado em mamadeiras e servir muito bem para uma dieta hydrica no caso de perturbações gastro-intestinais. Na falta do sôro de Ringer, poderá substitui-lo o soro de leite, que gosa da mesma acção alimentar e acção terapêutica mais ou menos idêntica. Em caso de emergência, é a mucilagem de arroz indicada do mesmo modo, comtanto que saiba prepara-la de fórma a não prejudicar o estado de nutrição do paciente. Dr. João Soares 3) A UNIÃO, Parahyba do Norte, p. 3, n. 205, ano XXXVIII, ago. 1931 202 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 Para as mães: alimentação artificial Nem toda mãe de família conhece o perigo a que expõe o seu filhinho, quando de tenra edade alimenta-o de leite de vacca ou outro qualquer que não seja o leite materno. Na maior parte, o perigo não está no alimento e sim na quantidade e modo de emprega-lo. Quando não for possível amamentar ao recemnascido, que pelo menos faça uma alimentação mista. Dr. João Soares 4) A UNIÃO, Parahyba do Norte, p. 3, n. 143, ano XXXVIII, jul. 1931 Para as mães: Acabemos com os apertos de mãos É fóra de dúvida que tem toda razão os sanitaristas condemnando o clássico “beijo”, como cerimonioso “aperto de mão”. E não somente estas, como muitas outras práticas encontradas francamente em os nossos costume, e quase todas factoras do mal. É preciso fazer-se bem conhecido o valor do contagio directo, ou seja, de individuo a individuo, da transmissão de innúmeras doenças, para não se contestar o perigo a que estamos expostos com as pragmáticas da nossa tão apregoada civilização. Tão perigoso é “beijo” como o “aperto de mão”, como portadores de infecções! A higiene ahi está para cabalmente demonstrá-lo. E quantas moléstias são contrahídas sem disto nos apercebermos, com um simples beijo – mais perigoso do que o beijo de Judas – e com um attencioso e cortez aperto de mão?! Não nos esqueçamos que a “saúde é a primeira condição de felicidade.” A Higiene evita o mal. Para evitar o perigo é preciso conhece- lo. Conhecer o mal é saber-lhe as causas e os effeitos, ou por experiência própria, ou por observação do alheio. Dr. Flávio Marojá 203 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 5)A UNIÃO, Parahyba do Norte, p. 3, n. 298, ano XXXVIII, out. 1931 Estes diferentes trechos citados acima são excertos de uma coluna semanal intitulada “Para as Mães” que, por sua vez, era assinada por médicos e possuía lugar privilegiado nas páginas do Jornal A União, órgão impresso oficial do Estado da Paraíba. Conforme atesta Freire (2006, p. 13), diferentemente da pediatria, que tem por objetivo intervir apenas sobre o corpo doente da criança, a puericultura é um ramo da medicina que “propõe transformar, crenças, valores, costumes e atitudes”. Trata-se, portanto, de uma transformação de ordem cultural. Nesse ambiente, saturado pelo higienismo, costumes ou hábitos até então considerados inofensivos são redefinidos em novas bases científicas. Os atos de civilidade e carinho - “apertar as mãos” ou “beijar” - são reconfigurados como vilões, portadores de moléstias. Cabia às mães, pois, serem vigilantes e sempre diligentes no dever de educar seus filhos. No entanto, foi no campo da alimentação infantil que se tornou mais concreta a parceria entre mulheres e médicos (FREIRE, 2006). Estes, ancorados na legitimidade do saber médico, possuíam espaço privilegiado nos jornais para divulgar as propostas de alimentação racional. Conforme ressalta Freire (2006), a aspiração de um projeto civilizador para a incipiente República rejeitava os costumes identificados com o passado vergonhoso e obsoleto. O repúdio às tradições refletiu na negação de uma personagem muito comum em um passado escravagista recente: as amas-de-leite. A imagem da mulher construída na “República ideal” é aquela que, além de gerar filhos saudáveis, acompanha atenciosamente o desenvolvimento destes, amamentando-os com o fim de contribuir decisivamente para a evolução física, moral e intelectual dos futuros cidadãos. Ora, as amas-de-leite, escravas recém-libertas, quando não continuavam trabalhando na casa senhorial, abrigavam-se em cortiços, convertendo-se em focos de contágio físico e moral. Segundo Freire (2006, p. 48), 204 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 Tal conexão entre o contágio e os cortiços – os pobres e os criados – levaria à necessidade de reformulação dos critérios de ordem e controle, alçados a uma