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EDUCAÇÃO NO BRASIL: CONCEPÇÃO E DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI Texto adaptado de Dermeval Saviani http://www.ifpb.edu.br/reitoria/noticias/dia-internacional-da-educacao-1/image O problema das concepções de educação pode ser abordado de diferentes maneiras. Um enfoque possível é a partir da filosofia identificando-se, em consequência, as principais concepções de educação expressas nas grandes tendências que se manifestaram ao longo da história. Nessa linha de análise poderíamos chegar às diversas concepções de filosofia da educação considerando também as correntes filosóficas a elas articuladas. Outra forma de abordagem seria levar em conta o aspecto propriamente pedagógico o que nos conduziria a identificar as principais correntes pedagógicas como o escolanovismo, o não-diretivismo, o construtivismo, o behaviorismo, etc. Uma outra maneira seria considerar a educação a partir da função social desempenhada nas diferentes sociedades ao longo do tempo. Nesse caso a educação seria concebida como um processo de inculturação ou aculturação das novas gerações nas tradições e nos costumes característicos de uma formação social determinada. Nesse âmbito emergiriam, como assinalou Durkheim, os papeis de homogeneização e diferenciação requeridos de seus membros por parte da sociedade. No entanto, para efeitos desta exposição no âmbito dessa Conferência Nacional de Educação, Cultura e Desporto, não vou seguir nenhum dos caminhos acima apontados. Vou procurar me ater aos objetivos desse evento que, inspirado em Anísio Teixeira e pretendendo ser dominantemente propositivo, nos convida a buscar alternativas concretas, em especial no âmbito da legislação, de modo a delinear com a clareza que se revelar possível, a concepção e as medidas dela decorrentes exigidas para se enfrentar os desafios que se põem para a educação brasileira neste limiar do século XXI. CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO http://cursosedicas.com/wp-content/uploads/2014/06/banner_selecao_monitores_mais_educacao.jpg O entendimento dos problemas enfrentados pela educação brasileira atualmente implica a compreensão da forma assumida pela educação no contexto das sociedades modernas. Caracterizadas pelo predomínio da cidade e da indústria sobre o campo e a agricultura, essas sociedades se constituíram sob a forma do direito positivo regendo-se por constituições escritas e generalizando relações formalizadas através de contratos cujo teor se manifestava também por escrito e cuja adesão se dava através da assinatura que expressava a concordância , após sua leitura, com o conteúdo das cláusulas do contrato. Incorporava-se, assim, à vida social a expressão escrita. Em consequência, para participar ativamente desse tipo de sociedade nas diversas e múltiplas funções por ela desenvolvidas, se faz necessário o ingresso na cultura letrada. Ora, sendo essa forma de cultura um processo formalizado, sistemático, só pode ser atingida através de um processo educativo também sistemático. Portanto, a sociedade moderna não podia mais se satisfazer com uma educação difusa, assistemática e espontânea, passando a requerer uma educação organizada de forma sistemática e deliberada, isto é, institucionalizada o que veio a colocar a educação escolar como a forma principal e dominante de educação. No contexto descrito o acesso à escola passa a ser considerado como um direito de todo cidadão e, como tal, um dever do Estado. O cumprimento de esse dever assume, no final do século XIX, a forma da organização dos sistemas nacionais de ensino, entendidos como amplas redes de escolas articuladas verticais e horizontalmente tendo como função garantir a toda a população dos respectivos países o acesso à cultura letrada traduzido na erradicação do analfabetismo através da universalização da escola primária considerada, por isso mesmo, de frequência obrigatória. http://envolverde.com.br/portal/wp-content/uploads/2013/08/abc.jpg Os principais países, não apenas da Europa, mas também da América Latina, como se pode ver pelo exemplo de nossos vizinhos, a Argentina, o Chile e o Uruguai, tendo organizado os seus sistemas nacionais de ensino a partir do final do século XIX, lograram universalizar o ensino elementar e, com isso, erradicar o analfabetismo. O Brasil não fez isso. Após uma tentativa fracassada por ocasião da Constituinte de 1823 e, depois, com a lei das escolas de primeiras letras de 1827, relegou-se a educação básica durante todo o Império e ao longo da Primeira República às Províncias e, depois, aos Estados federados, desobrigando-se desse dever o Estado Nacional. Foi somente após a Revolução de 1930 que a educação no Brasil começou a ser tratada como uma questão nacional dando-se precedência, porém, ao ensino secundário e superior já que foi só em 1946 que viemos a ter uma lei nacional relativa ao ensino primário. E, ainda assim, o trato da questão educacional foi sempre, entre nós, atravessado por um dualismo desqualificador da instrução popular em confronto com aquela destinada às elites. Com efeito, as reformas Capanema da década de 1940 foram marcadas pela contraposição entre ensino secundário destinado às elites condutoras e ensino profissional voltado para o povo conduzido. Procurou-se corrigir essa distorção através das leis de equivalência entre os vários ramos do ensino médio na década de 1950, equivalência essa que foi incorporada à nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional promulgada em 1961. E a Lei 5692 de 11 de agosto de 1971, ao justificar a tentativa de universalização compulsória da profissionalização no ensino de segundo grau, trouxe à baila o slogan "ensino secundário para os nossos filhos e ensino profissional para os filhos dos outros" com o qual se procurava criticar o dualismo anterior sugerindo que as elites reservavam para si o ensino preparatório para ingresso no nível superior, relegando a população ao ensino profissional destinado ao exercício de funções subalternas. Deve-se notar, porém, que essa mesma lei 5.692 introduziu a distinção entre terminalidade ideal ou legal, que corresponde à escolaridade completa de primeiro e segundo graus com a duração de onze anos, e terminalidade real, a qual implicava a antecipação da formação profissional de modo a garantir que todos, mesmo aqueles que não chegassem ao segundo grau ou não completassem o primeiro grau, saíssem da escola com algum preparo profissional para ingressar no mercado de trabalho. Admitiu-se, pois, que nas regiões menos desenvolvidas, nas escolas mais carentes, portanto, para a população de um modo geral, a terminalidade real resultaria abaixo da legal, isto é, chegaria até os dez anos de escolaridade ou oito, sete, seis ou mesmo quatro anos correspondentes ao antigo curso primário devendo receber, mesmo nesses casos, algum preparo profissional para daí passar diretamente ao mercado de trabalho. Ora, através desse mecanismo a diferenciação e o tratamento desigual foram mantidos no próprio texto da lei, apenas convertendo o slogan anterior neste outro: "terminalidade legal para os nossos filhos e terminalidade real para os filhos dos outros". http://www.unifebe.edu.br/site//docs/imagens/pos_graduacao/especializacao_docencia_educacao_basica/educacao_ba sica.jpg Observe-se, finalmente, que o referido dualismo se faz presente também na política educacional atual não apenas quando, na reforma do ensino médio, se separa o ensino técnico do ensino médio de caráter geral e quando se advogam no ensino superior os centros de excelência destinados a ministrar às elites um ensino de qualidade articulado com a pesquisa em contraste com as instituições que ofereceriam ensino sem pesquisa. Esse dualismo se manifesta também no ensino fundamental ao se propor para a rede pública um ensino aligeirado avaliado pelo mecanismo da promoçãoautomática e conduzido por professores formados em cursos de curta duração organizados nas escolas normais superiores com ênfase maior no aspecto prático-técnico em detrimento da formação de um professor culto, dotado de uma fundamentação teórica consistente que dê densidade à sua prática docente. Esta última alternativa ficará reservada às escolas destinadas às elites que certamente continuarão a recrutar os seus professores dentre aqueles formados nos cursos de licenciatura longa, preferentemente oriundos dos centros de excelência constituídos pelas universidades públicas que preservarão a exigência da indissociabilidade entre ensino e pesquisa. http://www.linkedportugal.com/wp-content/uploads/2013/05/avaliar-linkedin.jpg VISÃO CRÍTICA DA CONCEPÇÃO QUE ORIENTA A POLÍTICA EDUCACIONAL ATUALMENTE EM VIGOR A política educacional que vem sendo implementada no Brasil, sob a direção do Ministério da Educação, se caracteriza pela flexibilização, pela descentralização das responsabilidades de manutenção das escolas através de mecanismos que forcem os municípios a assumir os encargos do ensino fundamental associados a apelos à sociedade de modo geral, aí compreendidas as empresas, organizações não-governamentais, a comunidade próxima à escola, os pais e os próprios cidadãos individualmente considerados, no sentido de que cooperem, pela via do voluntarismo e da filantropia, na manutenção física, na administração e no próprio funcionamento pedagógico das escolas. Delineia-se, assim, um estímulo à diferenciação de iniciativas e diversificação de modelos de funcionamento e de gestão do ensino escolar. Em contrapartida, com base na montagem de um "sistema nacional de avaliação" respaldado pela LDB, centraliza-se no MEC o controle do rendimento escolar em todos os níveis, desde as creches até a pós-graduação. Há, pois, um estímulo à descentralização