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SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11 SEÇÃO 1 ............................................................................................................................ 14 1 CONCEITO E CONSIDERAÇÕES INICIAIS DO DIREITO PENAL ........................... 14 2 DOS FINS DA PENA .................................................................................................... 16 2.1 Conceito de pena ................................................................................................... 16 2.2 Teorias justificadoras ........................................................................................... 17 2.2.1 Teoria retribuitiva ............................................................................................ 17 2.2.2 Teoria preventiva ............................................................................................. 18 2.2.3 Teoria mista ..................................................................................................... 19 3 DO PODER-DEVER DO ESTADO DE PUNIR ............................................................ 20 4 PUNIBILIDADE ........................................................................................................... 24 4.1 Causas de extinção da punibilidade ..................................................................... 25 SEÇÃO 2 ............................................................................................................................ 27 1 DIREITO DE AÇÃO E DIREITO MATERIAL ............................................................. 27 1.2 Fases de evolução: sincretismo, autonomismo e instrumentalismo .................... 27 2 DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO ..................................................................................... 30 2.1 Olhar histórico pelas teorias imanentista, abstrata e eclética ............................. 30 2.2 Condições da ação no processo civil ..................................................................... 34 3 COISA JULGADA FORMAL E COISA JULGADA MATERIAL ................................ 38 4 A DICOTOMIA DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL E PROCESSUAL PENAL: UNITARISMO E DUALISMO .................................................................................................. 42 4.1 As condições da ação penal condenatória ............................................................ 46 4.1.1 Legitimidade ativa ad causam .......................................................................... 47 4.1.2 Interesse-utilidade ............................................................................................ 51 4.1.3 Justa causa ....................................................................................................... 53 4.1.4 Inadequação do requisito de possibilidade jurídica do pedido ........................... 55 5 CARÊNCIA DA AÇÃO PENAL CONDENATÓRIA .................................................... 57 5.1 Cognição das condições da ação ........................................................................... 57 5.2 Efeitos do reconhecimento liminar ...................................................................... 58 5.3 Efeitos do reconhecimento durante o curso processual ...................................... 61 SEÇÃO 3 ............................................................................................................................ 63 1 PRESCRIÇÃO PENAL ................................................................................................. 63 1.1 Noções fundamentais ............................................................................................ 63 1.2 Natureza jurídica .................................................................................................. 66 1.3 Fundamentos da prescrição penal ....................................................................... 67 1.2.1 Teoria do esquecimento ................................................................................... 67 1.2.2 Teoria da dispersão da prova ............................................................................ 68 1.2.3 Teorias da expiação moral e da readaptação social ........................................... 69 1.2.4 Outras teorias ................................................................................................... 69 1.4 Imprescritibilidade penal ..................................................................................... 70 1.5 Prescrição em abstrato, superveniente e retroativa ............................................ 71 2 ANTECIPAÇÃO DA PRESCRIÇÃO PENAL RETROATIVA ..................................... 73 2.1 Como causa de extinção da punibilidade ............................................................. 77 2.1.1 Melhor doutrina ............................................................................................... 77 2.1.2 O Supremo Tribunal Federal e a Súmula nº 438 do STJ ................................... 79 10 2.2 Como fundamento para a aferição da carência da ação penal condenatória ..... 80 2.2.1 Melhor doutrina ............................................................................................... 80 2.2.1.1 Possibilidade de antevisão da pena ........................................................... 80 2.2.1.2 Falta de interesse-utilidade ....................................................................... 82 2.2.1.3 Coisa julgada formal ................................................................................ 84 2.2.1.4 Economia processual ................................................................................ 84 2.2.1.5 Princípios da efetividade e intervenção mínima do Direito Penal .............. 85 2.2.1.6 Constrangimento do processo penal .......................................................... 86 2.2.1.7 Instrumentalidade do processo .................................................................. 88 2.2.1.8 Independência das esferas cível e penal .................................................... 89 3 A META 2 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA .............................................. 91 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 99 ANEXOS .......................................................................................................................... 108 JURISPRUDÊNCIA ...................................................................................................... 108 CASO 1 ..................................................................................................................... 108 CASO 2 ..................................................................................................................... 111 CASO 3 ..................................................................................................................... 116 11 INTRODUÇÃO A polêmica nacional acerca da ―prescrição penal antecipada‖ ultrapassa agora mais de uma década. Acendida a partir de uma constatação sobre a realidade do praxismo forense enfrentado no dia-a-dia por advogados, juízes, tribunais e membros do Ministério Público, essa teoria preconiza a primazia da instrumentalidade do processo penal e da dignidade da pessoa do réu, quando da sentença penal condenatória não se visualizar utilidade pragmática. Fazendo-se um prognóstico do quantum da pena a ser imposta ao acusado, na hipótese de sua condenação, inquire-se se a abertura ou continuidade de um processo penal fadado ao insucesso pela porvindoura prescrição retroativa atentam contra os ditames da economia processual e representam indevido constrangimento ao acusado, ou se, ao reverso,engrandecem a ordem jurídica fundada sob a legalidade, devido processo legal e obrigatoriedade da ação penal. O arrastado e enérgico dissídio jurisprudencial e doutrinário acerca da benfeitoria ou monstruosidade da prescrição penal antecipada, se tornou questão nacional, culminando em maio de 2010, quando o Superior Tribunal de Justiça, após anos de remansosa jurisprudência, emitiu seu pronunciamento final por meio da Súmula nº 438, estipulando ser ―inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal‖. O excelso colegiado pretendeu, com razão, apaziguar as anomalias averiguadas no foro judicial, em que, se antevendo a impotência do édito condenatório, terminava-se prematuramente o processo penal e imerecidamente se extinguia a punibilidade do réu, com base numa condenação hipotética e numa prescrição retroativa que jamais ocorreu, apenas se vislumbrou. Entendemos, com a devida vênia dos que se opõem, que a mais refinada erudição assiste ao Colendo Tribunal e todos aqueles que com seu enunciado se identificam. No entanto, a discussão não está encerrada, podendo-se até mesmo dizer que foi alimentada pela Súmula nº 438 do STJ. Isso porque, propositadamente ou não, não se abordou a essência da teoria da prescrição penal antecipada, que a nosso ver repousa no interesse-utilidade, como condição da ação penal condenatória. 