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Teoria do Conhecimento Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Valter Luiz Lara Revisão Textual: Prof. Ms. Claudio Brites O que é conhecimento? 5 • Introdução • Os principais temas e questões • O que é conhecimento? · Introduzir o tema do conhecimento como problema humano e filosófico, motivando e capacitando o aluno para a compreensão do conteúdo das demais unidades: origens, fontes, possibilidades, limites, validade, verdade e formas do conhecimento. Você agora irá começar o estudo de uma disciplina filosófica que tem por objetivo apresentar uma visão ampla e crítica do que realmente é o conhecimento e como esse tema tem sido tratado ao longo da história da filosofia. Essa primeira Unidade vai apresentar apenas um panorama dos principais problemas e indagações que são objeto de investigação da teoria do conhecimento. O propósito é que você tenha uma visão de conjunto sobre o que de fato trata a teoria do conhecimento e qual é o seu conteúdo. Aproveite para levantar suas próprias questões em relação a dúvidas e alguma suspeita que você tenha em relação a temas tão próximos e permanentes entre nós, como por exemplo, o eterno problema da verdade, assunto estreitamente ligado ao conhecimento. O tema é tão importante que outra Unidade foi reservada para aprofundá-lo. Fique atento às palavras novas que poderão não fazer parte do seu vocabulário e não deixe de consultar dicionários, os de língua portuguesa em primeiro lugar, depois um ou outro de filosofia. Alguns deles foram sugeridos ao final da Unidade, no item das referências bibliográficas. O que é conhecimento? 6 Unidade: O que é conhecimento? Contextualização E precisa de provas... todo mundo te conhece Você é um mentiroso, não tem provas para me acusar desse jeito. Vou processá-lo E então, o que você tem a dizer sobre essa situação? Provavelmente já vivemos casos como esse. O relacionamento humano, na vida pública ou privada, está sujeito a acusações desse tipo. A questão central sempre recai em nossa capacidade de conhecer e o que de fato entendemos por conhecimento. Essa primeira unidade irá introduzir você em questões como essa. Será apresentado num primeiro momento o que é teoria do conhecimento e quais são os seus principais temas. Logo em seguida será apresentada uma noção preliminar de conhecimento que possa esclarecer a variedade do uso da palavra “conhecer”. Fique atento ao ler o texto teórico acima aos diferentes significados que essa palavra pode ganhar em contextos distintos. O conceito de conhecimento será construído aos poucos, ao longo da unidade e terá como foco principal as noções de “experiência” e “relação”. Observe que há um nível de conhecimento que é elementar: “todo mundo te conhece?”. Esse nível se dá no que normalmente se convencionou chamar de senso comum. Mas essa não é a única forma de conhecimento. Há níveis diferentes de conhecimento. Essa variedade de conhecimento é um dos temas dessa primeira Unidade, mas voltará com mais detalhes a ser tratado na Unidade II. A exigência da comprovação de estudos (certificados, diplomas e titulação acadêmica) para o exercício de muitas profissões mostra como há um nível mais especializado de conhecimento, mas isso não significa que essa seja a única forma válida e verdadeira. 7 Introdução O que é isso, teoria do conhecimento? Uma disciplina como tantas outras da Filosofia. De que se trata? Como o próprio nome indica é o campo dos estudos filosóficos dedicado ao conhecimento. Mas conhecimento não é tudo o que estudamos? Sim. Por que então uma disciplina separada só para isso? De fato, todo estudo visa conhecer alguma coisa, ampliar e aprofundar o conhecimento que temos de um determinado assunto. No entanto, a teoria do conhecimento faz do próprio conhecimento o seu centro de interesse e objeto de investigação. Está confuso? Expliquemos melhor o que isso significa. Todas as ciências particulares são definidas por um centro de interesse que chamamos de seu “objeto de estudo”. Cada ciência se identifica em primeiro lugar pelo seu objeto específico de investigação. Quando perguntamos a uma ciência o que ela estuda, devemos obter como resposta exatamente o seu objeto. Não confunda objeto com objetivo. Objetivo é uma palavra que significa finalidade ou meta a ser atingida por uma determinada ação. Objeto é aquilo que se estuda, é a matéria da ciência. Objeto de estudo é a