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Mise en place1 de uma cozinha nacional 
JOANA PELLERANO2 
 
 “Diga-me o que comes e dir-te-ei quem és”. O aforismo registrado por Jean Anthelme 
Brillat-Savarin em 1825 (2001: 19) - um dos mais repetidos de sua “Fisiologia do gosto” - 
dá pistas do forte laço que existe entre alimentação e identidade. Além de saciar a 
necessidade biológica, a comida seria também uma categoria simbólica relevante na 
construção da identidade social e da noção de pertencimento, o que lhe confere grande 
importância dentro da estrutura na qual se insere. 
 O presente trabalho visa discutir o papel da comida na formação das nações que 
entraram na modernidade tardiamente, após o século XIX, e como esse aspecto do 
cotidiano representa um potencial símbolo de resistência diante de momentos de transição. 
A discussão, embasada em pesquisa bibliográfica, acontece por meio de um breve histórico 
da consolidação da feijoada como símbolo da cozinha brasileira. Para tanto, foram 
pesquisadas obras que tratam da relação entre os homens e seus alimentos, da formação de 
nações como um projeto político e de cozinha brasileira, como as dos autores Arjun 
Appadurai (1981, 2008), Carlos Alberto Dória (2008, 2009, 2012), Claude Fischler (1995), 
Jean-Pierre Poulain (2004), Jeffrey M. Pilcher (1998), Jesús Martín-Barbero (1991, 1997, 
2004), Massimo Montanari (2008, 2009), Néstor García Canclini (1990, 2006) e Rodrigo 
Elias (2007). 
 Ter o poder de “proteger” um povo diante de mudanças deve-se, de acordo com Arjun 
Appadurai (1981), à diferença entre o código alimentar e outras manifestações de cultura 
material: sua perecibilidade e, portanto, o esforço constante para cultivá-la ou consegui-la, 
conservá-la, prepará-la e consumi-la. Para o autor, a comida é “um fato social altamente 
condensado [...] [que], em suas formas variadas, contextos e funções, pode sinalizar 
categoria e rivalidade, solidariedade e comunidade, identidade ou exclusão, e intimidade 
ou distância (Ibidem: 494). 
 
1 Mise en place é o conjunto de operações que precede a preparação culinária. É a organização que facilitará o 
preparo de uma receita, como deixar a bancada limpa e em ordem e separar, picar e porcionar os ingredientes. 
2
 Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (2004), 
mestrado em Comunicação e Gastronomia - Universitat de Vic (2007) e pós-graduação em Gastronomia: 
Vivências Culturais - Centro Universitário Senac (2010). É mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP) como bolsista Cnpq. É coordenadora e docente da 
especialização em Gastronomia: História e Cultura do Centro Universitário Senac – São Paulo. 
2 
 
 A culinária de uma sociedade é o conjunto de seus ingredientes, técnicas de cocção e 
valores culturais, e dão fortes sinais de pertencimento e alteridade. Claude Fischler (1995) 
exemplifica essa relação com os apelidos dados por um povo a outro; como os franceses 
chamam os italianos de “macaroni” enquanto são conhecidos como “rãs” pelos ingleses. Já 
Jean-Pierre Poulain (2004) aponta a mesa como lugar privilegiado de resistência quando as 
identidades locais são postas em perigo. 
 Um exemplo relativamente recente da importância da alimentação como reafirmação da 
identidade nacional é decorrente da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003 
(LOUGHLIN, 2009). Como a França não se dispôs a fornecer tropas para ajudar os norte-
americanos, o deputado republicano Walter Jones e presidente do Comitê Administrativo 
da Câmara Bob Ney convocaram uma coletiva de imprensa em Washington para anunciar 
que as french fries (batatas fritas) e french toasts (uma espécie de rabanada) estavam 
banidas dos cardápios dos restaurantes da casa. French, que significa francês, seria trocada 
por freedom, liberdade. Os pratos passariam a se chamar freedom fries e freedom toasts. 
 No Brasil, na época dos movimentos em prol da independência, a cachaça era a única 
bebida aceita. O “brasileiro de verdade” demonstrava seu apoio ao movimento evitando 
consumir os produtos oriundos da terra inimiga e opressora, como vinhos, farinha de trigo 
e azeite de oliva. Nos grandes banquetes políticos se comia farinha de mandioca e se 
brindava com cachaça (LEAL, 1998). 
 Os alimentos e outros aspectos cotidianos - como vestimentas ou preferências 
musicais - são parte essencial do código cultural que mantém a nação unida como tal. Isso 
porque, mais que integrar fisicamente as regiões - trabalho considerável em um Brasil de 
distâncias continentais -, fazer um país, como afirma Jesús Martín-Barbero (2004), é um 
projeto cultural e político. 
 
Ainda que as nações apareçam como resultado das lutas contra o colonialismo, a 
divisão internacional do trabalho e a lógica centralizadora que impõe a 
industrialização, a identidade nacional só deixa de ter caráter metafísico ou 
psicologista na medida em que a nação é pensada como ‘comunidade 
imaginada’, isto é, espaço de comunicação entre os indivíduos e os grupos que a 
integram (Idem, 1997: 18). 
 
3 
 
 De acordo com Carlos Alberto Dória, as nações modernas são arquitetadas na 
combinação de “um território, uma língua, um exército, tradições partilhadas pela 
população, religiões e, claro, uma determinada culinária” (2009: 12). 
 As ferramentas para levantar tais referências são múltiplas, e a literatura é uma delas. 
Na França, os livros de cozinha de Antonin Carême, a literatura pseudocientífica de 
Brillat-Savarin e as histórias de Honoré de Balzac que incluíam restaurantes entre seus 
cenários ajudaram na transição da alta cozinha de Versalhes para cozinhas burguesas após 
a Revolução Francesa (FERGUSON, 1998). 
 Já em algumas ex-colônias, os livros de receita serviram elemento de ligação entre as 
diversidades regionais no processo de construção de uma referência culinária única. 
Appadurai afirma que essas publicações devem ser encaradas “como artefatos que revelam 
uma cultura em formação” (2008: 305) no mundo contemporâneo. Appadurai e Jeffrey M. 
Pilcher (1998) concordam que essa literatura culinária simboliza a formação da culinária 
nacional ao abarcar não apenas os interesses de grupos majoritários, mas os intercâmbios 
cotidianos entre os pratos de diferentes regiões e grupos étnicos. 
 Estudos de ambos os autores revelam exemplos dessa realidade. Em sua pesquisa 
sobre livros de receita indianos, Appadurai (Idem) mostra como a mescla de pratos de 
diferentes regiões em uma mesma edição ou cardápio ajudou a dissolver as fronteiras 
étnicas do país e a fortalecer o nacionalismo. Pilcher (Idem) afirma que El Cocinero 
Mexicano, publicado em 1831, uma década após a independência, deu o tom para a 
cozinha nacional do México. 
 No Brasil, obras similares foram Cozinheiro Imperial, de 1840, e Cozinheiro Nacional, 
que surgiu entre as décadas de 1870 e 1880, sem autoria certa. De acordo com Dória 
(2008:8), esses livros “representam um esforço de nacionalização do saber culinário e são, 
por isso mesmo, o marco de formação de um pensamento autóctone sobre o comer entre a 
elite agrária e os nascentes setores urbanos do país”. Da mesma forma, Adriana Salay 
Leme e Rafaela Basso (2013: 98) incluem na lista as obras de Monteiro Lobato, Mário de 
Andrade, Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo, publicadas no inídio do século XX: 
“Em um momento em que se buscava identificar o que era nacional e se distanciar da 
imagem europeia, essas produções serviram de forma geral [...] para pintar uma imagem de 
Brasil”. 
4 
 