12 Este estudo se propõe a demonstrar a viabilidade do reconhecimento antecipado da prescrição penal retroativa, pela pena in concreto calculada em perspectiva, como fundamento válido para a aferição da ausência do interesse-utilidade e, ultimamente, da carência da ação penal, a qual enseja a extinção, não da punibilidade, mas sim do processo, sem resolução do mérito penal e, portanto, sem formação de coisa julgada material. Em outra mão, exsurge ademais como argumento válido para o não oferecimento de denúncia ou queixa, ou a rejeição da peça acusatória no juízo inicial de admissibilidade da tutela jurisdicional. Com vistas a superar este problema de foco, preparamos esta pesquisa em três seções primárias. Na primeira seção, formaremos um escorço leve sobre a ciência do Direito Penal e alguns de seus princípios, que são sua parte mais pura, a quintessência, razão pela qual serão vistos em primeiro lugar. Importa, além, traçar um panorama geral sobre a sanção penal, investigando-se os seus fins e, em vista disso, o conceito de punibilidade. Serão abordadas as premissas do fundamento do poder-dever de punir do Estado, sendo necessário um breve incurso na teoria do contrato social. À segunda seção reservou-se o estudo das implicações processuais do tema. Far-se-á uma disquisição histórica da base teórica do direito de ação e do direito material, abrangendo-se as fases de evolução do seu relacionamento, sincretismo, autonomismo e instrumentalismo, para que se possa então observar a formação da doutrina das condições da ação, anotando-se os autores que se eternizaram por seus posicionamentos revolucionadores. Ver-se-á primeiramente a construção das condições da ação na dogmática do processo civil, permitindo-se a partir dessa compreensão entender sua reconstrução no campo processual penal. Para este fim, após uma análise da simetria unitária e dualista entre o processo civil e o processo penal, será exposta a inaptidão da transposição cega e absoluta da tradicional trindade processual civil para o âmbito penal, concluindo-se forçosamente pela necessidade de uma adaptação das condições da ação em conformidade com as particularidades dos fenômenos de índole público-criminal. Em seguida, discorrer-se-á quantos aos efeitos advindos do reconhecimento da ação penal condenatória. Feitas tais considerações e fixado o interesse-utilidade como requisito idôneo para a obtenção da sentença de mérito penal, chegaremos à terceira seção, onde tudo o que foi tratado nos capítulos anteriores convergirá para uma dissecação da temática. 13 Traçadas algumas noções fundamentais sobre o instituto da prescrição penal lato sensu, sua natureza, fundamentos e espécies, será elaborado um resumo daquilo que a jurisprudência e doutrina brasileira têm a dizer sobre a utilização da prescrição penal antecipada como causa precoce de extinção de punibilidade do agente, concatenando-se com os que estes mesmos processualistas têm a dizer quanto à hipótese de manejo da teoria da prescrição retroativa pela pena em perspectiva, como critério de aferição imediata da presença do interesse-utilidade e, mediatamente, da carência da ação penal condenatória. Munido dessa compreensão, o debate seguirá para o cotejo das vantagens que a aplicação prática desse entendimento traz, o que justifica seu estudo, principalmente na momentânea atual, marcada pela preocupação com o cumprimento da Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça, que pressiona juízes e tribunais para o julgamento dos processos judiciais em sua duração razoável, de quatro anos contados de sua propositura. Não se ignora que a temática escolhida é velha conhecida dos juristas pátrios. Contudo, o que se propõe aqui é discuti-la em ótica diferente daquela a que a doutrina e jurisprudência majoritária se habituaram, aproveitando o ensejo dado pelas recentes modificações legislativas e judiciárias pelas quais a matéria passou. Mesmo a abordagem aqui apresentada não é novidade, pois muitos profissionais do Direito já a defendem, apesar de serem minoria. O que se objetiva aqui é dar mais um passo, mais uma voz que se agrupa ao coro, torcendo para que se possa extrair alguma verdade e proveito em meio ao conhecimento sempre volátil. 14 SEÇÃO 1 1 CONCEITO E CONSIDERAÇÕES INICIAIS DO DIREITO PENAL O Direito Penal é o campo do ordenamento jurídico público voltado à disciplina das condutas humanas, comissivas ou omissivas, com o objetivo de resguardar determinados bens jurídico-penais, previamente selecionados e considerados essenciais ao indivíduo e à comunidade (PRADO, 2007). Para tanto, utiliza-se de um sistema coercitivo, no qual se atrelam sanções, de forma preventiva e repressiva, a certos comportamentos eleitos como gravemente nocivos ao convívio social, no chamado injusto penal. É, pois, uma ciência humana que se vê constantemente em processo de circunspeção filosófica, perquirindo quais bens jurídicos necessitam dessa forma gravosa de proteção jurídica, razão pela qual sua presença somente se justifica como ultima ratio. Nas palavras de Rogério Greco, ―uma vez escolhidos os bens a serem tutelados, estes integrarão uma pequena parcela que irá merecer a atenção do Direito Penal, em virtude de seu caráter fragmentário‖ (2007, p. 63). Justamente por representar uma intervenção estatal que afeta intensamente a forma de proceder de cada pessoa, o Direito Penal também não pode se distanciar de certos princípios, que são em verdade diretrizes que sustentam as normas jurídico-penais, ao mesmo tempo em que as limitam. A concepção atual do Estado democrático de Direito permite a distinção de alguns desses elementos fundamentais, entre eles o consagrado brocardo ―nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, scripta et stricta‖, formulação latina atribuída a Anselm von Feuerbach, em seu Tratado de Direito Penal de 1801, e que informa ser a legalidade a pedra angular das normas penais (GRECO, 2007). Estabelece-se desde já o dogma de que ao Estado só é permitida uma forma de intervenção, qual seja, a legalizada. Apartam-se, portanto, as figuras do executor das leis penais, daquele que as elabora. Somente o Legislativo detém legitimidade para expedir normas penais válidas, fornecendo assim segurança jurídica ao indivíduo ante as arbitrariedades no exercício do poder normativo, porquanto revestido de representatividade popular (PRADO, 2007).15 Desse raciocínio exsurge ainda a impossibilidade de uso da analogia em matéria penal quando acarretar de alguma forma prejuízo ao acusado, dada à fragmentariedade da atuação do Direito Penal. Como pontua Luis Regis Prado, ―a própria ratio do direito excepcional constitui limite normal à utilização da analogia‖ (2007, p. 192). Por outro lado, esse recurso assume perfeitamente viável quando se tratar de analogia in bonam partem, isto é, a utilização dessa forma de auto-integração da norma penal em prol do réu. Em igual importância na ciência criminal situa-se também o princípio da insignificância. De minimis non curat praetor, alerta o axioma, asseverando uma vez mais a função primordial do Direito Penal, qual seja, a de guardião dos bens jurídicos mais importantes e necessários à própria sobrevivência da sociedade (GRECO, 2007). Esse mandamento pode ser sintetizado pela idéia de que, não havendo lesão de suficiente magnitude ao bem juridicamente protegido para a configuração do injusto penal, desaparece a necessidade da imposição da sanção penal. Significa dizer, nos casos em que a conduta do agente, embora infracional perante a lei, não possa ser valorada como socialmente intolerável, a mesma pode e deve ser escusada da apreciação criminal. Tal noção nos remete a outra doutrina fundamental, a da intervenção mínima ou subsidiariedade do Direito Penal. Sendo a ultima ratio da política social, deve o Direito Penal ―interferir o menos possível na vida em sociedade‖ (GRECO, 2007, p. 49), cedendo à medida que o bem jurídico possa ser efetivamente protegido por meio dos demais ramos do Direito. Conforme precisa Luiz Regis Prado, ―isso porque a sanção penal reveste-se de especial gravidade, acabando por impor as mais sérias restrições aos direitos fundamentais‖ (2007, p. 143). André Copetti assim também explica (citado por Rogério Greco, 2007, p. 51): Sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos, deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva político-jurídica, deve-se dar preferência a todos os modos extrapenais de solução de conflitos. A repressão penal deve ser o último instrumento utilizado, quando já não houver alternativas disponíveis. Estes princípios balizadores, como visto, adquirem substancial relevância num Estado democrático de Direito em que se prima pelo respeito à dignidade da pessoa 16 humana, devendo ser observados tanto preliminarmente, no processo de elaboração das leis penais, como também concretamente, no plano do Direito Processual Penal. 2 DOS FINS DA PENA 2.1 Conceito de pena Para cumprir o seu papel de protetor dos bens jurídico-penais, o Direito Penal utiliza-se das sanções, compreendidas como penas e medidas de segurança. Para os fins deste estudo, nos limitaremos às primeiras, isto é, as penas, que constituem ―a mais importante das conseqüências jurídicas do delito‖ (PRADO, 2007, p. 538). Segundo Aníbal Bruno, ―pena é a sanção, consistente na privação de determinados bens jurídicos, que o Estado impõe contra a prática de um fato definido na lei como crime‖ (apud DIAS, 2005). Na mesma linha segue Luiz Regis Prado, ao definir a pena como a ―privação ou restrição de bens jurídicos, com lastro na lei, imposta pelos órgãos jurisdicionais competentes ao agente de uma infração penal‖ (2007, p. 538). Entende De Plácido e Silva que pena pode ser conceituada como a ―expiação ou castigo estabelecido pela lei, com o intuito de prevenir e de reprimir a prática de qualquer ato ou omissão de fato que atente contra a ordem social, o qual seja qualificado como crime ou contravenção‖ (apud DIAS, 2005). A par de tais ensinamentos, chega-se já preliminarmente em um dos pontos cruciais desta pesquisa: qual a razão social da imposição da pena? A quais fins ela se destina? A resposta a tais questões influenciará sobremaneira a condução deste trabalho, como se demonstrará, servindo de eixo-diretor para a compreensão das conclusões que serão extraídas. Por hora, é suficiente dizer que há muito os juristas se debruçam sobre a matéria, o que resultou no surgimento de diversas teorias legitimadoras a respeito, das quais destacaremos as três correntes que consideramos como as expoentes e que são recorrentemente abordadas pela didática doutrinária. 