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Sabores do Brasil 95 Alice Mesquita de Castro O sabor do cerrado Cheire, prove, sugue, ame. 96 Textos do Brasil . Nº 13 A desconhecida culinária do cerrado exi-ge disposição e nenhum preconceito. Quem se arrisca, não se arrepende. As árvores tortas, com jeito de que cresce- ram sem água em uma das regiões semi-áridas do Nordeste, podem dar a impressão de que estamos em uma terra seca, órfã de vida, cores e sabores. É um engano dos desavisados. A flora do cerra- do, que ocupa 25% do território nacional, é uma das mais ricas do Brasil. Devido à sua localização central, o cerrado tem espécimes encontrados na maioria dos biomas brasileiros (Floresta Amazô- nica, Caatinga e Mata Atlântica). Tem uma bio- diversidade tão variada e particular que ficamos com vontade de realmente desvendar seus segre- dos. Na culinária, então, eles são muitos. No Nordeste, há frutos exóticos como a graviola e o umbu. No Sul, a diversidade das uvas e os marmelos, por exemplo, chamam sem- pre a atenção. No Norte do País, o açaí se tornou produto de exportação de sucesso, tal a pecu- liaridade do seu sabor, textura - e que linda cor. Nessa área que ocupa o Brasil central (Goiás, To- cantins, Mato Grosso do Sul, a região sul de Mato Grosso, o oeste e o norte de Minas Gerais, o oeste da Bahia e o Distrito Federal), a impressão é de que o estranhamento dos leigos sobre as frutas locais é ainda maior. Quem já ouviu falar de pe- qui, sabe alguma coisa além de que, se mordido errado, ele é capaz de fazer um tapete de espi- nhos da sua língua à garganta? Pois é. O licor de pequi já é exportado para o Japão. A amêndoa do baru (Baru? Alguém sabe o que é isso?) é objeto de desejo na Alemanha. O Caryocar brasiliense Camb, ou pequizeiro, pode medir até dez metros de altura. Tem frutos de casca esverdeada e polpa amarela. A polpa, a parte que mais se utiliza na cozinha, é a base dos pratos mais populares da culinária goiana: o ar- roz com pequi, o frango com pequi e guariroba. O pequi tem características únicas. Seu in- terior é repleto de milhares de minúsculos espi- nhos e é preciso ser muito cuidadoso ao comê-lo. É preciso raspar sua polpa com os dentes. Se for mordido, os espinhos colam desagradavelmente em toda a boca. Eu sei do que estou falando. Nos anos 80, durante um almoço na casa de uma amiga, fui uma das vítimas do poder do pequi. Sim, já ha- viam me dito que era preciso raspar os dentes na polpa, que não deveria mordê-lo, mas, na prá- tica, a coisa é ainda mais difícil. Eu achava que estava fazendo tudo certo, quando, de repente, senti a língua arder como se houvessem me fei- to beber ácido. Da casa da amiga, fui direto para a cadeira do dentista – que passou uma hora e meia pinçando os espinhos um a um com o au- xílio de uma lupa. Senti os efeitos da minha bo- bagem por ainda mais dois meses. Volta e meia, acordava com uma sensação estranha na boca. Era ele, o pequi. Há um folclore de que o goiano aprovei- ta o desconhecimento de quem é de fora para se divertir com os acidentes causados pelo fruto. Goianos adoram acompanhar as reações às pri- meiras mordidas. É ali que se define quem enten- de ou não da coisa. Quem é do ramo costuma aconselhar a in- gestão de uma colher de azeite de oliva nesses casos. O azeite teria a propriedade de amolecer os espinhos, que, assim, podem ser retirados sem tanto sofrimento para o incauto mordedor. O pequi presta-se a inúmeras preparações. Uma das mais interessantes é o licor feito com calda de açúcar e infusão do fruto em álcool de cereais. Mas nem só de pequi vive o cerrado. O araticum, o buriti, o murici, o cajá, a mangaba, a cagaita também apresentam teores de vitami- nas do complexo B, tais como as vitaminas B1, Sabores do Brasil 97 Pequi. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva 98 Textos do Brasil . Nº 13 Buriti. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva Sabores do Brasil 99 B2 e PP, equivalentes ou superiores aos encon- trados em frutas como o abacate, a banana e a goiaba, tradicionalmente consideradas boas fon- tes dessas vitaminas. O Ministério da Saúde tem estimulado a implementação de programas de educação alimentar para incentivar o consumo de produtos ricos em vitamina A e em outros nu- trientes. E aí estão os frutos do cerrado prontos para serem largamente utilizados. Uma das frutas típicas do cerrado que hoje começa a ser conhecida é a cagaita (Eugenia dy- senterica DC ), parente distante da pitanga. É ar- redondada e tem uma cor amarela suave. De fina casca, tem um sabor ácido e é bastante suculenta, apresentando cerca de 90% de suco em seu inte- rior. Apesar de tantas virtudes, a cagaita deve ser apreciada com moderação. Em excesso, ela pro- voca um mal-estar semelhante ao da embriaguez. Sem ressaca no dia seguinte. Não é incrível? E o buriti? Em Brasília, a sede do governo do Distrito Federal recebeu o nome de Palácio do Buriti em homenagem a essa planta típica da região. Suas fo- lhas, em forma de leque, são brilhantes e enormes. Os frutos são consumidos pela população, princi- palmente na forma de sucos e doces caseiros. A polpa fresca ou congelada é aproveita- da para a elaboração de doces, sorvetes, cremes e compotas. O óleo da polpa serve como tempero na cozinha e base para se fazer sabão. Já as folhas maduras podem ser aprovei- tadas na cobertura de casas rústicas do interior e as folhas novas na confecção de redes, chapéus e balaios. No cerrado brasileiro a estrela do momen- to é a castanha do baru, também conhecido por diversos nomes como cumbaru, barujo, coco-fei- jão e cumarurana. O barueiro produz de 500 a 3.000 frutos por planta, com tamanho variando de 5 a 7 cm de comprimento por 3 a 5 cm de diâmetro. A cor da casca, quando maduro, é amarronzada, assim como a polpa. Cada fruto possui uma amêndoa de cor marrom, rica em calorias e proteínas. Eu costumo usar o baru em receitas como Doce de Leite com Baru e Pesto de Baru. Seu gosto é pa- recido com o do amendoim, mas um pouco mais suave ao paladar. Os frutos do cerrado sempre nos surpreen- dem! Há algum tempo comprei farinha de jatobá em uma fazenda no interior de Goiás. Levei para casa e deixei armazenada para logo fazer alguns pães e biscoitos. Após alguns dias, um forte chei- ro se espalhou pela cozinha afastando qualquer pessoa do local. Aprendi que a farinha de jatobá precisa ser guardada na geladeira e por muito pouco tempo. O odor característico tende a au- mentar com a fermentação natural da farinha. Os moradores da região apreciam bastante tanto o mingau quanto o pão de jatobá. Da família da pinha, ata e fruta-do-conde é o araticum, cuja casca é mais dura e o sabor bem pronunciado. Quem ainda não provou, não sabe o que está perdendo... Guariroba, não gororoba! A guariroba é uma espécie de palmeira que pode atingir até 20 metros de altura. Suas folhas podem alcançar até três metros de comprimento. O fruto é dado em cachos, de coloração verde- amarelada, com uma amêndoa branca oleagino- sa comestível. Ela é o principal ingrediente dos recheios dos saborosíssimos empadões goianos. Até o final do século 19, a farinha de trigo encontrada no Brasil era importada. Mesmo as- sim, o empadão já era considerado uma iguaria brasileira. A massa original levava farinha de tri- go, banha de porco, sal e ovos. O recheio levava queijo, ovos cozidos, azeitona, pimenta-de-cheiro, carne de porco em pedaços, coxa de frango inteira, pedaços de lingüiça e guariroba. Todos os ingre- 100 Textos do Brasil . Nº 13 Araticum. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva Sabores do Brasil 101 dientes eram levados ao fogo para dourar e adqui- rir a consistência de molho. Assava-se em formas de barro, com 38 centímetros de diâmetro. Naquela época, ninguém ousava engrossar a mistura com batata – algo que só foi introduzi- do nos modos de preparar o empadão na década de 30. Somou-se a ele também o tomate. De acor- do com os registros históricos, foi a guariroba que deu “sustância” aos bandeirantes que des-bravaram Goiás. Deve-se a um deles a idéia de juntar a guariroba ao recheio do empadão. Aliás, guariroba é conhecida por palmito amargo, para ficar mais sofisticado. Depois de 12 anos, trabalhando, provan- do, comendo, gostando, fazendo propaganda das frutas do cerrado, digo com propriedade: jo- guem-se na culinária do centro-oeste! Ela é ainda pouco conhecida, pouco explorada, mas, como um país distante, é cheia de segredos e surpre- sas. Eu me arrisco sempre. E, de fato, nunca me arrependo. Alice Mesquita de Castro Proprietária do Restaurante Alice, em Brasília Baru. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva