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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC CENTRO TECNOLÓGICO - CTC DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO HISTÓRIA DA ARTE, ARQUITETURA E URBANISMO II –ARQ 5622 MARCELO REGUEIRA DUTRA - 19103976 A MODERNIDADE LAGEANA EXPRESSA NOS CINEMAS DE RUA FLORIANÓPOLIS, 2019 INTRODUÇÃO As origens de Lages tem início na sua notável importância ao ciclo do tropeirismo, que a consolidou como um ponto estratégico no caminho das tropas que interligava o sul do Brasil ao centro econômico e político da época (SP). Por conta desse legado que perdurou até o início do século XX, a cidade mantinha uma boa comunicação com o progresso que o país buscava desenvolver ao mesmo tempo que alimentava sua sede de tornar-se uma cidade relevante ao cenário brasileiro. Nesse contexto, busco responder às inquietações sobre as memórias de Lages trazendo um recorte da modernidade lageana presente no Art Déco e nos cinemas de rua que marcaram uma transformação tanto na arquitetura quanto na experiência de cidade. A MODERNIDADE LAGEANA Ao fim do tropeirismo que marcara a cidade, Lages iniciava o novo ciclo econômico da madeira. O extrativismo da araucária aliada a força política de Nereu Ramos transformaram Lages em um importante polo econômico de SC, aderindo-se às novas orientações de urbanização e modernização dos anos 30 que se espalharam por todo o país. Dessa nova era, o Art Déco marca-se como a expressão máxima da arquitetura, moda e estilo de vida que estampavam agora nas fachadas e gabaritos lageanos. Cidade das praças e jardins, dos jogos ao entardecer, das brincadeiras de rua, dos passeios e namoros; cidade das desigualdades, cidades violentas, cidades utópicas. As cidades são edificadas e aos poucos começam a se desvelar: em cada esquina um sonho, em cada parede uma memória, em cada detalhe uma inspiração crítica. ausências e presenças, memórias inscritas na cidade . 1 Uma nova identidade cultural se esboçava nas ruas da cidade fundamentadas no Art Déco que iam além dos desenhos das fachadas e esquinas arredondadas estabelecendo novos programas arquitetônicos tais como cine-teatros, hospital, fórum de justiça, lojas e mercado. Boa parte dessa nova paisagem de Lages foi concebida por Wolfgang Ludwig Ráu, arquiteto suíço que realizou projetos importantes tais como os cines Marajoara e Tamoio e o Mercado Público de Lages. O sonho de uma cidade modernizada parecia estar cada vez mais presente nas ruas; “eram os ares cosmopolitas consumidos pela elite local” (PEIXER, 2013). No entanto, o que vigorava ainda era a cidade dos coronéis. Isso por que a preocupação de modernização manteve-se muito mais na estética 1 Peixer, Zilma Isabel. et al. 2013. Memórias, ausências e presenças do Art Déco em Lages. Florianópolis: Editora da UFSC. pg.15 e no consumo do que uma verdadeira mudança dos padrões de cidade relacionados a questões sociais. Foi um processo urbano marcado por uma modernização de aparências, se considerarmos que a economia se baseava no extrativismo da madeira e as relações de produção eram as mesmas da estratificação social de pecuária . 2 Esse mesmo contraste é visível nas edificações do Déco lageano: há uma contradição entre as fachadas modernas com platibandas que remetem aos skylines de grandes metrópoles e as técnicas construtivas tradicionais de paredes portantes e utilização de barrotes ao invés de lajes concretadas. Nesse sentido, o Art Déco em Lages expressava muito mais o desejo do novo do que propriamente o novo, o que confirma a tese de que a arte, em sua maioria, não se refere ao real, mas sim ao imaginário (FRANCASTEL, 1973). Desejo esse vindo boa parte por influência do cinema: a nova arte-técnica que projetava imagens, movimentos e velocidade transformando os centros urbanos em prolongações dos cenários cinematográficos. O CINEMA LAGEANO As salas de cinema lageanas expressavam os novos pontos focais do panorama urbano, trazendo uma nova dinâmica de cidade, mesmo que ainda mantivesse seus ideais tradicionalistas da elite local. Por meio do cinema, a magia da modernidade chegou em lages trazendo além de exuberantes salas uma nova experiência estética e sensorial por meio de uma tecnologia sonora e visual. A modernidade agora também se projetava em grandes telas. É dessa importância que o cinema representou na construção do séc. XX que Walter Benjamin desenvolve sua tese de que o cinema mostra-se como a arte que mais corresponde ao homem moderno, pois provoca a sensibilidade do espectador que já vive em um plano de cidade moderna. As imagens cinematográficas são , para o homem da década de 30, infinitamente significativas (BENJAMIN. 1987). A velocidade, o movimento, a imagem penetram no imaginário do espectador que interpreta aquilo como parte de sua realidade, modificando sua forma de olhar e sentir o mundo. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido. 3 2 Teixeira, Luiz Eduardo Fontoura. 2009. Arquitetura e cidade: a modernidade (possível) em Florianópolis, Santa Catarina - 1930-1960 São Carlos. Pg. 148 3 Benjamin, Walter. 1987. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense. pg 174 A vivência dos cinemas também se reflete na compreensão do espectador com a arquitetura, pois o cinema representava além de um novo tipo de arte, um novo tipo de desenho arquitetônico, com impactos na paisagem urbana e no cotidiano dos moradores. Frequentar os cinemas não significava apenas assistir aos filmes, mas sim participar da modernidade e usufruir da majestosa arquitetura das salas. Nesse sentido, o cine-teatro Carlos Gomes, inaugurado em 20 de janeiro de 1939, marca o início da modernidade dos cinemas em Lages. Projetado por Wolfgang Ludwig Ráu,o prédio apresenta características do início do Déco lageano com a fachada geometrizada e simétrica, ajustando-se a categoria de “Racionalismo Geométrico” de Paul Maenz. Mantinha ainda um sistema de construção tradicional além de prolongar a platibanda de forma a esconder as águas inclinadas correspondentes ao modo convencional da época. O cine Carlos Gomes é um ótimo exemplo do desejo de modernidade sem necessariamente ser moderno. Imagens do cine na época em que ainda estava de pé revelam uma contradição entre a sociedade rural lageano (com ruas de chão batido e carroças) e os desenhos de Ráu do interior do cinema que apresentam um foyer moderno, tecnológico e reluzente. Outra informação que podemos tirar das fotografias do cine-teatro é a transformação física de uma era do teatro que aos poucos foi perdendo lugar para o cinema: o nome do edifício, gravado com alvenaria, tem somente a palavra “teatro”, ao passo que posteriormente foi adicionada uma placa no topo da platibanda escrita “cinema” sugerindo que os espaço agora também exibia filmes. Inaugurado em 18 de novembro de 1947, o Edifício Marajoara, o qual contém o cine-teatro de mesmo nome, é, sem dúvidas, a grande obra de destaque no cenário lageano tanto no cinema quanto na arquitetura. Idealizado por Mário Augusto de Sousa (empresário da arte cinematográfica) e projetado por Ráu, o cine-teatro tomou o lugar de importância do Carlos Gomes transformando-se na grande referência de cinema da cidade. O novo cine apresentava exibições de grandes filmes de lançamento enquanto o outro “passou a ser o exibidor de filmes populares, isto é, produções do gênero romance em série, policiais, e aventuras no far-west” . O cine Marajoara era frequentado 4 principalmente pela elite econômica e cultural que via no edifício o grande orgulho municipal que supriria seus desejos de serem reconhecidos artisticamente. Nesse sentido, a construção do edifício revela a influência cultural e administrativa que a cidade sempre teve com os grandes centros assim como o viés lucrativo e comercial que deu partido ao projeto. O anseio pelo reconhecimento também se projeta no desenho do edifício: desde a composição da fachada ao detalhamento do interior (com 4 Correio Lageano 29.11.1947, pg. 8. mobiliário e luminárias em Art Déco) constroem um conjunto arquitetônico em harmonia com os cenários cinematográficos hollywoodianos. Além de ser um exemplar do estilo Déco, o prédio segue o que Maenz classifica como “Exótico” por tentar trazer referências a cultura marajoara (sociedade indígena do rio amazonas) com carrancas moldadas na parede e traços cubistas, o que levam a César Lavoura integrar-lo como uma valorização da identidade nacional proposto pela semana da arte moderna de 1922 . No entanto, prevalece a visão 5 de que o edifício apenas “seguia a moda recorrente de criar motivos exóticos na arquitetura, alimentado, sobretudo pelos filmes de Hollywood” (ISHIDA, 2013). Embora o próprio Ráu afirma ter desenhado ao “estilo marajoara”, o mesmo não se esforçou muito em manter fidelidade ao estilo além de acrescentar ao letreiro do cine a imagem de um cacique com a fisionomia dos sioux norte americanos, os quais eram bem distantes da cultura dos marajoaras. Cabe destacar a inserção a paisagem da cidade, respeitando as linhas e proporções do entorno da época sem perder o seu destaque. Nota-se que a inversão da fachada de modo a valorizar ainda mais o prédio pelo fato de deslocar a torre lateral para o lado mais alto da edificação, visto que a rua possui um leve declive. Nesse sentido, a volumetria e a plástica do projeto chamam a atenção do