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BARTALINI_Os córregos ocultos e a rede de espaços públicos urbanos

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Os córregos ocultos e a rede de espaços 
públicos urbanos (1) 
Vladimir Bartalini 
 
 
É comum, em planejamento, o emprego do termo “sistema” para designar o conjunto 
das partes ou etapas que, ao menos teoricamente, encadeiam-se de modo coordenado 
para atingir um determinado fim: sistema viário, sistema de transportes, sistemas de 
abastecimento, sistema de ensino, sistema de saneamento, etc. Mesmo que o 
funcionamento destes sistemas esteja longe de atender satisfatoriamente às demandas 
dos habitantes das nossas cidades, eles obedecem a uma certa racionalidade para atingir 
um objetivo previamente traçado. 
Seria, no entanto, abusivo estender estas considerações para as chamadas áreas verdes 
ou, de um modo mais geral, para os espaços livres públicos, ao menos para a maioria 
das cidades brasileiras. Aqui eles nunca chegaram a formar um conjunto dotado de 
intencionalidade. Pode ter havido intenções nas partes, não no todo. Assim, cada praça, 
cada parque, cada área verde valem por si sós. Se há algum efeito de conjunto ele é 
casual, não foi preconcebido. 
Pode-se argumentar que para os demais sistemas, durante um tempo, também foi assim. 
As vias de tráfego eram abertas ou prolongadas para atender a necessidades imediatas 
ou a interesses específicos, sem muita preocupação com o geral ou com o futuro, até 
que se projetaram e executaram anéis viários, radiais, marginais. O mesmo teria 
acontecido com os transportes: a “integração modal”, embora ocorresse de alguma 
maneira (o percurso de uma pessoa, desde uma estação de trem até uma chácara nos 
arredores da cidade, podia envolver vários “modos”, como um carro ou um bonde 
puxado a cavalo que a levasse até um determinado ponto e, a partir daí, o andar a pé ou 
em cavalgadura, até o destino final) não recebia os cuidados de hoje. 
Para adequar-se às novas situações e responder às novas necessidades, promoveram-se 
mudanças tanto no modo de gestão e na legislação, como também programaram-se e 
executaram-se intervenções no próprio corpo da cidade. Formaram-se consórcios, 
criaram-se parcerias, alteraram-se regras, efetuaram-se desapropriações e demolições. 
Sem entrar no mérito destes feitos e longe de insinuar que eles testemunham algum tipo 
de evolução, o fato é que ao menos em certos casos – circulação, transportes, 
abastecimento (água, energia elétrica, mercadorias, etc.), entre outros – existiram e 
continuam a existir políticas setoriais, ou seja, elaboram-se planos e projetos que, bem 
ou mal, se concretizam e ajudam a constituir os sistemas de circulação, transportes, 
abastecimento, etc. 
Falar que isto não ocorreu e nem ocorre com os espaços livres, particularmente com as 
áreas verdes, seria constatar o óbvio. Entender porque isto se deu seria mais 
interessante, porém requereria mais munição do que a disponível para a elaboração 
destas páginas, embora seja possível suspeitar onde estão as chaves para a sua 
compreensão: em última instância, na competição pelo espaço, que é arbitrada pelo 
preço da terra. Na cidade vista como mercadoria, o que não rende não vale a pena. Sob 
uma ótica estritamente econômica, também não vale a pena investir naquilo que não é 
essencial para a reprodução da força de trabalho. Espaços livres, áreas verdes para o 
desfrute desinteressado, raramente se colocaram entre as prioridades da maioria dos 
pobres e remediados das cidades e, sendo públicos, nem da minoria dos ricos, embora 
provavelmente quase todos, ricos e pobres, sonhassem com uma cidade que as tivesse e, 
de preferência, bem tratados e bonitos. 
Mas, apesar dos sonhos e desejos também movimentarem o mundo, este dos chamados 
espaços verdes custa a emergir para o mundo real, sobretudo no caso paulistano, ao 
menos com o grau de idealização com que comparece nos planos. 
É certo que tivemos que aprender a lidar com restrições e insuficiências. Tanto que, ao 
menos em São Paulo, apesar dos parques e áreas especiais de preservação previstos no 
Plano Diretor Estratégico de 2002 terem mais de onírico do que de concreto, os sonhos 
não são bem sonhos, porque são “resignados”, conformados ao que restou de 
possibilidades (o que é paradoxal mas não necessariamente negativo). 
Forçado pelas circunstâncias, o Plano trabalha sobre os retalhos. Mas, apesar de 
vigiados pelo implacável superego, também conhecido como “a dura realidade”, os 
parques ali propostos não deixam de revelar um desejo profundo, o que é típico dos 
sonhos. 
Isso porque na proposta desenhada transparece a crença num conjunto articulado de 
áreas verdes. Ele estaria apoiado na chamada “Rede Hídrica Estrutural”, do que poderia 
advir uma série de vantagens tanto do ponto de vista ambiental, quanto recreativo e de 
organização da paisagem urbana. 
Os benefícios ambientais são óbvios, porquanto as áreas verdes marginais garantiriam a 
um só tempo a permeabilidade do solo e a proteção das margens a custos baixos. Do 
ponto de vista da recreação pública, áreas verdes situadas junto aos cursos d’água, por 
serem lineares, oferecem maiores possibilidades de acesso à rede de espaços equipados 
para o lazer, pois intrometem-se com maior eficiência no tecido urbano do que grandes 
superfícies concentradas (2). Se encarados sob o aspecto da organização da paisagem, 
os espaços verdes junto aos talvegues destacam visualmente as linhas definidoras do 
sítio urbano. Assim, conjugam-se e reforçam-se mutuamente os proveitos que podem 
advir da sobreposição das áreas verdes à rede hídrica. 
Não é uma descoberta nova, o que não desmerece a proposta, pois há boas idéias que 
desafiam o tempo. Mas é inevitável perguntar por que elas não se tornaram realidade e 
por que haveriam de tornar-se agora. 
De fato, ao longo da nossa história, as calhas e as planícies dos nossos principais rios 
foram comprometidas pela monofuncionalidade das avenidas, em obediência a uma 
visão pragmática de alcance inversamente proporcional às dimensões das vias nelas 
implantadas. Não que tenham faltado idéias de associar os rios às áreas verdes. 
Urbanistas como Saturnino de Brito, Ulhoa Cintra e Prestes Maia, sucessivamente, 
propuseram extensos parques ao longo do rio Tietê no seu trecho paulistano. Pelo Plano 
de Avenidas de Prestes Maia, elaborado em 1929, não só o Tietê, mas também o rio 
Pinheiros e os córregos do Tatuapé, da Mooca e do Ipiranga integrariam o “Circuito de 
Parkways” que dotaria a cidade de dezenas de quilômetros de parques lineares, ainda 
que, ressalvava o autor, sem aspirar àqueles idealizados por Olmsted, nos Estados 
Unidos, na segunda metade do século XIX. A rigor, a possibilidade de um cinturão 
verde junto aos rios já fora aventada, para São Paulo, por Barry Parker, em 1918, 
durante sua estada aqui (3). Em 1950, quando se cogitava a retificação do rio Pinheiros 
para atender aos interesses da Light, outro urbanista estrangeiro, Robert Moses, buscava 
convencer sobre a conveniência do poder público impor a reserva de áreas para parques 
junto àquele rio. 
O potencial das planícies fluviais paulistanas para a implantação de áreas verdes ainda 
era considerável em 1965, levando-se em conta o que havia de espaços então 
desocupados ao longo dos rios mais importantes (4). Se, em meados dos anos de 1960, 
restavam tantos vazios marginais aos cursos d’água, imagine-se do que se dispunha nas 
décadas anteriores, quando foram construídas as avenidas Pacaembu e Nove de Julho 
literalmente sobre as várzeas dos córregos que lhes serviram de diretrizes. No entanto, 
não só tamponaram-se os córregos, como não houve qualquer preocupação em reservar 
áreas verdes além de canteiros centrais, que ainda hoje sobrevivem na avenida 
Pacaembu e na avenida Nove de Julho, nesta apenas no trecho ao sul do espigão da 
Paulista. 
A avenida Vinte e Três de Maio, que se sobrepôs ao córrego Itororó, foi aberta já na 
década de 1960. Se há ali algo a atenuar a reincidente oclusão do rio, são os largos 
canteiroscentrais e os taludes laterais vegetados por lembrarem, embora apenas 
visualmente, que ali era um vale. Não se reviu, portanto, o conceito a fundo. Passada 
mais uma década, o mesmo procedimento – tamponamento do curso d’água e 
tratamento dos taludes e dos canteiros centrais – foi aplicado na avenida Sumaré, sobre 
o córrego Água Branca. 
Por mais condenáveis do ponto de vista ambiental, os casos das avenidas Nove de 
Julho, Pacaembu, Vinte e Três de Maio e Sumaré apresentam ao menos algumas 
veleidades urbanísticas. Afinal, as êxedras nas laterais das bocas dos túneis da avenida 
Nove de Julho buscaram recuperar, simbolicamente, as fontes formadoras do córrego 
Saracura. Das suas paredes desciam cortinas de água que descansavam em tanques 
cuidadosamente desenhados, sendo todo o conjunto valorizado, à noite, pelo efeito das 
luzes, antes da hidrofobia contaminar os valores urbanísticos dos responsáveis pela 
administração dos espaços públicos. 
A avenida Pacaembu teve sua extremidade superior arrematada com categoria pelo 
estádio municipal e pela praça Charles Muller, dignificando (poder-se-ia dizer, numa 
perspectiva ambientalista, como um mausoléu) as nascentes do córrego. 
Corroborando o argumento de que, em certos campos, quanto mais o tempo avança 
mais se retrocede, as avenidas Vinte e Três de Maio e Sumaré, apesar dos canteiros e 
taludes verdes já citados, não chegaram a estabelecer laços significativos com as 
cabeceiras dos seus respectivos córregos. Ambas atravessaram o espigão central, 
superando o obstáculo topográfico sem o compromisso de desatar o nó górdio: 
cortaram-no com buldozers e reataram-no com viadutos prosaicos. Só mais 
recentemente a estação Sumaré do metrô, suspensa no divisor de águas, veio conferir 
alguma importância ao local de nascimento do rio. Alguns quarteirões abaixo, porém, 
com a insistência e a audácia de clandestinos, olhos d’água insurgem na encosta, tomam 
corpo e se avolumavam o suficiente para escorrer por uma bica que passaria 
despercebida, não fosse sua apropriação por moradores de rua. 