traduzida na flexibilização, diferenciação e diversificação do processo de ensino mas uma centralização do controle dos seus resultados. Ora, as características acima enunciadas permitem perceber que a política educacional que está sendo implementada acentua, pela via da diferenciação apontada, as desigualdades educacionais aprofundando o dualismo antes referido. http://veja.abril.com.br/assets/images/2012/2/66069/educacao-20120214-82-size-620.jpg Aliás, cabe observar que a orientação em pauta se inspira naquilo que poderíamos chamar de "modelo americano". Esse modelo, diferentemente daquele que predominou nos países europeus, considera como função principal do ensino fundamental, a socialização das crianças ao passo que o modelo europeu enfatizava a função de formação intelectual o que implica a garantia de uma base comum, mais ou menos homogênea a partir da qual todos os cidadãos podem participar, em condições de igualdade, da vida da sociedade a que pertencem. Visando, pois, criar esse patamar comum centrado no domínio dos elementos fundamentais da cultura letrada de base científica, os principais países organizaram os sistemas nacionais de ensino como instrumento para universalizar a escola básica (o ensino elementar) e, por esse caminho, erradicar o analfabetismo. Em contrapartida nos Estados Unidos, a precedência da função de socialização das crianças atribuída à escola básica levou a vincular as escolas às comunidades próximas, isto é, aos municípios, dispensando-se um sistema nacional e priviligiando-se, na avaliação da aprendizagem das crianças, sua capacidade de relacionamento e interação com as demais crianças ao passo que, no modelo europeu, a avaliação implicava um sistema de exames destinado a aferir o grau de apreensão dos conhecimentos elementares que caracterizam uma formação intelectual correspondente ao domínio da cultura moderna entendida como necessária a toda a população e, por isso, sendo objeto de um ensino comum a todos. Do ponto de vista do processo, o modelo americano levou a uma maior diferenciação de iniciativas assim como à maior diversificação das formas de gestão, enquanto o modelo europeu conduziu a uma maior centralização das iniciativas e a uma forma de gestão relativamente unificada cuja responsabilidade primordial se localizava no Estado nacional. Do ponto de vista dos resultados se verifica que o modelo europeu foi capaz de garantir razoável coesão, assegurando um patamar comum que permitiu homogeneizar o acesso à cultura letrada, o que significou um razoável grau de igualdade de condições de participação de todos na vida social. Já o modelo americano resultou bem mais desigual, apresentando diversas distorções que têm sido objeto de alerta das próprias autoridades políticas e educacionais do próprio país e que volta e meia são divulgadas através da imprensa. Com efeito, de vez em quando nos deparamos com notícias em jornais ou revistas dando conta de que nos Estados Unidos é comum ocorrer que um significativo número de jovens cheguem a concluir o ensino médio e até mesmo a ingressar na universidade sendo praticamente analfabetos (os denominados analfabetos funcionais). Ora, essa é uma situação inteiramente estranha aos países europeus. Em verdade, nunca encontramos notícias semelhantes a respeito da Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega, França, Itália, Espanha, Portugal, em suma, dos países europeus de modo geral. Sem dúvida isso tem a ver com a diferença de modelos que presidiu a organização do ensino em um e em outro caso. http://cdn.mundodastribos.com/wp-admin/uploads/2010/03/Estagio-Supervisionado-Educacao-Infantil.jpg As observações feitas acima nos permitem aquilatar a gravidade da situação em que nos encontramos. Na verdade, considerando que nós sequer chegamos a universalizar a escola elementar, a adoção do modelo americano potencializa enormemente as consequências negativas detectadas nos Estados Unidos contribuindo para aprofundar ainda mais a extrema desigualdade que é a triste marca de nossa tradição histórica. Vê-se assim que, se na Europa a influência do modelo americano pode ser até benéfica pois poderá contribuir para flexibilizar a forma de um sistema já consolidado, no caso do Brasil, onde não se conseguiu ainda implantar um sistema de ensino abrangente em âmbito nacional, a referida influência resulta deletéria nos distanciando ainda mais da meta de garantir a todas as nossas crianças a desejada igualdade de acesso aos bens culturais. DESAFIOS PARA O SÉCULO XXI http://www.primecursos.com.br/arquivos/uploads/2013/10/gestao-da-educacao-infantil.jpg Curiosamente, a conclusão a que chegamos é que o grande desafio que ainda se põe para o Brasil em termos educacionais ao ingressar no século XXI, nos vem do século XIX. Trata-se da tarefa de organizar e instalar um sistema de ensino capaz de universalizar o ensino fundamental e, por esse caminho, erradicar o analfabetismo. A Constituição de 1988 estabeleceu, nas Disposições Transitórias, o prazo de dez anos para o cumprimento dessas duas metas. Os dez anos se passaram e agora, em decorrência da Emenda Constitucional de número 14 e da nova LDB, está se procurando fixar no Plano Nacional de Educação, mais dez anos para se atingir essas mesmas metas. Corremos, assim, o risco de, daqui a dez anos, estarmos concedendo mais uma década para realizar aquilo que os principais países fizeram a partir do final do século XIX e início do século XX. Nosso atraso já é, pois, secular o que vem implicando um grande déficit histórico. E é preocupante constatar que a política educacional em curso, embora disposta a atacar esse problema, não o está encaminhando da forma mais adequada. Com efeito, como já foi indicado, ao aderir ao "modelo americano" nós corremos o risco de universalizar o ensino fundamental sem conseguir, porém, erradicar o analfabetismo. E esse risco fica maisevidente ao se constatar que um dos principais vetores dessa política educacional é a redução de custos, sob o aspecto econômico, o que leva a apostar todas as fichas na "promoção automática" como via para possibilitar a todas as crianças a conclusão do ensino fundamental. Mas, convenhamos, a promoção automática não é solução para o problema da repetência. Isto porque, como se infere da própria denominação, a passagem é automática, isto é, os alunos são promovidos independentemente do que fizeram ou deixaram de fazer. Quer se tenha atingido os objetivos quer não, tenham ou não preenchido os requisitos, a aprovação irá ocorrer. Deixa de ser relevante o desempenho tanto dos alunos como dos professores. Coisa diversa é o empenho em se atingir a meta da "repetência zero", vale dizer, o objetivo de que todos sejam promovidos. Aqui se trata de criar as condições para que todos os alunos atinjam os objetivos definidos para os diversos componentes curriculares que integram o processo de ensino-aprendizagem. Acoplando-se simplesmente o mecanismo da "promoção automática" à situação atual das escolas ficando intactas as suas condições de funcionamento pode-se eliminar o problema da repetência resolvendo-se o problema do ponto de vista estatístico. Permaneceria, porém, o mesmo quadro de deficiências e precariedades que se associam, hoje, aos altos índices de repetência. O que precisa ser feito é equipar adequadamente as escolas e instituir uma carreira digna para o corpo docente como fizeram os países que, a partir do final do século XIX, implantaram os seus sistemas nacionais de ensino. Em condições adequadas o normal é que as crianças aprendam sendo, portanto, promovidas. Assim, resolve-se o problema da repetência porque as crianças, de fato, aprendem e não porque se decretou a promoção automática. Aliás, os sistemas de ensino europeus estavam apoiados em uma sistemática relativamente rígida de exames como mecanismo para aferir se os alunos seriam ou não promovidos e nem por isso tiveram que se deparar com a necessidade de exorcizar o fantasma da repetência. Ao contrário, o sistema se mostrou eficaz para garantir a aprendizagem, o que permitiu estabelecer o fluxo regular dos alunos que evoluíam, sem problemas, de uma série para outra até a conclusão, sem defasagem de idade, da escolaridade obrigatória. Para enfrentar esse desafio, que há um século nos afronta, é mister assumir de vez a educação como prioridade de fato e não apenas nos discursos como ocorre recorrentemente. Nesse esforço cabe, sem dúvida, promover alterações na legislação educacional. Poderíamos aperfeiçoar determinados dispositivos da Constituição assim como modificar a orientação que prevaleceu na LDB e legislação complementar. Entretanto, não me parece ser esta a questão fundamental mesmo porque uma efetiva mudança de rumos na regulação legal da educação estaria na dependência de uma nova correlação de forças políticas que conduzisse a uma outra relação de hegemonia. No que se refere, porém, aos desafios fundamentais que se põem para a educação me parece haver um razoável grau de consenso, o que faz com que a legislação em vigor não chegue a ser, na letra da lei, um efetivo obstáculo para as ações que se fazem necessárias. Nesse aspecto penso que a legislação que conta, de fato, nas atuais circunstâncias, é aquela relativa ao Plano Nacional de Educação. Sob esse aspecto o texto aprovado na Câmara dos Deputados não deixa de se constituir num avanço em relação à proposta do MEC. Entretanto, naquilo que é decisivo, isto é, a questão do aporte de recursos para a educação, a gradualidade adotada acaba por diluir e amortecer o impacto requerido para implementar as transformações que não podem mais ser postergadas. Por isso, ouso insistir na minha proposta de um plano de emergência cujas linhas básicas apresento a seguir (SAVIANI, S/D): http://www.duniverso.com.br/wp-content/uploads/2010/09/crianca-livros-educacao-a-distancia-ead.jpg?d31342 Para fazer face ao atraso em que nos encontramos, proponho a imediata duplicação do percentual do PIB investido em educação, passando dos atuais 4% para 8%. Isso, em verdade, apenas nos colocaria no nível das nações que mais investem em educação a exemplo dos Estados Unidos, Canadá, Noruega e Suécia que, segundo tabela apresentada pelo MEC em seu roteiro para a elaboração do Plano Nacional de Educação, se situam na faixa entre 7,5 e 8,5%. Observe-se, porém, que esses países não têm o déficit que temos. Portanto, se estamos empenhados em zerar o déficit, teríamos que investir muito mais. Penso, porém, que, a partir desse esforço, teríamos chances de começar a tratar com seriedade os problemas da educação, ganhando condições de resolvê-los efetivamente. A propósito, recordemo-nos da insistência de Anísio Teixeira para quem a educação requer significativos investimentos não sendo possível tratá- la seriamente com pouco dinheiro. http://faculdadefamesp.com.br/novosite/wp-content/uploads/2012/10/pintura-educacao-infantil.jpg A duplicação do percentual do PIB permitiria que cada instância passasse a ter o dobro dos recursos de que hoje dispõe para a educação. Assim, os municípios que, por força do FUNDEF, têm apenas 10% de seus recursos para investir em educação infantil, passariam a ter 20%. Com isso, já começa a se tornar viável a construção de uma ampla rede nacional de educação das crianças de 0 a 6 anos, mantida e gerida pelos municípios, com a orientação dos Conselhos Estaduais de Educação. Para o ensino fundamental, em lugar dos atuais 15% dos recursos de Estados e Municípios, passaríamos a ter o equivalente a 30%. Lançando mão do parágrafo único do artigo 11 da LDB, que permite aos municípios a opção de se integrar ao sistema estadual ou compor com ele um sistema único de educação básica, será possível construir, a partir dos Estados, um amplo sistema de ensino fundamental coordenado nacionalmente. No caso do ensino médio teríamos o equivalente a 20% dos recursos dos Estados, o que já permitiria que o objetivo de universalização do ensino médio, previsto pela Constituição Federal, deixasse o âmbito dos objetivos remotos para se tornar viável no médio prazo. Com efeito, cabe observar que, diferentemente do ensino fundamental que se compõe de nove séries, o ensino médio tem apenas três. http://noticias.universia.com.br/br/images/docentes/b/bu/bur/burocracia-contradicao-cenario-educacao-superior-brasil- noticias.jpg Quanto à questão dos professores, considerando a determinação do FUNDEF de que 60% dos recursos se destinem ao corpo docente, a duplicação do percentual tornará exequível a meta de implementar a jornada de 40 horas em uma única escola, além de viabilizar a criação de uma espécie de PICD da Educação Básica, semelhante ao que se fez com o ensino superior, através da CAPES, viabilizando, assim, a qualificação dos professores através de bolsas de estudo para frequentar cursos específicos nas universidades públicas de melhor qualidade. Finalmente, em relação ao ensino superior, a duplicação dos recursos permitirá à União, com o montante atual, consolidar as universidades federais além de manter sua rede de escolas técnicas. Os recursos adicionais, da mesma magnitude dos atuais, poderiam ser divididos em duas fatias: metade se destinaria à educação básica para que a União possa cumprir a função de apoio técnico e financeiro, suprindo as deficiências locais; a outra metade constituiria um fundo por meio do qual seriam financiados projetos que engajariam fortemente as universidades na realização das metas definidas no Plano Nacional de Educação. Está claro que a implantação de uma proposta como essa não resolverá, por si só, todos os problemas da educação brasileira. Mas estou convencido que é somente a partir de uma iniciativa desse tipo que a soluçãose tornará possível. http://radiomirandelafm.com/wp-content/uploads/2014/04/LogoTodospelaEducacao.jpg Apresentei essa proposta primeiramente no II CONED e depois a registrei no livro Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação, publicado em abril de 1998, retomando-a em outras oportunidades. A única objeção que se poderia levantar contra ela diz respeito à sua viabilidade à vista da propalada escassez de recursos com que conta o Poder Público para fazer face a necessidades de toda ordem e em todos os setores, de modo especial naqueles da área social. Entretanto, sua viabilidade pode ser constatada no exemplo dos demais países que implantaram os seus sistemas, inclusive aqueles que o fizeram tardiamente como são os casos do Japão e da Coréia. Além disso, como também já se indicou, a meta de 8% do PIB destinados à educação resulta perfeitamente viável porque foi praticada por diversos países. Mas temos também demonstração dessa viabilidade em nosso próprio país através de projetos de impacto que contaram com grandes investimentos públicos em decorrência da vontade política de torná-los realidade. Estão nesse caso a construção de Itaipu, as usinas nucleares de Angra dos Reis e, no atual contexto, o SIVAM, o gasoduto proveniente da Bolívia e o PROER. Daí ter eu sugerido em determinada ocasião que se criasse uma espécie de PROEN (Programa de Recuperação da Educação Nacional), através do qual seriam captados recursos de monta para viabilizar a implantação de nosso sistema de educação em âmbito nacional. http://escolas.madeira-edu.pt/Portals/71/Escola/OfertaEducativa/EducacaoBasica.jpg Penso, portanto, que, se não partirmos para um plano de emergência lúcido, corajoso, arrojado, que sinalize o empenho efetivo em reverter à situação de calamidade pública em que se encontra o ensino dos diferentes graus em nosso país, as proclamações em favor da educação não passarão de palavras ocas, acobertadoras da falta de vontade política para enfrentar o problema. E, nesse diapasão, avançaremos século XXI adentro, ampliando ainda mais o já insuportável déficit histórico que vem vitimando a população brasileira em matéria de educação. ARTIGO PARA REFLEXÃO GLOBALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO: UMA INTRODUÇÃO Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres (Do Livro: “Globalização e Educação – Perspectivas críticas”- org. Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres / Porto Alegre:2004, Artmed Editora, pp. 11-25) http://novotempo.com/tv/files/banner_educacao.jpg DA EDUCAÇÃO NO ILUMINISMO À EDUCAÇÃO GLOBALIZADA: IDÉIAS PRELIMINARES Este livro reúne um grupo notável de autores internacionais para discutir a questão de como a globalização está afetando a política educacional em vários Estados ao redor do mundo. Os autores apresentam visões bastante diferentes sobre a "globalização". Para alguns deles, o termo refere-se ao surgimento de instituições supranacionais, cujas decisões moldam e limitam as opções de políticas para qualquer Estado específico; para outros, ele significa o impacto avassalador dos processos econômicos globais, incluindo processos de produção, consumo, comércio, fluxo de capital e interdependência monetária; ainda para outros, ele denota a ascensão do neoliberalismo como um discurso político hegemônico; para uns, ele significa principalmente o surgimento de novas formas culturais, de meios e tecnologias de comunicação globais, todos os quais moldam as relações de afiliação, identidade e interação dentro e através dos cenários culturais locais; e para outros, ainda, a "globalização" é, principalmente, um conjunto de mudanças percebidas, uma construção usada pelos legisladores para inspirar o apoio e suprimir a oposição a mudanças, porque "forças maiores" (a competição global, respostas a exigências do FMI e do Banco Mundial, obrigações para com alianças regionais, e assim por diante) não deixam "nenhuma escolha" ao Estado, além de agir segundo um conjunto de regras que não criou. É claro que cada um dos autores cita a complexa interação entre esses fatores diversos, atribuindo-lhes diferentes pesos e relações. Solicitamos que cada autor se concentrasse em um conceito que consideramos central para entender o impacto específico da globalização sobre as políticas e práticas educacionais, conceitos que têm sido repensados e redefinidos neste contexto global (real e percebido), que são: "neoliberalismo", "Estado", "reestruturação", "reforma", "administração", "feminismo", "identidade", "cidadania", "comunidade", "multiculturalismo", "novos movimentos sociais", "cultura popular" e o "local" (em oposição/relação ao "global"). De forma clara, eles refletem não apenas mudança de conceitos, mas também mudanças nas relações, nas práticas e nos arranjos institucionais. O foco deste livro é analisar como o repensar essas ideias básicas sugere mudanças fundamentais na maneira como as sociedades estão elaborando políticas e práticas educacionais. Apesar de ser uma obra centralmente teórica, estas discussões contêm implicações específicas e concretas para a forma como a educação está mudando, e deverá mudar, em resposta a circunstâncias novas. Este trabalho é crítico no sentido de que os autores recusam- se a aceitar como algo determinado as formas específicas que a globalização tem assumido, e questionam com ceticismo quem são os vencedores e os perdedores sob esse novo conjunto de regras. No momento em que a "globalização" (concebida de determinada forma) tornou-se um discurso ideológico que move a mudança, devido à urgência e necessidade de responder a uma nova ordem mundial, queremos apresentar uma admoestação aos entusiastas da globalização e sugerir que, mesmo que essas mudanças ocorram, elas podem mudar de maneiras diferentes, mais justas e equitativas. De acordo com a nossa opinião, os educadores, em