17 2.2 Teorias justificadoras 2.2.1 Teoria retribuitiva A teoria retribuitiva da pena é também chamada absoluta, por defender que a pena é um fim em si mesmo, não comportando função utilitária. Demais efeitos, como intimidação e correção, são considerados acidentes, desconexos de sua exclusiva finalidade, que é recompensar o mal com o mal. Há uma correspondência lógica, expressa pela máxima ―punitur quia peccatum est‖: pune-se, porque pecou, em tradução nossa. Para os partidários das teorias absolutas da pena, qualquer tentativa de justificá-la por seus fins preventivos (razões utilitárias) – como propunham, por exemplo, os penalistas da Ilustração – implica afronta à dignidade humana do delinqüente, já que este seria utilizado como instrumento para a consecução de fins sociais. (PRADO, 2007, p. 540). Para Kant, um dos defensores dessa vertente, a pena é um imperativo categórico, conseqüência natural do delito. ―Ao mal do crime impõe-se o mal da pena‖ (MIRABETE, 2004, p. 244). A pena consistiria ainda em exigência absoluta para o atingimento da justiça, para que a falta de um não recaia sobre o resto da sociedade. Assinala Salo Carvalho: O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa básica de que a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem, ou seja, o fim utilitário ilegítimo. Se o direito utilizasse a pena como instrumento de dissuasão, acabaria por mediatizar o homem, tornando imoral. Logo, a penalidade teria como thelos a imposição de um mal decorrente da violação do dever jurídico, encontrando neste mal (violação do direito) sua devida proporção. Muito embora utilize critérios de medida e proporção da pena, Kant rememorará modelos primitivos de vingança privada. A teoria absoluta da pena sob o viés Kantiano recupera o principio taliônico, encobrindo-o, no entanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade (...). (apud CORDEIRO, 2007, p. 1). Já no discurso complementador de Hegel, é possível aferir uma função positiva da pena. O delito é negação do direito. É a imposição ilegítima da vontade individual sobre a vontade geral. Negando-se, por sua vez, o delito, através da aplicação da pena, reafirma-se uma vez mais o direito, que é representação da vontade geral. E a medida do injusto penal praticado será a medida – o quantum – do castigo penal a ser infligido para restabelecer a ordem jurídica. Esclarece-nos uma vez mais Salo Carvalho: O principio fundamental da teoria hegeliana da pena é centrado na idéia de que a violência destrói a si mesma com oura violência: a supressão do crime é a remissão, quer segundo o conceito, pois ela constitui uma violência contra violência, quer segundo a existência, quando o crime possui uma certa grandeza qualitativa e 18 quantitativa que se pode também encontrar na sua negação como existência. (citado por CORDEIRO, 2007, p. 1). Seja na visão de retribuição ética ou moral de Kant ou de retribuição pela perspectiva lógico-jurídica de Hegel, a justiça, na teoria absoluta, somente é alcançada pela retribuição igualitária e proporcional do mal, de forma a equilibrar a transgressão do direito. E conforme assinala Aníbal Bruno, ―se algum fim prático pode ser com isso alcançado, é considerado secundário que não deve de modo algum sobrepor-se e nem sequer equiparar-se àquele fim essencial da justiça‖ (apud GROKSKEUTZ, 2010). 2.2.2 Teoria preventivaA teoria preventiva (ou relativa, utilitarista), de outra ponta, tem por fundamento o emprego político da pena como meio desestimulador para a ocorrência de futuras condutas criminosas. Aqui a pena é vista como instrumento, não um fim em si mesma, objetivando a prevenção, no lugar de retribuição 1 . O crime deixa de ser a causa da pena, como visto na teoria absoluta, e passa a ser a oportunidade para a imposição da pena, agora revestida de um fim unicamente prático, preventivo, necessário à pacificação social. ―Punitur ut net peccetur‖. Pune-se, para que não peque. Feuerbach, pai do Direito Moderno e precursor do Positivismo, entendia que a finalidade do Estado é a convivência humana de acordo com o Direito. Sendo o crime a violação do Direito, o Estado deve impedi-lo por meio da coação psíquica (intimidação) ou física (segregação). A pena é intimidação para todos, ao ser cominada abstratamente, e para o criminoso, ao ser imposta no caso concreto. Jeremias Bentham dizia que a pena é um mal tanto para o indivíduo, que a ela é submetido, quanto para a sociedade, que se vê privada de um elemento que lhe pertence, mas que se justifica pela utilidade. (MIRABETE, 2004, p. 244-5). Essa teoria, destaca Paulo José da Costa Jr, remonta aos fins terapêuticos apregoados por Platão, que concebeu a pena como a ―medicina da alma‖ (apud GROKSKEUTZ, 2010). A prevenção aqui é desenvolvida sob dois aspectos, o geral e o específico. Em caráter geral, a pena serve de intimidação aos demais membros da coletividade, como alerta para os possíveis violadores da ordem dormitentes. Mas numa dimensão particular, especial, a pena é dirigida à pessoa do delinqüente, como forma de ressocialização do mesmo, corrigindo-o ao largo de sua duração para que este possa retornar do seu ―ostracismo‖ ao convívio social. 1 ―É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los‖. (BECCARIA, 2001, p. 101). 19 2.2.3 Teoria mista Por fim, a teoria mista ou eclética, idealizada por Adolf Merkel, tem o mérito de abarcar ambos os conceitos desenvolvidos pelas teorias absoluta e relativa como sendo não auto-excludentes, mas sim conciliadoras, em uma reformulação apta a suprir as deficiências apresentadas por aquelas. Conjuga-se a natureza substancialmente retribuitiva da pena com as finalidades de prevenção, inibição, educação. Aplica-se a pena quia peccatum est et ut ne peccetur, sendo esta a doutrina mais bem aceita contemporaneamente, como expõe Bittencourt (apud Grokskreutz, 2010): As teorias mistas ou unificadoras tentam agrupar em um conceito único os fins da pena. Esta corrente tenta escolher os aspectos mais destacados das teorias absolutas e relativas. Merkel foi, no começa [sic] do século, o iniciador desta teoria eclética na Alemanha, e, desde então, é a opinião mais ou menos dominante. No dizer de Mir Puig, entende-se que a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são distintos aspectos de um mesmo e complexo fenômeno que é a pena. Julio Fabbrini Mirabete assim pondera: Desde a origem até hoje, porém, a pena sempre teve o caráter predominantemente de retribuição, de castigo, acrescentando-se a ela uma finalidade de prevenção e ressocialização do criminoso. A retribuição e a prevenção são faces da mesma moeda e, como acentua Everardo da Cunha Luna, ―a retribuição, sem a prevenção é vingança; a prevenção sem a retribuição, é desonra‖. (2004, p. 245). A pena, portanto, serve a dois propósitos mestres: retribuir e prevenir, tanto na forma geral (intimidar), como na forma especial (ressocializar). Essa noção miscigenadora foi seguida pelo sistema jurídico brasileiro, como se infere do dispositivo do Código Penal abaixo, que condiciona a aplicação da pena ao pressuposto de ser necessária e suficiente à reprovação e prevenção do delito: Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (...). Cada tese, portanto, foi marcada pelo pensamento tônico da época - como hoje o é a dignidade da pessoa humana -, sendo possível se falar numa evolução histórica dos fins da pena. Vingança privada? Castigo divino? Reflexa retribuição? Meio preventivo? Independente de qual seja a resposta, fato é que se pode observar um denominador comum à quase todas as teorias e que está presente desde as idéias mais 20 primitivas: a necessidade indissociável de retribuição. Neste ponto se faz categórico transcrever a lição de José Frederico Marques, retirada da obra Tratado de Direito Penal: A pena tem caráter eminentemente retributivo. Como assinalou Costa e Silva, tem-se “negado ou posto em dúvida a verdade de semelhante asserto; mas sempre em vão”. E Nélson Hungria, numa passagem que não nos furtamos ao prazo de reproduzir, diz em síntese admirável e eloqüente o seguinte: ―A compensatio mali cum malo é ditada por uma lei da natureza e depara justificação em nossa própria consciência. Não há argumentar que pena-retribuição é resquício do talião primitivo. O modus faciendi da punição tem evoluído no sentido da brandura e da proporção, mas a idéia da retorsão do mal pelo mal continua inscrita e viva na razão humana, tal como no tempo do olho por olho, dente por dente. Surgiu com os primeiros homens e há de ser a pedagogia de todos os tempos, a correspondência entre o mal e o castigo, entre o bem e o prêmio. A pena, como sofrimento imposto aos que delinqüem ou como contragolpe do crime (malum passionis quod infligitur ob malum actionis), traduz, primacialmente, um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece‖. (2002, p. 112). (grifo nosso). Historicamente, pois, é possível constatar que a pena, desde suas remotas origens, contou com um caráter fortemente retribuitivo, e essa idéia de compensação ―mali cum malo‖ sobreviveu a primorosos argumentos adversos, para novamente ser resgatada e reafirmada pela mais difundida teoria dos fins da pena. Realça Rogério Greco: A sociedade, em geral, contenta-se com esta finalidade, porque tende a se satisfazer com essa espécie de ―pagamento‖ ou compensação feita pelo condenado, desde que, obviamente, a pena seja privativa de liberdade. Se ao condenado for aplicada uma pena restritiva de direitos ou mesmo a de multa, a sensação, para a sociedade, é de impunidade, pois que o homem, infelizmente, ainda se regozija com o sofrimento causado pelo aprisionamento do infrator. (2007, p. 487-8). Munido dessa compreensão capital, é possível continuar o desenvolvimento deste estudo, esboçando-se agora algumas acepções quanto à pretensão punitiva estatal. 