Se não ambientalmente corretas, as avenidas Pacaembu, Vinte e Três de Maio e Sumaré 
são, ao menos, belos sarcófagos, muitos pontos acima daqueles das avenidas 
Aricanduva (sobre o córrego de mesmo nome), Salim Farah Maluf (córrego Tatuapé), 
Luís Inácio de Anhaia Melo (córrego da Mooca), Eliseu de Almeida (córrego 
Pirajussara), Caetano Álvares (córrego Cabuçu de Baixo) e de tantas outras que, não 
atravessando zonas nobres, não mereceram os mesmos cuidados. A cena final deste 
espetáculo de impropriedades foi protagonizada pela avenida construída sobre o 
Tamanduateí. É difícil evitar o contraponto com a via expressa executada sob o rio 
Mapocho, que atravessa a cidade de Santiago, capital do Chile, em que pesem as críticas 
dos urbanistas locais sobre a conveniência daquela obra. 
Aqui e ali despontam exceções que ficam por conta de alguns loteamentos projetados 
por urbanistas da primeira metade do século XX que, numa perspectiva ao mesmo 
tempo sanitarista e estética, faziam coincidir áreas verdes e linhas de drenagem natural 
(5). Outras, que se poderia chamar com propriedade de pontuais mesmo, dadas suas 
dimensões, são ilustradas por trechos dos córregos das Corujas (Pinheiros) e Tiquatira 
(Penha) em que os cursos d’água, a céu aberto, estão envolvidos por áreas verdes que 
permitem a fruição por pedestres. Não passam de casos isolados a que não se deu 
continuidade, condutas que não vingaram mesmo quando se apresentavam 
oportunidades favoráveis. 
Quando não entaladas pelas pistas das avenidas, as margens dos rios serviram de chão 
para os mais pobres, desatendidos pela política habitacional. Nos casos de remoção, 
observa-se a regra de construir vias de automóveis o mais rente possível do canal para 
evitar futuras ocupações. Teria sido possível revegetar as margens desocupadas, 
implantar parques lineares? Decidiu-se sempre pelo não, com o argumento de que as 
áreas verdes são alvos fáceis para novas invasões. 
Temos, portanto, uma forte tradição, na administração pública, de desprezo aos rios e de 
sobrevalorização do sistema viário. Não custa acreditar em mudanças nas condições 
concretas de produção da cidade e na mentalidade de alguns técnicos, mas se há boa 
vontade no otimista há também boas razões para o cético. 
Segundo o Plano Diretor, a recuperação (parcial, incompleta) de importantes linhas 
naturais de drenagem como áreas verdes seria hipoteticamente viabilizada por operações 
conjugadas entre o poder público e os empreendimentos imobiliários da iniciativa 
privada. 
Não serão pequenas as dificuldades para a sua consecução. Os cursos d’água estão 
poluídos (quem escolheria morar junto a canais sujos, a céu aberto?) e são poucos 
aqueles cujas margens não estão invadidas. Transformá-los em parques pressupõe 
articulações com as políticas de infra-estrutura e de habitação social, o que demanda 
tempo e dinheiro. Se se formarem conjunções favoráveis é quase certo que a 
implantação dos parques junto aos rios estará sujeita às vicissitudes do mercado, que 
definirá onde, quando e quanto fazer. Os bilros que urdem esta rede estão em mãos 
invisíveis. Não se sabe o desenho que resultará, nem se haverá rede. 
É fácil ser pessimista, mas seria injusto não reconhecer os aspectos positivos da 
proposta e mesmo suas possibilidades práticas. Só o fato de inscrever as áreas verdes 
nas várzeas dos rios que ainda estão livres de projetos viários já é um ganho, pelo 
menos porque as compromete de antemão. São pedras no caminho da fúria viária, 
removíveis, sim, mas que podem dar um certo trabalho e que permitem ganhar tempo, 
enquanto uma nova mentalidade em relação aos rios urbanos toma corpo na opinião 
pública e se torna hegemônica no meio técnico. 
Também há de se creditar a favor da proposta o abandono de uma hierarquia tão rígida 
quanto inútil que orientou por muito tempo os planos de áreas verdes: a classificação 
dos parques em metropolitanos, urbanos, setoriais, de bairro, de vizinhança. Tratando-se 
de áreas verdes, parece que o conceito de rede é mais apropriado do que o de sistema. 
Rede tem a ver com continuidade, espraiamento espacial, entrelaçamento, comunicação, 
eqüidade na distribuição, o que não deve ser interpretado como apologia do homogêneo, 
do genérico, pois a rede não implica a anulação das especificidades, antes possibilita a 
versatilidade dos papéis dos diferentes parques que vierem a constituí-la. 
O Plano, porém, não estabelece prioridades nem desce a detalhes, atendo-se aos rios ou 
córregos mais aparentes, de maior visibilidade. Contudo, a rede hídrica e, por 
conseguinte, a rede possível de parques ou de espaços públicos ribeirinhos, é ampla e 
complexa, compreendendo cursos d’água das mais variadas magnitudes até, no limite, 
aqueles que, dados por insignificantes, foram tão ocultados que somente um trabalho de 
investigação mais acurado, baseado na análise da cartografia histórica e em 
procedimentos próximos aos da arqueologia, a partir de vestígios esparsos, podem ser 
trazidos à luz. 
São corriqueiros os casos de obliteração dos cursos d’água que compõem a trama mais 
fina, os capilares da rede hídrica. Podem ser encontrados em qualquer cidade, de 
qualquer porte. Muitos deles passam sob os quintais das casas, quando não sob as 
próprias edificações. Atravessam o interior das quadras que os absorvem e, assim, 
disfarçam a modelagem original do relevo, desfigurando-a a ponto de impedir até 
mesmo que se reconheçam as linhas mais fundas por onde a água passa. 
Outras vezes – e estas são as situações mais promissoras do ponto de vista aqui 
defendido – coincidem com vielas estreitas e tortuosas que sublinham o desenho da 
drenagem natural. São passagens públicas, sem qualquer atrativo, mas públicas e, por 
isso, potencialmente reveladoras do que a produção material das cidades recalcou. 
Um plano mais detalhado,ao alcance de uma subprefeitura, poderia prever a 
recuperação destes espaços, não propriamente como áreas verdes, porque são quase 
inexistentes as oportunidades de plantio ou de aumento significativo da permeabilidade 
do solo junto a eles, mas, ao menos, como espaços livres integrados à rede de áreas 
verdes. 
As vantagens resultantes têm componentes pedagógicos – na medida em que 
intervenções que ali ocorram ajudarão a explicitar elementos básicos do suporte físico 
das cidades com os quais, conscientemente ou não, nos relacionamos cotidianamente – 
bem como de dignificação de espaços relegados ao abandono, recuperando-os para uma 
efetiva apropriação pública. 
O caso do córrego Água Preta 
Poucos o conhecem por esse nome e, provavelmente, os que estão de passagem, e 
mesmo moradores mais recentes, nem sabem que sob aquelas vielas e ruas tortuosas 
passa um córrego. 
A bacia do Água Preta é contígua à do Água Branca, ou Sumaré, e sua área, de 4,45 
km2, é maior do que a deste último (6). Ainda assim passa incógnito, pois nenhuma 
avenida foi traçada sobre ele. No entanto, não só vias importantes, como as avenidas 
Heitor Penteado e Pompéia, estão contidas na sua bacia, como também equipamentos 
urbanos de grande expressão, como a estação de Metrô Vila Madalena e o Sesc Fábrica 
Pompéia, situam-se ao longo do seu curso. 
As cabeceiras das linhas de drenagem que constituem o córrego Água Preta alinham-se 
num arco que corresponde, grosso modo, ao traçado de algumas vias que são referências 
na região oeste da cidade de São Paulo: avenida Dr. Alfonso Bovero, trecho da avenida 
Heitor Penteado e rua Aurélia. Desta cumeeira principal partem vários esporões 
divisores de água secundários que formam grotas acidentadas, sulcadas pelos 
contribuintes do Água Preta. 
O curso do córrego principal só ganha maior definição a uma distância de quase um 
quilômetro do ponto mais alto da cumeeira, que se situa na confluência das ruas Cerro 
Corá, Aurélia e avenida Heitor Penteado. A amplitude altimética na região das 
cabeceiras é da ordem de 70 metros. Uma vez formado o canal de escoamento principal, 
o rio percorre mais ou menos três quilômetros até desaguar no Tietê, em terrenos com 
declividade cada vez menor de modo que, da altura do Sesc Pompéia em diante, mal se 
distingue no relevo o sulco de drenagem. São, portanto, os cursos alto e médio que 
oferecem as situações de maior interesse, na medida em que os vestígios da água se 
apresentam de formas mais variadas. 
Um dos indícios mais explícitos é o jorro contínuo que flui aos pés de uma longa 
escadaria, na confluência das ruas Dr. Paulo Vieira e Salto Grande. Uma bica foi ali 
improvisada, sem qualquer atenção às ricas possibilidades paisagísticas que o local 
encerra, entre elas a praça Homero Silva, a menos de 50 metros. Mas, ao menos, a água 
está à mostra. Logo porém é engolida pela tubulação sob o leito das ruas ou sob 
passagens que, incorporadas às quadras que atravessam, são ocultadas ao olhar do 
público. O relato, mal começado, é interrompido. Só a cartografia revela que aquele 
curso d’água encontrará um outro, escondido sob a rua Francisco Bayardo que, por ser 
funda, estreita e sinuosa e tendo uma escadaria para vencer a inclinada encosta, faz 
pressentir a existência de algum córrego. 
A suspeita é confirmada uns duzentos metros adiante, atravessada a avenida Pompéia, 
não pelos olhos, num primeiro momento, mas pela audição e pelo olfato. O som e o 
cheiro fortes da água escapam por um bueiro no ponto mais baixo da rua Pedro Lopes, 
junto a uma área verde remanescente da desapropriação de uma frente de quadra. Pela 
grelha que protege a abertura se entrevê o fluxo volumoso, mesmo em épocas de 
estiagem. 
Ali, um outro riacho se junta aos anteriores e não é difícil deduzir que ele jaz sob a 
travessa João Mathias, uma viela longa e apertada, escura, suja e sem vida, que sobe da 
rua Pedro Lopes à rua Alfredo Gemi. Neste ponto o fio narrativo se rompe de novo, pois 
a extensa quadra entre a rua Pedro Gemi e a avenida Heitor Penteado encerra o córrego 
no seu interior, impedindo que a exploração continue a montante. 
