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Família e doença mental, a difícil convivência com a diferença: um ensaio crítico Samuel Braatz Couto, graduando do 3º período de medicina da UFMS/CPTL Desde a década de 80, há no Brasil uma tentativa de mudança de paradigma em relação aos cuidados dispensados aos portadores de transtornos psiquiátricos. A obra alegórica Narrenshif (no latim, Stultifera navis), de Sebastian Brant (1457-1521), embora não tenha sido concebida para criticar a forma como eram tratados os portadores de transtornos mentais durante o medievo, representa-a muito bem. O comportamento de exclusão social dos “loucos”, assim como dos deficientes físicos, idosos, etc., surgiu dentre os árabes por volta do século VII, e foi implantado na Europa no século XV, durante a invasão dos mouros. A mudança de paradigma da década perdida pretendia aniquilar justamente esse pensamento, de que os doentes mentais deveriam ser segregados, dada a sua imprevisibilidade, que poderia comprometer a segurança de outros e, também, sua falta de autonomia, que dispenderia muita atenção, e consequentemente, tempo e paciência de seus responsáveis. Porém, sabe-se, mais recentemente, que a exclusão social agrava a situação, pois retira o suporte social dessas pessoas, levando ao agravo de seus transtornos, fenômenos bastante complexos. Se somos seres biopsicossociais, a influência social sobre o processo saúde-doença mental é inquestionável. Então porque, após quase 40 anos de luta antimanicomial, ainda não alcançamos o ideário da inserção social dos doentes? Muitos são os motivos, mas todos orbitam, mesmo que distantemente, o estigma da doença mental. O portador de transtorno psiquiátrico ainda hoje é visto como “coisa” por grande parte da população. É retirado o seu Eu, e passa-se a vê-lo através de uma lente de características consideradas pertencentes a um “louco” (agressividade, irracionalidade, falta de autonomia) pelo senso comum. Essa reificação dá ao paciente a sensação de incapacidade, que o levará a um sofrimento psíquico, outro fator de influência sobre o processo saúde-doença mental. Ao contrário do que já foi feito no passado, quando a família era retirada do protagonismo do cuidado desse paciente, pois considerava-se que atrapalharia o tratamento, hoje ela é tida como cerne do cuidado e como principal responsável. Mas ela continua sem protagonismo, pois o retira de si mesma, ou em omissão ou em terceirização do cuidado. Isso ocorre porque a velocidade com que ocorreu a desinstitucionalização não foi acompanhada pelo acréscimo de atenção a esse paciente na rede extra-hospitalar, deixando-o desatendido e seus familiares desamparados. Sem o apoio médico e psicológico, há grandes chances de agravamento do transtorno do paciente e de exaustão dos cuidadores. O cuidado ao cuidador é algo que não pode ser negligenciado, pois a sobrecarga psíquica sobre eles é imensa. Um sistema que o coloque como protagonista do cuidado deve oferecer as mínimas condições para que ele também seja cuidado, a fim de que sua saúde mental seja preservada. Outro motivo para a falha desse novo modelo de atenção à saúde mental, é o despreparo dos familiares para lidar com a situação, já que muitas das vezes não conseguem aceitar o diagnóstico num familiar, ou então cedem à estigmatização dele, gerando certo desconforto em ter que “cuidá-lo”. Portanto, a educação em saúde mental, no sistema de atenção básica, faz-se necessária para que à luz do conhecimento, tanto a família quanto a sociedade tenham o mínimo de conhecimento necessário para não cometerem absurdos. Não se pode ignorar também que o sistema econômico vigente é um fator de exclusão desses indivíduos, pois são vistos como incapazes de trabalhar e gerar lucro, além de o cuidador ter que trabalhar para geração de renda familiar, não tendo tempo para assistir o portador do transtorno mental. Nessas situações, cria-se outro problema, quando o cuidado é, sendo viável economicamente, quase sempre terceirizado, entregando a alguém que não é do núcleo familiar, a responsabilidade em atender o paciente. Outro fator que perpassa pelo modelo econômico, é a ideia de que tudo tem o seu preço. Portanto, o cuidado também tem, mesmo que não seja monetário. Grande parte dos cuidadores diz sentir-se incomodado com a falta de reconhecimento por parte dos pacientes ao cuidado que lhes é dispensado. Logo, se não há reconhecimento, não há sentido em tal ação. É a lógica do agir esperando algo em troca, o que contraria o conceito ético kantiano do “Devo porque devo”. Não devo porque receberei algo em troca, simplesmente, devo porque devo. Como saída para esse dilema, é necessário pôr fim ao estigma da loucura, visando a integração do indivíduo na comunidade (família, trabalho, lazer, etc.) para reduzir os agravos psiquiátricos gerados pela exclusão dele da sociedade. Para isso, tratar o doente mental com o devido respeito é de suma importância. O conceito de philia de Aristóteles encaixa-se perfeitamente nessa situação. John M. Cooper diz sobre o conceito aristotélico que deve-se fazer o bem ao outro, por sua própria causa, fora do interesse para com ele, e não meramente, fora do interesse para si mesmo, indo ao encontro do conceito kantiano. Aristóteles diz ainda que o objeto da philia é, em resumo, o “outro inteiro”. A partir disso, entendemos que a autonomia é fundamental para o exercício da philia. Cohen também destaca a importância da autonomia para o paciente como: a capacidade de autogoverno, de livre-arbítrio quanto a regência de seu próprio destino, no fazer ou não fazer, no ir ou não ir, no aceitar ou no recusar e assim por diante, concedida pouco a pouco, por parâmetros biológicos e de convívio social, que afastam os seres humanos dos animais e criam os contornos de personalidade. Este valor, a autonomia, envolve a proteção da privacidade, da confiabilidade e da procura de ações que se baseiam em um consentimento informado, opondo-se a qualquer forma de coerção, mesmo que seja justificada por eventuais benefícios sociais. (COHEN, 2009, p.221) Hannah Arendt diz que deve-se ir além, e pensar no respeito à pluralidade como saída. Para ela, o amor não deve ser mediador das relações humanas, mas sim, o respeito, como condição essencial, mediado pela tolerância. Para a filósofa, a perda do respeito é um claro sintoma de despersonificação da vida pública e privada, de modo que apenas ele é o que torna possível a convivência harmônica, sem a necessidade da exclusão ou marginalização do outro.
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