3 DO PODER-DEVER DO ESTADO DE PUNIR Ao Estado, como ente soberano, é reservado o monopólio da aplicação coercitiva das sanções penais em face do descumprimento da lei. Na concepção jusnaturalista de Jean-Jacques Rousseau e de Thomas Hobbes, a fundamentação do Estado soberano decorre da vontade geral, expressa no pacto social. Quer se tome como ponto de partida o estado de natureza de Hobbes ou o estado de sociedade de Rousseau, ambos os contratualistas concordam que em determinado momento o homem se vê num estado de guerra, na qual todos estão contra todos na medida em que são iguais e livres, não havendo nessa fase certeza do respeito à lei e assim a lei perde 21 sua eficácia. Para que o homem supere esse império da força, é necessária a atribuição de poder a uma só instituição, de modo a restringir as várias vontades a uma só vontade: surge, assim, o Estado soberano (BOBBIO apud ALVES, 2005). A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamentopolítico já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, que compartilha os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e que possui um destino comum. A idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário, tornar-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina, a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana. (CHAUÍ, 2000, p. 220-3). Essa passagem para o estado de sociedade civil, onde existe um poder políticos e leis, ocorre por meio do contrato social, em que cada indivíduo voluntariamente e livremente abdica de uma porção de sua liberdade em favor de um terceiro, o soberano, que se torna a autoridade política, com o poder para criar e aplicar as leis coativamente, afinal, ―Direito sem coação é um fogo que não queima; uma luz que não ilumina‖ (IHERING apud NADER, 2004, p. 86). Os indivíduos, criados a si mesmos como povo pelo pacto social, dão origem à vontade geral, legitimadora da soberania do Estado e da qual o governante é apenas o representante, asseverava Rousseau, fomentando os alicerces do Estado democrático de Direito vigente. Cesare Beccaria, mentor do Direito Penal moderno, no mesmo sentido já dizia: Fatigados de só viver em meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para gozar do restante com mais segurança. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu a soberania da nação; e aquele que foi encarregado pelas leis como depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo. (...) A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo. (2001, p. 19-20). (grifo nosso). Desse modo, o ius puniendi encontra sua origem racional na teoria contratualista. Não mais se admite a justiça conduzida ao alvedrio dos particulares; muito mais que isso, proíbe-se terminantemente tal conduta à margem da lei. No ordenamento jurídico brasileiro esse comportamento está tipificado no art. 345 do Código Penal, como ―exercício arbitrário das próprias razões‖. 22 Incumbe ao Estado e tão-somente a ele o direito de administrar a sanção penal, marca característica de sua soberania, o que além de uma faculdade também se revela uma obrigação, ―um dever em seu agir inerente à sua natureza‖ (ALMEIDA, 2006, p. 1), porquanto a segurança pública, ―dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio‖ (artigo 144, Constituição Federal de 1988). Encarregado, assim, de prover a segurança almejada pelo indivíduo e pela sociedade (anseio justificador da transferência de direitos feita no contrato social de submissão), o Estado cria o Direito, objetivamente aferido como um universo de normas que compõem o ordenamento jurídico-penal. Ao mesmo tempo, acompanha-se o nascimento de um direito sancionador, cuja titularidade é confiada ao Estado, como detentor singular do poder de reprimir aquele agente que transgride a ordem jurídica posta. Ao Estado o direito subjetivo 2 de punir e ao particular o dever de não infringir a norma penal, que é composta de um preceito primário e um preceito secundário. O primeiro consiste na descrição de uma conduta humana a ser reprimida, ao passo que o segundo versa quanto à penalidade a ser infligida ao autor que realizar o facere ou o non facere contido no preceito primário 3 . Enquanto não perturbada a ordem jurídica penal, o Direito penal subjetivo do Estado remanesce no plano abstrato, apenas uma ameaça discernida no horizonte. Ensina José Frederico Marques: (...) é inegável que, do simples nascimento da norma penal, cria o direito objetivo, em relação a todos, na regra assim promulgada, a obrigação de determinada conduta, evitando ações e omissões de que possam resultar violação ao imperativo legal. Se o Estado proíbe matar, é evidente que essa proibição traz aos que estão subordinados a essa norma agendi um vinculo e limitação, o que constitui o substractum de uma obrigação para com o próprio Estado. A essa obligatio há de corresponder um Direito, porquanto a obrigação jurídica é sempre em favor de alguém. Daí surge o direito abstrato de punir, ou o direito do Estado à observância dos preceitos contidos na norma penal, e de exigir, conseqüentemente, o dever de abstenção da pratica do crime. (apud MAZITELI JÚNIOR, 2004, p. 7). No entanto, praticada a ação ou omissão prevista no preceito primário da norma penal, ou seja, ocorrido o injusto penal, o ius puniendi que antes pairava genericamente 2 ―Direito objetivo, portanto, é a regra imposta ao proceder humano pelo Estado. Por sua vez o direito subjetivo é o poder de que uma pessoa é titular em virtude dessa mesma regra, da qual diretamente deriva, podendo exigir de outrem uma prestação. É um poder correlato a um dever‖. (FERREIRA, 2002006, p. 10). 3 ―A norma penal incriminadora cria para o Estado, seu único titular, o direito de punir abstrato. Passa a ter o direito de exigir que os cidadãos não cometam o fato nela descrito. De sua parte, estes têm a obrigação de não realizar a infração penal determinada‖. (JESUS apud SERPA, 2008, p. 145). 23 agora se transforma numa pretensão individualizada, dirigida especificamente contra o transgressor, materializada 4 pelo fato concreto e que acarreta a incidência in casu da sanção cominada no preceito secundário. Diz-se pretensão a exigência de subordinação de um interesse alheio a um interesse próprio, conforme instrui Fernando Capez: No momento em que um crime é praticado, esse direito abstrato e impessoal se concretiza e se volta especificamente contra a pessoa do delinqüente. Nesse instante, de direito passa a pretensão. Pretensão é a disposição de submeter um interesse alheio a um interesse próprio. O Estado passa a ter o interesse de submeter o direito de liberdade daquele criminoso ao seu direito de punição. (2007, p. 571). E diz-se pretensão individualizada, pois, conforme Nelson Hungria: A fórmula unitária foi assim fixada: retribuir o mal concreto do crime com o mal concreto da pena, na concreta personalidade do criminoso. Ao ser cominada in abstracto, a pena é individualizada objetivamente; mas, ao ser aplicada in concreto, não prescinde da sua individualização subjetiva. Após a individualização convencional da lei, a individualização experimental do juiz, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva. (apud MASSON, 2009, p. 516). Argúi, ademais, Frederico Marques: Cometido o ato penalmente ilícito, tem o Estado o direito de privar o autor do crime de um bem a ele pertencente e que o direito antes tutelava. (...) Desobedecida a norma primária ou preceptiva, e atingido o bem jurídico penalmente tutelado, nasce para o Estado o direito de penetrar no status libertatis do réu para privá-lo, através de medida sancionadora adequada, de um bem até então garantido e inatingível. O direito estatal de punir descansa, agora, no preceito sancionador, e seu objetivo é o de impor uma diminuição na esfera dos direitos do réu, submetendo-o à coação em que se formaliza a regra secundária da norma penal. (2002, p. 106). Nos ensinamentos de Damásio Evangelista de Jesus: Antes o Estado tinha o direito de exigir a abstenção da práticacriminosa. Realizado o fato delituoso, a relação entre o Estado e o delinqüente, que antes era de simples obediência à lei penal, consubstanciada no preceito primário da lei incriminadora, tem seu suporte legal no preceito secundário, que comina a sanção, denominando-se relação jurídico-punitiva. Esse jus puniendi concreto, verdadeiro poder-dever de punir, e não simples faculdade de punir, estabelece uma relação real de natureza jurídico-penal, entre o Estado e o sujeito ativo do crime. (apud SERPA, 2008, p. 145). (grifo original). Interessa enfatizar, todavia, que, no Estado democrático de Direito sob o jugo do princípio da Legalidade e seus consectários, a imposição da sanção penal, ainda que um dever do Estado soberano, não se faz de maneira automática e imediata por força apenas da lei (ope legis), mas antes mediante um prévio processo jurisdicional (ope judicis), isto é, a critério do magistrado e dentro da forma estabelecida em lei. 4 ―O direito de punir abstrato passa a ser concreto desde que ultrapassada a linha limítrofe da abstenção para a ação criminosa‖ (MIRABETE apud REGIS JÚNIOR, 2007, p. 1). 