Prévia do material em texto
7 Aconselhamento nutricional versus prescricao MARIANA LILIAN, PRISCILA SATO, MARLE ALVARENGA, FERNANDA SCAGLIUSI Aspectos como prefer~ncias, cultura, tradic;oes familiares, experiencias, disponibilidade e custo dos alimentos, bem como fun~oes de mastiga~ao, digestao e abson;ao afetam o que uma pessoa come.1 Alem disso, atualmen- te, diversos discursos diferentes (como o medico, publicitario, estetico e tradicional, entre outros) competem para regrar a alimenta~ao das pesso- as.1 ~ im, escolher "o que comer" pode nao ser uma decisao facil (Capi- tulos 2 e 3). Considerando-se o cuidado nutricional, sabe-se que o nutricionista nao tem (ou nlo deveria ter) o papel de "calculador de dietas" ou de "de- terminador" das escolhas alimentares. No entanto, apontar um "erro na dicta", dizer que o individuo tern uma "alimenta~io errada'' ou que "con- fessa comer doces" sio exemplos de expressoes cotidianas que podem sugerir uma postura impo1itiva. Ainda assim, sabe-se que dietas meticu- losamente cakuladas, inf~Oes basicas de nuni~io e listas de alimen• tos substitutos podem nlo garantir, necessariamente, comprometimento das pessoas. nem sua mudan~a de comportamento. Consequentemente, e importante que os profissionais da area ampliem sua visao sobre nutri~i.o t! adquiram mais habilidades terapeuticas para lidar com quern os procu- ram (Capitulos 8 e 9). • NUTRICAO COM POR TAMENTAL 0 ACONSELHAMENTO NUTRlCIONAl Nesse cenario, destaca-se o aconselhamento nutricional (AcN). Se- gundo Motta.3 o AcN pode ser definido como "um encontro entre duas pessoas para examinar com atern;ao, olhar com respeito, e deliberar com prudencia e justeza sobre a alimentac;ao de uma delas". Trata-se de um processo para facilitar a evolu~a.o de outra pessoa, auxiliando-a a resolver dificuldades alimentares e a potencializar seus recursos pessoais por meio de estrategias individualizadas que estimulem a responsabilidade para o autocuidado.• 0 processo do AcN se fundamenta na enfase das vivencias associadas ao comer, hem coma nos pensamentos e perce~oes de quern se esta aconselhando. Assim, combina conhecimentos nutricionais e habi- lidades terapeuticas focadas na alimenta~iio.5 Como resultado, as pessoas sao efetivamente auxiliadas a fazer modificas:oes desejaveis relacionadas a alimentas:ao e ao estilo de vida, havendo mudant;a de comportamentos e nao apenas a melhora dos conhecimentos sobre nutrit;ao.6 O AcN nao e uma solus:ao "magica", mas um "clinicar'' com novas conceps:oes de nutri9iio, da saude e do ser humano. Envolve considerar sentimentos, experiencias, crens:as e atitudes de cada um, o que auxilia no estabelecimento de um forte vinculo entre o profissional e o individuo, perrnitindo a este ser guiado pelo nutricionista as mudans:as. Assim, nessa nova concept;ao, ve-se a complexidade do que e viver e comer. Nela, por exemplo, nao se considera que as pessoas "ingerem alimentos e nutrientes", masque "comem" e, justamente, "comem comida". 0 AcN e essencial para facilitar a terapia nurricional, pois inclui estrategias que convergem expertise e conhecimentos teoricos de forma que o paciente consiga incor- pora-los efetivamente em sua vida. Nesse sentido, embora essa concept;ao de tratamento apresente referenciais te6ricos comuns a abordagem nutri- cionaJ tradicional, possui alguns que sao especificos, como esta explicita- do na Figura 7.l. t crucial ressaltar que alguns casos exigem uma aplica~ao rigorosa da dietoterapia, como, por exemplo, individuos com fenilcetonuria, insufici~n- cia renal, entre outros. E importante haver dialogo entre essas duas tecno- logias, uma vez que a dietoterapia pode usar prindpios do aconselhamen- . AC ONSELHl,MENlO NUlRICIONA l VERSUS PR ES CIIIClO ,-~ 1¢ ·o...,~ · 'f..,;.!!J.,• •:,;,,,-' , • --r¥--~ " · • to • ~l;r.- --+----;: :.1'-t~ Vt ~•~It ,-;-;a • . ..:· • ·· · ~~efe .: ...... ~~ I ., Figura 7.1. Referenciais te6ricos comuns e espedficos da nutri~~o cUnica centrada na · dietoterapia e da nutri~ao clfnica centrada no aconselhamento ·nutricional. to para tornar as prescris:oes menos impositivas, isto e, para fazer uma prescris:a.o, porem niio de forma prescritiva Em tais situas:oes, os referen- . ciais te6ricos apresentados como especificos do AcN no Quadro 7.1 ta.mbem sa.o relevantes para a dietoterapia. Da mesma forma, conceitos de dietote- rapia ajudam os nutricionistas a avaliarem a ingestao alimentar e planejarem metas de trata.mento para seus pacientes durante o AcN. Uma das bases teoricas do AcN esta pautada na clinica ampliada e compartilhada. Nesse modelo, entende-se que as diferentes abordagens profissionais se completam e se complementam; visa-se a compreensao ampliada do processo saude-doens:a em oposis:ao a interven~oes pontuais e isoladas, pautadas no modelo biomedico, e procura-se promover auto~ nomia e protagonismo dos participantes.7 Especificamente, "ampliar'' significa articular e incluir diferentes enfoques, disciplinas e instrumentos, reconhecendo que, em dado momento e situas:ao singular, pode existir uma predominancia, escolha, ou a emergencia de uma perspectiva ou de um tema, sem que isso signifique a nega~ao de outros enfoques e possibi- • lidades de a~lo. Por sua vez, "compartilhar" signitkn elaborar e praticar o trabalho em saude de forma mais horizontal, entre a equipe e com os individuos.7 A clinica ampliada e compartilhada encoraja a escuta, o estabeleci- mento de vinculo e o entendimento do contexto de vida da pessoa, alem das queixas apresentadas por ele. Propoe reunioes entre a equipe de tra- tamento (preferencialmente interprofissional) que objetivam a discussii.o e o compartilhamento de casos, demandando flexibilidade dos profissionais envolvidos. Em tais reunioes ha tambem a fonnulas:ao dos charnados p~- jetos terapeuticos singulares, nos quais sio definidas as condutas terapeu- t icas, metas, as:oes e a divisao de responsabilidades entre a equipe.7 o modelo propoe que uma proposta terapeutica seja construida "com'' - e nii.o "para" - a pessoa1 permitindo que ela pactue e se responsabilize pelas decisoes estabelecidas. Trata-se da construs:ao, e nao da ''aplicas:ii.o" de uma intervens:ii.o, evitando ocasionar sentimentos de culpa, resistencia e ate mesmo humilhas:ao.7 Essa nova proposta implica romper com modelos e protocolos tradicionais e traz avani;os em termos te6ricos, apontando uma nova conceps:ao do fazer em saude e do existir no cotidiano da vida. Vanos referenciais te6ricos, abordados em diversos capitulos deste livro, como a terapia cognitivo comportamental, a entrevista motivacional, a teoria social cognitiva e o modelo da trajet6ria da escolha alimentar, podem ser conjugados para melhor resultado no tratamento, desde que haja coerencia te6rica e pratica.8 0 TERAPEUT A NUTRICIONAL A literatura existente sobre o AcN nomeia '1terapeuta nutricional'-' (TN) o nutricionista que trabalha com essa abordagem, e esse termo e utilizado neste capitulo e em outros deste livro. Adotar o nome TN signi- fica dizer que o profissional, alem de auxiliar uma pessoa em relas:a.o a estrutura e ao seu consumo alimentar (Capitulo 2), busca auxilia-la a en- tender a cohexAo entre emos:oes e atitudes alimentares, ou seja, procura relacionar o consumo alimentar a pensamentos e sentimentos que possam estar interferindo na alimenta91io.1•5 Destaca-se que nem todos os nutri- cionistas vio sentir-se confortaveis ao lidar com outras pessoas, podendo considerar uma tarefa tediosa; outros podem simplesmente ni o se inte· ressar por tecnicas de AcN. Tais aspectos devem ser bem avaliados, con- siderando que o TN assume grande responsabilidade quando decide ajudar outra pessoa com suas dificuldades alimentares.1 Alem do dominio tecnico, algumas caracteristicas pessoais do TN contribuem para a melhor evolu9ao do tratamento de scus pacientes. 