 Nessa época, ainda que o Estado brasileiro já apresentasse uma unidade política, a 
necessidade de reafirmação de um sentimento nacional ainda permanecia. Segundo Martín-
Barbero (1991: 164), tal insegurança espalhava-se nessa época pela América Latina: “um 
estalar quase permanente das precárias formações nacionais a partir de conflitosinternos 
ou de estratagemas de divisão promovidas a partir das novas metrópoles”. 
 Um marcante esforço por reunir os brasileiros em torno de referências únicas deu-se 
na década de 1920 com o movimento modernista. A comida entra novamente em cena na 
tentativa de legitimar as ideias nacionalistas e marcar a autoridade de brasileiro em relação 
a seus ingredientes, suas técnicas de cozer e suas receitas. É nessa época que elege-se o 
“primeiro prato brasileiro em geral” (CASCUDO, 2004: 446): a feijoada. Segundo a 
versão mais popular, a feijoada teria nascido nas senzalas, da mistura do feijão preto com 
restos da carne de porco desprezada pela casa grande e servida com farinha de mandioca. 
A receita seria, então, o símbolo de um encontro harmonioso entre os três povos que 
formaram o Brasil: “costuma-se apresentá-la como a expressão da fusão racial brasileira, 
um prato feito pelos negros com as partes menos nobres do porco e com o feijão, de 
origem americana, num cozido de técnica europeia” (CARNEIRO, 2005:76). 
 Para Dória (2009), a visão de que a culinária brasileira seria a junção dos modos de 
cozinhar e de comer de portugueses, africanos e indígenas é uma extensão da crença de 
que o Brasil seria um produto miscigenado dessas três raças tão distintas. O autor acredita 
que a versão foi criada como uma forma de solucionar o incômodo causado pela 
escravidão de africanos e a subjugação de diversas tribos indígenas por parte dos 
portugueses: na verdade, o que temos, hoje, de referências dessas duas raças dominadas 
seria o que passou pelo crivo do povo dominante. O sociólogo afirma que tal mito das três 
raças foi reforçado por intelectuais a partir da década de 1920, com o Movimento 
Modernista - tendo como um de seus porta-vozes Gilberto Freyre em seu Casa-grande & 
senzala, de 1933 – porque se mostrava necessária a criação de um arcabouço simbólico de 
demonstrações de pertencimento local na criação e consolidação das nações, o que ajudou 
a incorporar como povo os que geralmente eram excluídos dos processos políticos. 
 Para Elias (2007), o feijão era realmente a base da alimentação dos escravos, mas a 
carne não era presença comum na ração que recebiam dos senhores. Além disso, as partes 
salgadas do porco - como pés, rabo e orelhas, - eram alimentos muito apreciados na 
5 
 
Europa. Seguindo esse raciocínio, faz mais sentido acreditar que o prato nasceu da 
adaptação local de uma tradição de cozidos dos tempos do Império Romano, inspiração 
também do cozido português, o bollito italiano, a fabada valenciana e o cassoulet francês 
(CASCUDO, 2004:447). 
 
A panela ao fogo lento, tampada, com o conteúdo de um pot-pourri, em que se 
destacam favas e carnes, é a base da adafina judaica, assim como da olla podrida, 
do pot pourri e até mesmo do stewpot inglês. Isso não significa que todos tenham 
origem comum ou derivem da técnica judaica para manter a panela quente no 
sabá, mas que representam uma solução técnica adequada para utilizar alimentos 
misturados num grande ensopado de lenta cocção, que é o tartaravô (sic) de 
todas as feijoadas (CARNEIRO, 2005:78). 
 
 De acordo com Elias (2007), as primeiras referências à “feijoada à brasileira” 
aconteceram no século XIX em jornais de Pernambuco e do Rio de Janeiro, sempre aliando 
seu serviço a espaços da “boa sociedade”. O autor ressalta que um dos poucos registros da 
culinária da época, a obra Cozinheiro Nacional, dedicou apenas algumas linhas à receita, 
como é possível observar aqui: 
 
Feijoada: Deita-se o feijão escolhido e lavado numa panela com água, sal, um 
pedaço de toucinho, umas linguiças, carne de porco, carne-seca, carne de 
colônia, duas cebolas partidas, e um dente de alho; deixa-se ferver quatro a cinco 
vezes, e estando cozido e a água reduzida, serve-se (COZINHEIRO, 2008:364). 
 