24 Portanto, o ius puniendi, conquanto seja um poder, não é de modo algum absoluto, visto que nasceu como utensílio conferido ao Estado para o amparo de direitos preexistentes ao surgimento do próprio Estado, devendo este o respeito por aqueles. Assim nos leciona Alfredo Buzaid: O homem é titular de direitos absolutos, oriundos da natureza, anteriores e superiores ao Estado. A lei não os criou; limitou-se a reconhecê-los. Por isso se o Estado os ofende, falha em sua missão. A liberdade humana é ilimitada a princípio, enquanto o poder do Estado é limitado. (citado por FERNANDES, 2006, p. 1). (grifo nosso). Ligada à noção do poder-dever punitivo estatal, está a de punibilidade, como veremos mais à frente. 4 PUNIBILIDADE Punibilidade pode ser tradicionalmente conceituada como a possibilidade jurídica do Estado de aplicar a sanção penal (pena ou medida de segurança) ao autor do delito. Perpetrado um crime, assim entendido a ação ou omissão típica, antijurídica e culpável, surge para o Estado a possibilidade concreta de exercer o ius puniendi. Isso porque o fato concreto tem caráter de punível. Em sentido amplo, por conseguinte, a punibilidade está associada aos elementos de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade da conduta. Desse modo, verifica-se que punibilidade é a aplicabilidade da pena, mas com ela não se confundindo. Enquanto a pena pode ser vista como um dos fins a ser perseguido pelo Estado mediante o processo penal, a punibilidade é o veículo que permite a imposição daquele fim, a pena. Tampouco é requisito do crime, mas sim a condicionante, ou pressuposto, da sanção penal, que é a conseqüência jurídica do delito. Logo, é possível haver caracterização de ilícito sem que ocorra a aplicação de pena, mas desafia a lógica jurídica pretender falar em reconhecimento de um ilícito à míngua de punibilidade, já que esta configura elemento essencial da norma penal, segundo a melhor doutrina. Nesse sentido, aduz o juiz federal Fausto Martins de Sanctis (2002): (...) a punibilidade caracteriza-se apenas como conseqüência do reconhecimento da existência de uma infração penal, não integrando o conceito desta, pois, mesmo em havendo a abstração da sanção delituosa, se poderá concluir pela existência efetiva de um delito. Discordamos, assim, do posicionamento de Nelson Hungria, para quem a punibilidade, que configura a nota particular de um delito, é dele integrante. Para nós, a punibilidade configura elemento essencial da norma penal, sem a qual, faltaria requisito que a aperfeiçoe, mas para a estrutura do delito, mormente de seu conceito analítico, é totalmente dispensável na medida em que fica fora de sua 25 estrutura autônoma. Sendo conseqüência de um delito, este acaba por se revelar como condição necessária para sua ocorrência; é condição indeclinável de um crime totalmente acabado. Porém, é certo que a punibilidade, por vezes, se sujeita a determinadas circunstâncias, denominadas condições de punibilidade, que se subdividem em positivas (aquelas cuja presença é demandada para que o agente seja punido) e negativas (que não podem se configurar). Se subordinada a punibilidade à verificação de condições extrínsecas ao delito, não previstas no tipo penal, diz-se que são condições objetivas de punibilidade. Por outro lado, acaso o acusado se encontre ao amparo de uma causa de isenção de pena devido a uma condição de natureza pessoal, estamos diante das designadas escusas absolutórias (PRADO, 2007). Ney Moura Teles assim resume a punibilidade: Trata-se de uma categoria que não integra o conceito de crime, mas que, como sua conseqüência jurídica, vai condicionar a imposição da resposta penal e que só existirá quando estiverem presentes algumas causas, as condições objetivas de punibilidade, e ausentes outras causas, umas chamadas escusas absolutórias, outras denominadas extintivas da punibilidade. (...) Condições objetivas de punibilidade são circunstâncias que se situam fora do crime, isto é, do fato típico – do dolo – da ilicitude, e da culpabilidade; sem elas não pode ser imposta a pena, como resposta do direito. (...) Já as chamadas escusas absolutórias são situações concretas previstas na parte especial do Código Penal que impedem a aplicação da pena ao agente de um fato típico, ilícito e culpável, de um crime. (...). São situações ditadas por princípios ou interesses de política criminal, que impedem a imposição da pena, atingindo a possibilidade jurídica de punir, a punibilidade. (apud GIACOMINI, 2009, p. 2). Ora, há casos ainda que, a despeito de a punibilidade se encontrar avistada desde o início, podem sobrevir atos ou fatos que impedem terminantemente a imposição da sanção penal no caso concreto, extinguindo a punibilidade que, por regra geral, só seria extinta por meio do cumprimento pelo agente da sanção penal cominada. Tratam-se essas ocorrências das causas de extinção da punibilidade. 4.1 Causas de extinção da punibilidade Os motivos que ensejam a extinção da possibilidade de aplicação ou execução da sanção penal podem advir após o fato penal, durante o decorrer do processo ou até depois da condenação. Se operantes antes do trânsito em julgado da sentença penal, têm por efeito suprimir a pretensão punitiva estatal; se após, obstam a pretensão executória, isto é, afastam o direito de executar a pena já formalmente aplicada (terceiro momento do ius puniendi). 26 Sendo matéria de ordem pública, qualquer que seja a fase do processo ou instância, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício (art. 61, caput, Código de Processo Penal). Diversas são estas causas extintivas, estando sediadas em sua maioria no art. 107 do Código Penal brasileiro, in verbis: Extinção da punibilidade Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: I - pela morte do agente; II - pela anistia, graça ou indulto; III - pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso; IV - pela prescrição, decadência ou perempção; V - pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada; VI - pela retratação do agente, nos casos em que a lei a admite; VII - (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005) VIII - (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005) IX - pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei. (grifou-se). Observa-se que essas causas podem derivar de acontecimentos naturais da vida, como o falecimento do agente (mors omnia solvit), ou por questões de política do Estado, a exemplo da anistia, graça e indulto. O dispositivo acima, contudo, não representa elenco exaustivo, apenas um rol exemplificativo, havendo causas extintivas da punibilidadedeterminadas em outras normas e diplomas penais, a exemplo do art. 34 da Lei nº 9.249/95, que prescreve extinta a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137/90 e na Lei nº 4.729/65, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia. Dentre a gama de fatores que afastam em definitivo a punibilidade, dá-se destaque ao de ordem temporal, consistente na prescrição, que é, numa apertada síntese, a perda pelo Estado do ius puniendi face à passagem do tempo fixado para o seu exercício. A este instituto, entretanto, nos reportaremos detidamente mais à frente. Feitos estes apontamentos introdutórios, podemos prosseguir no estudo dos aspectos processuais que envolvem a matéria. 27 SEÇÃO 2 1 DIREITO DE AÇÃO E DIREITO MATERIAL 1.2 Fases de evolução: sincretismo, autonomismo e instrumentalismo Havendo desrespeito a uma norma jurídica imposta - direito objetivo -, surge a necessidade social 5 de subjugar o destinatário a observá-la coercitivamente. Essa pretensão faz nascer para o prejudicado um direito subjetivo, que não pode ser desprovido de potestatividade, sob pena de cair na inocuidade. Assim é que se fala em um direito de ação, ou seja, a possibilidade de acionar o órgão competente - o Estado - para que intervenha em assistência ao direito violado 6 , mediante um conjunto de atividades chamado processo. Desde o momento em que o Estado vedou ao particular a autotutela ou autodefesa dos próprios interesses, permitindo-a apenas em algumas hipóteses restritas, assumiu para si a obrigação de solucionar o conflito de interesses. (ALVIM, citado por PINTO, 2008, p. 1). Durante a fase do sincretismo, lastreado com resquícios do direito romano, a concepção do processo se restringia a enxergá-lo como apenas um dos aspectos do direito inerente a determinado indivíduo, não mais que uma extensão, um adjetivo 7 . Confundiam-se o direito material advindo da situação fática (anômala quanto ao previsto em lei) e a ação apta a ampará-lo, ficando esta condicionada diretamente à ocorrência daquele. Como explanam Cintra, Grinover e Dinamarco, a ―ação era entendida como sendo o próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado, adquiria forças para obter em juízo a reparação da lesão sofrida‖ (2007, p. 48). Significava com isso dizer, de acordo com Eugênio Pacelli de Oliveira, que ―a todo direito (material) há uma [imanente] ação (processual) que o assegura e a ele corresponde (...) de modo que a existência, ou inexistência, 5 ―O que deve ficar patente é que a pena é uma necessidade social – ultima ratio legis -, mas também é indispensável para a real proteção de bens jurídicos, missão primordial do Direito Penal‖. (PRADO, 2007, p. 551). (grifou-se). 