Mas o relevo fala pelo rio eclipsado, ressaltando as formas do seu vale: à esquerda 
ergue-se um dos esporões mais expressivos da bacia, onde se instalou a Vila Anglo 
Brasileira, enquanto à direita, a vegetação da praça Vicente Tramonte Garcia alude à 
situação primitiva da encosta. 
Retomando o caminho a jusante, pela estreita travessa João Mathias, a vista se abre no 
largo da rua Pedro Lopes (onde a água respira num instante) e logo se fecha para se 
distender de novo na praça Rio dos Campos e tornar a retrair-se até a rua Ciridião 
Buarque. Esta seqüência de distensões e contrações visuais, embora virtualmente 
atraente, não tem nada a qualificá-la. Não há espaços preparados para as pessoas, nem 
mesmo na praça Rio dos Campos, de nome sugestivo, mas que não passa de uma 
rotatória. As calçadas são mínimas junto a estas ruas que rastreiam o Água Preta. 
No entanto, uma vez cruzada a rua Ciridião Buarque, ouve-se novamente, por outro 
bueiro, o som do córrego que se insinua sob a viela Roque Adoglio, onde não entram 
carros. Ela é mais larga e luminosa que a travessa João Mathias, embora igualmente suja 
e sem vida, pois apenas os fundos descuidados das construções a faceiam. 
O rio segue seu curso pela viela Estevão Garcia, que passa no meio da quadra formada 
pelas ruas Miranda de Azevedo e Bárbara Heliodora, e é aberta ao tráfego de veículos. 
Nem transcorridos 40 metros ele recebe, pela margem esquerda, um extenso afluente. 
Nenhum marco para celebrar o encontro dos rios. Só chama a atenção o terreno ermo, 
coberto de macega, relativamente amplo na embocadura e que vai se afunilando até se 
tornar uma passagem em chão de terra, ziguezagueante, espremida entre os muros das 
construções, que não incita a entrada. 
Se a curiosidade vencer o receio, passados uns cem metros, chega-se a uma via 
pavimentada que dá continuidade à viela intransitável. Sob ela continua a passar o 
córrego afluente, mas nada o denuncia. Seguindo rio acima tudo o que se vê, à esquerda, 
são fundos das construções _casas, fábricas, galpões_ da rua Miranda de Azevedo e 
uma pequena “área verde” oblonga, abandonada, provável “sobra” dos trabalhos de 
canalização do córrego. À direita alinham-se os muros de fundo dos lotes da rua 
Bárbara Heliodora, alguns dos quais se abrem para a viela, aliviando-lhe o aspecto 
sinistro. Ela dá de topo com a rua João Jabotan e ali pára, insipidamente. Começa e 
termina como se fosse uma rua qualquer e não estivesse transportando secretamente um 
rio. 
No entanto, subindo a João Jabotan, à direita, a menos de 50 metros da extremidade da 
viela, está a praça Jesuíno Bandeira. A “praça” não é mais do que uma ilha de forma 
triangular, que organiza o encontro de várias ruas. Mas é arborizada e tem alguns 
bancos. Trata-se, portanto, de uma referência local. Simétrico à área arborizada, em 
relação à rua João Jabotan, abre-se um espaço asfaltado, uma espécie de largo, que dá 
continuidade à praça, só que destinado ao trânsito de veículos. É outra referência, não só 
como contraponto à área verde e por apresentar uma certa coesão espacial, mas também 
por receber uma escadaria, elemento sempre revelador dos acidentes do relevo e, 
conseqüentemente, alusivo às cabeceiras do córrego (7). Nenhuma vontade urbanística, 
porém, ligou estes “fatos”, ou índices, ao rio que está tão próximo. 
Retomando o curso principal do Água Preta, a jusante da foz do afluente, outro 
empreendimento se anuncia à margem esquerda, entre a rua Bárbara Heliodora e a viela 
Estevão Garcia. As antigas casas já estavam demolidas em agosto de 2002, liberando, 
temporariamente, a visão da encosta do vale e, definitivamente, o terreno para a 
construção de grandes edifícios. 
Não foi ainda possível obter informações sobre o projeto deste empreendimento,mas 
seria de admirar caso ele previsse alguma relação significativa, do ponto de vista 
paisagístico, com a memória do rio que vagava a seus pés, ou ainda algum diálogo com 
a praça Diogo do Amaral, que lhe fica quase em frente, vertente acima, do outro lado da 
rua Bárbara Heliodora. 
O córrego continua pela rua Dr. Francisco Figueiredo Barreto, logradouro oficializado 
que apresenta, em dois trechos do que outrora foi a margem esquerda, alargamentos do 
passeio (pequenos embora expressivos no contexto) incorporados ao espaço público 
quando da canalização do rio. Um é mero chão batido; o outro ostenta alguma 
vegetação plantada por iniciativa de um morador, mas sem critérios claros, e está mal 
mantido. 
Cruzando a rua Desembargador do Vale, ainda é possível seguir os passos do córrego 
oculto pelo terreno ocupado por uma empresa de jardinagem que mantém ali um 
pequeno viveiro de plantas. Mas logo se entrepõe a barreira de um condomínio 
residencial que dá frente para a rua Ministro Ferreira Alves, e cujo estacionamento, ao 
ar livre, está implantado sobre o rio. É preciso contornar a quadra, ou pela margem 
esquerda, através da rua Frei Henrique de Coimbra, ou pela margem direita, através da 
Miranda de Azevedo, para recobrar o fio da meada. 
Duas áreas, impropriamente denominadas “praças”, podem servir de sinal: uma delas é 
a praça Tupã, um pequeno e declivoso triângulo arborizado que, embora não passe de 
um talude entre as ruas Frei Henrique de Coimbra, Rafael Correia e Ministro Ferreira 
Alves, é um testemunho “verde” da encosta do vale; a outra é a praça Daniel Berciano 
Villasol, também triangular e pequena, mas plana por estar já em terreno de várzea. 
Apesar de serem partes do mesmo acidente geográfico e contíguas (apenas uma rua as 
separa) não houve qualquer tentativa de aproveitá-las para trazer à lembrança o rio 
escondido, que prossegue, ignorado, sob uma rua aberta há não muito tempo, 
denominada José Tavares de Miranda. 
Esta via rasgou diagonalmente duas quadras que o rio atravessava. Interligando poucas 
ruas, seu efeito sobre o sistema viário é desprezível. É fruto típico da mentalidade 
segundo a qual qualquer rua é melhor que um córrego. Mas ela está lá, escondendo o rio 
e expondo os fundos dos lotes das quadras afetadas. O prêmio de consolação desta 
iniciativa obtusa foi uma pequena praça triangular e plana, na interseção com a rua 
Augusto de Miranda, chamada Ilza Weltman Hutzler. Ela é o par simétrico da praça 
Daniel Berciano Villasol, com a qual se assemelha na forma, nas dimensões e na 
situação topográfica. Porém não houve nenhum esforço para relacioná-las 
paisagisticamente, nem por parte do projeto viário e, provavelmente, nem pelo projeto 
“Villa Bella”, grande empreendimento imobiliário, hoje paralisado, entre as ruas 
Miranda de Azevedo, Augusto de Miranda e José Tavares de Miranda, onde há alguns 
anos estavam as instalações da Saturnia S.A. 
O último rastro do rio fica ocluso no terreno da White Martins, reverenciado com um 
arvoredo na encosta que dá para a rua Venâncio Aires, a uma quadra do SESC Fábrica 
Pompéia. Daí em diante o talvegue se descaracteriza, e assim era mesmo antes da 
urbanização da região, pois já atinge os terrenos baixos da planície do Tietê e nela se 
perde de vez. 
Só no plano simbólico o Água Preta é remido, ainda dentro dos limites do SESC 
Fábrica Pompéia, já afastado dos olhares da rua. De fato, o estrado do solário na área de 
lazer ao ar livre assenta sobre seu leito, e o “rio” em meandros no interior do grande 
saguão, próximo à entrada do SESC, até poderia aludir a ele, se não se referisse ao rio 
São Francisco). No entanto, o córrego real, involucrado, chega pelos fundos, pela 
“entrada de serviço”. Do lado de fora, para lá dos muros, o Água Preta é um enjeitado, 
um incômodo e uma ameaça. 
* * * 
Esta história pode valer para outros tantos pequenos cursos d’água que sulcam os 
bairros das nossas cidades. Vivem anonimamente, escondidos, e só na época das chuvas 
alguns deles emitem sinais. O Água Preta chegou a provocar desastres em algumas 
cheias, muitos anos atrás. Atualmente seus “incômodos” sentem-se apenas no baixo 
curso, inundando a área onde se dá a confluência das avenidas Pompéia e Francisco 
Matarazzo (8). Daí para cima ele está submetido, enquadrado. O método disciplinar, 
porém, deixou marcas que produziram outros inconvenientes: os becos escuros, as 
travessas sem vida, as vielas sujas. 
Em alguns casos a prevenção ou a resposta a estes problemas foi, como vimos, 
incorporar o canal subterrâneo às quadras ou aos lotes condominiais. Eliminam-se as 
vielas só que, com elas, também se vai o que sobrou da memória dos rios, além de se 
perder a oportunidade de urdir uma rede mais sutil de espaços públicos, destinada a 
pedestres e a ciclistas, que poderia ser uma alternativa para os passeios e deslocamentos 
no interior do espaço urbano. 
O caso do Água Preta é exemplar no sentido de permitir que o percurso entre uma 
estação de metrô, situada nas suas cabeceiras, e instituições culturais, esportivas, 
educacionais, localizadas no seu curso baixo, a menos de três quilômetros de distância, 
possa ser vencido sem o sobe e desce exaustivo que as ruas existentes impõem. Cabe 
ainda notar que, andando mais um quilômetro pelos terrenos baixos do Tietê chega-se à 
estação Água Branca da CPTM, de modo que, pelo córrego, numa distância menor do 
que quatro quilômetros, integram-se dois meios de transporte de massa. O trajeto 
contrário, o da volta, seria o de uma subida branda, como a do rio. A diferença de nível 
entre os fundos do SESC Fábrica Pompéia, onde se encerrou a descrição do caminho do 
rio, e as praças e escadarias situadas na área das nascentes, onde se iniciou o relato, gira 
em torno de 30 metros. A declividade até aí é, portanto, quase imperceptível. Ela se 
torna mais forte apenas nos 500 metros finais, que separam estas praças da estação de 
metrô, atingindo uma média de 10%. 