 A tentativa de transformar a feijoada em prato nacional é vista por muitos autores 
como uma estratégia política. Renato Pompeu (1986) e Peter Fry (1982) chegam a 
enxergar o prato como instrumento de dominação: a parcela dominante da população, 
intelectualizada e influenciada pelo imperialismo, tentaria aliar a feijoada à imagem de 
popular a fim de, realmente, popularizá-la, assegurando a dominação3. 
 A citação do prato como um “festim nacional” no filme Macunaíma de 1969, uma 
adaptação da obra homônima de Mário de Andrade, é vista por Dória (2012) como uma 
estratégia do movimento modernista para a construção simbólica de unidade nacional. O 
autor lembra a cena em que o prato é servido na casa do fazendeiro Venceslau Pietro Pietra 
quase como “uma alegoria da cozinha nacional e daqueles seres étnicos que ela colocou 
 
3 Ainda que Fry (1982) levante também a hipótese de que justamente a peculiaridade de produtos culturais como 
a feijoada, o samba ou o candomblé torne-os elegíveis para a representação nacional. 
6 
 
em contato” (Ibidem). Para o autor, o movimento artístico-cultural conseguiu, tardiamente, 
encerrar a discussão sobre a nacionalidade surgida após a Independência de Portugal, em 
1822, fomentada pela dificuldade em encaixar os negros escravos na representatividade do 
povo da nova nação. As ideias são reforçadas também por Sergio Buarque de Hollanda em 
Raízes do Brasil, de 1936, além de Gilberto Freyre. Ainda que diferentes, os discursos 
falam a língua modernista: o brasileiro é um povo mestiço por definição, forjado nas 
grandes propriedades rurais pelo sangue e suor de brancos, negros e índios. 
 Martín-Barbero salienta que o nacionalismo é frequentemente usado como ferramenta 
para garantir a estabilidade em tempos de modernização. 
 
O conceito de modernização que sustenta o projeto de construção de nações 
modernas nos anos 1930 articula um movimento econômico - entrada das 
economias nacionais no mercado internacional - a um projeto claramente 
político: constituí-las como nações mediante a criação de uma cultura e um 
sentimento nacional (Idem, 2004: 195). 
 
 Se no hemisfério norte a modernização deu-se em fases subsequentes, o caso é outro 
nos países “em desenvolvimento”, termo que por si só revela um inacabamento econômico 
e sociocultural. Em função de um passado colonial, a modernidade não é para países 
latino-americanos um conjunto de etapas homogêneas ou lineares, mas uma porta que se 
abre repentinamente para outra realidade da qual não se pode voltar. Para Néstor García 
Canclini (1990), tal realidade é marcada pela diversidade e pela coexistência entre distintas 
formas de pensar, de educar e de lidar com a natureza e com a ciência: a nova, fruto do 
desenvolvimento e da independência econômica, e a antiga, herança da pobreza e da 
dominação. 
 É possível perceber que tais processos de modernização tardia - que ocupam posição 
privilegiada nos estudos de García Canclini e Martín-Barbero - expõem o ainda frágil 
nacionalismo a referências externas. Ao entrar em contato, tradição e novidade relaxam 
suas fronteiras, misturam-se e confundem-se na consolidação de uma cultura coletiva. 
 
Na América Latina ocorre algo semelhante na medida em que vivemos na época 
das tradições que não se foram, da modernidade que não acaba de chegar e do 
questionamento pós-moderno dos projetos evolucionistas que se tornaram 
hegemônicos neste século (GARCÍA CANCLINI, Idem: 234). 
 