0 Quadro 7.1 mostra algumas caracteristicas que o TN deve conquistar, e outras que ele deve evitar. Nao e esperadoque o TN apresente todas as caracteristicas "ideais" e nenhuma caracteristica "delicada", e sim que se atente para suas pr6prias caracteristicas; e e possivel buscar trabalhar na supervisiio a influencia disso na sua form a de atender.5 Quadro 7.1. Caracteristicas pessoais que podem facilitar o trabalho do terapeut a nutricional (ideais) ou que podem dificulta-lo (del ic::idas) Caradertstlcas "ldeafs" Baixa depend~ncia de gratif,ca~ao (reconhecimento) A lta tolerAncia a frustra~ao Capacidade de escuta Paciencia Empatia e compaixao Compmensao Flexibilidade Experiencia Otimismo Bom'humor Carisma ronte: adaptado de Alvarenga e Scagllusi.' Caracterlstlcas "tle'fltid~··' Narcisismo Necessldade extre,;a de controle Sensac;:ao de autossuf iciencia Dese1ci' de S~f amado a qual(Juer,custo , ' ~ . ' ' ~ Timidez, apatia e distanciamento Alta expectativa de "curar" ou resolver o problema do outro Balxa autoestlma Pessimismo . . ' ·Mau huf'(lor lnexperiencia • NUTRICAO COMPORTAMENTAL Na pratica profissional, o TN pode lidar com diversos desafios. E ~ssivel que ele se sinta inseguro e tenha medo de "piorar" a situa~ao vi- v1da peJ · d' 'd 0 m lvt uo ou de nao saber o que fazer ou falar durante o atendi- mento. 5 Inexperiencia e baixa autoestima podem contribuir para tais receios, porem ambas d • po em ser superadas. No entanto, as pessoas podem de fato ser bastant d "f' · ( e 1 1ce1s quando apresentam sintomas complicados. ex- pectativas irreais · A • • · e res1stenc1a em rela~ao ao tratamento) e e comum que o profissional tenha d, 'd _ . . uvt as quanta a sua atua~ao e capac1dade terapeu- tica, alem de sentimentos conflitantes (quando apresenta ambivalencias em rela~ao aos individuos). Nesse sentido, fazer supervisao com TN mais e~erientes ou ate mesmo com profissionais de outras formac;oes (como psic6logos, por exemplo) e essencial.5 Alem disso, profissionais interessa- dos em praticar o AcN devem buscar ampliar suas habilidades terapeuticas e conhecimentos. "O TN precisa desenvolver algumas habilidades psico- terapeuticas e, em algum nivel, ignorar a filosofia tradicional da sua pro- fissao", afirmararn Reiff e Reiff.9 Isso nao significa dizer que o TN fara psicoterapia corn a pessoa aconselhada, masque o paradigma e a aborda- gern do AcN sao diferentes daqueles utilizados no traramento nutricional convencional, como explicitado no Quadro 7.2. Quadro 7.2. Diferen<;as de paradigmas e abordagens entre o modelo tradicional de t ratamento nutricional e o modelo de aconselhamento nutr icional Foco nos alimentos e nutrientes, Foco tambem em como se come ou seja, no que se come ,. ,, t~f;~~ ~ -~ducadao :,i;~ent:r Educacao ali~nt~r :iresente, mas nao e o ~:.::::,:.:;.:;;,.:,;~~":rt:'7-T-:-::;;r;:-:;'.:~ ~ -~-,·-:--;:-;: _ ..,.,..,.,...,,...--~:::_,':'"'._-,... ""· ---~ .'Q.,;;7',,.~'"';i;i·~~ ~iii ;~i, .. it; . . ~ -~~ .#)ritlali' . ft~ ' i -~~' ll~ ~ N~ t. ' .. ·'l;. L:::~ ~ ~i!!!:~ :.:.::;::;.:::~:;::;.;:;__=-;...;..=--::P~lano de a~o gera m · . . etas Plano de acao (geralmente na I nos alimentares) e muito individual1zado, forma de uma dieta ou prescri~ao) e Pa • I d .~ 'as desenvolve-se a parttr e ao ongo e \ c:: rt e determinado rapidamente, nas consultas e evolul com o tempo prlmeiras consultas Foote: adaptado de Alvarenga e Scagliusi. 1 ACONSELHAMEHTO NUTR ICIONH VERSUS PRE SCRICl O Ao se propor "ignorar a filosofia tradicional da profissao", espera-se que o TN pense de maneira ampliada sobre os diferentes papeis que a comida pode ter. Isso significa considerar que, mais do que um meio para "nutrir" o corpo, a comida tambem tern papel de conforto, prazer, comen- salidade, celebra-;ao e cuidado. Assim, tambem e necessario que o profis• sional considere as diferentes apresentac;oes que uma alimenta-;ao sau- davel pode ter, em fun~ao das diferentes caracteristicas das pessoas, especialmente quanto aos aspectos familiares, economicos, subjetivos e socioculturais. Espera-se, tambem, que o TN saia do papel tradicional- mente prescritivo da atua-;ao clinica do nutricionista e assuma um papel · de suporte no tratamento. Isso significa que o profissional vai auxiliar a pessoa que esta sendo "aconselhada" a tra-;ar caminhos e pensar em estra- tegias que possam levar a mudan~as de comportamento. Tal abordagem e relevante, considerando-se que grande parte das pessoas afirma saber "o · que" deve fazer, mas nio "como" faze-lo. 111 ~ OS PILARES DO ACONSELHAMENTO NUTRICIONAL ~ Os pilares do AcN sao: o relacionamento com a pessoa "aconselhada", o plano de a~ao nutricional e o trabalho com as atitudes alimentares. O relacionamento com a pessoa aconselhada 0 cenario: em um consult6rio, deve-se ter em mente que a consulta come~a antes mesmo de o individuo entrar na sala de atendimento; por- tanto os outros ambientes sao igualmente relevantes e devem ser hem planejados.5 0 consult6rio deve, preferivelmente, ser em um local de facil acesso, apresentar um ambiente familiar e adequado as necessidades dos individuos. 0 mobiliario deve ser pensado para que todos se sintam con- fortaveis (por exemplo: cadeiras sem bra~os e de material resistente para que qualquer pessoa, sem restri~ao de peso ou tamanho, possa utilizar; se forem poltronu confortaveis, que sejam tambem largas). Na sala de espe- ra, e aconselhavel nao disponibilizar revistas que remetam a dietas,jitness, beleza e celebridades. Na sala de atendimento, expor imagens agradave.is de comidas pode !>er interessante, desde que elas nao tragam nenhuma mensagem sobre como a pessoa deve se alimentar.5 Equipamentos ade- quados tambem sio fundamentais, como balanc;:as e fitas metricas com capacidade para aferir diferentes pesos corporais. Outros cuidados envol- vem aten~o de todas as pessoas da equipe quanto a maneira de se vestir, sendo interessante definir alguns criterios (como nao vestir roupas muito justas que remetam a um estere6tipo de corpo magro e perfeito). A postura: o mesmo se aplica quanto a comentarios sobre a aparencia fisica das pessoas; para um individuo com transtorno alimentar, por exem- plo, dizer "nossa. como voce esta bonita assim mais gordinha" pode ser extremamente prejudicial. Por fim, o TN deve montar uma agenda ade- quada (por exemplo: cuidar para nao marcar diversas pessoas que ele considera dificeis em sequencia, e para que ele tenha um tempo para descansar entre as sessoes, ja que elas podem ser bastante desgastantes).5 A condu?o das sessoes: a sessao inicial e extremamente importat)- te, pois e nela que se inicia o estabelecimento de vinculo. 0 TN deve co- me~ se apresentando e abordar sua formac;:ao e atuac;:ao profissional. Essa introduc;:ao e fundamental, pois demonstra que ele ve aquela sessao como um encontro entre duas pessoas. E desaconselhavel que o TN entre em questoes pessoais dele (idade, estado civil ou peso corporal).5 Depois, ele deve dar espac;:o para que o individuo se apresente, tendo atitudes que permitam dialogar sobre as expectativas da pessoa em relac;:ao ao trata- mento. Perguntas como "o gue voce espera de mim?" ou "como posso te ajudar?" podem ser interessantes neste momento.5 Feitas as apresentafoes, o TN deve estabelecer o chamado "contrato" do tratamento, no qua! sao definidos aspectos praticos. Nele, deve-se informar e discutir a forma de tratamento, a orienta~ao te6rica que sera utilizada e o papel do TN e do paciente, alem de estabelecer a frequencia, durac;:ao e custo das consultas (se for o caso). Ao se discutir o cont rato, tambem e importante que alguns limites sejam estabelecidos. Por exemplo, ao disponibilizar um telefone pessoal, o profissional deve especificar em que horarios, dias e situac;:oes a pessoa podera contata-lo.5 Posteriormente, porem nao necessariamente na mesma consul ta, o T N deve apresentar algumas estrategias do AcN que ele vai utilizar ao Iongo das sessoes, tais como o diario alimentar e o estabelecimenro demetas - estrategias trabalhadas pela terapia cognitivo-comportamentnJ (Capitulo 13). Quanto ao diario alimentar, o profissional pode comepr esclarecendo que ele pretende ajuda-lo da melhor maneira posslveL e uma maneira de fazer isso e conhecendo sua alimenta9ao de forma abrangente'. Assim, o TN deve deixar claro que nao esta interessado apenas em saber "o que" aquela pessoa come, mas, principalmente, em compreender o contexto que envolve sua alimentac;ao. O diario e uma estrategia de automonitoramento, por meio da qual o individuo mantem um registro ao longo do dia de quais alimentos consu- miu e suas respectivas quantidades; inclui horario, local, durai;ao da r€'- feic;:ao e se esta foi ou nao planejada. A pessoa tambem deve registrar se estava acompanhada ou nao, como percebeu sua sensac;ao de fome e sa- ciedade antes e depois da refei,;ao e o que estava pensando e sentindo. 