matéria que estudamos quando abrimos um livro de biologia, matemática ou física, por exemplo. Qual é o objeto de estudo da biologia? Numa palavra podemos responder que é a vida. Bio- logos, do grego, significa exatamente isso: estudo, ou discurso que busca explicar a vida; pode ser vida vegetal, animal ou mais especificamente, vida humana. Claro que cada ciência tem divisões e subdivisões. A biologia comporta inúmeras delas: zoologia (vida animal), botânica (vida vegetal), genética, citologia e tantas outras divisões. O grau de especialização adquirida pela ciência é na maioria das vezes exigida pela natureza diversa e complexa de seu próprio objeto. A biologia é um exemplo típico. A natureza de seu objeto, neste caso, a vida, é demasiadamente diversa e complexa. O mesmo fenômeno ocorre com outras ciências. Matemática, geografia, história, psicologia ou sociologia. Todas têm o seu objeto de conhecimento sobre o qual estuda, investiga, observa, analisa e projeta suas hipóteses e teorias. Agora já podemos retomar e responder à pergunta sobre qual é o objeto de estudo da teoria do conhecimento. O próprio conhecimento. Então teoria do conhecimento é o estudo do conhecimento. E não se trata de um trocadilho. É isso mesmo. O conhecimento é objeto, matéria, o assunto central do interesse da teoria do conhecimento. Os objetos das outras ciências são, na maioria das vezes, evidentes por si mesmos. Na Biologia, a vida; na matemática, os números, a quantidade; na física, a natureza; na química, os eventos e reações químicas; na sociologia, a sociedade; na psicologia, o comportamento psíquico. E na teoria do conhecimento? Ora, o conhecimento como afirmamos acima. Mas o que de fato estudamos quando é o próprio conhecimento que queremos investigar? É o que pretendemos explicar nessa unidade. A título de introdução fiquemos então com a seguinte resposta à questão sobre o que é teoria do conhecimento: é a disciplina da filosofia que busca compreender o que é, de quais elementos se constitui, como e em que circunstâncias ocorre o processo do conhecimento humano em geral. Seu objeto então é tudo aquilo que envolve o ato de conhecer, independentemente do que se visa conhecer. Trata-se, portanto, de uma disciplina que busca levantar questões que antecedem o conhecimento de coisas, pois visa explicar, isto é, conhecer o que ocorre quando conhecemos as coisas. Por isso, sem medo de ser redundante, estamos lidando com um tipo de conhecimento que é conhecimento do conhecimento1. É como se nós mesmos quiséssemos olhar não para as coisas que olhamos, mas para o olhar que olha as coisas. 1 Caio Prado Jr. escreveu o livro O que é Filosofia da Coleção Primeiros Passos transferindo esse conceito de teoria do conhecimento para toda a filosofia, como sua característica mais específica e distintiva em relação às demais formas de conhecimento. 8 Unidade: O que é conhecimento? Os principais temas e questões Para termos uma visão panorâmica de quais questões se ocupa a teoria do conhecimento, levantamos uma série de perguntas que representam seus problemas e temas fundamentais. Separamos as questões por temas Origem O que está na origem do conhecimento humano? Desejo, interesse, necessidade, curiosidade? Nessa origem, quais as condições que permitem o ser humano conhecer? Seus sentidos? Sua inteligência? Seus neurônios? Sua linguagem e capacidade discursiva? Diversas teorias surgiram como tentativas de responder a questão da origem do conhecimento. Neste momento importa apenas apontar as principaistendências teóricas que foram surgindo para explicar o que se entende como origem do conhecimento: idealismo, realismo, racionalismo e empirismo. As duas primeiras marcaram a filosofia antiga e medieval enquanto as outras duas a moderna e contemporânea. O quadro (Equipe de Apoio e Produção, por favor, baixem da internet o quadro com a referência do site em que ele pode ser encontrado: http://historiauniversal.forumeiros.com/t791-diferenca-entre-platao-e-aristoteles para uma ilustração mais simples. Ou em: http://www.sabercultural.com/template/obrasCelebres/A-Escola-de-Atenas.html para uma ilustração mais detalhada) que mostra Aristóteles (384-322aC.) com o dedo apontando para baixo e Platão (428-348aC.) para cima ilustra bem a diferença entre idealismo platônico e realismo aristotélico. Platão concebia que a origem do conhecimento está no mundo das ideias. A matéria original do conhecimento é