particular, devem reconhecer a força dessas tendências e enxergar as suas implicações para moldar e limitar as escolhas disponíveis de políticas e práticas educacionais, enquanto também resistem à retórica da "inevitabilidade" que frequentemente motiva a prescrição de certas políticas. http://pedrosamagalhaes.com.br/wp-content/uploads/2012/06/vozes_banner_educacao.jpg Uma forma de reexaminar a aparente inevitabilidade da globalização é situar o debate contemporâneo numa perspectiva história. De fato, algo parece estar mudando no campo da educação, e essas mudanças têm ocorrido por um período bastante longo. Na perspectiva do Iluminismo, nada pode ser mais personalizado, mais íntimo e local, do que o processo educacional em que as crianças e os jovens amadurecem num espaço de aquisição e aprendizagem de sua cultura familiar, regional e nacional. Antes da instituição da educação pública, a educação da elite era conduzida por tutores que trabalhavam com seus pupilos de forma altamente personalizada. A educação da mente, das capacidades e dos talentos do indivíduo era um princípio básico. Em um contexto de classe diferente, para crianças de famílias rurais ou de operários, a educação ou a formação também era uma questão pessoal, gerida pelas famílias e comunidades locais. Encaixar-se em uma comunidade, seja ela uma cultura e forma de vida local ou nacional, pode ser visto como o imperativo educacional que relaciona esses contextos. Mais adiante, quando a escola foi moldada como instituição pública, permaneceu essa noção de responsabilidade local e familiar pela formação. A ideia de que as escolas agiam in loco parentis, reforçada por estruturas políticas que sustentavam o controle da comunidade sobre o processo escolar, situou o aprendiz em uma relação com necessidades imediatas e familiares de aprendizagem: necessidades de identidade, afiliação, cidadania e papéis de trabalho que respondiam a um contexto próximo. Mesmo em sistemas escolarespúblicos centralizados e nacionalizados, a mesma dinâmica pode ser encontrada. Invocada em um nível diferente: as políticas impõem conformidade e identificação com uma tradição nacional, uma comunidade maior e um contexto mais amplo de cidadania e responsabilidade social, mas, ainda assim. no qual as condições de afiliação baseiam-se na proximidade e homogeneidade relativa (embora, nesse caso, brechas entre o local e o nacional possam se abrir — e ainda o fazem). As implicações desse processo educacional, especificamente à medida que ele se torna uma preocupação pública, vão além do objetivo de desenvolver o self individual. Como a economia da educação nos diz, a educação do público tem custos e benefícios para a sociedade mais ampla e, assim, não é apenas uma despesa, mas um investimento. Dessa forma, as implicações políticas da educação superam as condições de um indivíduo a ser educado e constituem um conjunto estratégico de decisões que afetam a sociedade maior, de onde vem à importância da educação como política pública e o papel do Estado (ver Raymond Morrow e Carlos Torres, neste volume). Este processo dialético de formar o indivíduo como um self e um membro de uma comunidade mais ampla acarreta, como uma premissa da tradição ocidental, a necessidade de preservar os tesouros da civilização dentro do pro- cesso de socialização dos membros de cada geração nova, tornando-se um imperativo ainda maior à medida que o Estado-nação se torna o lugar, cercado por fronteiras, onde o processo pedagógico é governado. Os sistemas organizados de educação operam sob a égide de um Estado-nação que controla, regula, coordena, comanda, financia e certifica o processo de ensino e aprendizagem. Não é de surpreender que um dos principais propósitos de um sistema educacional projetado dessa forma seja criar um cidadão leal e competente. https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcS4NmXF7_U91o2SIR7c0DScwe8cXfOKqo6bOaopu6- NhPhuSTg5 A questão que enfrentamos agora é: até que ponto o esforço educacional é afetado por processos de globalização que ameaçam a autonomia de sistemas educacionais nacionais e a soberania do Estado como regente soberano em sociedades democráticas? Ao mesmo tempo, de que maneira a globalização está mudando as condições fundamentais de um sistema educacional que tem por premissa integrar-se em uma comunidade caracterizada pela proximidade e a familiaridade? As origens, natureza e dinâmica do processo de globalização são, portanto, um foco de preocupação para os filósofos educacionais, sociólogos, aqueles que desenvolvem o currículo, professores, legisladores, políticos, pais e muitos outros envolvidos com o esforço educacional. Os processos de globalização, seja como forem definidos, parecem ter consequências sérias na transformação do ensino e da aprendizagem, pois estes têm sido compreendidos dentro do contexto de práticas educacionais e políticas públicas que possuem um caráter altamente nacional. Muitas outras questões reaparecem nessas reflexões. Como podemos definir a globalização? A globalização é "real" ou será ela simplesmente uma ideologia? Se a globalização for uma tendência inexorável, como isso afeta a economia política dos países e, assim, sua cultura e educação? De que maneira ações no sentido de uma reestruturação econômica estão afetando sistemas educacionais ao redor do mundo? Existe uma organização e agenda educacional internacional que possa criar outra hegemonia em currículo, instrução e práticas pedagógicas, de um modo geral, assim como em políticas que dizem respeito ao financiamento escolar, pesquisa e avaliação? Será que esses fatores e resultados são simétricos e homogêneos em suas implicações para todos os países e regiões? De que maneira a globalização está relacionada com o processo contínuo de luta política em diferentes sociedades? Essas são algumas das questões centrais que os autores que colaboraram com este livro buscaram responder. REESTRUTURAÇÃO ECONÔMICA E A TENDÊNCIA PARA A GLOBALIZAÇÃO De maneira a capturar a essência da ação social, devemos reconhecer a cumplicidade ontoló- gica, conforme sugeriram Heidegger e Merleau- Ponty, entre o agente (que não é um sujeito ou uma consciência e nem o mero executante de um papel ou aquele que cumpre urna função) e o mundo social (que nunca é uma simples "coisa", mesmo que deva ser construído desta forma na fase objetivista da pesquisa). A realidade social existe, por assim dizer, duas vezes, em coisas e em mentes, fora e dentro dos agentes. Os padrões de reestruturação econômica global, que emergiram no final da década de 1970, desenvolveram-se juntamente com a implementação de políticas neoliberais em muitas nações. Naquela época, as administrações capi- talistas estavam em apuros, no que diz respeito aos lucros, com os trabalhadores lutando para manter o salário alto e os concorrentes estrangeiros pressionando para reduzir os preços. À medida que a economia esfriava, as rendas estatais não conseguiam cumprir com os gastos sociais, e os contribuintes começavam a expressar um certo ressentimento para com aqueles que se beneficiavam mais da renda estatal (a burocracia estatal, beneficiários da previdência social, instituições que recebiam subsídios estatais, e assim por diante). Isso levou a um rompimento do consenso em torno da viabilidade e valor do Estado de bem- estar social. O Estado afastou-se de seu papel corno árbitro entre o trabalho e o capital, aliando-se ao capital e forçando os trabalhadores adotar uma postura defensiva http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/Image/noticias/educacao/educacao_paulo_freire.jpg A reestruturação econômica refletiu urna tendência mundial caracterizada, no mínimo, pelos seguintes elementos: 1. A globalização da economia no contexto de urna nova divisão internacional do trabalho e a integração econômica de economias nacionais (corno os mercados comuns emergentes e os acordos comerciais); 2. O surgimento de novas relações e acordos comerciais entre nações, e entre classes e setores sociais dentro de cada país, e o surgimento de novas áreas, especialmente em países desenvolvidos, onde a informação e os serviços têm-se tornado mais importantes que o setor industrial; 3. A crescente internacionalização do comércio, refletida na crescente capacidade de conectar mercados de forma imediata e de transferir capital através de fronteiras nacionais (atualmente, 600 importantes empresas multinacionais controlam 25% da economia mundial e 80% do comércio mundial); 4. A reestruturação do mercado de trabalho, com o salário fixo sendo substi- tuído em muitos cenários por remuneração por trabalhos realizados, e o poder dos sindicatos enfraquecido pelo relaxamento ou pela falta de cumprimento da legislação trabalhista; 5. A redução de conflitos entre capital e trabalho, principalmente devido a fatores como o aumento do número de trabalhadores excedentes (desempregados ou subempregados), a intensificação da competição; a redução da margem de lucro, menos contratos de trabalho com proteção da legislação trabalhista e a institucionalização de estratégias segundo o "conceito de equipe"; 6. A mudança de um modelo de produção fordista rígido para um modelo baseado na flexibilidade maior no uso da força de trabalho, na prescrição do trabalho, nos processos de trabalho e mercados de trabalho, na redução de custos e na maior velocidade em transferência de produtos e informações de um local do globo para outro; 7. A ascensão de novas forças de produção, com a indústria mudando de um modelo industrial mecânico para um modelo governado pelo microchip, pela robótica, e por máquinas automáticas e auto reguladoras, o que, por sua vez, levou ao surgimento de uma sociedade de informação high- tech baseada no computador; 8. A