0 TN deve enfatizar que nao pretende julgar a alimenta9ao, e sim entende- -la; por isso, quanto mais completo e detalhado o diario alimentar estiver, melhor (a pessoa deve ser orientada, por exemplo, a incluir informas:oes de medidas caseiras, utensilios e ingredientes utilizados). Ao final da sessao inkial, pode-se propor que o individuo traga o dia- r io alimentar preenchido para a pr6xima consulta, definindo com ele quantos dias e quais colunas ele deve preencher. Com base em nossa ex- periencia clinica, pode ser interessante que, nesse primeiro momento, a pessoa preencha apenas as colunas de alimento e quantidade, horario, locale durai;ao, e se foi ou nao uma refei9ao planejada, sendo as demais colunas (fome e saciedade, local/companhia e sentimentos/pensamentos) acrescentadas quando ele estiver mais familiarizado com o instrumento. Como fechamento da primeira sessiio, tambem e interessante que o TN esclares;a que a i'.mica expectativa dele em rela9iio ao tratamento e que o individuo venha as consultas. Isso contribui para que a pessoa se sinta * Mais detalhes e modelo de diario alimentar podem ser obtidos em Polacow VO, Aquino RC, Scagliusi FB. Aspectos gerais da terapia nutricional para os Transtornos Alimentares: avalia~ao nutricional, objetivos, modalidades e alta. In: Alvarenga M, Scagliusi f.'B, Philippi ST. Nutri~i.io e transtornos alimentares: avaliac;ao c tratanwnto. Baruvl'i: Manole; 2011. NUlRICAO COMPORTAMENTAL confortavel e nao for~ada a fazer mudarn;as em um tempo e velocidade incompativeis as suas condi~oes e circunstancias (incluindo o diario ali- menta.r, se nao conseguir fazer). Em rela~ao ao estabelecimento de metas, o TN deve explicar que as sessoes serao conduzidas em conjunto com a pessoa aconselhada. e que, por isso, devem ser pensadas como um espa~o de colabora~io, construi;ao e troca entre os dois. Nesse sentido, as sessoes serao estruturadas com base no que o individuo gostaria de trabalhar naquele encontro, sendo papel do TN ajuda-lo a definir "o que" e "de que fonna" ele pode fazer para, aos poucos, ir caminhando para uma dires:ao mais pr6xima da que ele (paciente) espera. Uma estrategia que possibilita isso siio as chamadas "metas detalhadas" do tratamento (Capitulo 13) . Por fim, o TN deve expli- car que nao pretende prescrever uma dieta. mas fazer em conjunto com o individuo o planejamento alimentar. E importante explicar os argumentos cientificos que sustentam a nao prescris:ao de dietas para o caso especifico de cada um, uma vez que muitas pessoas chegam ao nutricionista espe- rando uma dieta (Capitulo 4). Alem dessas estrategias e da avalias:ao nutricional, o TN deve coletar a hist6ria de vida. Esta e um instrumento importante para a formas:ao de vinculo e, por isso, deve ser pensada como um procedimento padrao na avalias:ao nutricional. A obtem;ao da historia de vida advem da escuta empatica, franca e genuina e do embasamento em seu referencial teorico·; nao se tratando, portanto, de um questionario ou instrumento fechado. 0 TN deve buscar conhecer amplamente a historia de vida, sem pensar ape- nas em aspectos diretamente relacionados a nutric;ao. Por meio da narra- tiva de uma pessoa, e possivel acessar aspectos subjetivos, culturais e sociais, alem de valores e cren~as que moldam a maneira como ela Iida com diver- • Para saber mais leia: Favoreto CAO, Cabral CC. Narrativas sobre o processo de saude e doen~a: experiencias em grupos operativos de a9ao em saude. Interfuce: comunic saude educ. 2009;13(28):7-18; Favoreto CAO, Camargo Jr KRC. A narrativa como ferramenta para a pratica clinka. Interface: comunic saude educ. 2011;15(37):473- 83; Meihy JCSB. Manual de Historia Oral. 5. ed. Sao Paulo: Loyola; 2005; Silva AP, Barros CR, Nogueira ML, Barros VA. "Conte-me sua hist6ria": reflexoes sobre o metodo de Hist6ria de Vida. Mosaico: estudos em psicologia. 2007;1(1):25-35. ACONSELHAMfNTO NU TR ICIONAL VERSUS PR[SCRIClO sos aspectos, sendo um importante instrumento para compreender seu contexto de vida de maneira abrangente e completa. 10 Alem disso, permi- te a valoriza~iio de suas memorias e recorda~oes, e propicia a percep~ao de comportamentos e valores que podem contribuir com elementos que · ajudarao a definir as estrategias para subsidiar o tratamento. Exemplos de perguntas sobre a hist6ria de vida incluem: ■ Gostaria de saber sobre sua trajetoria de vida. Como foi para voce ser quern voce e hoje? ■ Como voce descreveria suas experiencias da infancia? E da ado- lescencia? 0 que mudou na sua vida desde entao? ■ Como eram vivenciados os momentos que envolviam comida na sua familia? lsso mudou de alguma forma? ■ Voce consegue identificar alguem ou um acontecimento que tenha sido determinante para a formas:ao dos seus habitos alimentares? . , ii ,fl-- Em rel~i o as consultas subsequentes, apresentamos aqui uma pro- posta: receber de forma acolhedora e perguntar como a pessoa esta; deixa- -la falar e desabafar; pesar ou fazer alguma mensura~ao (se necessario); analisar o diario alimentar ou outro instrumento ou outra atividade - ten- tando identificar rela9oes de causa e efeito; discutir os problemas enfren- tados, articulando com o fornecimento de infonna~oes sobre alimenta~ao, saude e corpo; propor o planejamento alimentar e o estabelecimento de metas. Caso o individuo nao tenha preenchido o diario alimentar, cabe ao TN investigar o porque, porem sem ter uma atitude negativa e julgadora. Pode-se, nesses casos, fazer um recordatorio alimentar dos ultimos quatro dias, por exemplo. Todavia, essa estrutura nlio deve ser pensada de forma rigida e fixa. Cada pessoa tera uma demanda especifica, exigindo formatos diferentes de atendimento e, portanto, flexibilidade e sensibilidade do TN para fazer as mudan9as necessarias para cada um.·)• Durante diferentes momentos do tratamento, e i~teressante que o TN utilize questoes abertas (Capitulo 8), criando uma via de dialogo recipro- ca entre cle ea pessoa. Nessa reflexiio interna, o individuo e instigado a pensar sobre seus comportamentos e seus determinantes. O Quadro 7.3 apresenta exemplos de qucst6es abertas que podcm ser usadu ncsses d.i"-e:rsos estigios do aconselharnento nutricional (para mais exemplos, ~-eja o Ca.pitulo 8). Quadro 7.3. Exempk,s de questoes abertas. uteis para diferentes momentos do aconsetnamento nutridonai ~ para Mliaf ~o e ~ gios de muda~a: Como YOd se sente Mi relatAo a sua ~t~ atUilf? Vod 1i pensou em faz~ ~ ~ sua aliment~o? Por quais raz6es voce gostw de mant~ ~ ali-nent~ atual? QuestOes par' avaliar experi!ncias passadas de mucla~s alimentar~ Voce ja ~ muda~s alimentares? Caso sim, elas foram mantidas? Por quanto tempo? Que drficuldades YOCC encontrou neste processo de muda~a? Como~ lidou com etas? Quest6es sobre a anb!d~o-de posslveis barrelras para a mudan~: 0 que pode atrapalhar sua mudanyi? Que situa<;(>es tomariam a mudanc;:a ainda m2-is diticil? Ques\6e.s·_sobre~'l ldar com as barreiras: 0 Que voce faz agora e o que voce poderia fazer quando se defronta com essas barreiras?Quern poderia ajud.i-lo a lidar com isso? Como? ~30.bre ~ estabetecimento de met as: 0 que voce deseja mudar em sua alimentac;:ao agora? 