7 
 
 Para Martín-Barbero (1991), esse atropelo das etapas de modernização renovam os 
sentimentos nacionalistas e protecionistas surgidos no início do século XX que entendem 
as relações sociais por meio de uma razão dualista. Se por um lado buscam o resgate das 
raízes como tentativa de manter intacta a identidade nacional formada até então, por outro 
entendem a natureza indolente do povo como obstáculo ao desenvolvimento. 
 A relação do comensal com seu alimento instala-se também no conflito entre uma 
referência que está sendo perdida à sua revelia mas em função de um bem maior. A 
nostalgiafortalece-se nas brechas da ideologia populista. No contexto, uma expressão 
popular à mesa pede pureza acima de beleza, sabor ou relevância. O conservantismo chega 
a extremos, como no caso de Jean-François Revel (1980: 210), para quem a cozinha 
regional, para ser autêntica, “não evolui, mas rejeita qualquer outro sabor que não é o seu 
próprio”. 
 O fenômeno, na interpretação de Poulain (2004), é inerente aos tempos atuais e 
sinaliza crises identitárias que atingem todas as nações. “A patrimonialização do alimentar 
e do gastronômico emerge num contexto de transformação das práticas alimentares vividas 
no modo da degradação e mais amplamente no do risco de perda da identidade” (Ibidem: 
38). Fonseca et al (2009) reforçam que apesar da “diversidade inerente aos sistemas 
alimentares, um aspecto é fundamental na significação da alimentação: a identidade. O 
comensal precisa se identificar com o alimento para reconhecê-lo e significá-lo”, 
necessidade ameaçada pelos mercados transnacionais, que causa o deslocamento dos 
alimentos da origem geográfica a que são tradicionalmente associados. Nas palavras de 
Fischler (1995: 211): “O alimento moderno já não tem identidade, pois não é 
identificável”. 
 Para García Canclini (2006), tal preocupação com a autenticidade é ilusória em função 
da composição de repertórios por meio de processos históricos híbridos4. As culturas 
esbarram-se e emprestam elementos umas das outras, e, ainda que fortemente enraizados 
na identidade social, os sistemas alimentares estão sempre expostos a influências externas 
e potenciais adaptações. Os cardápios globalizam-se há milhares de anos, iniciados com a 
 
4 García Canclini prefere o termo hibridação a mestiçagem (de caráter racial) ou sincretismo (em geral 
relacionado a fusões religiosas) “porque abrange diversas mesclas interculturais – não apenas raciais, às quais 
costuma limitar-se o termo ‘mestiçagem’ - e porque permite incluir as formas modernas de hibridação, melhor 
do que ‘sincretismo’, fórmula que se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos 
tradicionais” (2006: 19). 
8 
 
troca de plantas e animais recém-domesticados muito antes das Grandes Navegações e do 
atual intercâmbio frenético e economias e culturas (KIPLE; ORNELAS, 2000). 
 Foi no momento de formação das nações modernas que surgiu um interesse até então 
inexistente pelas cozinhas regionais. Segundo Massimo Montanari (2008), superar a 
dimensão local e encher a mesa de especialidades e experiências - o que hoje é a síntese 
dos restaurantes self-service a quilo - era sinal de poder até meados do século XVII. O 
conceito surge quando se consolidam as identidades nacionais, e apenas o início do 
processo de globalização dos mercados e dos modelos alimentares faz germinar no homem 
o “gosto da geografia” (Ibidem: 141). 
 O historiador (2008) mostra que um dos pratos mais representativos da Itália - 
espaguete com molho de tomate - não se trata de uma tradição autóctone milenar, mas de 
um quebra-cabeças de influências que ajudaram a construir a cultura nacional daquele país. 
A massa seca é uma invenção árabe, e fervê-la em água é hábito medieval. O tomate, 
americano, virou molho na mão dos espanhóis e só chegou assim na Itália no século XVIII. 
O azeite de oliva e o manjericão são produtos do Mediterrâneo, mas o hábito de usá-los 
para regar e temperar a massa nasceu apenas no século XX. 
 Ao esmiuçar as origens históricas da receita, Montanari teoriza a diferença entre raízes 
e identidade: busca as raízes é entender o que um povo foi no passado, o que aprendeu e 
trocou com outras culturas, enquanto a identidade é o resultado, o aqui e o agora. “Procurar 
as próprias raízes, sem preconceitos, significa buscar os outros que vivem dentro de nós”5. 
 A desconstrução da receita exemplifica como os códigos alimentares mostram-se 
como um sistema aberto, que é, para Edgar Morin (2006), quando sua existência e a 
manutenção de sua diversidade dependem de inter-relações com o ambiente. Se um 
sistema fechado, como uma pedra, está em estado de equilíbrio por não trocar matéria ou 
energia com o exterior, um sistema aberto possui uma relação termodinâmica com o 
exterior: 
 