crescenteimportância da produção intensiva de capital, que resulta na desespecialização e no desemprego de grandes setores da força de trabalho, situação esta que leva a um mercado de trabalho polarizado, composto de um pequeno setor altamente especializado e bem remunerado, por um lado, e um grande setor pouco especializado e mal remunerado, por outro; 9. O aumento da proporção de empregados avulsos e do sexo feminino, muitos dos quais trabalham atualmente em seus lares; 10. O aumento no tamanho e importância do setor de serviços, às custas dos setores primário e secundário; e 11. O crescente abismo financeiro, tecnológico e cultural entre os países mais desenvolvidos e os menos desenvolvidos, sendo a única exceção os países "recém-industrializados". http://perlbal.hi-pi.com/blog-images/1414896/mn/136028398897.jpg A reestruturação econômica também refletiu uma profunda crise fiscal, e as reduções orçamentárias que afetam o setor público resultaram na redução do Estado de bem- estar social e na crescente privatização dos serviços sociais, de saúde, habitação e da educação. Verifica-se uma reestruturação da relação Estado/trabalhador, de modo que o salário social (gastos públicos distribuídos na forma de benefícios sociais) diminui às custas de salários individuais. Como resultado disso, a sociedade foi segmentada em dois setores: um protegido ou incluído pelo Estado, e outro desprotegido e excluído. A reestruturação econômica levou a um modelo de exclusão que deixa de fora setores amplos da população, particularmente as mulheres que vivem na pobreza em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Esses elementos de reestruturação econômica têm ocorrido de forma concomitante com a tendência para a globalização. De modo contrário à previsão de Marx e Engels, a globalização da economia produziu uma unificação do capital em escala mundial, enquanto trabalhadores e outros grupos subordinados tornam- se mais fragmentados e divididos. De fato, a reestruturação neoliberal está operando através da dinâmica impessoal da competição capitalista em um mercado comum que é progressivamente desregulado, aumentando o impacto local das tendências globais. Os Estados torram-se cada vez mais internacionalizados, no sentido de que suas agências e políticas ajustam-se aos ritmos da nova ordem mundial. Conforme afirmamos, a reestruturação econômica levou a uma crescente proletarização e desespecialização do emprego. Embora a alta tecnologia seja apresentada como a solução para muitos problemas econômicos, ela não contribuiu para elevar o padrão de vida da maioria das pessoas. Mesmo que alguns empregos estejam sendo criados em indústrias de alta tecnologia, esses empregos encontram-se principalmente nas áreas burocráticas ou de montagem, que pagam salários abaixo da média e não exigem muitas habilidades, ou em empregos que envolvem serviços pessoais. Como não é de surpreender, a categoria mais importante de criação de empregos nos Estados Unidos na última década foi o campo dos serviços pessoais, incluindo categorias de empregos tão variadas quanto instrutores de ginástica e de saúde até serviços de segurança privada. Outra mudança evidente é que, com a implementação de políticas neoliberais, o Estado demitiu-se de sua responsabilidade de administrar os recursos públicos para promover a justiça social, a qual está sendo substituída por uma fé cega no mercado (por exemplo, nos apelos por mais privatizações de escolas, por "escolhas" e vales) e pela esperança de que o crescimento econômico gere um excedente para ajudar o pobre, ou que a caridade privada assuma aquilo que os programas estatais deixam de fora. Apesar dos apelos da direita para desmantelar ou reduzir o tamanho do Estado, observadores céticos da redução estatal afirmam que a principal questão não é o tamanho do Estado, ou os seus gastos, mas a forma de suas intervenções e investimentos, seja para promover o bem-estar e a igualdade, por um lado, seja para subsidiar o crescimento de empresas por meio de incentivos fiscais ou por meio da rubrica dos "gastos militares", por outro. O Estado neoliberal, particularmente nas sociedades mais desenvolvidas, e nos países em desenvolvimento que lutam para imitá-las, caracteriza-se por reduções drásticas em gastos sociais, pela destruição desenfreada do ambiente, por revisões regressivas do sistema fiscal, limites frouxos para crescimento empresarial, ataques amplos contra o trabalho organizado e mais gastos com "infraestrutura" militar. http://www.educacaoeciencia.net.br/site_on/images/fotos/Jovem2.png As empresas estão se tornando tão poderosas que muitas estão criando programas educacionais pós-secundários e vocacionais próprios. A Burger King abriu "academias" em 14 cidades norte-americanas, e a IBM e a Apple estão contemplando a ideia de abrir escolas devido ao lucro que estas produzem. A Whittle Communications (uma empresa cujos principais proprietários são a Time Warner e a British Associated Newspapers) não apenas fornece antenas parabólicas e aparelhos de televisão em troca de publicidade para mais de 10 mil escolas (o projeto Channel One), como também está planejando abrir mil escolas com fins lucrativos para atender a 2 milhões de crianças dentro dos próximos dez anos» Além disso, as empresas norte-americanas gastam aproximadamente 40 bilhões de dólares a cada ano, aproximando-se dos gastos anuais totais de todas as faculdades e universidades de graduação e pós- graduação, para treinar e educar seus funcionários atuais. Já em meados da década de 1980, a Bell and Howell tinha 30 mil estudantes em sua rede de ensino pós-secundário e a ITT possuía 25 instituições pós-secundárias." Diz-se que a AT&T sozinha realiza mais funções de educação e formação do que qualquer universidade no mundo. Esse processo de privatizar a educação está ocorrendo no contexto de novas relações e arranjos entre nações, caracterizado por uma nova divisão global do trabalho, uma integração econômica de economias nacionais (mercados comuns de livre-comércio e assim por diante), a crescente concentração do poder em organizações supranacionais (como o Banco Mundial, o FMI, a ONU, a União Europeia e o G-7), e aquilo que chamamos de "internacionalização" do Estado. A mobilidade do capital dá aos capitalistas, particularmente aos especuladores financeiros, uma grande vantagem sobre o Estado, por si só um produto da revolução industrial e não equipado, de muitas maneiras, para lidar com as demandas básicas do mundo pós- industrial. A especulação com moedas nacionais e a profecia autorrealizável da legitimidade do "crédito" internacional contribuíram para a formação de um terreno movediço para os países que tentam colocar em ordem sua economia. Os dias que precederam a preparação deste livro presenciaram crises sérias na Rússia, nas Filipinas, na Malásia e em outras economias emergentes da Ásia, que repentinamente perceberam que as regras do jogo econômico global estavam mudando enquanto tentavam jogar de acordo com elas. Conforme afirmou Korten, a influência empresarial sobre o Estado é exercida de forma indireta, por meio de liderança intelectual, incutindo nos legisladores um novo conjunto de valores e impondo limites sobre a variedade de opções do Estado, o que representa uma estratégia mais eficaz para mudar prioridades políticas do que a ameaça explícita de sanções punitivas. Esses novos valores, habilmente refletidos nas agendas neoconservadora e neoliberal (ver Michael W. Apple, neste volume), promovem menos intervenções estatais e maior confiança no mercado livre, e ainda mais atrativos para auto interesses individuais do que para direitos coletivos. David Held afirma que "a internacionalização da produção, das finanças e de outros recursos econômicos está inquestionavelmente erodindo a capacidade dequalquer Estado individual de controlar o seu futuro econômico. Empresas multinacionais podem ter uma base nacional clara, mas seu interesse está, acima de tudo, na lucratividade global. O país de origem interessa pouco para a estratégia empresarial". De maneira clara, a crescente integração da economia direciona-se rumo a um mundo sem fronteiras e proporciona evidências consideráveis da redução da capacidade dos governos nacionais controlarem as suas economias ou definirem seus objetivos econômicos nacionais. https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSp46QT_gNO1u_ja2bd7- ViQvxgO3YZCn_lENXeluNr5pKjEmsv Em resumo, existem mudanças nos níveis econômicos, político e cultural da sociedade, as quais tendem a promover e reforçar uma perspectiva mais global sobre as políticas sociais. No nível econômico, esses fatores incluem mudanças em relações comerciais (grupos como o GATT, ou o G-7, que promovem a redução de impostos de importação, tarifas e normas; e a formação de zonas de "livre-comércio", como o NAFTA ou a União Europeia); mudanças em processos bancários e de crédito (sistemas de crédito mundiais como o Visa, caixas eletrônicos, câmbio e fluxo de capital e mercados financeiros que são realmente globalizados); a presença de agências de financiamento internacionais (como o FMI e o Banco Mundial); mudanças nos fatores da produção que levaram à ascensão de novas indústrias "pós-fordistas" (a economia do conhecimento, o setor de serviços, as indústrias turísticas e culturais); a presença de corporações globais que não sejam ligadas (ou leais) a qualquer base ou fronteira nacional; a mobilidade da mão-de-obra e a mobilidade de companhias que colocaram os sindicatos na defensiva; novas tecnologias (para transmissão de dados, capital e publicidade); e novos padrões de consumo (às vezes chamado de "McDonaldização" do sabor — rápido, padronizado e orientado para a conveniência antes da qualidade), juntamente com