0 Que voce pode fazer antecipadamente para garant ir que conseguira realizar e manter • essa muda~a? Eu vejo que essas quest6es silo dificeis para voce. Acho que ~ um 6timo sinal que vc,ce tenha procurado ajuda e agradec;:o pela confianc;:a depositada em mim para lidar com elas. Voce t rouxe varias e importantes questoes hoje. Em quais aspectos voce gostaria de trabathar nesta sessao? Podemos discutir aQueles que voce considera mais urgentes e deixar os demais para um pr6ximo encontro. Como isso soa para voce? Eu tenho algumas ideias sobre as suas questOes de saude, voce gostaria de ouvi-las., Como toi sua experihlcia com este piano de ac;:ilo? 0 que o ajudou a conseguir? Que dificuldades foram encontradas? Vamos revisar como nosso trabalho esta indo. 0 que est~ tuncionando para voce e o que nao esta? ~Oes para~ de. lapsos:• 0 que tornou dificit a adesao ao piano? Como voe~ se sentiu nesta situa~Ao? 0 que poderia ter sido feito para evitar o lapso? 0 que voce gostaria de fazer agora? Fonte: adaptado de Rosal et al.• • Os lapsos envolvem a n3o realiza~ das metas acordadas ou o retorno a um padrlio anterior mais disfunciooal. Nlio sao si~imos de exageros alimentares, necessariamente. O estabeleclmento de uma ttla~ cola.bo.rativa: o estabeJecimen• to de vincuJo e uma caracredstica fundamental do AcN, e o relado.namen- to significativo (com dialogo, abertura, empatia e confian~a) entre o TN e o individuo por si so ja e considerado pa rte do rratamento. Dessa forma. estabelecer uma rela~ao colaborativa est,i diretarnente relacionado A evo- lu~ao do tratamento, sendo crucial para scu sucesso.5 No entanto, construir tal relacionamento pode nao ser tarefa facil. Em um primeiro momento, o TN podc ser visto como um critico, alguem que vai impor mud:m~as e fazer julgamentos, e o indivfduo nao se engajara no tratamento se nao se sentir seguro e aceito pelo profissional. Algumas pessoas podem se achar autossuficientes e resistir a ajuda proftssional. Tambem e importante ressaltar que quando o profissional nao considera a opiniao do individuo nem oferece suporte para as mudanc;as, as informac;oes dadas por ele dei• xam de ser relevantes para a pessoa "aconselhada".11 Felizmente, algumas atitudes do TN podem ajudar a estabelecer uma rela4rao colaborativa e de vinculo com a pessoa. Um aspecto-chave para essa relac;ao e que o TN demonstre empatia, que e "a capacidade de ver o mundo com os olhos do outro, e nao ver o nosso mundo reflerido nos olhos dele".u O TN tambem deve mostrar calor humano e respeito pelo individuo, mostrando que ele o ve como uma pessoa de valor e dignidade; isso inclui ter atitudes que reflitam uma postura nao julgadora, de comprometimen- to (como ser pontual e disponibiJizar um local adequado para os atendi- mentos) e que mostrem interesse verdadeiro pelas questoes da pessoa. Tambem e importante que o TN aja de maneira genuina, ou seja, consiga ser "ele mesmo", sendo honesto e congruente com o individuo e tambern capaz de fazer trocas com ele. Tais comportamentos ajudam a diminuir a distincia emocional entre a pessoa e o TN.1 Uma estrategia interessante que o TN pode utilizar para estabelecer uma rela4rao colaborativa e contribuir para que o tratamento tenha suces- so ea ~ntrevista motivacional (Cap!tulo 9). Um dos p.rincipais objetivos da entrevista motivacional e fortalecer a motiva1rao, trabalhando a ambi- valencia com relac;ao as mudan~as alimentares. Dessa forrna, o TN busca ajudar os individuos a criar seus proprios pianos para alcan<;ar seus obje- tivos, substituindo uma postura de imposi~ao por uma rela~ao de colabo- NUTRICAO COt.lPORTAMENTAl ra~ao.13 0 aconselhamento centrado no individuo inclui, por exemplo, entender quais fum;oes determinado comportamento tern na vida da pessoa (chamado beneficio secundario) e reconhecer possiveis ambiva- lencias (como querer e nao querer mudar) - Capitulos 8 e 9. Isso ajuda a pessoa a analisar as crern;as envolvidas, perceber as discordancias e diver- gencias de suas atitudes em rela~ao a valores mais significativos e centrais para ela, e tambem a explorar como se sente em rela~ao a tais comporta- mentos. 0 individuo deve ver o TN como alguem com mais "conhecimento" e com habilidades especificas para orientar mudan~as alimentares. Por isso, deve estabelecer credibilidade, demonstrando conhecimento e experien- cia. 0 individuo deve se sentir valorizado, acolhido e esperan~oso, sendo importante que o TN tenha maturidade (sem ter atitudes maternais ou patriarcais nem oferecer falsas promessas, por exemplo) e seja emocio- nalmente estavel. 0 TN deve saber administrar suas vezes de serum faci- litador, conselheiro e/ou professor, atentando-se para que seu atendimen- to seja terno, porem firme.1 Tambern e importante que seja ativo e direto, respondendo diretamente quando o individuo faz uma pergunta. Por outro lado, quando este lhe pede um conselho ou orienta~ao, e interessan- te propor um dialogo que desperte ideias e dire~oes, como, por exemplo, "o que voce acha que ajudaria nesta situa~ao?" ou "eu tenho algumas ideias sobre isso, voce gostaria de ouvir?". Orientar de maneira direta em todos os momentos pode fazer com que a pessoa se sinta sufocada e pressionada; por outro lado, evitar dar respostas pode fazer a pessoa achar que o TN e dificil e pouco colaborativo. Questionar o que ja foi feito ate o momento e quais forarn os resultados e fundamental, pois previne que se insista no que nao deu certo e que se ganhem novas informa~oes a partir de tentati- vas anteriores.5 E importante que o TN consiga lidar apropriadamente com suas ques-- toes pessoais (Capitulo 8) e tenha familiaridade com as estrategias e fer- ramentas do AcN. Alguns profissionais, por exemplo, podem se beneficiar da propria bagagem pessoal, podendo impactar sua habilidade no proces- so de aconselhamento.1 Por fim, os individuos esperam que o TN tenha expectativas realistas, trabalhe em um passo que eles possam alcan9ar, ACOHSElH Al,H H10 HUTR ICI ONAL VERS US PIH SCRI Cl O fa<;a comentarios sensiveis, nao exija perfei~iio ou submissio e trabalhe com ele de modo mais colaborativo do que controlador. u o encerramento do tratamento: varias razoes podem levar ao en- cerramento do tratamento; algumas se referem a pessoa, como a recupe- ra~io completa, a conclusio do periodo preestabelecido para a dura<;ao do tratamento, o nio cumprimento do contrato de tratamento, a indispo- nibilidade de horario e os problemas familiares. Outras envolvem o T N, como mudan<;as de endere<;o, novas oportunidades de emprego, questoes contratransferenciais que o TN niio consegue superar (aprofundadas adiante) ou ate mesmo falta de qualifica9ao para o trata.mento de deter- minados casos. 5 Dessa forma, o processo de encerramento depende do que esta rela- cionado a ele. Quando o desligamento e resultante de um motivo do TN, este deve avisar primeiramente sua equipe (quando for o caso), 4r, o quan- to antes, a pessoa "aconselhada". Ele deve explicar seus motivos e da~ espa90 para que o individuo demonstre seus sentimentos sobre o encer- \ ramento do tratamento.5 Quando possivel, e preferivel que o encerramen- ...l- to se de aos poucos, para que os individuos mais engajados no processo f4'- terapeutico nao se sintam desamparados. A supervisao com outro profis- sional e muito importante nesse processo, sendo possivel discutir tanto os sentimentos que o individuo trouxer, como os do pr6prio TN, ja que ele mesmo pode sentir essa perda (aprofundada adiante). 0 TN deve sugerir o encaminhamento para um colega qualificado e, a partir do aceite, com- partilhar todas as informa~oes sobre ele com o novo profissional. Se o motivo for quebra do contrato ou falta de apoio e/ou qualifica~ao, o TN deve cita-los claramente, mostrando de que forma eles impedem a conti- nuidade do tratamento.Nesses casos, o individuo tambem deve receber contatos (nomes, recomendac;oes) de outros profissionais competentes.5 Por outro lado, se o tratamento esta sendo finalizado porque a pessoa alcan9ou suas metas, as sessoes de encerramento podem recordar os mo- tivos pelos quais a pessoa procurou tratamento, os processos de mudanc;a, os conhecimentos e recursos adquiridos, alem das estrategias de manu- tenc;ao dos comportarnentos. Caso a relac;ao entre a pessoa "aconselhada" e o TN tenha sido longa, e se este sentir o desejo, ele pode expressar como se sentiu em acompanhar o processo de mudan~a. 