a ideia. As formas ideais são a base do conhecimento correto. Os sentidos apenas atrasam e desviam a consciência do caminho que pode levá-la ao mundo das ideias. Atingir o mundo das ideias exige desprendimento dos sentidos, capacidade de se deixar conduzir pela razão e não pelas opiniões dominadas por paixões, sentimentos e emoções. Aristóteles, por sua vez, concebe que a origem do conhecimento está na apreensão sensível da realidade. Todo conhecimento começa pelos sentidos e termina com processo de apropriação analítica pela razão do que os sentidos apreenderam do mundo exterior. Segundo Aristóteles, não há nada em nossa cabeça que antes não tenha de alguma forma passado pelos sentidos. O racionalismo moderno é uma forma atualizada do idealismo platônico, pois propõe a razão e sua capacidade de sistematizar e apreender a realidade tornando-a compreensível como a origem que torna possível o conhecimento. Descartes (1596-1650) é um dos fundadores do racionalismo moderno. Sua concepção do Cogito ergo sum 2 transformou o imaginário que prevalecia até então. O pensamento é realidade primeira e garantia do conhecimento correto e verdadeiro. O fundamento que dá origem e possibilidade ao conhecimento está no sujeito pensante e não no objeto de conhecimento, naquilo que se pensa. Estão dadas assim as colunas mestras do racionalismo moderno e contemporâneo. 2 Expressão latina que é produto de uma longa investigação filosófica levada a cabo por Descarte em sua obra “Meditações” e que significa literalmente “Penso, logo existo”. 9 O racionalismo cartesiano3 gerou a reação empirista4. O empirismo é a teoria que inverte o racionalismo. A origem do conhecimento não está na razão pensante, mas nos objetos pensados. São eles, os objetos exteriores à mente humana que imprimem no sujeito, através das sensações a matéria prima original que possibilita o conhecimento. A razão não é nada sem essas impressões. John Locke (1632-1704) é considerado o fundador do empirismo ao combater o caráter inato das ideais defendidos pelo racionalismo5. Essência O que de fato é o ato de conhecer? Essência é uma palavra que significa exatamente isso, revelar o que uma coisa ser o que ela é em si mesma e não outra. A essência de uma coisa, assim como a essência de uma flor é o que permite identificar o seu perfume inconfundível. Essencial é a alma de uma coisa, sua característica essencial, isto é, tudo aquilo que não é acessório e descartável. Por isso, fazer teoria do conhecimento é perguntar pela essência do ato de conhecer, ou seja, perguntar quais são as condições ou elementos que caracterizam o conhecimento humano. Por exemplo, conhecer é a mesma coisa de estar bem informado? Informação é sinônimo de conhecimento? Conhecer é sinônimo de saber e sabedoria? Quando afirmo que conheço Maria Helena significa que eu tenho o domínio de suas características físicas, mentais e comportamentais? Existe gradação, ou melhor, níveis de conhecimento? É possível medi-lo para mais e para menos? Uma prova, um teste, consegue medir o que você conhece sobre um assunto? Conhecer então é a capacidade de memorizar dados sobre as coisas ou é a capacidade de resolver problemas? As duas coisas? Conhecer é estabelecer relações de causa e efeito quando se observa os fenômenos e eventos? Eu preciso estar lá ou ter estado lá para conhecer um lugar? A experiência é mais importante do que o acúmulo de informações sobre um determinado tema? Alguém que não tenha estudado ou vivido a experiência da educação formal nas escolas tem menos ou mais conhecimento de quem viveu a vida inteira fazendo cursos no ensino formal? Fontes Quais são as fontes do conhecimento? Um jornalista ou pesquisador quando recebe informações tem seus informantes ou suas fontes. As fontes bibliográficas podem ser livros, enciclopédias ou qualquer outra peça literária. As fontes também podem ser acessadas digitalmente através de sites ou blogs na internet. Outras podem ser orais, transmitidas através de testemunhos de pessoas, informantes cujas características pela relação que estabelecem com o objeto da pesquisa, são de extrema relevância. Quando, por exemplo, precisamos de alguma informação sobre o funcionamento do cérebro, um médico neurologista ou um neurocientista podem ser excelentes informantes, fontes para o nosso conhecimento a respeito do assunto. Fontes orais, escritas, digitais oferecem a plataforma a partir da qual se obtém as informações. Quais são as fontes ou plataformas a partir das quais o conhecimento humano é possível? São as informações que colhemos fora de nós mesmos, na realidade ou elas só são acessíveis porque a fonte ou plataforma primeira de obtenção dessas informações estão dentro e não fora de nós mesmos. O problema das fontes do conhecimento se constituiu no 3 “Cartesiano” é o que diz respeito a Descartes. Trata-se da forma francesa de referir-se a tudo aquilo que é devido a esse autor. 