novas estratégias de publicidade e marketing que promovem aquilo que George Ritzer chama de "meios de consumo" (shopping centers, canais de compras, compras on-line e crédito fácil). Em nível político, o Estado-nação sobrevive como uma instituição medial, longe daqueles que são impotentes, mas limitado por tentar equilibrar quatro imperativos: (1) respostas ao capital transnacional; (2) respostas a estruturas políticas globais (por exemplo, a Organização das Nações Unidas) e outras organizações não-governamentais; (3) respostas a pressões e demandas domésticas, de modo a manter a própria legitimidade política;'B e (4) respostas a suas necessidades e seus interesses internos. A maioria das iniciativas políticas, incluindo políticas educacionais, é formada na matriz dessas quatro pressões, centrada no Estado-nação, não mais concebido como um agente soberano, mas como um árbitro que busca equilibrar uma variedade de limitações e pressões internas e externas. Fatores econômicos, como a dívida externa, a crise fiscal do Estado, ou a criação de entidades regionais como a União Europeia, apresentam profundas implicações políticas e econômicas. Nesse contexto, as pressões sobre o Estado-nação estimularam uma questão de teoria política que perdura há muito tempo: será o Estado uma esfera pluralista para a disputa de grupos de interesses rivais, ou um terreno não- neutro, refletindo um conjunto de limitações e preocupações que atribuem um peso especial às demandas de interesses sociais específicos? Fica claro para nós que tem ocorrido uma mudança pronunciada com relação a essa questão, indo além de visões puramente estatizantes da política, para incluir um foco em novos terrenos de contestação política, em novos atores políticos, como em movimentos sociais globais (aquilo e Falk chama de "globalização de baixo para cima"), e a constituição daquelas que são, com feito, sociedades civis transnacionais. http://www.unilab.edu.br/wp-content/uploads/2014/07/sala-alunos-estudando-concetracao-1.jpg Finalmente, em termos culturais, mudanças nos meios de comunicação globais (TV a cabo, satélites, CNN, Internet); cultura comercial (McDonald's, Nike, cores da Benneton); maior mobilidade, com setores de viagens turismo bastante ampliados; mudanças em tecnologias de comunicações; distribuição mundial de filmes, televisão e produtos musicais; maior presença e visibilidade de religiões globais que mudam rituais locais, transformando-os em rituais transnacionais; ou o mundo global dos esportes, tanto com relação a eventos competitivos (e espetáculos), como as Olimpíadas ou a Copa do Mundo, como também, de maneira significativa, com relação ao marketing esportivo (vestuário, tênis, equipamentos), patrocínio/publicidade, e apostas e loterias globais, todos mostram os desafios que confrontam as sociedades que buscam reconciliar seus valores locais e tradicionais com a crescente globalização de culturas que não as suas. Apesar dessas mudanças inegáveis, contudo, os efeitos da globalização às vezes também são exagerados. Qualquer bom observador ou viajante do mundo irá notar que o chamado “processo de globalização" não é tão global. Vastos segmentos do mundo permanecem quase intocados por muitas dessas dinâmicas da globalização. O que temos visto é uma segmentação (mundial) entre a cultura globalizada — por exemplo, a prevalência de um habitus urbano e cosmopolita — e o resto do mundo, que enxerga poucos dos benefícios (até onde eles existem) do acesso ao mercado global ou a culturas cosmopolitas. Da mesma forma, como observado anteriormente, a asserção de algo chamado "globalização" frequentemente é usada para reforçar a sua "inevitabilidade" e, dessa forma, para suprimir tentativas de resistir a ela, e, mesmo assim, muitas tentativas de contrabalançar os processos de globalização estão ocorrendo ao redor do mundo, como nos campos da ecologia e do gerenciamento de recursos. http://1.bp.blogspot.com/- gq6hR6qxYdU/Ulp9fFLEfeI/AAAAAAAATUE/ZrTKOUV6Ls4/s1600/educa%25C3%25A7aoemfoco.png QUESTÕES CRÍTICAS http://www.amplitudenet.pt/images/editorials/educacao-escola-virtual.jpg O conhecimento em si não conquista a incerteza, mas produz incertezas com as quais ninguém jamais teve a experiência histórica de lidar. Embora a forma e direção gerais das mudanças recém-mencionadas não sejam mais objeto de disputa, permanecem ainda desacordos consideráveis com relação à natureza e à extensão dessa coisa chamada "globalização". Quanto mais aprendemos sobre ela, maiores as incertezas a respeito das suas consequências. Essas questões se tornam ainda mais desafiadoras, à medida que avançamos das mudanças amplas com as quais temos lidado para áreas específicas de política e prática, como a educação. Reunimos aqui diversas questões críticas que, conforme nos lembra Giddens, refletem as novas incertezas que as discussões sobre a globalização trouxeram à luz. Quais são as origens da globalização? Teoricamente, um dilema central é se devemos localizar as origens da globalização contemporânea em torno de 1971-1973, com a crise do petróleo, que promoveu diversas mudanças tecnológicas e econômicas direcionadas para encontrar fontes substitutas para matérias-primas estratégicas e buscar novas formas de produção que consumissem menos energia e trabalho. De maneira alternativa, como fizeram alguns autores deste livro, podemos localizar as origens da globalização há mais de um século, com mudanças nas tecnologias de comunicação, nos padrões de migração e nos fluxos de capital (por exemplo, como aqueles afetados pelo processo de colonização do Terceiro Mundo). Uma questão importante para muitos observadores é se estamos enfrentando uma nova época histórica, a configuração de um novo sistema mundial, ou se essas mudanças são significativas, mas não sem precedentes,com paralelos, por exemplo, nas mudanças semelhantes que ocorreram no final da Idade Média. Nossa visão sobre esse tema, todavia, não é uma questão de escolher entre uma ou outra opção. Estamos em uma nova época histórica, uma nova ordem global, em que as velhas formas não estão mortas, mas as novas ainda não estão inteiramente formadas. David Held sugere em Democracy and global order, por exemplo, que estamos em uma nova "Idade Média global", um período que reflete que, apesar de ainda terem vitalidade, os Estados- nação não podem controlar suas fronteiras e, portanto, estão sujeitos a todo o tipo de pressões internas e externas. Além disso, mesmo que essa nova ordem global mostre o fim da soberania do Estado- nação, essa situação apresenta impactos diferenciais, de acordo com a sua posição na ordem mundial: Estados unificados em alianças regionais, como o NAFTA e a União Europeia; Estados emergentes ou intermediários, como o Brasil, a Coréia, a Índia e a China; Estados menos desenvolvidos, como a Argentina, a Hungria, o Chile e a África do Sul; Estados em desenvolvimento, incluindo muitos na América Latina, Ásia e África; e Estados subdesenvolvidos, em um estado de dependência extrema, como o Haiti, alguns Estados da Amé- rica Central, Moçambique, Angola e Albânia. O impacto e o significado da "globalização" não apenas são duvidosos, como também podem operar de maneira diferente em várias partes do mundo e, em certos contextos, ter pouco impacto. Aqui, mais uma vez, a globalização, em si, não é um fenômeno unificado e global. Assim, apesar de a globalização poder refletir um conjunto de mudanças tecnológicas, econômicas e culturais bastante definidas, a forma de sua importância e suas tendências futuras não estão determinadas. Conforme observamos, a especificidade histórica desse processo não garante necessariamente um impacto simétrico e homogêneo ao redor do mundo. Essa narrativa da globalização é bastante diferente da narrativa neoliberal, um discurso que tira vantagem dos processos históricos de globalização para valori- zar certas receitas econômicas sobre como operar a economia (através do livre- comércio, des- regulamentação, e assim por diante) — e, por implicação, receitas sobre como transformar a educação, a política e a cultura. Além das narrativas dicotômicas sobre a globalização. Certas dualidades são recorrentes na literatura a respeito deste tema. Em uma distinção de influência ampla, existem duas forças principais em operação na ascensão da globalização: a globalização de cima para baixo, um processo que afeta principalmente as elites dentro e através de contextos nacionais, e a globalização de baixo para cima, um processo popular que fundamentalmente emerge das organizações de base da sociedade civil. Este contraste ressalta uma importante dinâmica política (e ajuda a formar uma conveniente e esperançosa imagem de luta e resistência em escala global), mas o seu uso disseminado obscurece as formas pelas quais essas duas tendências não são inteiramente independentes uma da outra. Por exemplo, os grupos "de cima" e "de baixo" tendem a se fundir em determinadas organizações não-governamentais; e os movimentos populares "de baixo" ainda podem ser percebidos, em certos contextos, como uma imposição "de cima". http://www.folhavitoria.com.br/economia/blogs/gestaoeresultados/files/2013/04/8ARQ-GAF2.jpg Ainda assim, outras dualidades prevalecem: entre o global e o local; entre dimensões econômicas e culturais da globalização; entre a globalização, vista como uma tendência para a homogeneização em torno de normas e culturas ocidentais (ou, de forma ainda mais limitada, norte-americanas) e vista como uma era de maior contato entre culturas diversas, levando a um crescimento em hibridez e novidade; e entre os efeitos materiais e retóricos da globalização — ou, como pode ser colocado, entre a globalização e a "globalização". Finalmente, há a questão de se a globalização é uma "coisa boa": será ela um benefício para a causa do crescimento, da igualdade e da justiça econômica, ou será prejudicial? Ela promove o compartilhar cultural, a tolerância e um espírito cosmopolita, ou produz apenas a ilusão dessa compreensão, uma apreciação consumista imperturbável, como em um parque temático da Disney, que suprime questões de conflito, diferença e assimetrias de poder? Para nós, nenhuma dessas questões captura as sutilezas ou dificuldades dos temas que estão em jogo. Todas elas apontam uma escolha fácil entre alternativas polares, tipos "bons" e "ruins" de globalização, em vez de uma situação conflituosa de tensões prolongadas e escolhas difíceis. Uma reconsideração ou, em muitos casos, um desafio direto a esse tipo de dicotomia simples irá aparecer seguidamente em todo o livro. Consideramos que isto é central para compreender a globalização em toda a sua complexidade e ambiguidade. Quais são as características cruciais da globalização? À luz de muitos desses debates, pode ser extremamente arriscado estabelecer uma descrição das características da globalização que afetam a educação de forma mais rigorosa, mas elas parecem envolver, pelo menos: • em termos econômicos, uma transição de formas fordistas a pós-fordistas de organização do local de trabalho; um aumento na publicidade nos padrões de consumo internacionalizados; uma redução de barreiras ao fluxo livre de mercadorias, trabalhadores e investimentos entre fronteiras nacionais; e, consequentemente, novas pressões sobre os papéis do trabalhador e do consumidor na sociedade; • em termos políticos, urna certa perda da soberania do Estado-nação ou, pelo menos, a erosão da autonomia nacional e, consequentemente, um enfraquecimento da noção de "cidadão" como um conceito unificado e unificante, um conceito que possa ser caracterizado por papéis, direitos, obrigações e status precisos (ver Capella, neste volume); • em termos culturais, uma tensão entre as maneiras como a globalização produz mais padronização e homogeneidade cultural, enquanto também produz mais fragmentação com a ascensão de movimentos locais. Benjamin Barber caracterizou essa dicotomia no título de seu livro, Jihad vs. McWorld; contudo, uma terceira alternativa teórica identifica uma situação mais conflituosa e dialética, com a homogeneidade e a heterogeneidade culturais aparecendo de maneira simultânea no cenário da cultura. (Às vezes, essa fusão, e tensão dialética, entre o global e o local é denominada "o global".) GLOBALIZAÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE O ESTADO E A EDUCAÇÃO http://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2013/09/educacao-ilustracao-desenho-material-escolar-%C2%A9- cienpiesnf-Fotolia.jpg Em termos educacionais, existe uma compreensão crescente de que a versão neoliberal da globalização, particularmente da forma implementada (e ideologicamente defendida) por organizações bilaterais, multilaterais e internacionais, reflete-se em uma agenda educacional que privilegia, se não impõe de modo direto, certas políticas de avaliação, financiamento, padrões, formação de professores, currículo, instrução e testes. Diante dessas pressões, são necessários mais estudos sobre as respostas locais para defender a educação pública contra a introdução de mecanismos de mercado para regular as trocas educacionais e outras políticas que busquem reduzir o patrocínio e o financiamento estatal e impor modelos de administração e eficiência emprestados do setor empresarial como um arcabouço para a tomada de decisões envolvendo a educação. Essas respostas educacionais são conduzidas principalmente pelos sindicatos de professores, pelos novos movimentos sociais e por intelectuais críticos, expressadas com frequência em oposição a iniciativas em educação, tais como os vales, ou subsídios públicos para escolas privadas e paroquiais. Isso apresenta um problemapeculiar para análise. Devido ao fato de que as relações entre o Estado e a educação variam de forma tão dramática de acordo com a época histórica, as áreas geográficas, os tipos de governo e as formas de representação política, e entre as diferentes demandas de diferentes níveis educacionais (fundamental, secundário, educação superior, de adultos, continuada e educação não- formal), qualquer alteração drástica nas formas de governança (por exemplo, a instalação de uma ditadura militar que governe por vários anos antes de permitir a volta da democracia) pode ter múltiplos efeitos complexos e imprevisíveis sobre a educação. Essa situação exige uma análise histórica mais matizada a respeito da relação entre o Estado e a educação. Essa problemática é dificultada ainda mais pela tendência que discutimos anteriormente: a erosão da autonomia do Estado em tudo o que é importante, inclusive em questões que dizem respeito às políticas educacionais. Por exemplo, consideremos brevemente a situação na América Latina. Desde o momento em que as guerras civis terminaram, há mais de um século e meio (culminando no processo de organização nacional da década de 1880), os sistemas educacionais foram criados juntamente com o estabelecimento das fronteiras dos países. A constituição de Estados-nação incluiu a criação de fortes exércitos e a promulgação de constituições nacionais baseadas nos princípios da Carta Magna britânica, da Revolução Norte- Americana e da Revolução Francesa, e assim expressam uma fundamentação fortemente liberal. Dessa forma, pelo menos três formações estatais predominaram na experiência latino- americana durante o último século e meio. (As exceções a isso foram, é claro, períodos de intervenção militar, ditaduras militares e revoluções que costumam alterar a forma democrática liberal do Estado.) Essas três formas do Estado incluíram o Estado liberal, promovendo a educação liberal (digamos, da década de 1880 até a crise de 1929 em certos países, ou até a Segunda Guerra Mundial na maioria dos países); o Estado desenvolvimentista (da década de 1950 até a de 1980), em que houve um padrão consistente de modernização (embora, às vezes, modernização "forçada" por regimes autoritários), com um papel central desempenhado por reformas educacionais baseadas no modelo do capital humano; e a constituição de diferentes formas de estado neoliberal e políticas educacionais neoliberais. https://salaaberta.files.wordpress.com/2014/08/desafio-ashoka-claro.jpg Em síntese, a partir de uma perspectiva histórica, essa conexão complexa entre a educação e o Estado apresenta um problema para a análise da relação entre eles. Não existe uma forma única de associação entre essas instituições, e assim não existe um modo único em que elas serão afetadas pelas condições da globalização. Do ponto de vista econômico, as pressões das condições de austeridade impostas externamente (por exemplo, a condição para empréstimos do FMI) podem levar a reduções brutais nos gastos com educação; em outros contextos, o desejo por maior competitividade econômica e produtividade pode levar a maiores gastos com educação. Do ponto de vista político, alguns contextos nacionais irão organizar a educação em torno de uma concepção revi- talizada de nacionalismo e lealdade do cidadão (talvez em reação às lealdades tribais ou outras formas de lealdade); em outros contextos, uma noção de cidadania cosmopolita pode prevalecer, encorajando viagens, estudos de línguas estrangeiras e tolerância multicultural. Do ponto de vista cultural, algumas nações irão aceitar, e até mesmo encorajar, uma confiança maior na mídia, na cultura popular, ou novas formas de comunicação e informática, como uma janela através da qual possam compreender o seu lugar no mundo global; em outros contextos, essas mesmas tendências darão lugar a um aumento em estreiteza mental, suspeição e resistência a influências externas. Um livro como este pode apenas dar início ao processo de explorar a diversidade desse tipo de respostas à globalização, por meio de contextos nacionais variados, e a diversidade de relações entre o Estado e a educação, que geram princípios, polí- ticas e práticas educacionais à luz dessas novas condições. OS DILEMAS DA GLOBALIZAÇÃO http://undime.org.br/wp-content/uploads/2012/12/014.jpg Será que a globalização é meramente deletéria, ou existem características positivas associadas a suas práticas e sua dinâmica? Já tentamos desafiar essa estrutura simples de julgamento. Duas características que podem ser denominadas "positivas" são a globalização da democracia ou, no mínimo, uma forma peculiar de democracia liberal (mais uma democracia de método do que uma democracia de conteúdo); e a prevalência e expansão de uma crença em "direitos humanos" e no crescimento de organizações que os tentam monitorar e proteger. Para aqueles que têm suficiente sorte de viver em certos setores da sociedade, a globalização está associada a um padrão de vida mais elevado, não apenas pela disponibilidade de itens de consumo, mas também pelas ocasiões para viajar e para manter um contato enriquecedor com outras culturas do mundo. Os "males" mais óbvios da globalização são o desemprego estrutural, a erosão da mão-de-obra organizada como força política e econômica, a exclusão social e um aumento no abismo entre ricos e pobres dentro das nações e, especialmente, ao redor do mundo. Certas pessoas associam a globalização a um aumento na insegurança urbana, devido à progressiva violência urbana, com a presença crescente de movimentos de fora do território e de fora do Estado que impedem o desenvolvimento internacional e podem representar ameaças sérias contra a segurança, a paz, a estabilidade e o desenvolvimento (como o tráfico de drogas, máfias, comércio de armas de destruição em massa, ou organizações terroristas). Mas será que é possível separar os benefícios dos males? De fato, não serão os "benefícios" para uns, "males", do ponto de vista de outros? De certa forma, o modelo para esse tipo de julgamento não deve ser simplesmente uma questão de se a globalização está ou não "acontecendo mesmo", mas da globaliza- cão de que formas e nos termos de quem? Diversos países em desenvolvimento, como a China e a Malásia, têm-se tornado cada vez mais receosos com a globalização e têm buscado formas de restringir os seus efeitos sobre seu modo de vida nacional. Ainda assim, ao mesmo tempo, eles desejam alguns dos benefícios da participação em uma economia global e da troca de mercadorias e de informação. Uma importante questão atual é o nível em que as sociedades serão capazes de escolher as formas e o grau de participação em um mundo global; ou se, como outras barganhas faustianas, não existe uma alternativa intermediária. De maneira semelhante, abaixo e além do nível nacional, existem movimentos claramente regionais e tradicionais para os quais a globalização deve ser combatida vigorosamente. 