'fer tempo e respeito para com o encerrarnento refor~a o valor do trabalho do TN. Tambem e importante que o profissional se deixe disponivel e lembre que ele pode entrar em contato com o TN novamente, se sentir necessidade.5 Questoes eticas no cuidado nutricional: a TN deve contribuir para a saude mental, e nao para piora-la. Nesse sentido, pode-se dizer que o TN cria condi~oes terapeuticas e fomece suporte que refletem positivamente no processo de cuidado de uma pessoa. Entre outras coisas, o TN ajuda o individuo a definir estrategias, a trabalhar seus sentimentos e receios, da abertura para que diversos pensamentos tenham espac;o, confia e espera que o individuo lide com seus problemas e propoe tarefas e metas que levam a mudanc;as comportamentais.1 0 territ6rio do TN inclui pratica- mente qualquer assunto relacionado a alimentac;ao e a imagem corporal, send<? seu papel abordar tambem assuntos que nao sejam diretamente li-'i--1 gados a nutri~o quando estes estiverem interferindo (positiva e/ou nega- \.A tivamente) nos esfor~os para mudar comportamentos alimentares.1.s Por exemplo, abordar as questoes de imagem corporal e importante, porque a insatisfa,;ao corporal esta associada a pratica de dietas restritivas e as compulsoes alimentares. Em alguns momentos, e necessario adiar alguns assuntos sobre nutric;ao e deixar a pessoa livre para discorrer sobre algu- ma questao que a estiver angustjando. Tais digressoes podem ser surpre- endentes, pois podem trazer a tona questoes que apresentam grande re- lac;ao com a alimentac;ao. Entretanto, o TN deve ficar atento, pois pode ser uma manifestac;ao de resistencia para entrar em assuntos sobre alimenta- ,;ao que o individuo considera dificeis e quer evitar. Ainda, quando muito recorrentes, pode-se tratar de questoes que necessitam de ajuda psicol6- gica, sendo necessario, em um momento oportuno, fazer essa recomenda:. -;ao e eventual encaminhamento para outro profissional.5 Aspectos que fogem da etica do tratamento incluem manter rela~oes pessoais, entrar em conflitos diretos com o individuo (corno impor uma mudanc;a que o indi- viduo nlio esteja disposto a fazer), toca-lo excessivamente, fazer comen- ta.rios sobre seu corpo, dar-lhe conselhos religiosos, atender parentes do individuo sem a permissao dele, quebrar o sigilo do tratamento e omitir informac;oes da equipe. T ransferencia. conrratransferencia e resistencia Um topico irnportante a se considerar sobre como lidar com a pessoa envolve os conceitos de transferencia, contratransferend a e resistencia, os quais sao oriundos da psicanalise, mas serao discutidos aqui, pois podem estar presentes na rela~ao de uma pessoa com qualquer terapeuta, inclu- sive o TN. Entretanto, deve-se avisar de antemao que tais conceitos sao extremamente complexos e serao tratados aqui de maneira muito sirnpli- ficada e resumida. Ao revisar as obras de diversos psicanalistas, Isolanu conceituou a "transferencia" como um conj unto de expectativas, crenc;as e respostas emocionais inconscientes que um individuo traz para a rela~ao terapeutica. Essas respostas nao estao baseadas necessariamente em quern e o profissional ou em como ele age de fato, mas nas experiencias persis- tentes que o individuo teve durante sua vida com outras figuras importan- tes do passado e que, agora, sao transferidas inconscientemente para esta rela,;iio terapeutica.15 A "contratransferencia" e o mesmo processo, porem partindo do te- rapeuta para o individuo,9 ou seja, ea "totalidade dos sentimentos dote- rapeuta em rela9ao ao paciente" (Heimann16 apud Isolan 200514). Ambos os fenomenos podem ter grande potencial terapeutico na psicanalise,13 mas geram grandes dificuldades para o TN, cuja conduta deve ser reconhece- -los e trabalha-los na supervisao.9 Ja a "resistencia" e O boicote OU OS obstaculos que o individuo sente em rela,;ao ao tratamento e geralmente ocorre porque as praticas alimentares disfuncionais desempenham fun,;oes no mundo interno da pessoa e geram beneficios secunda.rios para ele.17 Por outro lado, a resistencia pode surgir quando os individuos sao "empurra- dos" para a mudani;a, mesmo nao estando prontos para ela, ou quando as mudan~as e tecnicas propostas nao fazem sentido para eles. Trabalhar a resistencia e um conceito central na entrevista motivacional (Capitulo 9). E sempre importante reassegurar ao paciente e relembrar que a ali- mentac;ao das pessoas esta sob o controle delas, e nao do TN. Nesses mo- mentos, e importante rever com o paciente quais metas sao mais impor- tantes para ele e quais estrategias alternativas podem ser pensadas em conjunto.1H 111 NUTRI CAO COM POR THH NTAl Uma situa~ao decorrente da transferencia e a idealiza~ao do TN por parte do individuo, que passa a considerar o TN um salvador ou o melhor profissional do mundo. Isso pode levar o individuo a mentir por medo de perder ou decepcionar o TN, querer socializar com ele ou ainda se recusar a continuar o tratamento com outros profissionais. Do outro lado, o TN pode ficar com o ego inflado e perder a no~ao das suas habilidades, esferas de influencia e seus limites de atua~ao. Essa e uma situa~ao que deve ser amplamente discutida com o supervisor.19 Outro exemplo se refere a situa~oes vividas com individuos que tern problemas com figuras de autoridade, como pais, professores e chefes. Se a pessoa sentiu-se abandonada, rejeitada ou m achucada por uma figura de autoridade, ele pode projetar as caracteristi- cas dessas rela~oes passadas na rela~ao atual com o TN. Isso pode levar a uma serie de rea~oes, como tomar-se dependente do TN, esconder infor- ma~oes ou agir de maneira dramatica nas primeiras consultas. Nesses casos, e interessante abordar a questao de forma direta, porem delicada, explicar como o TN ve essa rela~ao, assegurar ao individuo que nao serao feitos julgamentos e que os percal~os e dificuldades serao compreendidos.9 Ja a resistencia pode fazer corn que o individuo manipule e coloque um profissional da equipe ou time de tratamento contra o outro, com o intuito inconsciente de boicotar o tratamento. Por exemplo, a pessoa pode dizer para o TN: "o meu medico acha que esse seu plano alimentar tern comida demais". Assim, e importante adotar as seguintes medidas: ■ Nao assumir que o que o individuo falou sobre outro profissional e verdade sem antes checar. ■ Sempre checar a informa~iio com o outro profissional de fonna amigavel. ■ Nao dar palpite na area do outro profissional para o individuo. ■ Ter ampla comunica~ao com a equipe. • Ter exata no~ao do papel do TN na equipe. ■ Lembrar ao individuo que a equipe nio mantem segredos entre si.9 Uma fonna razoavelrnente comum de contratransferencia e a influen- cia das questoes pessoais do TN no tratamento. Se ele tern quest:oes pe!- AGON SELHAMENTO NUTRICIONAl YEFISUS PR ES CRICAO soais nio resolvidas sobre controle, corpo e alimenta~ao (entre outras questoes emocionais), isto pode gerar pensamentos prejudiciais ao trat a- mento, como: "a pessoa deve me aceitar como total autoridade sobre nu- tri1rao e eu nao devo ser questionado"; ''a pessoa nao pode demonstrar mais conhecimento do que eu (por exemplo, sobre as calorias dos alimentos)"; "eu me sinto intimidado pelo paciente porque ele e mais magro que eu".9 Novamente, o TN nio deve esconder de si pr6prio esses pensamentos, e sim trabalha-losna supervisao. Alem disso, quando ele percebe que esta tendo problemas com um individuo especifico, ele nio deve "culpa-lo", mas tentar repensar suas atitudes, procurando entender, na supervisao, o que esse indivfduo desperta nele.19 Caso nao seja possfvel reverter a situa- 1rao, o TN devera encaminhar o paciente para um colega. Em geral, reco- mendam-se ao TN atitudes de autoavalia1rao, introspec~iio e honestidade consigo, condi~oes importantes para compreender a importancia de se dispor a supervisao.15 Proiecao: limites do terapeuta nutricional '--0 -~ Entender alguns movimentos que o individuo pode ter durante o pro- cesso terapeutico, como a proje~ao, pode ser muito util para o TN. A proje- ~ao e um processo inconsciente de defesa, no qual a pessoa atribui a outras pessoas pensamentos ou sentimentos que ela mesma tem. Esses pensamen- tos (ou sentimentos) sao inconscientes para o individuo, por se tratarem de aspectos que ele considera inaceitaveis.18 Um exemplo do que poderia acon- tecer durante um atendimento seria a pessoa falar: "Ah, voce vai me odiar por isso!". A menos que voce tenha dado motivos para que ele pense que voce odiaria aquele comportamento, ele esta projetando O pr6prio julga- mento pelo que fez. Afirma~oes de que a pessoa sabe como a outra se sente ou pensa (como ela poderia saber?) e uma fala muito intensa sobre outra pessoa (por exemplo, passar muito tempo falando sobre o comportamento de alguem) tambem podem ser sinal de que o individuo estt_projettyido.1• Nao e o trabalho do TN lidar com as proje~oes das pessoas q.ue ele atende, no entanto, o reconhecimento do processo pode ser util para o tratamento. E importante lembrar que o TN tern c~~ o objetos a alimen• ta,;lo e o corpo c que outros assuntos dcverio ser discutidos com um psicologo. 