4 “Empirista” é uma palavra que designa a pessoa que é partidária do “empirismo”, que por sua vez define a doutrina filosófica que entende a experiência e sensações, por oposição às ideias, como origem e fonte primárias do conhecimento. 5 O racionalismo defende as ideias como realidades inatas, isto é, figuras formais que já nascem com os seres humanos em sua capacidade de inteligência ou racionalidade. 10 Unidade: O que é conhecimento? principal tema de discussão da filosofia moderna. Racionalistas e idealistas debatiam com empiristas e realistas como vimos acima na discussão pelas origens do conhecimento. Os primeiros achavam que a fonte de conhecimento originária são ideias possibilitadas pela alma racional de que somos feito. Os outros propunham o ser humano como uma folha de papel em branco. Conhecer para estes é o processo de preenchimento dessa folha que se dá pelas experiências sensitivas, as quais são como carimbos que vão marcando e formando o que chamamos de consciência. Formas6 Há outras formas de conhecer a realidade que não seja apenas aquela definida pela ciência? Se há, quais são? Senso comum e arte são formas de conhecimento ou meras atividades humanas sem valor para o conhecimento da realidade? E a fé, tem algo de humano conhecimento ou é pura ilusão, invenção da imaginação? Mas imaginação tem algo a ver com o ato de conhecer? Mito, religião e fé podem ser consideradas formas distintas de conhecimento? Que relação há entre elas? Filosofia é forma de conhecimento que se confunde com a ciência ou tem características que lhe são específicas? Modos ou métodos Indução e dedução são caminhos diferentes para construir o conhecimento. Existem outros? Imaginar, criar, sonhar e intuir são caminhos para se chegar ao conhecimento? Sentir, ver, ouvir, saborear, tatear e observar, refletir, analisar, elaborar sínteses, levantar hipóteses e elaborar teorias para explicar os eventos que ocorrem na realidade são ações que representam simples modos de conhecer ou de fato constituem etapas de verdadeiros métodos do conhecimento? São elementos excludentes ou complementares?Verdade e validade7 Todo conhecimento é verdadeiro? Que critérios garantem a verdade do conhecimento? O que é verdade? Ela é absoluta ou relativa. O acesso a ela é impossível e o que temos dela são apenas vagas aproximações? Qual é a melhor forma de garantir a verdade do conhecimento? Verdade é a mesma coisa que validade. Um conhecimento pode ter validade sem ser verdadeiro? Pode ser verdadeiro e não ter validade? Que diferença existe entre verdade e validade do conhecimento? Possibilidades e limites O que eu posso conhecer? Quais são os limites do conhecimento humano?8 O que é possível conhecer tem fim? Vai chegar um momento em que o que há para ser conhecido chegue a seu termo? O fim do conhecimento estaria fundado em nossa suposta incapacidade de continuar a conhecer? Temos competências, ferramentas, métodos, formas e modalidades de conhecimento capazes de responder ao desafio do conhecimento das coisas que por vezes parece não ter nenhum limite alcançável? Mesmo com a possibilidade de multiplicar 6 Será objeto de análise na Unidade II: As diversas formas de conhecimento. 7 Serão temas da Unidade III: O problema da verdade e validade do conhecimento. 8 Perguntas clássicas feitas pelo filósofo moderno Emanuel Kant (1724-1804), serão objeto de nossa análise na Unidade V. 11 exponencialmente as técnicas e condições do avanço científico, a condição humana estaria fadada ao esgotamento de suas capacidades de conhecer diante de tantos mistérios que envolvem o infinito de nosso desconhecimento? Ou o que há para ser conhecido também é finito e em algum momento no futuro terá atingido o seu ponto máximo? Como um livro que chega à última página, o que há para conhecer também tem um fim? Ou não, o mundo a ser vasculhado pela possibilidade do nosso conhecimento realmente é infinito? Com relação às condições em que o