6 ―À função de compor os litígios, de declarar e realizar o Direito, dá-se o nome de jurisdição (do latim juris dictio, que significa dizer o direito). A jurisdição pode ser vista sob três enfoques distintos: como poder, porquanto emana da soberania do Estado, que assumiu o monopólio de dirimir os conflitos; como função, porque constitui obrigação do Estado de prestar a tutela jurisdicional quando chamado; finalmente, como atividade, uma vez que a jurisdição atua por meio de uma seqüência de atos processuais‖. (NUNES, 2007, p. 3). (grifo nosso) 7 Actio autem nihil aliud est quam ius persequendi in iudicio quod sibi debetur. ―A ação nada mais é do que o direito de alguém perseguir em juízo o que lhe é devido‖. (CELSO apud MARINONI, 2007). 28 de um era também a existência ou inexistência de outro‖ (2008, p. 83-4). Assim, falhando o indivíduo em demonstrar seu direito, inexistia o decorrente direito de ação. Com a evolução do estudo das particularidades do processo, contudo, houve um crescente interesse em explorar essa relação, até então nebulosa, entre direito e ação. As conjecturas feitas permitiram delinear a existência de princípios, conceitos, institutos e métodos próprios, alheios ao direito material debatido, dizendo respeito unicamente ao processo em si. ―Entendeu-se que o objeto do direito processual não é efetivamente os bens da vida – os quais são objetos de estudo do direito material – mas sim os próprios fenômenos que ocorrem na vida do processo‖ (FERREIRA, 2006, p. 6). Tais progressos impulsionaram o estabelecimento do direito processual, como ciência jurídica dotada de autonomia frente ao direito material. Tornou-se possível, então, distinguir a ―existência autônoma da relação jurídica processual entre os atores do processo, relação essa absolutamente distinta e autônoma da eventual existente relação de direito material‖ (FERREIRA, 2006, p. 5). Essa perspectiva foi apreciada inicialmente na polêmica entre Bernhard Windscheid e Theodor Müther 8 , armada na Alemanha de meados de 1850. Windscheid considerava que a actio nada mais era que a pretensão, ou seja, o poder de se exigir algo de outrem. Muther, de outro lado, logrou demonstrar a diferença entre o direito lesado que é exigido em juízo (direito material) e o direito de provocar a jurisdição do Estado (direito de agir). A separação entre o plano substancial e o plano processual, porém, somente viria a ser sistematizada, em 1868, pelo pensador alemão Oskar Von Bülow, em seu célebre trabalho Teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais, autor que foi seguido, na essência, pelos também alemães Adolph Wach e James Goldschimidt (PACELLI, 2008). No âmbito nacional, credita-se o italiano Enrico Tullio Liebmam como responsável pela introdução da teoria da ação, influenciando sobremaneira o direito processual brasileiro a partir de então. Sucedeu, todavia, que a ânsia em demonstrar a autonomia do direito processual conduziu os debates assim inspirados a uma indevida desvinculação exacerbada 8 Para um estudo mais aprofundado, recomendamos a obra Teoria Geral do Processo, de Luiz Guilherme Marinoni. 29 com o direito material. Olvidou-se a razão de ser do processo e os jurisconsultos, embriagados na apreciação introspectiva dos conceitos processuais sintetizados, se detiveram em pô-los a prova, travando desnecessariamente o andamento do processo. Houve uma demasiada valorização da técnica pela técnica, deturpando seus objetivos e distanciando-se da realidade, assim nos ilustra Ricardo Santos Ferreira: Conquanto nessa fase a ciência processual tenha obtido o reconhecimento de sua autonomia, pondo fim a fase do sincretismo, esse exagerado apego a necessidade de se conceituar e sistematizar todos os possíveis e imagináveis institutos e princípios levou a um exagerado culto à forma em detrimento do objetivo maior do processo, afastando-se exageradamente do direito material e de sua função pacificadora consistente em sua função metajurídica. (2006, p. 7). Esse distanciamento desnaturado acarretou a perda de eficácia da ação quanto à satisfação do direito perseguido e despertou a preocupação de se retornar aos fins pragmáticos a serem atingidos com o processo. É assim que o autonomismo, marcado pela superação do sincretismo desprovido de ambição científica, é suplantado pela hodierna etapa instrumentalista, sagrada por congregar a já pacífica sistematização do processo, à sua função teleológica, qual seja, a de servir de instrumento para a fiel observância do direito material. Evoluiu, portanto, a ciência processual mais uma vez, conscientizando seus estudiosos que a importância real do processo está em seus resultados. Passou-se a buscar meios para a necessária efetividade do processo, qual seja, um sistema processual apto para servir como verdadeira e eficiente via à ―ordem jurídica justa‖. (FERREIRA, 2006, p. 7). Prima-se agora, pois, por uma sistemática processual que almejeresultados práticos na jurisdição a ser proporcionada pelo Estado-juiz, visto que, embora comprometido com a ordem jurídica, o processo deve, sobretudo, cumprir com sua missão de pacificação perante a sociedade. A esse respeito, enfatizam Cintra, Grinover e Dinamarco: O processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-domático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Com tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto-de-vista dos produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária. (2007, p. 49). (grifo original). 30 Em breves notas, eis as três fases da evolução que possibilitou a concepção apartada, porém circular 9 , do direito material e do direito processual, e a par disso, a familiarização com a tríade processual: jurisdição, ação e processo. 2 DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO 2.1 Olhar histórico pelas teorias imanentista, abstrata e eclética Como explanado em linhas gerais, o período sincrético entre o direito e a ação foi marcado pela teoria imanentista, que teve como precursor Friedrich Karl von Savigny 10 , segundo o qual a ação derivava de uma metamorfose do direito material violado e posto em movimento, não podendo ser vista como nada além de ―o mesmo direito em atitude de defesa‖ (VINHAS DA CRUZ, 2005, p. 2). Falar-se em direito e ação era cair em redundância. A teoria imanentista foi superada pelo autonomismo, abalizado primeiramente pela teoria concreta da ação, desenvolvida por Adolph Wach 11 em 1888, que enxergou a ação como fenômeno dissociado do direito material. Visualizavam-se uma relação jurídico-material debatida entre as partes e uma relação jurídico-processual desenvolvida entre o indivíduo e o Estado, como sujeito passivo devedor da tutela jurisdicional. Contudo, a teoria concreta da ação falhou por entrelaçar o destino da relação jurídica processual ao da material, pois na sua visão somente teria havido o exercício da ação se a tutela jurisdicional invocada fosse concedida. É então que o autonomismo evoluiu da simples distinção entre ação e direito para a afirmação de independência entre os mesmos, chegando-se à teoria abstrata da ação. Era preciso atingir uma base teórica que sobrevivesse à eventualidade de uma sentença desfavorável, tarefa da qual se ocuparam os juristas Alexander Plósz e Heinrich Degenkolb 9 ―O direito sem processo não poderia alcançar sua finalidade; numa palavra, não seria direito. Sem o processo, pois, o direito não poderia alcançar seus fins; mas o processo também não os poderia alcançar sem o direito. A relação entre os dois termos é circular. Por isso se constitui esse ramo do direito que se chama direito processual‖. (CARNELUTTI apud CICCO, 2006, p. 1). 10 Baseado na definição da actio romana de Celso. 11 Segundo Tourinho Filho, o grande mérito de Adolph Wach, além da ênfase à autonomia do direito de ação, foi sintetizar que ―a ação não pressupõe, necessariamente, um direito subjetivo violado ou ameaçado, mesmo porque, nas ‗ações declaratórias‘, o autor pretende, apenas, obter a declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica‖. (2008, p. 306/307). 31 em 1877 12 , que passam a afirmar que a ação é um direito de agir abstrato, autônomo e independente do reconhecimento do direito material, pelo que pode ser concebida com abstração. Logo, o direito de agir é anterior ao seu exercício, consubstanciado na demanda (MARINONI, 2007). Posteriormente, em 1903, Giuseppe Chiovenda foi quem primeiro apregoou a ação como um direito potestativo, emanado da manifestação de vontade do indivíduo. Diz- se potestativo, pois se impõe em face de outrem (a parte ex adversa) sem que este possa oferecer resistência. O Estado era visto como o condutor da pretensão, exercida em face do adversário. Frise-se ser potestativo a princípio o direito de ação, isto é, o direito de levar a matéria ao conhecimento jurisdicional, e não o direito material, que ainda há ser discutido e declarado. A despeito desse mérito, é fato que Chiovenda foi adepto da teoria concreta da ação, pois também persistiu em subordinar a existência do direito de ação à existência do direito material, aferido pela sentença favorável. Para Chiovenda, somente seria investido da ação aquele cuja demanda fosse acolhida. Nesse passo, é notável a contribuição de Eduardo J. Couture, renomado jurista nascido no Uruguai, que em sua obra Fundamentos del derecho procesal civil, de 1946, teorizou que a ação era um direito do cidadão, assegurado pela Constituição 13 , de se exigir um pronunciamento do Poder Judiciário quanto à questão levada a conhecimento, independentemente do requerente fazer jus ou não ao direito afirmado como seu, eis que o direito de ingresso à jurisdição é amplo e universal e não se condiciona ao reconhecimento do direito material. O direito de ação, segundo Couture, é um direito de agir abstrato (MARINONI, 2007). Deveras, o lúcido pensamento de Couture foi abraçado no meio jurídico, podendo ser observado na vigente Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso XXXV, onde ordena que ―a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito‖. Em vista desse comando, é plausível extrair duas acepções: a existência de um direito genérico de acesso aos tribunais, que é o direito de agir ou direito de petição, formulado contra o Estado; e a existência apartada do direito processual de ação, invocado em 12 Note-se que a teoria abstrata da ação de Plósz e Degenkolb (1876) foi idealizada anteriormente à teoria concreta da ação de Adolph Wach (1888), mas por questões didáticas, consideramos adequado para a apresentação desconsiderar o fator cronológico, expondo as teorias de acordo com o seu grau de avanço. 13 ―O direito de agir, concebido como pura e simples faculdade de acesso ao tribunal, não fará parte desse mínimo de poderes jurídicos inerentes à própria condição humana e que todas as Constituições enumeram em suas já clássicas disposições sobre direitos e garantias?‖. (COUTURE apud KLIPPEL, 2002, p. 3). 32 face do réu e que se refere à providência de direito material, direitos esses que não se confundem, visto que o último nada tem de genérico, pois guarda relação com uma situação concreta, e se identifica por três elementos precisos: os sujeitos (autor e réu), a causa de pedir (fundamentos de fato e de direito do pedido 14 ) e o pedido, que é o provimento judicial postulado (MARINONI, 2007). Nota-se além, que o direito de agir (direito de petição) é uma garantia constitucional conferida ao indivíduo de forma incondicionada, um direito público subjetivo contra o Estado, enquanto que a ação, embora retire embasamento no direito de demandar, sofre restrições impostas pelo próprio ordenamento que condicionam o julgamento meritório. Estamos aqui fazendo alusão às denominadas condições da ação, na forma preceituada por Liebman em 1949, expoente da teoria eclética da ação. Para Liebman, a ação se traduz no direito ao julgamento de mérito 15 , não possuindo dependência ao acatamento do direito material afirmado, pois se satisfaz em qualquer via com uma sentença favorável ou desfavorável ao autor. O julgamento do mérito pelo juiz, entretanto, encontra-se dependente do preenchimento de certos requisitos formais, elencados originalmente 16 por Liebman como sendo a legitimidade ad causam, o interesse de agir e a possibilidadejurídica do pedido. Essas condições representariam o ponto de encontro entre o plano processual e o material, agindo como filtro para as causas passíveis de tutela jurisdicional. De um lado mitigou-se a rigidez da teoria concreta quanto aos legitimados para exercer o direito de ação, ampliando-o para abranger também aqueles que não fizessem jus ao bem jurídico aventado, e por outro lado restringiu-se a excessiva liberdade de manejo do direito de ação causado pela teoria abstrata. Mesmo que investido previamente do direito constitucional de ação e de tê- lo exercitado por meio da demanda inicial, retirando da inércia o Poder Judiciário, o indivíduo somente poderá exigir daquele uma sentença de mérito acerca de sua pretensão (direito processual de ação) quando presentes todas estas condições da ação, razão pela qual ficaram 14 Para o Direito Processual Penal, o que importa é a exposição dos fatos, não a qualificação jurídica. 15 ―Faz-se uma distinção entre o direito de petição, que é o direito a obter uma manifestação de qualquer órgão público, entre eles o Poder Judiciário, e o direito de ação, que é o direito a uma sentença de mérito‖. (NEVES, 2010, p. 83). (grifo original). 16 Ao final dos seus estudos, mais exatamente na 3ª edição do seu Manual di diritto processuale civile, Liebman reduziu para apenas duas as condições da ação (interesse de agir e legitimidade), pois entendeu que a idéia de impossibilidade jurídica do pedido já poderia ser inferida dentro do quesito do interesse de agir, como mero desdobramento. Se o provimento não pudesse ser proferido porque vedado pela lei, não haveria utilidade no exame do mérito, lacunando dessa forma interesse processual ao autor. (MARINONI, 2007). 33 também conhecidas como ―condições de admissibilidade da resolução do pedido‖. Cândido Rangel Dinamarco elucida-nos os motivos: Razões de ordem ética ou econômica legitimam certas limitações impostas pela lei ao direito de provimento de mérito. Quando se diz que todos têm direito ao pronunciamento dos juízes sobre suas pretensões, esse todos não significa que qualquer pessoa o tenha, em qualquer circunstância (Liebman). A tendência á universalização da tutela jurisdicional é refreada pela legítima conveniência de impedir a realização de processos sem a mínima condição de produzir algum resultado útil ou predestinados a resultados que contrariem regras fundamentais da Constituição ou da própria lei. (DINAMARCO, 2009, p. 305). Esclareça-se também que as condições da ação não se fundem com o mérito da causa aduzida, ainda que a partir dele sejam conferidas. O que ocorre é uma análise superficial, provisória e não exauriente da relação jurídica de direito material discutida no processo. Se verificada a ausência sequer de uma das condições, verdadeiros degraus para o reconhecimento do direito, dá-se a carência da ação que, no entanto, não significa a negação do direito material. Essa distinção é patente ao se observar, nas disposições do Código de Processo Civil, os efeitos jurídicos advindos da sentença que pronuncia a carência da ação e da sentença que pronuncia a procedência ou improcedência da ação. Nesta última, há a dicção final acerca do mérito, ao contrário da primeira, onde não ocorre resolução do mérito, ainda que tenha sido apreciado de leve para aferição da carência. Diverge neste ponto a doutrina, com alguns identificando as condições da ação como condições de existência da própria ação, em contraposição àqueles que argúem serem condições apenas para a obtenção da tutela jurisdicional, posicionamento ao qual aderimos, e que é bem explicado por Paulo Rangel, em seu Direito Processual Penal: Assim, a colocação correta é de que as condições não são da ação e, sim, para o seu regular exercício, pois, independentemente de existirem (as condições), o autor tem o direito de ação. Portanto, se nos filiarmos, conforme o fizemos, à teoria do direito abstrato, diremos que as condições são para ao regular exercício do direito de agir. Porém, se nos filiarmos à teoria do direito concreto, elas serão condições de existência deste direito. Entendemos que elas são condições para o regular exercício do direito de agir. (RANGEL, 2003, p. 258). (grifamos). Mesmo que verificada a ausência de uma das condições da ação, não há como se negar que houve um pronunciamento judicial, tendo a jurisdição atuado, ainda que não satisfatoriamente 17 . A ação em si foi exercida desde a demanda inicial, embora não exercida plenamente visto que obstada a partir do reconhecimento da falta de uma das suas condições. 17 No sentido de não ter sido atingida a função metajurídica do processo, que é a pacificação social alcançada pela sentença de mérito. 34 Enfim, interessa estabelecer que, os requisitos apontados por Liebman, atuam como condicionantes do regular exercício do direito de ação, pelo que passamos a pormenorizar seus significados, na clássica forma entendida pelo campo processual civil, para que então possamos investigar sua transposição para o processo penal. 