0 "I:N deve ter seus limites bastante claros e nao ultrapassa-los, entrando na area de outro profissional. Se o TN comec;a a fazer o papel de psicoterapeuta, ele pode prejudicar a pessoa atendida, deixando-a mais vulneravel, escolhendo uma abordagem inadequada ou impedindo que ela busque atendimento com um profissional da area.11 Alguns sinais de que o TN pode estar cruzando os limites da sua area sao: passar muito tempo conversando com a pessoa atendida sobre assun- tos que nao tern rela,;ao nenhuma com alimenta,;io; sentir-se ansioso, inseguro e desconfortavel sobre os temas das conversas com o individuo; pensar inumeras vezes no caso fora do expediente do trabalho; ter pouca confiam;a no psicoterapeuta do individuo e criticar o tratamento.11 Se o T N achar que a psicoterapia nio e eficiente, pode sentir-se tentado a as- sumir o papel de terapeuta. Essa n iio e a solu,;ao. Se o TN se ve, com uma pessoa em particular, muitas vezes fazendo papel de psicoterapeuta, este pode serum sinal de que a pessoa tern mui- tas questoes que ultrapassam o tema alimentar para trabalhar. Sugerir que ele tenha acompanhamento psicoterapico podera ajudar o AcN, pois ele trabalhara as questoes emocionais com o psic6logo, permitindo ao TN :f.ocar seu trabalho na alimenta,;ao.18 E interessante que o TN tenha uma boa rela,;ao com o psic6logo do individuo, isso possibilitara o aprendizado e um melhor planejamento terapeutico. Novas tecnicas de AcN tambem podem ser experimentadas e trabalhadas com mais seguran,;a se o TN estiver atuando juntamente com um psic6logo, ou fazendo supervisao.18 A supervisao A supervisao constitui-se corno um processo de intera9ao com outro colega profissional, com o objetivo especifico de melhorar o trabalho com os pacientes. Essa pode ocorrer em pequenos grupos, ou em sessoes parti- cularcs. A supervisao em grupos pode se dar pela discussao de casos comuns entre diferentes profissionais, permitindo a discussao de um mesmo piano de tratamento a ser seguido por todos.11 Outro tipo de supervisao em grupos pode ocorrer por meio de encontros periodicos realizados por um grupo de profissionais para discutir novas perspectivas e dar suporte mtituo.. t importante salientar, no entan to, que esses dois tipos <le orientas:ao n~o costumam ser de grande eficacia em casos de contratransferend a . .1.1 A supervisao individual, por outro lado, mu itas vezes mistura-se com uma vivencia psicoterapeutica do TN. Esta o possibilita vivenciar a pers- pectiva da pessoa "aconselhada", alem de permitir trabalhar suas proprias questoes relacionadas ao corpo ea alimenta9ao.17 Muitos psicoterapeutas tambem aceitarao ajudar em situa96es de contrarransferencia que o TN vivencie com as pr6prias pessoas que acompanha. A supervisao e essencial para o trabalho do TN quando este: trabalha com transtornos alimentares; ve-se em uma relac;ao dual ou ambigua corn algum individuo; tern rea96es emocionais muito fortes em rela9ao a algum ind ividuo; e/ ou tern questoes alimentares e/ ou corporais mal resolvidas. O piano de acao nutricional Entre as estrategias do AcN, destaca-se o piano de a9ao nutricional, inserido no projeto terapeutico singular. Trata-se de um planejamento individualizado e dinamico, cujo objetivo e guiar as d ecisoes do TN ao longo do tratamento. Nele, determinam-se: ■ 0 objetivo geral do tratamento. ■ A modalidade (ambulat6rio ou consult6rio, hospital-dia, interna9ao, visita domiciliar). ■ A abordagem do tratame nto (educa<;:ao alimentar/nutricional, dietoterapia, AcN). • A equipe envolvida (disciplinar, multi, inter o u transdisciplinar; quais profissionais estarao envolvidos e como vao interagir). • A frequencia, dura<;:ao e custo dos aten dimentos (quando esses existirem). ■ As formas de avalia<;:iio. ■ As a<;:oes detalhadas que o TN vai propor n o tratamento (como serao estruturadas as consultas?). • A...,, metas detnlhadas. NUTRICAO COMPORTA MENHl Considerando as ac;oes detalhadas do plano de ac;ao nutricional, e interessante que o TN considere nao prescrever uma dieta, e sim propor fazer o planejamento alimentar com a pessoa aconselhada. Trata-se de um plano que e mais gradual, flexivel e particularizado que uma dieta. Ele deve ser elaborado pelo TN em conjunto com o individuo e utilizado nao apenas para auxilia-lo a planejar o que sera consumido (o que, quanto e quais alimentos sao mais adequados), porem, mais importante, para ajuda- -lo a construir um percurso solido e gradual de como fazer para que o planejamento alimentar proposto seja viavei.i.s Tambem podem fazer parte das a<;oes detalhadas algumas praticas educativas ao longo do tratamento. Tradicionalmente, as praticas educa- tivas propostas no cuidado nutricional tern carater predominantemente normativo, caracterizado muitas vezes pela desconsiderac;io dos detenni- nantes do processo saude-doen<;a, dos saberes individuais, alem de aspec- tos pessoais, afetivos e subjetivos. Tais praticas siio muitas vezes desen- volvidas de forma fragmentada e desarticulada da realidade do individuo, nao resultando em a<;oes transformadoras (por exemplo: ac;oes voltadas a informar sabre os beneficios e maleficios de alimentos e nutrientes quan- do o paciente ainda nao se mostra interessado ou motivado no tratamento). Consequencias desse modelo podem incluir a resistencia do individuo para praticar as a<;oes propostas, a gerac;ao de senrimento de culpa daque- les que nao conseguem prat ica-las e ate mesmo a descontinuidade do tratamento.19 Algumas pessoas podem ter um repertorio alimentar pouco desenvolvido, sendo papel do profissional ajuda-las a se familiarizar com diferentes comidas, texturas, prepara<;6es, combinac;oes de gostos, entre outros aspectos. Para tais pessoas, praticas educativas normativas podem desmotiva-las para nem sequer tentar novas mudan<;as. Considerando-se os principios do AcN, ao propor praticas educativas, o TN deve priorizar a dimensao socializadora da alimenta~ao e a amplia- e,ao da autonomia e do protagonismo do indivfduo no tratamento, tornan- do-o apto para tomar decisoes acerca da sua saude e alimentac;ao (Capi- tulo 12). Nesse sentido,ex·periencias culinarias podem ser interessantes, pois perrnitem superar o carater tradicionalmente biol6gico que marca o discurso sobre alimenta~ao saudavel e o enfoque nas caracteristicas nu- ACONSElH0.1£NTO NUTRICIOIIAL VERSUS PRtSCRIClO tricionais de cada alimento. Diferentemente, ao propor experiencias culi- narias, coloca-se o foco na comida e em seus significados, e tambem pet- mite resgatar a experiencia culinaria, valorizando-a como uma pratica de cuidado consigo e com o outro.20 Diez-Garcia e Castro21 exploraram o potencial da culinaria discutindo dois estudos: um com individuos de dois segmentos socioeconomicos que tinham restri~ao de saP1 e outro que usou a culinaria como eixo estruturante de um metodo educativo para a