conhecimento nos é dado, tais condicionamentos limitam o ato conhecer o que de fato as coisas são em si mesmas? Dito de outro modo, o que conhecemos não é, de alguma forma, mais o que projetamos nas coisas do que o que elas são realmente?9 São muitas perguntas. Mas não se preocupe em responder imediata e apressadamente todas elas. O intento é apresentar o panorama das questões que norteiam a disciplina Teoria do Conhecimento. A história da filosofia inteira ainda não foi capaz de respondê-las em definitivo. O debate continua aberto. Você está, desde já, convidado a participar. Não se intimide com as respostas que já foram dadas. Reflita todas elas e forme a sua opinião, apresente sua hipótese e elabore suas conclusões. Não é preciso ser original. Podemos nos apropriar do que os pensadores já propuseram. Apropriar o pensamento alheio reconhecendo os autores que mais influenciam nosso jeito de compreender o mundo é compartilhar verdadeiramente do legado filosófico que nos foi transmitido. Somos convidados a dar o que de melhor podemos oferecer para melhorar o mundo. Nem que seja o nosso pequeno mundo que está pertinho de nós. O estudo de teoria do conhecimento, principalmente nessas primeiras unidades tem esse objetivo de mostrar de modo panorâmico e introdutório o universo de temas, problemas e questões que tem sido objeto de preocupação, investigação e formulação de teorias por parte de inúmeros filósofos. As três primeiras unidades tratam as questões levantadas acima reunidas em blocos temáticos tais quais apareceram na sequência acima: origens e fontes formas, modos ou métodos, verdade e validade , possibilidades e limites do conhecimento. Depois, as últimas três unidades cuidarão de desenvolver o tratamento dado a questões semelhantes na linguagem e contexto dos principais autores da história da filosofia: antiga e medieval, moderna e contemporânea. Desse modo se quer propor não só algumas das respostas que o pensamento filosófico conseguiu dar às principais questões do conhecimento, mas abrir o leque de novas inquietações. Afinal, filosofia é, em primeiro lugar, a arte de levantar problemas e perguntar o que parece óbvio. Retirar o véu da visão ingênua e acomodada sobre o mundo é condição preliminar imprescindível para o advento e a formação da consciência crítica filosófica. 9 Essa também é questão levantada por Emanuel Kant. Segundo sua filosofia, não se pode atingir o que as coisas são em si mesmas, mas apenas o que de fato delas aparece para nós. O que as coisas são em si mesmas e que é inacessível ao conhecimento humano, Kant chama de mundo do numenon, o que se pode conhecer delas ele chama de mundo do fenômeno. 12 Unidade: O que é conhecimento? O que é conhecimento? Antes de qualquer coisa, vamos apresentar uma noção preliminar de conhecimento. O melhor caminho talvez seja recorrer ao próprio dicionário. O dicionário nos oferece cerca de dezessete significados para o verbete “conhecer”. Convido você a consultar. Para começar consulte qualquer dicionário de língua portuguesa. Em seguida, um dicionário mais especializado de filosofia pode ajudar a preparar o terreno para as próximas unidades ampliando o seu vocabulário a respeito do tema. Ao final, no item referências bibliográficas sugerimos alguns dicionários que podem ser consultados. Dentre a variedade de sentidos que aparecerá sobre a palavra “conhecer”, gostaríamos de destacar alguns que sugerem uma riqueza e certa novidade na compreensão do próprio ato de conhecer. Conhecer é: Do latim cognoscere, ter noção, conhecimento, informação, de; saber; ter relações, convivência com; distinguir, reconhecer: apreciar, julgar, avaliar; ter experiência de; ter relações sexuais com; (...)10 Conhecer como “ter relações sexuais com” parece inesperado não é mesmo? Mas conhecer em determinado contexto pode ser usado nesse sentido. Mais adiante voltaremos a compreender melhor o teor desse significado particular. Por enquanto, não é preciso analisar noção por noção da da longa lista oferecida pelo dicionário. Ao indicá-la queremos apenas que você tome contato e tenha consciência da variedade de noções que essa palavra possui. Dessa lista, destacamos em primeiro lugar a noção que revela sua relação com a experiência. Longe de iniciarmos uma discussão demasiadamente abstrata, queremos, ao contrário, começar pela aproximação de uma definição a mais palpável, concreta e existencial possível de conhecimento. Por