2.2 Condições da ação no processo civil São três as condições da ação previstas pelo Código de Processo Civil (art. 267, IV), seguindo o modelo original da teoria eclética de Liebman: a possibilidade jurídica do pedido, o interesse processual e a legitimidade ad causam. A possibilidade jurídica do pedido, sem dúvidas, é a mais controvertida. O pedido imediato, traduzido no apelo de acesso ao Judiciário, é por regra sempre possível, visto ser a jurisdição inafastável (art. 5º, XXXV, CF/88). Sendo assim, é lógico deduzir que esta condição da ação diz respeito ao pedido mediato do autor, sobre o qual pretende um provimento judicial, que pode ser concessivo ou denegatório. Comumente se fala que a possibilidade jurídica do pedido expressa a existência de amparo legal para a pretensão formulada pelo autor, mas, muito mais que isso, requer também que inexista dentro do universo de normas e princípios do ordenamento jurídico, qualquer forma de proibição, explícita ou implícita, para o provimento do feito 18 . É, pois, a admissibilidade em tese da pretensão da parte, à luz do Direito objetivo, sendo forçosa a compatibilidade de cada um dos elementos da ação com o sistema jurídico, ao contrário do que faz parecer a denominação, que se limita à possibilidade jurídica do pedido, em detrimento da causa de pedir e das partes, assim nos reforça Cândido Rangel Dinamarco: O petitum é juridicamente impossível quando se choca com preceitos de direito material, de modo que jamais poderá ser atendido, independentemente dos fatos e das circunstâncias do caso concreto (pedir o desligamento de um Estado da Federação). A causa petendi gera a impossibilidade da demanda quando a ordem jurídica nega que fatos como os alegados pelo autor possam gerar direitos (pedir a 18 Ensina Egas Dirceu Moniz de Aragão, ―o direito Brasileiro há longo tempo conhece preceitos que autorizam o juiz a dcidir causas que lhe sejam submetidas, ainda mesmo que falte uma previsão legislativa a seu respeito (...) a possibilidade jurídica, portanto, não deve ser conceituada, como se tem feito, com vistas à existência de uma previsão no ordenamento jurídico, que torne o pedido viável em tese, mas, isto sim, com vistas à inexistência, no ordenamento jurídico, de uma previsão que o torne inviável. Se a lei contiver um tal veto, será caso de impossibilidade jurídica do pedido; faltará uma das condições da ação‖. (1979, p. 515 e seguintes). 35 condenação com fundamento em dívida de jogo). As partes podem ser causa de impossibilidade jurídica, como no caso da Administração Pública, em relação à qual a Constituição e a lei negam a possibilidade de execução mediantea penhora e expropriação pelo juiz (...). (2009, p. 308). (grifo original). Além ser objeto de duras críticas mesmo na atualidade, deve-se registrar que esta condição foi rejeitada pelo próprio mentor, Enrico Tullio Liebman, já à época da 3ª edição do seu Manuale, em 1973, como dantes referenciado. O exemplo corriqueiramente utilizado por Liebman para justificar esse requisito consistia na vedação pela lei italiana do divórcio e quando este passou a ser admitido, o doutrinador reformulou seu pensamento, passando a considerar a impossibilidade jurídica do pedido como ausência de interesse processual, incorporando-a assim a outra condição da ação. Dando continuidade, a legitimidade ad causam das partes é vista por dois ângulos, ativa quando se referir ao autor da demanda e passiva quanto àquele indicado (pelo autor 19 ) para figurar no pólo passivo como réu. Mas de modo geral, essa condição guarda relação com a ―pertinência subjetiva da ação‖ 20 , entenda-se com isso a titularidade material, isto é, a existência de vínculo entre os sujeitos para que figurem nos extremos da relação jurídico-material que se desenvolve. O autor da ação será legítimo quando for titular do direito objeto da prestação jurisdicional, e o réu será legítimo quando for o indicado pela ordem jurídica para suportar os efeitos dali decorrentes. Numa abreviação, o regramento geral relacionado à legitimação no Processo Civil é cotejado a partir do art. 3º (―Para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade‖) e art. 6º (―Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei‖), do respectivo código. Os casos de legitimação conjunta, como o litisconsórcio, e extraordinária, como a substituição processual, dentre outros, não serão abordados, posto que o foco a ser perseguido por este trabalho reside na área criminal, havendo apenas uma incursão mínima nos institutos de direito processual civil que se mostrarem relevantes para o outro campo. 19 Vale lembrar que o direito processual brasileiro repugna a citação iussu judicis, ou seja, não cabe ao magistrado, de ofício, promover a integração da demanda, necessitando ser provocado pelo autor através de nítido pedido contido na inicial. 20 Conforme a clássica definição de Alfredo Buzaid (apud DIDIER, 2007). 36 Por derradeiro, como terceiro requisito da ação, tem-se o interesse processual, também conhecido como interesse de agir 21 , intrinsecamente ligado à noção de utilidade a ser obtida com a tutela jurisdicional, que justifique a movimentação do aparato judicial do Estado e o dispêndio de tempo, energia e recursos. Não se deve analisar se o autor tem efetivamente o direito que alega ter e que, portanto, se sagrará vitorioso na demanda, porque esse é tema pertinente ao mérito e não às condições da ação. O juiz deve analisar em abstrato e hipoteticamente se o autor, sagrando-se vitorioso, terá efetivamente a melhora que pretendeu obter com o pedido de concessão da tutela jurisdicional que formulou por meio do processo. Ter ou não razão em suas alegações e pretensões é irrelevante nesse tocante, não afastando a carência da ação por falta de interesse de agir. (NEVES, 2010, p. 87). É freqüente o uso da equação necessidade-adequação 22 para a verificação do interesse de agir, embora uma parte da doutrina, como Fredie Didier Jr., entenda que uma melhor exegese revela um terceiro critério para o exame: a utilidade. Ao que parece, essa vem sendo a tendência atual, com muita razão, inclusive levando Ada Pellegrini Grinover a revisar o seu entendimento, que passou a admitir o interesse de agir nos três aspectos necessidade- utilidade-adequação, conferindo à utilidade conteúdo próprio e distinto (SILVEIRA, 2008). Interesse-utilidade, destarte, deve ser compreendido como a possibilidade de o processo proporcionar ao demandante resultados práticos que acarretem melhora em sua situação. Sobrevindo a impossibilidade de obtenção do fim ansiado, torna-se inútil a jurisdição e não sobra razão de ser para o processo, falando-se, portanto, em perda do objeto da causa (DIDIER, 2007). Já o interesse-necessidade supõe ser imprescindível o socorro às vias judiciais, que de outro modo não haveria como se efetivar a pretensão aduzida. Compele-se que haja uma intervenção estatal para a solução do quadro exposto. O interesse-adequação, ao seu turno, nos remete à variedade de instrumentos formais disponibilizados pelo direito objetivo para a proteção dos bens jurídicos. Compete ao autor a escolha do modelo procedimental apto, segundo a lei, para produzir os efeitos buscados dentro do seu caso concreto. Como resume Claudio de Oliveira Santos 21 Segundo Donaldo Armelin, ―o interesse processual engloba o interesse de agir, pois também se refere ao interesse de recorrer, ao interesse de produzir prova etc‖. (apud DIDIER, 2007, p. 175). 22 ―Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o Estado o interesse no exercício da jurisdição (função indispensável para manter a paz e a ordem na sociedade), não lhe convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que, em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada‖. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2007, p. 275). (grifo original). 37 Colnago, ―tutela inadequada é tutela inócua, e como tal, só tende a desmoralizar o Estado Democrático de Direito‖ (2004, p. 5). O interesse-adequação carrega certa polêmica quanto à sua validade como parâmetro. José Orlando Rocha de Carvalho critica a falta de correlação da adequação como espécie do gênero interesse, indagando ―até que ponto a falta de adequação pode indicar, ou presumir, falta de interesse de agir?‖ (apud DIDIER, 2007, p. 178). Alenta, demais, Barbosa Moreira: Aberra até do bom-senso afirmar que uma pessoa não tem interesse em determinada providência só porque se utilize da via inadequada. Pode inclusive acontecer que a própria escolha da via inadequada seja uma conseqüência do interesse particularmente intenso; (...) Seria antes o caso de falar em excesso do que em falta de interesse‖. (apud DIDIER, 2007, p. 178). O argumento é apropriado quando se tem em consideração o princípio da instrumentalidade das formas, preconizado nos arts. 244 e 250 do Código de Processo Civil, à sombra do qual se recomenda o aproveitamento dos atos processuais em caso de erro de forma. Com efeito, argumenta Cássio Scarpinella Bueno: Aceitando como premissa fundante do pensamento do direito processual civil a noção de que todos e quaisquer aspectos relativos à forma devem ceder espaço aos resultados úteis da função jurisdicional (sempre vale a ênfase, exercitada mediante um devido processo), não há razão para elevar a ‗adequação‘ à categoria de componente do ‗interesse de agir‘. (2010, p. 358). Em suma, são estas as condições da ação no que tange ao Direito Processual Civil, cabendo neste momento uma explanação quanto à utilidade prática de sua existência, tanto para o processo civil quanto o penal. 38 3 COISA JULGADA FORMAL E COISA JULGADA MATERIAL Entendida a clássica divisão entre sentença 23 , decisão interlocutória 24 e despacho 25 , até certo grau comum ao Direito Processual Civil e Direito Processual Penal 26 , é seguro dizer que todo e qualquer processo iniciado, não importa sua natureza, encontra seu fim com a prolação de uma sentença, a qual necessita, em determinado estágio, se solidificar irremediavelmente dentro do processo na qual foi proferida, por razões éticas, políticas e sociais de conferir estabilidade às relações jurídicas. Diz-se que transitou em julgado a sentença que se revestiu desse atributo
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