pro- m~ao da alimenta<;ao saudavel.1° No primeiro estudo, observou-se que a experiencia culinaria foi efetiva para melhorar a qualidade da informa~ao sobre o consumo e as praticas alimentares. No segundo, abordar as dimen- soes sensoriais, cognitivas e simbolicas das comidas por meio da pratica culinaria mostrou-se uma estrategia efetiva para promover mudan~as alimentares. Em ambos os estudos e possivel perceber o potencial da culi- naria como uma pratica educativa mais significativa. Assim, pode fazer parte das ac;oes detalhadas do plano de a~ao nutricional, entre outras coi- sas, fazer degusta~oes de alimentos, idas ao supermercado e fazer refei~oes • com o individuo. Trabalhar com a distribuic;ao de receitas tambem e uma ~ estrategia interessante. Nesse sentido, e fundamental que o pr6prio pro- ~ fissional tenha interesse por culinaria e procure, com isso, auxiliar o inte- resse por diferentes comidas e prepara<;oes, propondo receitas saborosas, praticas e saudaveis. Tais estrategias podem ser importantes para ajudar o individuo a perceber novas possibilidades acerca da sua alimenta~ao e, com isso, a adquirir novas preferencias alimentares e a fazer escolhas alimentares mais adequadas. As metas detalhadas do plano de ac;ao nutricional sao uma proposta de analise do diario alimentar a partir da qual o TN, em conjunto com o individuo, estabelece o que precisa ser mudado. As metas (ou seja, as mu- dan~as) devem ser propostas em uma lista de prioridades, com base no que precisa ser mudado em ordem decrescente de importancia e urgencia. Metas genericas (como "melhorar a alimentai;ao") nao sio recomendaveis. Alem disso, cada meta proposta deve ser detalhada, sendo necessario de- terminar o que a pessoa deve fazer para conseguir realizar as mudan~as listadas. Assim, para cada meta proposta na lista de prioridades faz-se wna lista correspondente de estrategias para mudanc;as (Quadro 7.4). Q~a~~oad7.4. Propo 1 . sta de estruturatio das metas detalhadas, que incluem a lista de poor, es e a lsta de estrategias para mudan~as Metas detalhadas u,ta ae prioridades · Lista de estrat~gl~s para mudan~as 1) 1) 2) 2) 3) 3) Destaca-se que as metas nao devem ser pensadas exclusivarnente em mudam;as alimentares, e sim em qualquer estrategia que possa beneficiar o individuo diante de seus esforc;os para mudar a estrutura. o consumo e suas atitudes alimentares (Capitulo 2). Podem estabelecer, por exemplo, quern pode ajudar e quais aspectos da rotina da pessoa podem ser mudados para que determinada meta seja mais facilmente praticada. E essencial que a todo final do atendimento o individuo tenha urna ideia clara do que ficou plane- jado como meta. Anotar o que foi conversado em consulta e bastante (1til. 0 TN e o individuo devem fazer um brainstorming (discussao para novas ideias) de soluc;oes para as dificuldades enfrentadas e avaliar os pros e contras de soluc;oes em potencial, colocando-as posterionnente em pra- tica. 0 estabelecimento de metas da espac;o para que o individuo determi- ne qual caminho quer seguir e o quanto esta disposto a trabalhar para al- canc;a-lo; tambem contribui para que se sinta mais capaz e confiante e para que ac;oes mais elaboradas sejam trac;adas ao longo do tratarnento.4 A participac;ao ativa na selec;ao e no estabelecimento de metas resulta em decisoes consentidas e apropriadas para quern as estabelece, colocando o indivfduo em uma posic;ao central e ativa durante o tratamento.4 Tai par- ticipac;ao promove autonomia, conceito tambem central na entrevista motivacional (Capitulo 9) e autoeficacia - central para competencias ali- mentares (Capitulo 12). Assim. o TN deve es?mula-lo a pensar em metas e solus:oes e elogia-lo quando praticar uma meta proposta. Tambem deve encorajar o individuo a an tever os possiveis obstaculos e propor solU<;oes (por exemplo, "o que dificultaria essa meta?"; "Como isto pode ser resolvido?"; "O que voce faria caso essa situa~ao acontecesse?"). Finalmente, cabe sublinhar a importanM cia da lista de estrategias para mudan~a, pois ela agrega a maior di.ficufda- de dos individuos: o "como fazer?". Um estudo quaJitativo sobre as vivencias de individuos australianos com obesidade ilustra bem essa questao: as pessoas sentiarn-se frustradas porque lhes era constantemente ctito o que fazer para emagrecer, mas nao recebiam suporte para se exercitar e se alimentar melhor. Os autores concluiram que simplesmente dizer "coma menos" ou "coma menos doces" (ou, em urn discurso politicamente corre- to, "reduza a ingestao de doces"), sem um caminho pelo o qua I se pode fazer esta mudanc;a, corresponde a dizer a um asmatico "respire melhor''. 22 Trabalhando com as atitudes alimentares Na abordagem tradicional da nutri<;ao (e, de forma veemente, na midia leiga), e comum que a educac;ao nutricional se concentre em alimentos in- dividuais que deveriam ser evitados. Embora niio intendonalmente, pode-se destacar como contribuic;ao desta conduta a criac;ao de um cenario confuso, promotor de culpa e preocupac;ao em relac;ao a alimentac;iio.23 Ressalta-se, por exemplo, a classificac;ao dicotomica dos alimentos (corno comidas sau- daveis e nao saudaveis; proibidas e perrnitidas etc.) e os sentimentos ambi- valentes das pessoas, pois se sentem divididas entre o prazer de comer de- terminada comida e seu valor nutricional.23 Alem disso, muitos podem ter a sensac;ao de que "nada funciona, e tudo muito dificil, comida saudavel e ruim, entao nao vou fazer nada mesmo". 0 relato a seguir, por exemplo, refere-se a uma orientac;ao nutricional que gerou duvida e resultou na des- continuidade do tratamento: ''Ela (nutricionista) mandou tirar um pouco esse feijao normal que a gente come, mandou consumir feijao preto, e o que eu como mais (o feijao preto) ... Eu nao entendi nada, eu niio fui mais nela".24 Como alternativa, evidencias tern mostrado que as mensagens de nutric;iio sao mais efetivas quando focam em maneiras de se fazer escolhas alimentares mais saudaveis ao longo do tempo (em vez de focar no que nao se deve comer) - ou seja, no comportamento.13 Um estudo qualitativo que buscou compreender as percep<j:6es e interpreta~oes de pessoas com ohesidade sobrc as mcnsagens de saude publica voltadas para o problema, • KU1RICAO COl.4 PO R1 HI EKTAL observou que eles consideraram que tais mensagens superestimam as consequencias de saude associadas a obesidade e subestimam suas dimen- soes social e psicol6gica; focaram demasiadamente na perda de peso; evitaram abordar comportamentos de risco associados a obesidade; nao informaram sobre sua etiologia e niio propuseram solu<;oes compreensivas. Eles sugeriram que as mensagens deveriam tirar o foco do peso corporal e enfatizar a saude e os beneficios de um estilo de vida saudavel..s Considere a seguinte situa<;ao: um individuo que come muito doce procura um TN buscando parar com esse comportamento. Uma maneira de abordar essa demanda seria a seguinte: "Me parece que voce espera que seu desejo por doces simplesmente desapare<;a. N6s podemos verse ha algo na sua alimentai;ao, corno pular refeii;oes, que contribua para esse desejo. Mas tambem podemos pensar o seguinte: o que aconteceria se voce se aceitasse comoalguem que gosta de doces? Sera que seria possivel encaixa-los na sua alimentai;ao, sem excessos e sem culpa?".18 Essa nova abordagem pode exi- gir uma explica<;ao mais complexa, porem parece ser mais efetiva. Alem disso, nesta abordagem sugere-se que o TN tenha uma postura positiva ao longo do tratamento, focando em o que comer (e nao no que nao comer), complementando com o quanto, quando e como comer. 