dimensão pública, exigindo intervenção governamental. Assim, uma das respostas da Higiene ao “fantasma” da doença seria a condenação às amas-pretas, na tentativa de recondução das mulheres à prática da amamentação. Esses esforços se concretizariam através da redefinição da maternidade em bases científicas, conferindo-lhe valorização inédita – o que ia ao encontro de interesses de mulheres das classes média e alta urbanas e dos anseios republicanos de superação dos traços remanescentes da cultura colonial11. É preciso ressaltar que neste contexto, ao perceber o potencial das novas demandas, os informes publicitários, presentes nos jornais paraibanos, intensificaram o discurso médico-científico. Com o intuito de vender produtos, apelavam para o papel da mãe zelosa, ciente de suas responsabilidades na proteção de seus filhos, assentando, dessa forma, o mercado de produtos variados destinados à nutrição infantil, oferecidos como uma opção saudável para a mulher que, por algum motivo, não conseguisse amamentar. 11 “A maternidade científica – na sua dimensão relacionada ao aleitamento materno – possivelmente permaneceumais como um discurso do que como prática efetiva na sociedade brasileira urbana dos primeiros anos da República, quando as amas-pretas desfrutavam de posição privilegiada no ambiente familiar, dando lugar posteriormente às “amas secas”, embriões das babás até ainda hoje presentes nas famílias das classes mais elevadas” (FREIRE, 2006, p. 49). 205 Higienismo, imprensa e educação na parahyba do norte: o papel da mulher e a pedagogização dos hábitos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p. 187-214, nov. 2015/ fev. 2016 6) Informe Publicitário de Emulsão Scott. Fonte: A UNIÃO, Parahyba do Norte, p. 6, n. 186, ano XXXVII, jul. 1930. O conteúdo dos textos veiculados no jornal A União, citados acima, bem como a discussão empreendida por Freire (2006) remetem-nos a análise feita por Viviani (2007) sobre “O livro das mamães”12, dos autores Almeida Jr. e Mário Mursa, obra que alcançou grande êxito editorial ente as décadas de 1920 e 1930, no Brasil. Segundo Viviani, essa foi uma das primeiras produções em terras brasileiras que se dedicavam, exclusivamente, a discutir puericultura. Entre outros aspectos analisados da obra, sobre os quais não nos cabe detalhar neste texto, ressaltamos a afirmação da referida pesquisadora quando destaca que o livro em foco apresenta uma relação de tarefas a serem desempenhadas pelas mães com o objetivo de promover o “bom desenvolvimento da criança na primeira infância” (VIVIANI, 2007, p.182). No 12 A primeira edição, intitulada Noções de Puericultura – para as mães e para as escolas, é de 1927, publicada pelo Instituto D. Anna Rosa; a 2ª e a 3ª são, respectivamente, de 1933 e 1938, publicadas pela Editora Nacional, e como toda publicação dessa editora apresentava-se como subsidiária do “progresso do Estado e do País, promovendo a educação dos leitores e tornando disponível a eles a cultura dita universal, ou seja, aquela corrente nos países considerados desenvolvidos (VIVIANI, 2007, p.172) 206 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 rol das funções maternas incluíam-se: “[...] alimentação, o asseio da criança e de seu ambiente, o acompanhamento de seu crescimento e desenvolvimento físico e psíquico, na saúde e na doença, e ainda a educação, e disciplina do lactente [...]”. Outros aspectos apontados pela autora como merecedores de atenção na análise da obra dirigida às mães, e que consideramos pertinentes aproximá-los de nosso estudo, referem-se a considerar as prescrições referentes aos deveres das mães que se coadunam com os atributos “naturalmente” desejados e os espaços sociais reservados às mulheres, considerando- se também seu pertencimento a uma classe social detentora de condições sociais de acesso a livros e jornais, brancas, escolarizadas e com poder de compra, afinando-se com um dos perfis de feminilidade e maternidade em circulação nas décadas inicias do século XX.13 Arrematando esse diálogo com Viviani (2007), transcrevemos um trecho em que a autora destaca que as obras produzidas à época em questão eram oriundas de um grupo de “liberais reformadores, envolvidos em um bem sucedido projeto de formação da identidade cultural do país.” Por essa perspectiva, e concordando-se com o pensamento de Scott de que “gênero é um campo por meio do qual o poder é