São potencialidades. Seria possível realizá-las sem grandes investimentos materiais, 
embora exijam maior empenho de gerenciamento, algumas alterações em posturas 
urbanísticas e um papel mais incisivo do poder público na indicação de diretrizes para a 
aprovação de novos empreendimentos imobiliários e na atribuição de incentivos a usos 
e ocupações do solo, que visem à integração qualificada destes espaços à vida urbana. 
Os bairros da bacia do Água Preta são consolidados, com boa infra-estrutura, fácil 
acesso e já passam, há alguns anos, por transformações cujo ritmo se acelera 
constantemente. Antigas casas, modestas no padrão, são demolidas e substituídas por 
edifícios de apartamentos. Muitas fábricas, de pequeno e grande porte, que podem ser 
encontradas ao longo de todo o trajeto do córrego, foram desativadas e suas instalações 
deitadas abaixo para dar lugar a condomínios verticais, ou tiveram seu uso reciclado. 
Só no caminho descrito, estritamente na linha do córrego, há exemplos de sobra de 
oportunidades que se oferecem, ou se ofereciam, para recuperá-lo, atuando não apenas 
sobre o espaço público mas condicionando também os lotes e construções às melhorias 
que se deseja promover. 
Um deles era o imóvel da antiga fábrica Eletro Acústica Ltda que, por ocasião da visita 
que ensejou este trabalho, iria a leilão. Um de seus lados dá para a travessa João 
Mathias, sob a qual passa um dos afluentes do córrego. Qualquer que fosse o destino do 
imóvel, seria o momento da prefeitura, ou da subprefeitura, encetar ações conjuntas para 
rever a relação daquela lateral, cega e hostil, com a viela, ou seja, com o vestígio do 
córrego. 
Mais adiante, como já apontado, um edifício em construção na esquina da rua Miranda 
de Azevedo, dá fundos para o córrego. Já está aprovado e em obras, mas não seria ainda 
possível e razoável o poder público reivindicar um tratamento paisagístico dos recuos, 
condizente com aquela situação tãopeculiar, e atualmente tão desprezada, de encontro 
de dois córregos e, assim, evitar que se erga um paredão opaco que só pioraria as 
condições presentes naquele espaço público? 
Poucos metros a jusante assinala-se outro empreendimento, na época ainda na fase de 
demolição das construções antigas, com um extenso limite junto ao córrego enterrado. 
O fato de já estar aprovado pela municipalidade, não deveria obrigatoriamente impedir 
que negociações, com vistas à valorização da viela Estevão Garcia, pudessem ser 
tentadas. 
Há ainda o condomínio Villa Bella, na rua José Tavares de Miranda, já no baixo curso, 
cujas obras estavam paralisadas. Seria o momento do poder público preparar propostas 
para que, uma vez resolvidas as pendências judiciais incidentes sobre aquele 
empreendimento e retomados os trabalhos, algo resultasse em benefício da paisagem 
daquela rua sob a qual passa o Água Preta. 
Isto tudo sem contar com as praças e outras áreas livres remanescentes de 
desapropriações, bem como com os pequenos largos e escadarias já referidos que 
ocorrem de sobejo no trajeto. São espaços públicos, portanto sob a tutela da 
municipalidade, plenos de possibilidades que só se consumariam, no entanto, se 
coordenados em um conjunto. Eles podem deixar de ser peças isoladas, palavras soltas, 
como são hoje, e comporem, juntamente com outras peças, um texto ou um quadro com 
algum significado. Eles podem contar a história do rio. 
Há, por fim, ainda outra frente de atuação possível e desejável que é a da administração 
pública, num trabalho mais próximo com os moradores da área, intervir diretamente nas 
travessas, becos e vielas, trabalhando os seus pisos e as empenas, equipando-os com 
mobiliário adequado e mesmo permitindo e incentivando que se abram portas e janelas 
para eles (o que hoje ocorre clandestinamente). Pode também dar estímulos para os que 
exponham visualmente aos passantes seus quintais arborizados, lembranças dos 
pomares que antes chegavam até a beira dos riachos. 
Nada disto recuperará o córrego propriamente dito, nem beneficiará a drenagem pela 
permeabilidade do solo. Mas se estas ações não exumam o córrego, ao menos vivificam 
sua memória ao integrar seus rastros à rede de espaços livres, verdes ou não, com 
alguma decência, ou decoro, como convém a tudo o que é público. 
notas 
1 
Publicação original: BARTALINI, Vladimir. Pós – revista do programa de pós-
graduação em arquitetura e urbanismo da FAU-USP, n. 16, 2004, p. 82-96, e revisado 
em 2009. 
2 
WHYTE, William. The last landscape. New York, Doubleday & Company, 1968. 
3 
PARKER, Barry. “Tow years in Brazil”. In The Garden Cities and Town Planning 
Magazine, vol. IX, n. 8, august, 1919. 
4 
BARTALINI, Vladimir. Parques Públicos Municipais de São Paulo – A ação da 
municipalidade no provimento de áreas verdes de recreação. Tese de doutorado, FAU-
USP, 1999; BARTALINI, Vladimir. “A municipalização do verde público na cidade de 
São Paulo: da Administração dos Jardins Públicos e Arborização à Subdivisão de 
Parques, Jardins e Cemitérios”. In Pós – Revista do Programa de Pós Graduação em 
Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, n. 10, dez. 2001. 
5 
A respeito, ver: KAWAI, Célia Seri. “Os loteamentos de traçado orgânico realizados no 
município de São Paulo na primeira metade do século XX”. Dissertação de mestrado, 
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da 
Universidade de São Paulo, 2001; O urbanismo do engenheiro Jorge de Macedo Vieira, 
edição sem autor identificado patrocinada pela HSBC com apoio da Prefeitura do 
Município de São Paulo, sem data. 
6 
EMPRESA MUNICIPAL DE URBANIZAÇÃO – Estudos e diagnósticos das bacias 
dos córregos Sumaré e Água Preta (realizado pela Hidroestudio por encomenda da 
Empresa Municipal de Urbanização – Emurb). 
7 
A escadaria foi a solução possível para o projeto da rua Bento Vieira de Barros que, 
dada a excessiva declividade do terreno, não pôde ser realizado. 
8 
“Diagnósticos das bacias dos córregos Sumaré e Água Preta”, op.cit 
 
 
A trama capilar das águas na visão 
cotidiana da paisagem 
Vladimir Bartalini 
 
 
Nos interstícios da malha urbana 
A paisagem decorrente do contínuo processo de produção do espaço apresenta, 
principalmente nas aglomerações metropolitanas, traços tão distintos da paisagem 
primordial sobre a qual foi se constituindo, e estende-se com tal magnitude, a ponto de, 
em certas circunstâncias, parecer impróprio referir-se a ela como uma “segunda 
natureza”, pois tudo se passa como se ela fosse a própria natureza original. 
Somente eventos formidáveis como abalos sísmicos, erupções vulcânicas ou violentos 
fenômenos atmosféricos, ao atingirem importantes centros urbanos, ainda causam em 
nós o impacto que permite recuperar, instantaneamente, a consciência de que uma 
natureza primitiva, não domesticada, ainda está presente. Nem a extensão do mar ou a 
imponência das cadeias de montanhas, mesmo que envolvam grandes metrópoles, 
conseguem provocar, no cotidiano, alguma reflexão sobre esta materialidade inaugural. 
Entre os elementos naturais que há mais tempo participam do espaço humanizado estão 
os rios. Vinculam-se à própria formação dos territórios e à fundação da maior parte das 
cidades em todo o mundo, fato que o caso brasileiro vem confirmar. 
Em São Paulo, a proximidade do rio Tamanduateí, com sua ampla planície de 
inundação, foi um dos fatores determinantes para a escolha do sítio onde a vila se 
instalou, por atender a necessidades de defesa, abastecimento, comunicação e 
transporte. No entanto, tal relação manteve-se normalmente em nível degradante e só 
em raras ocasiões, e por breve tempo, ultrapassou os limites do meramente utilitário: o 
colégio jesuítico e, mais tarde, o palácio do governo davam as costas ao rio; suas águas 
eram desviadas para atender a conveniências particulares; o lixo da cidade era 
depositado em sua várzea. Ainda assim, viajantes e cronistas citam lugares pitorescos a 
ele associados, que eram aproveitados informalmente pela população, ocorrendo, na 
década de 1870, a primeira iniciativa oficial, ainda tímida e de curta duração, de 
construir um recanto recreativo, paisagisticamente tratado, em suas margens: a Ilha dos 
Amores. Os contatos prazerosos com o rio passaram a ser cada vez mais esporádicos e 
até condenados em nome da saúde e mesmo da moralidade. Meio século se passou até 
que a várzea, sempre referida em termos depreciativos, fosse convertida num parque, 
que não durou outros cinqüenta anos, pois foi retalhado e ilhado por um complexo de 
viadutos. 
Fatos semelhantes ocorreram com os rios mais importantes que cortam a bacia 
sedimentar de São Paulo. A relação afetiva e deleitosa, na cotidianidade ou mesmo no 
contato esporádico com os cursos d’água, não conseguiu resistir às razões utilitárias que 
os reduziram a peças de uma máquina hidráulica ou usaram suas margens como 
corredores de circulação. 
Ainda que seja válido argumentar que é inerente a toda ação humana, sobretudo no 
espaço urbano, alterar radicalmente a base física para afeiçoá-la aos seus desígnios, há 
de se admitir que a qualidade da paisagem, sob o estrito aspecto visual, ao longo de rios 
como o Prata, em Buenos Aires, ou o Mapocho, em Santiago do Chile _para evitar 
paralelos mais distantes com o Sena, o Tamisa, o Hudson e tantos outros que passam 
por grandes cidades_ é incomparavelmente superior à que envolve os principais rios 
paulistanos, mesmo nos trechos em que atravessam áreas social e economicamente mais 
privilegiadas. 
Do ponto de vista ambiental, a situação de nossos rios é igualmente crítica, apesar de a 
legislação contemplar a proteção de suas margens e nascentes. A aplicação efetiva da 
lei, no entanto, esbarra em problemas de ordem social, como a freqüente ocupação das 
margens dos rios e córregos por favelas, ou em impedimentos econômicos, como os 
altos custos de intervençãoem áreas já totalmente urbanizadas. 