0 surgimento de novos movimentos sociais e o papel de organizações não-governamentais locais e internacionais exercem uma influência que pode ser denominada contra-globalização. Em certos casos, esses grupos são igualmente "globais" em caráter (organizações internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional; organizações ambientalistas, como o Greenpeace; ou organizações trabalhistas, como a OIT). Em outros casos, eles são antiglobalização, profundamente resistentes à interpenetração econômica, política e cultural de diferentes sociedades e culturas (por exemplo, grupos regionalistas e fundamentalistas de vários tipos). Enquanto a globalização acontece de maneira clara, sua forma e contorno são determinados por padrões de resistência, alguns com intenções mais progressistas do que outros. http://www.sescalagoas.com.br/educacao/sesc_jaragua6.jpgSerá possível, então, dar respostas gerais para a questão de como a globalização está afetando as políticas e práticas educacionais ao redor do mundo? Conforme indicado em nossa discussão anterior, acreditamos que não pode haver uma resposta única; as mudanças econômicas, políticas e culturais, nacionais e locais, são afetadas por tendências de globalização em uma variedade de padrões e respondem de forma ativa a essas tendências. De fato, como a educação é uma das arenas centrais onde essas adaptações e respostas ocorrem, ela será um dos tantos contextos institucionais possíveis. Assim, as respostas exigirão uma análise cuidadosa das tendências em educação, incluindo: • as atuais "palavras de efeito" populares (privatização, escolha e descentralização de sistemas educacionais) que dirigem a formação de políticas em educação e agendas de pesquisa baseadas em teorias de administração e organização racional (ver Michael Peters, James Marshall e Patrick Fitzsimons neste volume); • o papel de organizações nacionais e internacionais no campo da educação, incluindo sindicatos de professores, organizações de pais e movimentos sociais (ver Bob Lingard neste volume); • o conhecimento contemporâneo sobre as questões de raça, classe e gênero, e sobre o lugar do Estado na educação (o que levanta preocupações com o multiculturalismo e a questão da identidade na educação, teoria crítica de raça, feminismo, pós-colonialismo, co- munidades diaspóricas e novos movimentos sociais). Questões quanto ao papel da pesquisa- ação participativa, da educação popular e da luta democrática multicultural surgem como centrais nesses debates. Dessas perspectivas críticas, podem surgir novos modelos educa- cionais para confrontar os ventos da mudança, incluindo a educação no contexto de novas culturas populares e movimentos sociais não- tradicionais (e assim, o papel dos estudos culturais para compreendê-los); novos modelos de educação rural para áreas marginalizadas e a educação do pobre; novos modelos para a educação de imigrantes, para a educação de crianças de rua, para a educação de garotas e mulheres, em geral, mas particularmente no contexto de sociedades e culturas tradicionais que suprimem as aspirações educacionais das mulheres; novos modelos de parcerias para a educação (entre o Estado, as ONGs, o terceiro setor e, em certos casos, as organizações religiosas e privadas); novos modelos de alfabetização de adultos e educação não-formal; novos modelos de relações entre universidades e empresas; e novos modelos de financiamento educacional e organização escolar (por exemplo, escolas charter°). Certas iniciativas de reforma têm sido apoiadas ativamente pela UNESCO e por outras agências da ONU. Entre estas estão, por exemplo, reformas no sentido da alfabetização universal e do acesso universal à educação; qualidade educacional como um componente fundamental da igualdade; educação- para a vida toda; educação como um direito humano; educação para a paz, a tolerância e democracia; eco-pedagogia, ou como a educação pode contribuir para o desenvolvimento ecológico sustentável (e assim, para uma eco- economia); e o acesso educacional a novas tecnologias de informação e comunicação (ver Nicholas C. Burbules, neste volume). Assim. pode-se considerar que a influência da globalização sobre as políticas e práticas educacionais tem efeitos múltiplos e conflitantes. Nem todos esses efeitos podem ser classificados simplesmente como sendo ou não benéficos, e alguns deles estão sendo moldados por tensões e lutas ativas. Os ensaios apresentados neste livro iluminam tais dilemas em toda a sua complexidade. http://dj8xw3uz01vei.cloudfront.net/2013/04/educacao-ideal.jpg CONCLUSÃO: DILEMAS DE UM SISTEMA DE EDUCAÇÃO GLOBALIZADO Esperamos que os propósitos deste livro já estejam claros: em primeiro lugar, identificar, caracterizar e esclarecer alguns dos debates em torno do fenômeno da globalização; e, em segundo, tentar compreender alguns dos efeitos múltiplos e complexos da globalização sobre as políticas educacionais e a formação de políticas. A fim de sintetizar algumas das consequências da globalização para as políticas educacionais, seguiremos a organização anterior, dividida em três partes: identificar alguns dos impactos econômicos, políticos e culturais. No nível econômico, porque a globalização afeta o emprego, ela afeta um dos objetivos tradicionais básicos da educação: a preparação para o trabalho. As escolas deverão reconsiderar essa missão à luz de mercados de trabalho instáveis, em um ambiente de trabalho pós-fordista; novas habilidades e a flexibi- lidade de adaptar-se a novas demandas do trabalho e, portanto, mudar de emprego durante o decorrer da vida; e lidar com uma mão-de- obra internacional cada vez mais competitiva. Ainda assim, as escolas não estão apenas preocupadas em preparar os estudantes como produtores; cada vez mais, as escolas ajudam a moldar as atitudes e práticas do consumidor, rajadas pelos patrocínios empresariais instituições educacionais e para produtos curriculares e extracurriculares que confrontam os estudantes em seu cotidiano na sala de aula. Essa crescente comercialização do ambiente escolar tem-se tornado notavelmente impudente e explícita em suas intenções (como no caso do projeto de Chris Whittle, o Channel One, discutido anteriormente, que admite abertamente oferecer televisores grátis às escolas para expor as crianças à dieta forçada de comerciais em suas salas de aula lados os dias). Os efeitos econômicos mais amplos da globalização tendem a forçar políticas educacionais nacionais em uma estrutura neoliberal que enfatiza impostos mais baixos; redução do setor estatal e "fazer mais com menos"; aproximação das abordagens de mercado às escolhas escolares (particularmente por meio de vales); administração racional de organizações escolares; avaliação de desempenho (testes); e desregulamentação para encorajar novos provedores (incluindo provedores on line) de serviços educacionais. No nível político, uma questão repetida tem sido a limitação sobre a formação de políticas nacionais/estatais imposta por demandas externas de instituições transnacionais. Ainda assim, ao mesmo tempo que a coordenação e a troca econômica são cada vez mais reguladas, e à medida que instituições mais fortes surgem para regular a atividade econômica global, com a globalização tem havido uma crescente internacionalização de conflitos, crimes, terrorismo e questões ambientais globais, mas com um desenvolvimento inadequado de instituições políticas para lidar com elas. Aqui, mais uma vez, as instituições educacionais podem ter um papel crucial a desempenhar ao abordarem esses problemas e a complexa rede de consequências humanas voluntárias e involuntárias que se seguiram ao crescimento de corporações globais, da mobilidade global, das comunicações globais e da expansão global. Em parte essa consciência pode ajudar a produzir uma concepção crítica de educação exigida pela "cidadania mundial". http://www.geraldojose.com.br/ckfinder/userfiles/images/Mais-Educa%C3%A7%C3%A3o.jpg Finalmente, mudanças globais em cultura afetam profundamente as políticas, práticas e instituições educacionais. Particularmente em sociedades industriais avançadas, por exemplo, a questão do "multiculturalismo" assume um significado especial em um contexto global. De que maneira o discurso do pluralismo liberal — que tem sido o modelo dominante para a educação multicultural em sociedades desenvolvidas que estão aprendendo a conviver com outras, dentro de um modelo de tolerância e respeito mútuos — estende-se a uma ordem global em que o leque de diferenças torna-se mais amplo, o senso de interdependência e interesse comum mais atenuado, os fundamentos da afiliação mais abstratos e indiretos (se existirem
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