articulado”, Viviani (2007, p. 173) procurou “elucidar os caminhos pelos quais esse grupo atuou no campo das relações de gênero para construir e legitimar sua posição privilegiada”. Todavia, não se trata de apresentar uma hegemonia do saber-médico incidindo verticalmente sobre mulheres inertes. Pelo contrário, de acordo com Freire (2006), os arranjos históricos não podem ser estudados apenas como uma imposição unilateral, mas compreendidos como fruto de uma atuação dinâmica entre múltiplos interesses sociais. Embora a maternidade científica reforçasse uma suposta essência feminina, ratificando o papel da mãe como “Rainha do Lar”, grupos feministas organizados, como por 13 Viviani (2007, p. 173) refere-se especificamente à década de 1930; consideramos pertinente estender a outras décadas da primeira metade do século XX. exemplo, a Associação Paraibana pelo Progresso Feminino14, enxergava na adesão aos preceitos científicos um caminho conveniente na tentativa de alcançar uma transformação no seu lugar na sociedade, sobretudo, um caminho pertinente para fortalecer uma das principais reivindicações da época: a educação igualitária, entendida como um passaporte para diminuir as desigualdades políticas entre os gêneros. Trata-se de uma tática ou astúcia “pela qual, ao reforçarem as diferenças de gênero, as mulheres buscavam, justamente, alcançar a equidade; extraíam de sua aparente fraqueza, a sua força” (FREIRE, 2006, p. 312). De fato, a partir dos anos de 193015, as mulheres conquistaram o direito ao voto. Este acontecimento, por sua vez, não traria apenas um novo papel a ser exercido pelas mulheres, de eleitora ou elegível, mas a possibilidade de uma nova existência, não mais vinculada, apenas, ao mundo privado. Conforme descreve Oliveira (2002), a emancipação feminina era considerada insalubre ao corpo saudável da Pátria. As imagens das mulheres que fugiam dos padrões considerados normais – mãe, esposa, dona-de- casa – eram eminentemente atreladas ao caos, à negatividade, à destruição do mundo. Negar a maternidade era, sobretudo, negar a natureza. Portanto, é compreensível o tom moderado das feministas, no qual, malgrado reproduzissem o discurso da maternidade como uma unidade moral do lar, recuperavam a imagem da mulher enquanto um sujeito ativo. 14 Presidida pela Dra. Lilia Guedes, a Associação Paraibana pelo Progresso Feminino (APPF), fundada em fevereiro de 1933, reuniu um elenco significativo de educadoras, médicas e advogadas (Olivina Carneiro da Cunha, Analice Caldas, Albertina Correia Lima, Alice Azevedo Monteiro, Francisca Ascensão Cunha, Juanita Machado) e refletiu o engajamento de parte das mulheres paraibanas elitizadas na luta pelos direitos políticos. Ver mais em: FRAGOSO, 2011. 15 Por meio do decreto 21.076, de 1932, o sufrágio universal foi estabelecido, incorporando-se, posteriormente, à Constituição de 1934. 208 Charliton José dos S. Machado Larissa Meira de Vasconcelos Educ. Foco, Juiz de Fora, v. 20, n. 3, p.187-214 , nov. 2015/ fev. 2016 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, pudemos compreender de que modo o pensamento higienista, na Parahyba da Primeira República, conferiu à mulher o papel de pedagoga da pátria, aquela que trabalharia em prol da edificação da cidade limpa e saneada, um discurso médico sustentado por meio da ideia de que a limpeza e higiene domésticas produziriam disciplina, boa moral e ausência de vícios. Educar, neste contexto, não poderia ser caracterizado apenas como sinônimo de instrução, na medida em que também era zelar pelo íntimo do outro, era evitar e, quando necessário, corrigir desvios não apenas físicos, mas morais encontrados na criança; era imprimir disciplina no indivíduo, boas maneiras de se comportar, de sentir, de cuidar de si. No momento histórico em que a construção de uma nacionalidade adquiria papel central, a emergência da puericultura e da consolidação da maternidade científica forneceu ânimo argumentativo tanto para os médicos quanto para o movimento feminista. Numa análise historiográfica que foge da oposição binária submissão/opressão e com intuito de não reduzir o debate a uma bipolarização de imagens ou enfoques teóricos cartesianos, acreditamos que tanto os profissionais dedicados à higiene infantil enxergavam na valorização da maternidade um caminho para obterem reconhecimento e prestígio, quanto, para as mulheres, tal perspectiva representava