[...] as estruturas permanecem as mesmas, ainda que os constituintes sejam 
mutantes; assim acontece [...] com nossos organismos, onde nossas moléculas e 
 
5 Montanari compartilhou essas informações na palestra “Não há inovação sem raízes, não há raízes sem 
inovação”, que aconteceu em 28 de outubro de 2009, no Congresso Internacional de Gastronomia Mesa 
Tendências, em São Paulo (SP). 
9 
 
nossas células renovam-se sem cessar, enquanto o conjunto permanece 
aparentemente estável e estacionário (Idem, 2006: 21) 
 
 Para Martín-Barbero (2004: 184), “o autêntico não se resgata mais que na história das 
transformações sociais”. Assim como Canclini (2006), Martín-Barbero entende que as 
diversas maneiras de apropriação e interpretação de uma tradição não ameaçam o popular, 
mas podem fortalecê-lo ao ampliar sua penetração na sociedade. 
 
O conflito entre tradição e modernidade não aparece como o sufocamento 
exercido pelos modernizadores sobre os tradicionalistas, nem como resistência 
direta e constante dos setores populares empenhados em fazer valer suas 
tradições. A interação é mais sinuosa e sutil: os movimentos populares também 
estão interessados em modernizar-se e os setores hegemônicos em manter o 
tradicional, ou parte dele, como referência histórica e recurso simbólico 
contemporâneo (GARCÍA CANCLINI, 2006: 277). 
 
 Os movimentos de globalização econômica e cultural incentivam o deslocamento de 
conhecimento e referências simbólicas, o que causa a reorganização das estruturas que 
formam as culturas nacionais. Segundo Appadurai (2004), as inovações tecnológicas e os 
movimentos migratórios transnacionais trazem novas dimensões às configurações 
imaginárias e estruturas de sentimento que subsidiam a viabilidade de conhecimentos 
sociais. 
 Proteger-se das novidades a fim de preservar-se das incertezas da globalização cultural 
pode, então, ser mesmo desnecessário. Como afirma Montanari (2009), as identidades 
culturais não são partes do DNA de um povo, mas estão constantemente adaptando-se às 
influências externas e às trocas com outras culturas. “As identidades, portanto, não existem 
sem as trocas culturais, e proteger a biodiversidade cultural não significa enclausurar cada 
identidade numa concha, mas, sim, conectá-las” (Ibidem: 12). 
 Uma culinária só pode evoluir e desenvolver-se, de acordo com Pilcher (1998), 
quando não existem vencedores no embate entre tradição e novidade, apenas novas 
criações surgidas nas brechas dessa relação. Isso porque uma guerra desnecessária entre 
esses poderosos lados da mesa podem significar a extinção do perdedor. O autor lembra 
outro célebre aforismo de Brillat-Savarin (2001: 20): “a invenção de um prato novo 
contribui mais para a felicidade da humanidade que a descoberta de uma estrela”. Tentar 
10 
 
estacionar uma hibridização cultural, além de impossível, é pouco sábio. Por que privar o 
mundo dessa luz? 
 
 
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REVEL, Jean-François. Um festín en palabras: História literária de la sensibilidad 
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