isso, nosso ponto de partida é a palavra experiência. Neste sentido, cabe uma primeira e instigante pergunta: O que tem a ver experiência com conhecimento? A mesma pergunta fez Otto Maduro (1994). Entretanto, ele a formulou da seguinte maneira: A experiência influi em nosso conhecer? (MADURO, 1994, p. 26-27). Veja como ele tentou respondê-la. Acreditamos que sua aproximação deverá abrir as portas para uma forma mais humana e adequada de como nós mesmos devemos compreender o conhecimento. (...) Eu gostaria de propor aqui a idéia segundo a qual, no fundo, todo conhecimento é um esforço de reconstrução da experiência, de ordenação de nossa experiência, precisamente para nos orientar na procura da vida boa. Noutras palavras, as pessoas e comunidades humanas tendem a reconstruir a realidade (isto é, a conhecer), a fim de se orientarem na busca dos caminhos que levam à vida feliz, à vida boa. Por isso, aprecio a imagem dos “mapas”, ou “planos”, ou “roteiros”; o conhecimento poderia ser compreendido como a elaboração de “mapas mentais” da realidade, mapas baseados na experiência passada (tanto pessoal, como coletiva), para nos orientar no presente em direção à conquista futura da vida boa. 10 Cf. Dicionário da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1977). 13 De um modo mais simples, mas que pode ser útil, eu diria que o conhecimento é um esforço para reconstruir “mentalmente” a realidade, com o intuito de nos dirigirmos para o prazeroso e nos afastarmos do que é doloroso (...) (MADURO, 1994, p. 25--26). A definição de conhecimento como construção mental retirada da experiência nos remete a uma compreensão bastante concreta, existenciale prática de conhecimento. Neste sentido, conhecimento é basicamente experiência, prática de vida, habilidade e perícia adquiridas com o exercício constante de uma profissão, arte ou ofício. Refere-se também em outro sentido a uma prova, demonstração, tentativa e ensaio de uma realidade que é captada e transmitida através de nossos cinco sentidos. Para Aristóteles, por exemplo, todo conhecimento começa pelos sentidos. Trata-se de uma concepção bastante realista de conhecimento. Portanto, consideramos a noção de “experiência” uma das mais importantes para a compreensão do fenômeno do conhecimento humano. Temos assim, uma noção que amplia os horizontes de uma concepção freqüentemente abstrata, teórica e livresca. Dessa forma, é possível ver o ser humano, seja ele, letrado ou iletrado, como ser que conhece, pois realiza uma experiência vital em seu estar no mundo que o capacita a relacionar-se com os seres que o envolvem de maneira bem diversa. O ato de conhecer como ato humano de relacionar-se O ato de conhecer é um ato exclusivo próprio do ser humano, pois confere ao homem uma de suas características essenciais: a consciência de si mesmo frente aos outros. Os animais e as coisas não completam com a nitidez do ser humano a distinção entre o “eu” e o “outro”. Para os animais o mundo é uma extensão de seus corpos. A relação com o mundo dá-se apenas ao nível de seus instintos de sobrevivência e adaptação ao meio. Conhecer para o animal é apenas adaptar-se e sobreviver ao meio, enquanto que para o homem, além disso, é constituir uma identidade frente ao mundo exterior e diante de si mesmo. Ao homem não basta adaptar- se, é preciso dar sentido à sua adaptação e saber por que se adapta. O conhecimento humano é ato fundamental para a constituição da identidade. Através dele é possível agir e interagir com uma alteridade, um outro diferente que o institui como identidade, sujeito e consciência que se abre ao mundo dos objetos. Conhecer, de modo genérico, numa ótica dos fundamentos de sua concepção como ato humano, à luz de uma teoria preliminar do conhecimento, ainda provisória, pois carece de aprofundamento e problematização (que virão depois), é uma relação entre dois seres que estabelecem entre si uma situação em que, pelo menos um deles age como sujeito e outro como objeto, ainda que o objeto possa ser a partir de seu próprio ponto de vista, outro sujeito. Exemplo: Paulo (sujeito) conhece Jundiaí. “Paulo” é sujeito do conhecimento e “Jundiaí” o seu objeto. Do mesmo modo, outro sujeito pode se constituir em objeto de conhecimento de um sujeito. Exemplo: Paulo conhece Maria. Maria, embora seja sujeito, nesta relação, ela é objeto do conhecimento de Paulo. Evidentemente outra situação também é possível. No caso do autoconhecimento, o objeto é o próprio sujeito que busca conhecer a si mesmo. Exemplo: Paulo vive um momento de profunda introspecção e resolveu responder ao desafio socrático11 de conhecer melhor a si mesmo. Neste caso particular fica claro que Paulo é ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu conhecimento. 