A despeito de tais limitações, ou acreditando poder superá-las no devido tempo, o Plano 
Diretor Estratégico do Município de São Paulo, em vigor desde 2002, estabelece, entre 
suas diretrizes, a implantação de parques e áreas verdes coincidindo com a chamada 
Rede Hídrica Estrutural, ou seja, os rios e seus afluentes de primeira, segunda ou 
terceira ordens. Ao longo desses cursos d’água pretende-se implantar “corredores 
verdes”, caso já exista rua ou avenida nas suas margens, ou então parques lineares, caso 
estejam desimpedidos. 
Os planos regionais, das subprefeituras, reforçam esta idéia, o que pode ser verificado 
nos quadros e mapas referentes à “Rede Estrutural Hídrica Ambiental” dos respectivos 
planos, que prevêem “caminhos verdes”, parques e mesmo sistemas de retenção de 
águas pluviais junto aos cursos d’água, nomeando os rios, córregos, ruas e avenidas 
onde serão implantados. 
Em que pese o mérito do princípio urbanístico de fazer coincidir parques e áreas verdes 
com a Rede Hídrica Estrutural, pelas vantagens paisagísticas e ambientais que acarreta, 
desperta a atenção a ausência, mesmo nos planos mais detalhados das subprefeituras, do 
que poderíamos aqui batizar como “Rede Hídrica Capilar”, ou seja, os cursos d’água 
sem qualquer expressão na paisagem, seja porque suas ínfimas dimensões os tornam 
imperceptíveis ao olhar de sobrevôo, seja porque a canalização e o tamponamento os 
eliminaram por completo da cena urbana. 
Os únicos planos que atendem a esses cursos d’água são os de infra-estrutura, que 
propõem, invariavelmente, sua canalização e tamponamento. Por força da urbanização 
há muito consolidada, é dado por inviável aplicar-lhes as restrições ambientais legais e, 
porque as oportunidades de intervenção parecem, à primeira vista, inexistentes, os 
programas de melhoramento da paisagem urbana nunca os contemplam. 
No entanto estas águas, embora ocultas, ainda “vivem”, e os indícios de sua existência 
podem estar num bueiro, por onde se as ouve e sente, ou em eventuais insurgências que, 
em geral por iniciativa de moradores das redondezas, são precariamente conduzidas 
para algum tanque improvisado, passando então a ser conhecidas como “minas d’água”. 
Em outros casos, o córrego clandestino é denunciado por um beco ou uma viela, quase 
sempre desertos, abandonados, encerrados pelas paredes de fundo das construções. 
Outras vezes, os vestígios são nesgas de terra, pequenas sobras de desapropriações para 
a tubulação do córrego, onde a vegetação cresce espontaneamente. Em situações mais 
felizes, os indícios podem estar numa área verde pública, em geral pequena e amorfa, a 
que se dá abusivamente o nome de praça, ou ainda em escadarias que, embora não 
coincidam com as margens ou com o leito dos cursos d’água, evidenciam as condições 
de um relevo acidentado, características das áreas onde se concentram as nascentes dos 
córregos, fazendo assim alusão a eles. 
Em áreas urbanas de ocupação já antiga e densa, tais índices ou pistas da existência de 
cursos d’água ocultados só podem ser percebidos pelo palmilhar cuidadoso, pelo olhar 
atento e pela interpretação dos vestígios, o que nem sempre, ou quase nunca, o ritmo 
cotidiano favorece. Devidamente alinhavadas, estas marcas materiais podem recontar a 
“história” dos córregos e torná-la concretamente disponível, ou seja, passível de ser lida 
e fruída nas práticas diárias que se dão sobre o espaço. 
Além dos planos de maior abrangência ou visibilidade, abre-se assim outra frente para o 
tratamento da questão das águas urbanas, que lida com situações menos óbvias, porém 
mais disseminadas, nisso residindo seu valor estratégico, pois se trata, antes de mais 
nada, de restabelecer, ou fundar sob novas bases, uma relação sensível, se não afetiva, 
com a Terra que está sob nossos pés e à nossa porta. Depois do estalo, do 
reconhecimento súbito da nossa cumplicidade com esta base material original, é que 
podem se desenvolver a consciência e, em seguida, atitudes ambientalmente 
conseqüentes em relação a ela. 
Mesmo que em regiões já muito comprometidas pela urbanização, as áreas de nascentes 
ou dos altos cursos dos córregos têm ainda funções ambientais a cumprir. Por menor 
que seja, é importante preservar a capacidade de recarga dos diminutos cursos d’água 
das micro bacias e, simultaneamente, aumentar o tempo de escoamento das águas para 
os canais principais, pelo incremento das superfícies de absorção e pelo uso de 
pavimentos drenantes ou superfícies rugosas, que contribuam para diminuir a 
velocidade dos fluxos, atenuando assim os efeitos das enchentes a jusante. 
Por estarem capilarmente embrenhados no território, estes veios menores, que passam 
despercebidos nos grandes planos, oferecem possibilidades de inserção mais efetiva no 
dia a dia dos habitantes. Por isso, uma vez devidamente tratados, podem favorecer o 
sucesso das ações locais e facilitar a gestão descentralizada do espaço urbano, sem 
prejuízo da necessária compatibilidade com os planos gerais. 
Dar significado a estes acidentes não se esgota, porém, na sua “recuperação” do ponto 
de vista ambiental, quando factível, nem na sua disponibilidade como espaços de 
circulação e recreação, nem na urbanidade que um eventual tratamento poderia lhes 
emprestar. Além desses efeitos, possíveis e até desejáveis, evidenciar o percurso dos 
córregos ocultados e atribuir-lhes valor é deixar ascender à consciência uma das 
experiências mais básicas e impregnantes do fazer humano: a relação direta com a 
matéria primitiva da Terra, que se tornou mundo habitável por este mesmo fazer, mas 
que o alto grau de transformações já operadas torna distante, quase extinta, e o afazer 
cotidiano embota. 
Alguns casos de córregos ocultos em áreas densamente urbanizadas 
Há inúmeros casos de cursos d’água capilares, anônimos e desaparecidos sob o chão das 
cidades, constituindo uma característica comum, pode-se dizer sem exagero, de 
praticamente todos os núcleos urbanos, por menores que sejam. Numa metrópole das 
proporções de São Paulo, como é de se esperar, esses casos se avolumam, fazendo com 
que qualquer intenção de estudá-los, reconstituir sua “história”, levantar os indícios 
materiais de sua existência e dar-lhes expressão na paisagem, requeira de início o 
estabelecimento de critérios para definir as situações espaciais convenientes para uma 
pesquisa voltada a este fim, assim como um recorte espacial o mais preciso possível. 
Quanto às situações espaciais, pode-se considerar, à primeira vista, que as mais 
convenientes, de acordo com o que foi exposto, sejam aquelas que já apresentam 
urbanização consolidada, com alto índice de ocupação do solo, passando por processo 
mais ou menos acelerado de transformação (verticalização, mudanças de uso do solo) e 
onde só restam vestígios pouco explícitos da existência do córrego, exigindo, portanto, 
o trabalho de decodificação, como o ensaiado para o córrego Água Preta, que atravessa 
os bairros da Pompéia, Vila Anglo-Brasileira e Vila Romana (2). 
Tais vestígios podem ser constituídos por pequenas áreas verdes públicas, em geral de 
formato irregular, distribuídas aparentemente ao acaso; por alargamentos inesperados 
dos passeios (normalmente parcelas de terrenos remanescentes dos trabalhos de 
canalização do córrego); pela presença de becos e vielas; pelos dispositivos para 
captação de águas pluviais com dimensões bem maiores que as usuais; pelo próprio 
relevo do terreno, ou o que dele restou. Enfim, interessam sobretudo as situações sobre 
as quais se diria, numa primeira impressão, não haver nada a fazer, ou seja, aquelas em 
que a “reaparição” do córrego é tida como impossível. 
Mesmo assim, há muitas situações com estas características, o que torna o assunto ainda 
excessivamente extenso e impreciso. A morfologia do relevo original oferece-se como 
outro critério que, sobreposto às condiçõesacima enunciadas, contribuiria para a 
delimitação mais nítida do objeto. Em topografia, complexa, com pequenos vales 
encaixados entre colinas declivosas, supostamente haveria maior número de 
ocorrências. A probabilidade da existência de indícios concretos do córrego oculto na 
paisagem aumentaria devido às próprias dificuldades impostas pelo relevo às obras de 
ocultação. 
Em regiões como as da Freguesia do Ó, Casa Verde, nos setores a cavaleiro da planície 
do rio Tietê, ou mesmo nas de Pinheiros, Lapa e Butantã, em seus trechos mais 
acidentados, com certeza haverá muitos casos para serem analisados. 
Mas situações interessantes também podem ser verificadas em terrenos planos, como os 
de Moema e Vila Olímpia, onde ocorrem recentes e rápidas alterações no uso e 
ocupação do solo, ou em áreas com menor dinamismo imobiliário, como as dos 
arredores do centro histórico. 
Há ainda casos de sobra de ocultação de cursos d’água nos bairros mais distantes do 
centro, onde ao arcaísmo do modo de ocupação e à precariedade das condições gerais 
do espaço se opõe, muito comumente, uma tecnologia bastante atualizada e até 
sofisticada, quando se trata de canalizar ou entubar rios e córregos e de abrir, ao longo 
deles, grandes eixos viários. Ou então, ainda nesses bairros, o córrego corre livre, mas 
degradado e estorvador a tal ponto que se torna inevitável e tristemente presente no 
cotidiano. Nestas situações, a obviedade da agressão não comporta a sutileza do enfoque 
aqui pretendido, que é o de revelar o insuspeitado ou o recalcado. 
Além do Água Preta, já referido, há vários outros casos a serem explorados nesta 
perspectiva de fazer aflorar, seja ao pé da letra, seja metaforicamente, as águas 
esquecidas. Basta percorrer algumas partes da cidade que conheceram valorização mais 
ou menos recente e passaram, ou vêm passando, por transformações de forte 
intensidade. 
Um deles é protagonizado por um afluente do ribeirão Uberaba, na região de Moema, 
mais especificamente, Vila Uberabinha. Não recebe denominação no Mappa 
Topographico do Município de São Paulo executado pela Sara Brasil, em 1930, e é 
apresentado como Sapateiro no levantamento realizado entre 1952 e 1957 pela Vasp – 
Cruzeiro do Sul, embora não se trate do mesmo Sapateiro que abastece o lago do Parque 
Ibirapuera. 