0 TN tambem deve buscar prornover uma alimenta<;ao variada para seu paciente, incluindo alimentos de todos os grupos alimentares, levando em conta a propori;iio e o balanceamento das escolhas.13 0 profissional deve enfatizar a importancia dos diferentes papeis da alimenta<;ao (biologicos, subjetivos e socioculturais) e falar sobre comidas com as pessoas, e nao sobre nutrientes. Por fim, nessa concep<;iio, o TN deve enfatizar sempre melhoras gra- duais na alimenta<;iio.23 E mais provavel que o individuo se comprometa com mudani;as menores, porem alcan<;aveis, que, ao longo do tempo, in- fluenciarao sua motivai;ao para tentar novos comportamentos, pennitindo que mudani;as significativas sejam feitas em sua alimentai;ao e estilo de vida.16 O TN tambem deve sempre levar em considera~iio os significados culturais, emocionais, sociais e economicos ligados a comida (Capitulos 2 e 5) e, assim, permitir flexibilidade sempre que possivel. Por fim, e impor- tante esclarecer que a atividade fisica e um complemento necessario a alimenta9iio saudavel" (Capitulo 19). ACON SEL HAl.4ENTO NU1RICIONAl VERSUS PRES CRIClO O CONTEXTO DE UMA EOUIPE INTEROISCIPLINAR Pode-se dizer que um tratamento "padrao-ouro" acontece quando este e realizado por uma equipe interdisciplinar - composta por profissio- nais de diversas areas, mas, principalmente, implicados com o fato de que as praticas dos diversos campos estejam integradas e abram caminho para novas aprendizagens, sendo mais do que uma simples soma de inter- ven~oes diferentes e isoladas que sao propostas simultaneamente (como acontece em interven~oes multidisciplinares). A gama de campos propos- ta deve gerar reciprocidade, enriquecimento mutuo e tender para a hori- zontaliza~io das rela~oes de poder entre os saberes implicados.21 Quando a equipe se estabelece, e fundamental que identifique uma pro- blematica em comum, levantando uma platafonna de trabalho conj unto. Para isso, faz-se necessario colocar os principios e conceitos fundamentais de cada campo original, com a exposi~ao dos embasamentos te6ricos de 111 cada categoria profissional e a leitura de textos provocadores de reflexoes !: discussoes, por exemplo. Neste momemo, tambem e essencial que linhas Ci:::) claras de comunica?O sejam estabelecidas.27 Com tais defini~oes, a equipe 1 ~ deve avaliar os individuos conjuntamente, hem como decidir quais abordagens serao propostas para cada um deles e como o tratamento sera coordenado. Finalmente, a eficacia de um programa de tratarnento baseia-se, em grande parte, na coesao da equipe. Dessa forma, e importante que os profissionais se comuniquem e fa~am um grande esforc;o para manter reunioes regulares. Mesmo que a frequencia das reunioes fonnais com a equipe completa seja menor, a comunica<;ao dentro dela deve ser constante, podendo ser realiza- da de diversas formas, como por conversas pessoais, on-line, por telefonernas, cartas, e-mails e documentac;ao por escrito sobre a evoluc;ao do paciente.5 Por sua vez, o TN deve comunicar seu plano de tratamento aos diver- sos membros da equipe, alem de pedir e dividir informac;oes. Ele tambem deve buscar todas as informac;oes dos outros profissionais que o ajudem a entender melhor o individuo (como o hist6rico familiar, outros diagn6s- ticos), alem de disponibilizar os dados nutricionais. Ao trabalhar com um novo membro na equipe, o TN deve perguntar o que ele gostaria de saber sobre o AcN e que forma de comunicac;5.o e preferida. Nao se deve assumir que todOK os profissionais conhe~am o papel do TN, nem que tenham tido boas ~ ,a~6es com nutricionistas no i:-assado. Por isso, e importante d1:·ixar claro o que o TN pode fazer, o que esi:a fazendo e corno gostaria de desen- volver o tratamento em conjunto corn a equipe.5 Em situa~oes delicadas, por exernplo, quando outro membro da t>qui- pe M1 conselhos nutr icionais (que podem contradizer os do TN), ou quan- do alguem da equipe na.o concorda com a conduta do TN, deve-se: a) primeiramente determinar se a situa~a.o gera const!qu~ncias negativas para o in~viduo ou e· apenas incomoda para o TN; b) trabalhar a situ.1~io em supervisao, sempre no sentido de prover o melhc•r cuidado para o in- dividuo; c) comunicar amigavelmentc! sua preocupa~iio ou incomodo para o membro da equipe; d) encerrar o tratamento (com cuidado e respeito) se for incapaz de resolver os problemas e acreditar que estes comprom(~tem o cuidado do individ·10.5 0 AcN tern se mostrando uma estrategia efetiva para facilitar o preoces- so de mudan9as de comportamento e parece produzir resultados mah; ex- pressivos relacionadc-s ao cuidado nutricional do que a abordagem pre:;cri- tiva tradicion~. Trata-se de uma opo,tunidade de crescimento, tanto para os profissionais como para as pessoas. Para os primeiros, a tecnica fornece diferentes ferramentas e estrategias qt1e abordam aspectos como motiv-0:1~11.o, resist·encia e barreiras para mudan~as. Tambem encoraj a que se investiguem os pensarnentos e ser1timentos do individuo; nesse sentido, um diferencial e um aspecto chave no tratamento e o relacionamento significativo emre o TN e o individuo. Pal'a os individuos, o AcN pode ser uma chance para se relacionarem melhor com seu corpo e com sua alimentac;ao, visto que neste processo sao estimulados a explorar novas maneiras de pensar sobre tais aspeetos, tentar nova:, a~oes, respond,~r de maneira diferente a certos ,~sti- mulos, escolher comidas com base em novos criterios e lidar com diferentes situa,;oes sem recorrer (sempre) a comida. 0 AcN estimula que os individu- os tomem suas proprias decisoes, responsabilizando-os sobre suas escolhas e colocando-os em urna posi~ao ativa ao longo do tratamento. Por fim, retoma--se que o AcN posiciona o TN como um "agent,e de mudan~as", e niio aprnas um educadc,r, sendo fundamental que este te-nha familiari<fude com as estrategias e fe1ramentas que p ropoe. Por isso, para os profissionais interessados em praticar essa concep~ io de tratamento, tomar-:;e um "TN" pode ser um desafic,. Aspectos que os benefidam si:r- nificafr,,amente nesse processo incluem leituras, palestras e uma aproxi- ma~io ,:om diferentes :ireas de conhecimento, alem de investimento rca supervisio. Destaca-se, no entanto, qm:? esse percurso de crescimento e amplia~:11.o da atua~ao p-ro.fissional e um processo de constante aprendiu- do, sendo necessario que o TN esteja dh posto a se lan-;ii r nessa dina.mica, mostrando uma postura de abertura para novas tentativas e seus resultados. REFEREltelAS BIBLIOGRAFICAS 1. King K, Klawitter B. Nu uition therapy: ad\ anced counseling ,,kills. 3. ed. Philadcl · phia: Lippincott Williams & Wilkins; 2007. 2. Fischler C. Commensality, society and cult ure. Soc Sci Inf. 2011;50:528-48. 3. Motta DG. Aconselharnento nutricional. ln: Motta DG. Educa~io nutricional e diabetes tipo 2. Piracicaba: Jacintha; 2009. p.27-33. 4. Spahn JM, Reeves RS, Keim KS, Laquatra I, Kellogg M, Jortberg B, et al. State •>f the e'lidence regarding behavior change theories and strategi<!S in nutrition cow1- selini; to facilitate healtl: and food behavior change. J Am Diet Assoc. 2010;110:8711- 91. 5. Alvarenga M, Scagliusi FB. Reflexoes e orienta<;oes sobre a 11tua~io do terapeui:a nutricional em transtomos alimentares. I n: Alvarenga M, Scagliusi FB, Philipp i ST. Nutri~io e transtornos alimentares: avalia~iio e t ratamento. Barueri: Manoi ?; 2011. p. 237-56. 6. Martlns C. Aconselhamento nutricional. I n: Cuppari L. Guiu de nutri~ao: clinic-a no adulto. 3.ed. Barueri: Manole, 2014. p. l !il-69. 7.BRASIL. Ministerio da Saude. Secretaria d•! Atenr;ii.o a Saude. Politica Nacional de Humaniza~lo da Aten~·ao e Gestao do SUS. Clinica amplia,la e compartilhad!l. Brasilia: Ministerio da Saude; 2009. 8. Rosal MC, Ebbeling CB, Lofgren I, Ockenc JK, Ockene IS, Hebert JR Facilitatir,g dietary change: the patient-centered counseling model. J Am Diet Asso ,: . 2001;101:332-41. 9. Reiff OW, ReiffKKL. The role of the nutri1'ion therapist In: Reiff DW, Reiff KKL. Eating disorders - nutrition therapy in the recovery process. Maryland: Aspen Publi;hers; 1992. p.107-18. 10. Silva AP, Barros CR. Nonueira ML, Barros VA. "Conte-me sut1 historia": retlex.o<$ sobre o metodo de hist6 ia de vida. Mosaico: Estudos em psic,,\ogia. 2007;1:25·3 5. 11. Hancock REE, Bonner G, Hollingdale R, Madden AM. 'If you listen to me prope~- ly, I focl gnod': a qualitative examination of patient experienct.-s of dietetic consu\- t:it:ions . .I I tum Nutr Diet. 2012;25:27~-84.