11 A Sócrates é atribuída a sentença “Conhece-te a ti mesmo” que marcou a virada antropocêntrica na reflexão filosófica dos pré- socráticos na Grécia antiga que era dominada pelos temas da natureza. 14 Unidade: O que é conhecimento? Em resumo, o conhecimento pode ser definido como um ato vital da experiência humana que institui para o homem uma relação fundamental entre sua identidade existencial assumida como sujeito aberto ao contato e convivência com os demais seres que se apresentam no mundo. Dito de outra forma, conhecer é ser capaz de relacionar-se como sujeito autônomo frente aos demais objetos que se nos apresentam, de forma a permitir que outro ser possa acrescentar ao nosso “eu” algo dele mesmo pelo simples reconhecimento de sua presença diante de nós. Portanto, a base da definição de conhecimento que ora propomos é experiência relacional “sujeito-objeto”. É o relacionamento entre dois seres em que pelo menos um deles seja capaz de reconhecer a presença do outro diante de si. O conhecimento é, pois, a relação consciente entre um sujeito que conhece e um objeto, diante do qual o sujeito, como agente do processo, dirige seu interesse e atenção. Conhecimento como relação e experiência A noção de conhecimento aqui demonstrada privilegia o conceito de relação e experiência. A própria etimologia12 da palavra reforça essa concepção. O prefixo “co” quer justamente enfatizar essa ligação entre duas realidades, aproximando-as ou tornando-as passíveis da mesma atribuição de significado, seja no nível da ação verbal ou da definição de palavras substantivas como “co-munhão”, “co-ação”, “co-esão”, “co-nforme”, “co-erente”, “co-gnato”, “co-existir”, “co-etâneo”, “co-herdar”, “co-ngênere”. Todas essas palavras sugerem, ao iniciar com o prefixo “co”, uma aproximação, participação comum entre sujeitos, ou de sujeito e seu objeto, em que ambos (sujeito e objeto) estão comprometidos num processo de intercâmbio e comunicação. A língua francesa traduz melhor essa noção de relação e participação, ou melhor, de “co- participação”, ou ainda, de “co-operação”. O termo francês para conhecer é “connaître” e significa literalmente “nascer com”. Essa noção sugere que conhecer seja, de fato, relação cujo produto equivale a um nascer de novo. Conhecer, segundo nosso entendimento, é fazer uma experiência de abertura ao objeto de tal forma que sua riqueza possa transformar o sujeito até o ponto de um amadurecimento que o faça renascer, nascer de novo, “nascer com” o que agora se conhece e nos renova. Essa é uma experiência que o conhecimento nos proporciona: renascimento, renovação. Por isso, conhecer é um processo que nos rejuvenesce; atualiza nossa consciência e nos coloca em contato sempre com coisas novas e mesmo que sejam antigas, elas nos chegam como novidades. Neste sentido, o conhecimento enquanto relacionamento não pode ser neutro a ponto de deixar impassível e inalterável o sujeito que conhece. Isto significa que o conhecimento é um ato humano que não deixa o sujeito ileso, mas ao contrário, o transforma no ato mesmo do relacionamento com seu objeto. Deve ser por isso mesmo que o próprio Dicionário do Aurélio Buarque de Holanda refere-se em uma de suas notas, conhecer como “ter relações sexuais com”. A primeira vista pode parecer estranho e incomum, mas a mesma noção e uso do termo aparecem na Bíblia. Um dos textos mais antigos da Sagrada Escritura emprega o verbo “conhecer” para referir-se à relação sexual: O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu à luz Caim (...). Caim conheceu sua mulher, que concebeu e deu à luz Henoc (Gn 4,1.17). 12 Etimologia significa origem da palavra, ao pé da letra quer dizer o estudo do étimo (forma original) das palavras, ou seja, das formas que deram origem e compões a palavra em sua forma atual. Exemplo: a etimologia da palavra “filosofia” é assim definida: do grego “filos” que significa “amigo” e “sofia”, também do grego, sabedoria. Amigo da sabedoria é o significado etimológico de filosofia. 15 Novamente vemos reforçada a noção de conhecimento como realidade profundamente enraizada na experiência vital de uma relação concreta, neste caso, atingindo a materialidade da própria carne e mais especificamente da sexualidade. O ato de conhecer aqui referido por essa imagem expressa a beleza do encontro de pessoas que se fecundam um ao outro. A troca e intercâmbio, para além de seus próprios corpos, mas também em seus corpos, de seus desejos, energias, sonhos, e porque não dizer, de suas próprias humanidades incompletas na singularidade do gênero que a cada um é dado como feminino e masculino, permite que os sujeitos verdadeiramente se conheçam e gerem novas criaturas prolongando a vida nos seus filhos. A imagem é belíssima! Talvez o relato, entre outras coisas, queira produzir esse encantamento estético no leitor e que nem sempre se lê com a devida atenção.O conhecimento concebido como relação, aponta e pressupõe, evidentemente, em nossos seres, uma situação de carência e incompletude constantes. Conhecer significa, nessa ótica, ato de relacionar-se. O conhecimento deve ser visto, portanto, para começo de conversa, como fonte de realização de nossa humanidade, pois através dele estabelecemos relações fundamentais que preenchem os vazios abertos que em nós estão a espera de “outros” (os seres, as pessoas, o mundo a nossa volta) que nos completem. O mundo não é apenas feito para nós, mas pela capacidade de conhecer nos é dado ser para o mundo13. Portanto, o conhecimento como relação pode ser visto sob o ângulo de quatro grandes tipos de relações que o ser humano estabelece com o mundo a sua volta: 1 - Consigo mesmo; 2 - Com os outros; 3 - Com o mundo da natureza em geral; 4 - e para aqueles que acreditam, com Deus. Em síntese, conhecer é, mediante a experiência de enriquecimento que essas relações proporcionam, o mesmo que humanizar-se, tornar-se cada vez mais humano. 13 Heidegger (), filósofo alemão assim compreendeu o ser humano quando o designou como “Dasein”, pastor dos seres, aquele que está entre os seres, aberto para acolhê-los; literalmente, “Dasein” é um “ser aí” ou “aqui”, isto é, “um ser no mundo”. 16 Unidade: O que é conhecimento? Material Complementar Livros: Vale a pena ler um clássico da literatura filosófica que inaugura a atitude mais característica da modernidade: a busca por um conhecimento que seja válido e verdadeiro fundado na autonomia da razão. É o passo que liberta o pensamento do argumento de autoridade e da tradição. Trata-se da obra de Renée Descartes (1596-1650), Meditações. Leia a primeira meditação. Sites: Consulte planos de ensino de teoria do conhecimento para que você tenha uma ideia diversificada do conteúdo da disciplina tratado em outros cursos de filosofia. Sugiro que veja pelo menos mais dois deles acessando portais dos cursos presenciais de filosofia oferecidos, por exemplo: Pela Unesp: http://www.fc.unesp.br/ E pela USP: http://filosofia.fflch.usp.br/ Observe que são planos de ensino voltados para temas bem mais específicos da teoria do conhecimento e quase sempre envolvendo teoria do conhecimento numa ótica centrada na ciência. A diferença da nossa proposta está na visão mais abrangente, privilegiando o olhar de síntese, percorrendo os momentos mais importantes da história da filosofia. A análise do conhecimento científico será contemplada por outra disciplina, a epistemologia (do grego episteme = ciência), cujo objetivo é desenvolver os fundamentos e a crítica do conhecimento científico. 17 Referências BAZARIAN, Jacob. O problema da Verdade. Teoria do conhecimento. São Paulo: Alfa- Omega, 1994. CHISHOLM, R. Teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. GARCIA, F. L. Introdução ao conhecimento. Campinas: Papirus, 1988. MADURO, Otto. Mapas para a Festa. Reflexões latino-americanas sobre a crise e o conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1994. PRADO Jr., Caio. O que é Filosofia? Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1981. SIMON, Samuel (Ed.). Filosofia e conhecimento: das formas platônicas ao naturalismo – com duas conferências inéditas de John Watkins. Brasília: Editora da UNB, 2003. SOARES, Maria Luisa. O que é o Conhecimento? Porto: Campo das Letras. 2004. ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. Sugestão de dicionários de filosofia para consulta ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. JAPIASSU, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. 4v. 18 Unidade: O que é conhecimento? Anotações
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