Em 1930, o córrego sem nome começava sua história junto aos trilhos do tramway de 
Santo Amaro, atual avenida Ibirapuera. As nascentes devem ter sido afetadas pela 
implantação da linha do bonde, mas um pequeno açude marcava o ponto de partida de 
um dos veios contribuintes deste curso d’água de pouco mais de um quilômetro de 
extensão. Prosseguia livremente pelas quadras pouco ocupadas situadas entre as ruas 
Rouxinol e Macuco, até a rua Tuim, e daí até a foz atravessava terrenos ainda não 
parcelados. 
Em meados da década de 1950, coincidindo com o leito do córrego, já estava traçada a 
avenida Ibijaú, entre as ruas Macuco e Rouxinol, não por motivos de engenharia de 
tráfego, pois não se colocavam problemas desta natureza na época, além de se tratar de 
via curta, com apenas três quarteirões, que encontra seu fim na rua Gaivota. A razão era 
possibilitar a criação de mais lotes, fechando o córrego e abrindo uma via sobre ele. 
Naquela época, até a rua Tuim, o percurso da água ainda se fazia por quadras semi 
ocupadas, mas, dali para frente, os terrenos antes vazios já estavam arruados em traçado 
bastante irregular, com vias terminando abruptamente na margem do córrego, como a 
Diogo Jacome, ou curvando-se e estreitando-se para atravessá-lo por uma ponte 
econômica, como a Marquês de Inhambuque, enquanto outras, curtas e angulosas, como 
a Visconde de Cachoeira, Araguari, Indiaroba, Bertran e a Travessa Professor Mário B. 
Capuani, evidenciam ainda hoje o esforço de adaptação ao contexto hidrográfico. 
Atualmente, nada mais lembra as nascentes do córrego, mas o trecho final da avenida 
Ibijaú apresenta uma larga faixa de recuo diante das casas construídas na margem 
esquerda, arrematada por uma pequena área verde ajardinada e equipada com bancos, 
numa referência, ainda que modesta, ao curso d’água que corre sob elas. 
Atravessada a rua Gaivota, outra pequena área verde, arborizada e de acesso público, dá 
continuidade ao tratamento reverente, que é logo em seguida interrompido pelos muros 
de condomínios de apartamentos. Só duas quadras adiante, as pegadas do córrego são 
novamente notadas, graças a uma viela estreita interligando as ruas Inhambu e Tuim, 
pavimentada com paralelepípedos de granito e arborizada, onde semanalmente se monta 
uma feira livre. O uso e o tratamento conferem a esta ruela um caráter especial, e de 
algum modo remetem à presença de algo não ordinário sob ela. 
Adiante, os vestígios do córrego desaparecem novamente, engolidos pelos lotes 
condominiais entre as ruas Tuim e Pintassilgo. Mas voltam em seguida, na forma de 
espaços livres enjeitados. De início é uma viela que nasce estreita, no ponto em que a 
rua Pintassilgo troca de nome e se torna Marquês de Inhambuque. Reveladora mudança 
de identidade, pois permite captar de novo as insinuações do curso d’água sob a viela 
que se alarga gradualmente até a rua Araguari. Dali à avenida Helio Pellegrino, seu 
destino final, o córrego prossegue pelo subsolo de um espaço mais aberto e luminoso, 
alvo, em algum momento, de certos cuidados, mas hoje em estado de abandono. 
A narrativa da água, porém, tem seqüência imediata, mas já se desenrola em cenário 
mais óbvio, interessando menos ao que se quer realçar aqui, embora ainda se trate de 
um ribeirão tido por morto e enterrado: o próprio Uberaba, agora mal dissimulado sob a 
avenida Helio Pellegrino. No entanto, nem percorrido um quilômetro, estas exéquias 
oficiais terminam e, no arruamento da Vila Olímpia, se perde a memória espacial do 
ribeirão. Só pela cartografia fica-se sabendo que ele corre sob a rua Caetano Velasco 
_curto traço de união entre as ruas Quatá e Casa do Ator_ e que, antes de chegar ao 
córrego da Traição (avenida dos Bandeirantes) pela rua Vicente Pinzon, a poucas 
centenas de metros do rio Pinheiros, o Uberaba atravessa, sempre por baixo, terrenos 
hoje vazios, por onde poderia respirar. 
Esta parte da cidade está em pleno processo de transformação, que teve início há poucos 
anos. No levantamento planialtimétrico e cadastral executado nos anos de 1970, o 
ribeirão ainda corria a céu aberto no meio das quadras, interrompia a continuidade da 
rua Casa do Ator, cruzava uma favela nas áreas atualmente desocupadas à espera de 
grandes empreendimentos imobiliários, e tinha a rua Vicente Pinzon como via marginal 
e não como tampa. Ainda mais significativo é constatar, pelo levantamento de 1952-
1957 da Vasp-Cruzeiro do Sul, que a rua Vicente Pinzon era então chamada alameda. 
Hoje, talvez nem sob aquela rua o córrego continue a passar, pois as obras de infra 
estrutura recém realizadas dão a entender que ele teve seu curso reorientado para 
desaguar diretamente no rio Pinheiros. 
As mudanças que ali se operam são vultosas, uma reviravolta urbanística envolvendo 
hotéis, edifícios de escritórios, agências bancárias, mas não se faz qualquer menção ao 
Uberaba, ou ao menos à sua memória, nos espaços abertos pela reurbanização. 
Outro caso é o de um contribuinte do rio Verde que, por sua vez, deságua no Pinheiros 
na altura da rua Gabriel Monteiro da Silva, depois de atravessar o terreno do Clube 
Hebraica. 
Este subafluente, sem nome e sem rosto, tem sua origem próxima à confluência das ruas 
Apinagés e Herculano, na divisa dos Campos da Escolástica com o Sumaré. Onde a 
avenida Heitor Penteado forma uma sela, ele a atravessa e segue pela rua Abegoaria, 
que o levantamento de 1930 nem registrava, mas que já aparece traçada no de 1952-
1957. Segue pela atual Medeiros de Albuquerque e, antes de cruzar as ruas Harmonia e 
Girassol, faz evoluções complicadas que dão forma ao labirintode vielas chamado 
“Beco do Batman”. Continua seu rumo entre as ruas Belmiro Braga e João Gonçalves, 
depois entre a Mateus Grou e a Fradique Coutinho, cruza em diagonal as quadras 
situadas entre esta rua e a Simão Álvares, emboca na Potiguar Medeiros, atravessa a 
avenida Rebouças e se lança no Verde, já no Jardim Paulistano. 
Nenhum sinal explícito deste córrego em seus três quilômetros de extensão, a não ser o 
rio em que a rua Abegoaria se transforma em dias de chuva muito forte, ou quando 
rompe a galeria que aprisiona o curso d’água, ou então as inundações, até há pouco 
desastrosas, na parte baixa das ruas Harmonia, Girassol e Fidalga. 
Ele não aparece, mas deixa impressa sua marca em alguns espaços livres, como nas 
chamadas praças Jacques Bellange e General Oliveira Álvares, que ladeiam a rua 
Abegoaria na confluência com a João Moura; na pequena praça José Afonso de 
Almeida, quando o córrego deflete para a rua Medeiros de Albuquerque; na notável 
irregularidade das duas extremidades desta rua, cujos traços pitorescos estão 
desaparecendo por conta de iniciativas de administradores muito mais ciosos em 
disciplinar o tráfego e o estacionamento de veículos do que em valorizar as 
singularidades da paisagem urbana; no já referido “Beco do Batman”; na viela entre as 
ruas Harmonia e Girassol; nas nesgas de espaços livres entre as ruas Girassol e Fidalga 
e na rua Belmiro Braga. 
Alinhavando só estes pontos eminentes, tem-se um percurso de mais de um quilômetro, 
ao longo do qual intervenções sensíveis à presença do córrego poderiam requalificar o 
seu leito, seja em sentido figurado, quando não houvesse alternativa, seja expondo-o 
expressamente, o que poderia ser tentado na rua Abegoaria, cuja galeria passa 
continuamente por reformas. 
A lista de casos é extensa, mas caberia ainda citar o do ribeirão do Bexiga, formador do 
Anhangabaú, como o Saracura e o Itororó, mas menos famoso e mais esquecido. Na 
Planta da Cidade de São Paulo de 1868, o ribeirão está representado com suas nascentes 
próximas à atual confluência das ruas Pedroso e Rui Barbosa. Na de 1881, já se 
encontram mais abaixo, na altura de onde se daria mais tarde o cruzamento da rua 
Humaitá com a avenida Brigadeiro Luís Antônio. Na Planta Geral da Capital, de 1897, 
não comparece mais, pois já era tubulado. Mas basta percorrer a Travessa dos 
Arquitetos, a rua Fortaleza, a rua Humaitá, para pressenti-lo. 
O impacto do viaduto Júlio de Mesquita corta abruptamente a leitura do percurso e o 
muro alto que fecha o terreno vazio entre as ruas Abolição e Jaceguai, onde se quer 
construir um shopping center, impede o acesso à rua Japurá, um recanto muito 
agradável, por onde o Bexiga continua até chegar no Anhangabaú, na altura da praça da 
Bandeira. A seqüência, no entanto, poderia ser recuperada e qualificada, vivificando a 
lembrança do ribeirão. 
Provavelmente não haja bairro em São Paulo, e em outras cidades, que não ofereça 
casos e oportunidades semelhantes para reavivar a memória destas águas 
desprestigiadas porque não têm nome, ou porque ele já foi esquecido. 
Diferentes possibilidades se abrem, portanto, para a intervenção sobre os vários 
fragmentos de espaço, verdadeiros índices da presença de cursos d’água, com vistas à 
sua integração e à constituição de uma narrativa que recupere a história dos córregos 
ocultos. 
O primeiro passo pode consistir simplesmente numa caminhada, real ou virtual, pelo 
vale do rio desaparecido. Já se tem notícias de experiências neste sentido, como as 
realizadas pela organização canadense denominada Lost River Walks, que mantém sites 
informativos sobre os rios escondidos sob a trama urbana de Toronto, e organiza 
caminhadas ao longo dos seus cursos. 
Mas há também um recurso a ser explorado que, afora ser valioso por si próprio, pode 
contribuir de um modo particularmente eficaz para a revelação da presença dos córregos 
ocultos ou para a recuperação de sua memória: a arte pública nas suas mais diversas 
manifestações, que incluem a arte ambiental, a land art, as performances e as 
instalações. 