olhar, através da formulação de uma torre lateral à fachada, propondo marcar à distância, pela verticalização de um elemento compositivo – e essa é a sua função – a chegada de um novo ícone urbano, tentando aparentemente rivalizar com a torre da Catedral, está símbolo de outros tempos 6 O Marajoara traz também um convite ao pedestre ao constituir uma transição entre o público e o privado por meio de um espaço que antecede a entrado do cine, prolongando a rua para dentro do edifício. Neste ambiente encontram-se as bilheterias servindo também para abrigar a fila de espectadores de modo que deixa o passeio público livre, sem interrompê-lo. A passagem do externo e interno também se destaca no Cine-Teatro Tamoio ao compor uma volumetria que respeita a escala do pedestre: a parte superior do edifício é recuada mantendo apenas o volume da entrada próximo a rua, o qual ganha a inovadora função de conter os cartazes dos filmes ao invés de ser colocado no nível da rua. Com traços que remetem muito ao cinema parisiense Folies-Bergère, trazendo-lhe um ar monumental, o Cine Tamoio veio um ano após o Marajoara. Tendo também seu nome e alguns detalhes em “homenagem” a sociedades indígenas, o cine diferenciava-se pelo pelo público que o frequentava. Enquanto o Cine Marajoara mantinha ainda a fidelidade da elite local, o Cine Tamoio deu vez aos populares exibindo 5 Lavoura, César. 2013 O Poder Simbólico das Artes. Florianópolis: Letras Contemporâneas. pg.149 6 Teixeira, 2003, In Peixer, Zilma Isabel (coord). Levantamento Histórico e Arquitetônico dos sítios históricos de Lages/SC . FAPESC/UNIPLAC. Lages. (Relatório) novelas policiais, filmes de bang bang e mantinha sessões dos chamados filmes de público “adultos” . O 7 destaque do cine fica para o começo das exibições. Os espectadores esperavam ansiosamente que uma cortina, antecipando o ligar das máquinas, abrisse rente ao ecrã dando espaço para que se projetasse o grande espetáculo do século: a modernidade. CONCLUSÃO Na era das inovações, tecnologias e grandes metrópolis, até uma cidade no interior de Santa Catarina, tendo suas origens ligadas a pecuária, desejava estar incluído nos padrões do novo mundo. A modernidade lageano representou os anseios de uma elite que sonhava em transformar-se reconhecida tanto no campo da economia quanto no da arte. Mesmo que em partes tenha fugidodo ideal moderno, Lages viu, durante as décadas de 30 e 40, uma transformação extremamente significativa na experiência de cidade. Compreende-se, a partir dos estudos, a importância do Art Déco lageano como registro histórico de um sociedade rural que buscava a construção de símbolos da modernidade, tais como os cinemas. O entendimento dos impactos que o cinema trouxe ao homem moderno auxilia na percepção de uma nova paisagem e dinâmica urbana. O cinema foi fundamental no desenvolvimento da arquitetura moderna e no novo comportamento e consumo do cotidiano das cidades contemporâneas, o que nos leva a concluir a íntima relação entre o cinema e o moderno. O desenvolvimento deste trabalho foi extremamente gratificante ao passo que trouxe respostas a diversas perguntas minhas, inclusive algumas que ainda nem havia conhecimento. Resta, agora, uma nova inquietação sobre os que fins levaram a modernidade lageana. 7 Lavoura, César. 2013 O Poder Simbólico das Artes. Florianópolis: Letras Contemporâneas. pg. 155 REGISTRO ICONOGRÁFICO CINE-TEATRO CARLOS GOMES 1.1 1.2 1.3 CINE-TEATRO MARAJOARA 2.01 2.02 2.03 2.04 2.05 2.06 2.07 2.08 2.09 2.10 2.11 CINE-TEATRO TAMOIO 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 CINE FOLIES-BERGÈRE 4 REFERÊNCIAS 1. BENJAMIN, Walter. 1987. Magia e Técnica, Arte e Política. 3ª Edição. São Paulo: Brasiliense 2. FRANCASTEL, Pierre. 1973. A Realidade Figurativa. Ed. da Universidade de São Paulo. São Paulo: Perspectiva. 3. ISHIDA, Americo. et al. 2013. Memórias, ausências e presenças do Art Déco em Lages. Florianópolis: Editora UFSC. 4. LAVOURA, César. 2013 O Poder Simbólico das Artes. Florianópolis: Letras Contemporânea. 5. MAENZ, Paul. 1974. Art Déco: 1920-1940. São Paulo: Gustavo Gili. 6. MUNARIM, Ulisses. 2009. Arquitetura dos cinemas: um estudo da modernidade em Santa Catarina / Ulisses Munarim. – Florianópolis, UFSC / PGAU-CIDADE. 7. PEIXER, Zilma Isabel. A cidade e seus tempos: o processo de construção do espaço urbano em Lages. Lages: Uniplac, 2002. 8. TEIXEIRA, 2003, In Peixer, Zilma Isabel (coord). Levantamento Histórico e Arquitetônico dos sítios históricos de Lages/SC. FAPESC/UNIPLAC. Lages. (Relatório) 9. TEIXEIRA, Luiz Eduardo Fontoura. 2009. Arquitetura e cidade: a modernidade (possível) em Florianópolis, Santa Catarina - 1930-1960. São Carlos, EESC/USP.