Presume-se que a reconstrução da carga simbólica dos cursos d’água tenderá a influir 
em novas disposições e formas de apropriação dos espaços a eles relacionados e, assim, 
aumentar o interesse pela sua recuperação. 
Intervenções artísticas in situ podem, portanto, favorecer a conscientização sobre a 
importância dos córregos na cidade, seja porque são portadores de valores ambientais 
em senso estrito, seja porque propiciam a constituição de uma rede de caminhos que, 
convenientemente tratados para permitir sua apropriação positiva pelos moradores como 
locais de convívio, contemplação e deambulação, venha conectar diferentes espaços 
urbanos. 
Trazer à consciência coletiva a existência dos córregos ocultos, é um dos passos 
possíveis, senão uma condição indispensável, no sentido de reverter a comum 
associação dos rios com aspectos negativos como esgotos, lixo, inundações, e de abrir 
frentes para ações concretas sobre o espaço, pelo tratamento criterioso dos espaços 
livres e dos caminhos que os interligam; pela atenuação do impacto visual dos muros; 
pelo aumento da permeabilidade do solo nos becos e vielas; pela valorização das 
escadarias, das insurgências e mesmo dos bueiros, que não deixam de ser frestas por 
onde também se anuncia, embora pelo avesso, a presença da água. 
notas 
1 
Artigo originalmente publicado na Revista USP, n. 70 – Dossiê Água, 2006, p. 88-97, e 
revisado em 2009. 
2 
A respeito do córrego Água Preta, ver o seguinte artigo: BARTALINI, Vladimir. “Os 
córregos ocultos e a rede de espaços públicos urbanos”, in Pós – Revista do Programa 
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU-USP, no 16, dez. 2004, p. 82-
96. 
 
Palcos e bastidores 
Ainda sobre córregos ocultos 
Vladimir Bartalini 
 
 
Introdução 
Em São Paulo, hoje, há uma infinidade de pequenos córregos, muitos deles anônimos, 
que, devido aos procedimentos de praxe adotados em obras viárias, de drenagem ou de 
saneamento, praticamente não fazem mais parte da paisagem urbana. Por conseqüência, 
não encontram lugar na consciência atual nem na memória, embora sua existência 
subterrânea se expresse na superfície sob a forma de becos, vielas, escadarias, 
fragmentos de áreas livres e até de insurgências de água. 
Isto também ocorre em muitas cidades brasileiras. É importante, porém, diferenciar a 
situação que se pretende tratar aqui dos casos em que a canalização deu lugar a grandes 
eixos viários pois, nestas circunstâncias, as marcas dos rios tamponados ainda 
funcionam como guias para a leitura da paisagem – mesmo que sob a forma de canteiros 
centrais ou taludes laterais ajardinados ou arborizados. 
Referimo-nos, ao contrário, a situações em que a existência dos córregos é apenas 
sugerida pelos seus vestígios, dispersos no espaço e diversos na forma. Pode-se passar 
constantemente pelos lugares atravessados pelos córregos, pode-se até morar em suas 
proximidades, sem se dar conta de que, sob variados disfarces, ali existe um curso 
d’água. Revelar sua existência a partir destes indícios – que normalmente escapam ao 
olhar comum, à cartografia convencional e às fotografias aéreas, e que só o palmilhar 
acurado do território pode recuperar – demanda um trabalho semelhante ao do 
arqueólogo ou do detetive que, a partir da espreita dos movimentos e da observação de 
fragmentos, busca esclarecer ou reconstituir uma cena ou um contexto. 
Dentre os inúmeros casos de cursos d’água capilares, anônimos e sumidos de vista, 
despertam interesse aqueles situados em áreas já consolidadas, de ocupação antiga ou 
que venham sofrendo rápidas transformações a ponto de só restarem vestígios pálidos 
da existência do córrego, exigindo, portanto, maior esforço de identificação. E, 
particularmente, interessam os que concorrem para a formação de elementos 
valorizados da paisagem urbana, como os lagosnos parques públicos, sem que esta 
contribuição seja conhecida ou reconhecida. 
Os casos a serem expostos aqui referem-se a dois parques municipais de São Paulo – 
Ibirapuera e Aclimação – ambos contando com lagos que constituem importantes focos 
de atração, embora os córregos formadores não compartilhem igual notoriedade, nem 
sejam aproveitados como opções de acesso de pedestres e ciclistas àqueles 
equipamentos públicos. Os bairros em torno destes parques – Vila Mariana, Vila 
Clementino, Aclimação, Paraíso, Cambuci – estão expostos às pressões por mudanças 
no uso e na ocupação do solo, sem que os córregos que os atravessam estejam 
contemplados por uma política de integração à paisagem ou de valorização enquanto 
percursos alternativos e reveladores das sutilezas das formas urbanas. Tampouco se nota 
atenção para as oportunidades de conexão física entre os dois parques por meio dos 
vales dos cursos d’água formadores dos lagos do Ibirapuera e da Aclimação, 
aproveitando as declividades mais suaves proporcionadas pelo embate milenar dos rios 
com o relevo. Caso isso fosse considerado, seria possível formar um tecido conjuntivo 
múltiplo, intrincado e variado como a própria rede capilar de drenagem em que se apóia, 
interligando comodamente equipamentos públicos de maior porte, uma vez vencidos, 
com alguma astúcia, os divisores de água que os separam. 
Entende-se que trazer à luz fatos espaciais ocultados do olhar ou recalcados na memória 
coletiva, pondo à mostra o avesso do tecido, permita o reconhecimento e uma efetiva 
assunção dos espaços associados à rede capilar dos córregos urbanos. O trabalho de 
revelação, ou reapresentação dos córregos ocultos, justifica-se assim não somente pelo 
efeito simbólico da operação, mas também pela possibilidade desta rede vir a constituir, 
através de seus elementos devidamente trabalhados, mais uma das camadas ou estratos 
disponíveis para as múltiplas associações que as práticas cotidianas não cessam de criar. 
Deste modo, atualizam-se na mesma manobra tanto o prazer desinteressado que pode 
advir da compreensão da base física primordial dos sítios, pela exposição da morfologia 
do relevo e da hidrografia, ou das respostas inusitadas e pouco convencionais que uma 
urbanização peculiar imprime na paisagem, quanto a apropriação prática, por pedestres 
e ciclistas, de caminhos alternativos no interior de uma trama cuja racionalidade se 
apóia quase que exclusivamente na fluidez dos deslocamentos motorizados. 
Sapateiro, Curtume ou Matadouro – um corpo fora de cena 
O córrego do Sapateiro, que também já foi chamado do Curtume ou do Matadouro, tem 
suas nascentes no bairro de Vila Mariana, próximo à antiga estação dos bondes, na rua 
Domingos de Moraes. Junto às suas cabeceiras, situadas a oeste do espigão que separa 
as águas do Pinheiros das do Ipiranga, a principal referência urbana atual é a estação 
Vila Mariana do Metrô. 
As nascentes, hoje não mais acessíveis, localizam-se na quadra formada pelas ruas 
Domingos de Moraes, Carlos Vitor Cocozza, Lutfala Salim Achoa (rua Um, no mapa do 
Sistema Cartográfico Metropolitano da Grande São Paulo, vôo atualizado em 1974) e 
Capitão Cavalcanti. O relevo é particularmente acidentado nos primeiros500 metrosdo 
alto curso do córrego, fato que a declividade e o traçado irregular e sinuoso das ruas 
confirmam. 
 
Quadra onde se situam as nascentes do Sapateiro. Em destaque, o beco na rua Lutfala 
Salim Achoa, altura do no 41, primeiro indício da presença do córrego no espaço 
público, e o espaço livre, em forma de adro, no fim da rua Lutfala S. Achoa 
A primeira manifestação, embora indireta, da existência do córrego na região das nascentes 
ocorre em um beco curto e fechado, que dá para a rua Lutfala Salim Achoa. O curso d’água 
prossegue por esta rua, atravessa a Capitão Cavalcanti e, depois de cruzar, sempre 
subterrâneo, um espaço aberto, de acesso público, com o formato de um adro, adentra a 
quadra do colégio Madre Cabrini, contornando os fundos dos lotes da rua Frontino Guimarães 
e da vila que leva o nome de Irmã Efigênia, situada em cul-de-sac na extremidade leste 
daquela rua. Os vestígios, sempre indiretos, de sua passagem voltam a se expressar na 
paisagem no ponto mais baixo da rua Coronel Lisboa, no encontro com a rua Pedro Morganti, 
onde se forma outro espaço em forma de adro. 
O trecho inicial, das nascentes à rua Coronel Lisboa, apresenta várias situações de 
interesse do ponto de vista da ocupação do solo e do traçado viário, pois elas ainda 
guardam as peculiaridades das soluções que respondem de perto aos condicionantes do 
terreno natural. Tais características se tornam ainda mais interessantes quando 
comparadas ao modo convencional, indiferente ou agressivo à paisagem com que o 
mercado imobiliário vem atuando na região. Chama também a atenção a diversidade de 
usos do solo, principalmente pela presença de várias instituições de ensino e pelo 
irromper de pontos de comércio e serviços relativamente animados, num meio em que 
predominam as residências. Estas são na maior parte unifamiliares, no geral modestas e 
em bom estado de conservação, sobressaindo algumas delas como testemunhos 
evocatórios dos tempos de um bairro em formação. 
As marcas iniciais da urbanização continuam impressas na paisagem do lugar que, já 
avançada a terceira década do século XX, era ainda pouco ocupado, configurando um 
grotão quase vazio, circundado por um anel de construções alinhadas ao longo das ruas 
França Pinto, Domingos de Moraes, Tangará e do feixe formado pela Sena Madureira, 
Capitão Macedo e Pinto Ferraz (atual Madre Cabrini), a separá-lo dos vazios mais 
vastos dos campos do Ibirapuera, a oeste, das encostas do ribeirão Ipiranga, a leste, e do 
loteamento de Vila Clementino, ao sul. 
Eram poucos e dispersos os lotes edificados nas ruas já abertas no interior deste anel, 
observando-se maior adensamento nas ruas Tomás Alves e Major Maragliano e na 
confluência desta com as ruas Capitão Cavalcanti e Álvaro Alvim. As ruas Araxá (atual 
Sud Menucci) e Frontino Guimarães eram praticamente desertas. 
As cartas do Mappa Topographico do Município de São Paulo, elaboradas pela empresa 
Sara Brasil, em 1930, mostram ainda, no ponto correspondente ao atual encontro das 
ruas Pedro Morganti e Coronel Lisboa, uma barragem do córrego, formando um 
pequeno açude, que já comparecia na Planta Geral da Capital de São Paulo, organizada 
por Gomes Cardim em 1897, porém não mais no Levantamento Aerofotogramétrico do 
Município de São Paulo, executado pela Vasp / Cruzeiro entre 1952 e 1957. 
 
Hoje não há qualquer indício espacial da antiga lagoa, pois sobre ela construíram-se as 
casas existentes entre as ruas Coronel Lisboa e Rio Grande. Porém, atravessada a 
Coronel Lisboa, depara-se, a montante, com a área em adro, já referida, que é um 
remanescente do espaço aberto associado ao boqueirão. 
O córrego do Sapateiro, ao sair da quadra formada pelas ruas Capitão Cavalcanti, Madre 
Cabrini e Coronel Lisboa, passa sob o leito da rua Pedro Morganti e prossegue sob a 
Mário Cardim até o complexo viário chamado “cebolinha” (que interliga as avenidas 
Ibirapuera, Rubem Berta e a rua Sena Madureira), onde recebe, sem que a urbanização 
tenha concedido sequer uma referência a este acidente, um importante afluente pela 
margem esquerda. Com o caudal assim aumentado, vai formar a seqüência de lagos do 
parque Ibirapuera. 
Mas antes dos lagos, e antes mesmo da foz do tributário, o Sapateiro deixa outros 
rastros da sua existência. O mais evidente é o “largo” que a rua Mário Cardim forma no 
cruzamento com a rua Rio Grande. Embora de pequenas dimensões e sem denominação 
própria, é um espaço que se destaca pela arborização e pelos canteiros arbustivos. O 
largo está ainda ladeado, na “margem” direita, pelas vilas Henrique Machado e 
Francisco Bibiano, hoje cercadas, mas que, em outros tempos, abriam-se diretamente 
para ovale. Sua origem deve estar associada à fábrica da Palmolive, estabelecida na rua 
Rio Grande. As casas que as compõem estão bem mantidas e os espaços livres comuns 
são convidativos e acessíveis sem qualquer constrangimento por qualquer pessoa, 
apesar das grades e do portão que os separam da rua Mário Cardim. 
Provavelmente por conta do baixo trânsito de passagem de veículos e da favela que há 
tempos se formou na área situada entre as vilas citadas e a rua Uruana, a rua Mário 
Cardim (vale dizer o leito do córrego) é a que apresenta maior concentração de pessoas 
usufruindo o espaço público o qual, no caso, limita-se às calçadas e ao próprio leito 
carroçável. Valeria a pena aprofundar a pesquisa neste trecho específico da bacia do 
Sapateiro, visando relacionar a história da ocupação e da urbanização da área, a 
apropriação atual e a percepção das características paisagísticas do lugar por parte 
daquela comunidade. 
A dinâmica imobiliária do bairro torna também urgente a divulgação das peculiaridades 
do sítio e a identificação das oportunidades de enfatizá-las, como tentativa de evitar a 
camuflagem das suas singularidades pelas soluções convencionais de reciclagem urbana 
e seu conseqüente apagamento da memória. Uma destas situações ocorre na rua Rio 
Grande, na altura da Álvaro Alvim, em imóvel hoje desocupado, outrora industrial, a 
cavaleiro da antiga favela já urbanizada junto ao vale. 
O Sapateiro segue seu percurso, continuamente subentendido no traçado da rua Mário 
Cardim a qual, à medida que se distancia da antiga favela, passa a assemelhar-se, no 
aspecto e na pacatez, a outras tantas ruas do bairro, com suas residências unifamiliares, 
vilas fechadas, travessas e pequenas praças. 
Ao atravessar a rua Tangará inflecte à esquerda, buscando o ponto baixo onde deságua o 
afluente que vem da Vila Clementino. Contorna assim a pequena elevação constituída 
na confluência dos dois cursos d’água sobre a qual foi inaugurado, em 1887, o 
matadouro da Vila Mariana, presentemente sede da Cinemateca Brasileira. 
É neste ponto que se situa o maior conjunto de espaços livres e áreas verdes do bairro, 
constituído pelo largo Senador Raul Cardoso, esplanada ampla, plana, em frente ao 
antigo matadouro, mas com uso limitado a estacionamento de veículos, e pelos taludes 
arborizados no que restou das encostas do vale contíguo, aos quais se deu o nome 
oficial, e abusivo, pois não se configuram como tal, de “praça” Kenichi Nakagawa. 
 
 
Por sua vez, o afluente do Sapateiro que nasce na Vila Clementino deixa marcas menos 
evidentes na paisagem, a não ser na época das chuvas, quando provoca inundações. O relevo 
ali é mais suave e é preciso estar bem atento aos detalhes para ler o percurso do córrego. 
A região das nascentes, grosso modo delimitada pelas ruas Sena Madureira, Mairinque, 
Diogo de Faria e Coronel Lisboa, é bem menos expressiva que a do curso principal do 
Sapateiro, tanto nas feições da topografia original, quanto nas características 
paisagísticas resultantes da urbanização. 
Afora o Liceu Franco Brasileiro, hoje Liceu Pasteur, principal referência na quadra onde 
se situam as nascentes, as vilas existentes nas ruas Mairinque e Coronel Lisboa são os 
únicos diferenciais no projeto convencional do loteamento a marcar o lugar de origem 
do córrego. As da Coronel Lisboa fazem-no com maior ênfase por se localizarem no 
eixo da rua Estado de Israel, ainda chamada do Tanque no levantamento de 1930. 
Esta é de fato uma rua em talvegue até cruzar com a Botucatu, ponto em que o curso 
d’água deflete para a esquerda, internando-se nas quadras entre as ruas Estado de Israel 
e Diogo de Faria. Justamente na esquina das ruas Estado de Israel e Botucatu situa-se 
hoje a Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal de São Paulo, mas a possível 
vantagem do uso institucional não se realiza em proveito da revelação do percurso do 
rio. A mesma indiferença ocorre duas quadras abaixo, quando o córrego volta a cruzar a 
rua Estado de Israel, já na esquina com a Leandro Dupré, altura em que se instalaram, à 
margem direita, o Comando do 8oDistrito Naval da Marinha do Brasil e, contíguo a ele, 
o Clube Adamus de Voleibol. 
São assim muito sutis os vestígios deixados pelo córrego afluente, só adivinhados pelos 
dispositivos anti-enchentes, alguns até criativos, adotados pelos moradores mais 
afetados por elas, e mal pressentidos nas pequenas excepcionalidades do traçado viário, 
ocupação e uso do solo. 
A rua Manuel Cebrian Ferrer é um destes sinais. Curta, estreita e encurvada, contrasta com a 
malha hipodâmica característica da Vila Clementino, deixando evidente que foi aberta para 
encerrar o córrego em época mais recente, pois ainda não existia no levantamento de 1952-
1957, só comparecendo, com o nome de Travessa Botucatu, na carta da década de 1970. O 
córrego continua pelo terreno atualmente usado como estacionamento de veículos, assim que 
atravessa a rua Napoleão de Barros. 
Caminhando a jusante, sobressai a praça Manuel Vaz de Toledo – a rigor uma faixa estreita, 
declivosa, coberta de eucaliptos, na rua Estado de Israel, entre as ruas Napoleão de Barros e 
dos Otonis – como outra reminiscência do vale original, correspondendo a um trecho de 
encosta da margem direita do córrego afluente do Sapateiro. Mas as construções ao longo da 
Estado de Israel interpõem-se entre ela e o córrego, dificultando a associação. Novamente 
algumas ocupações atípicas e a recorrente presença de “lava rápidos” e estacionamentos de 
veículos fazem pressentir a presença do córrego. 
 
Estacionamento sobre o córrego, Rua Manuel Cebrian Ferrer 
Foto Vladimir Bartalini 
 
“Praça” Manuel Vaz de Toledo 
Foto Vladimir Bartalini 
Por fim, o curso d’água deixa o interior das quadras, cruza a Estado de Israel e completa seu 
trecho final, antes de embocar no Sapateiro, beirando a rua atualmente denominada Doutora 
Neide Aparecida Sollito, antes conhecida como rua das Mangueiras. Ali se destaca outro 
agrupamento de habitações irregulares e precárias, tipo de uso e forma de ocupação que, pela 
frequência da associação, também acusa a existência de um córrego, mesmo que não 
explicitamente. O deságue no Sapateiro se dava na região hoje ocupada pelo complexo de 
viadutos conhecido como “Cebolinha”. 
Já encorpado pelo contribuinte da margem esquerda, o Sapateiro prossegue sob o complexo 
viário que interliga as avenidas Ruben Berta, Pedro Álvares Cabral, Quarto Centenário e Sena 
Madureira, desembocando, às escondidas, no parque do Ibirapuera. Vem a público sob a 
forma de um lago, depois da assepsia que a urbanidade e o pudor impõem, como se tivesse 
surgido do nada e não das nascentes escondidas no interior de loteamentos prosaicos da Vila 
Mariana e da Vila Clementino, nem atravessado, sempre oculto, as ruas e quadras daqueles 
bairros. Consumado o espetáculo, retira-se, tão discretamente quanto entrou, tubulado sob a 
avenida Juscelino Kubitschek até sua foz, no rio Pinheiros. 
 
Córrego do Sapateiro atravessando subterrâneo a cerca do Parque Ibirapuera 
Foto Vladimir Bartalini 
 
Córrego do Sapateiro despontando no lago do Parque Ibirapuera 
Foto Vladimir Bartalini 
Os córregos formadores do lago do parque Aclimação estão representados, embora não 
nomeados, na Planta Geral da Capital de São Paulo de 1897. São eles: Aclimação e 
Pedra Azul, que passa a se chamar Cambuci, a jusante do lago. Ambos, mais um 
afluente da margem esquerda do Pedra Azul, definem o acidente topográfico que, ainda 
na carta de 1930, era denominado Morro da Aclimação, anteriormente conhecido como 
Morro Vermelho, um esporão formado no principal divisor de águas do sítio urbano de 
São Paulo, num trecho de aproximadamente800 metrosentre as atuais estações Paraíso e 
Vila Mariana do Metrô. 
Ali também está representado, nas terras que então pertenciam a Carlos Botelho, o lago 
em torno do qual gravitaram as atrações que, desde os fins do

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