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FUNDAMENTOS HISTÓRICOS, TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL - PROJETO ÉTICO POLÍTICO Géssika Mayara dos Santos O processo de reconceituação do serviço social II Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Analisar os aspectos constitutivos do serviço social e suas contradições. � Descrever os documentos de Sumaré e Alto da Boa Vista e suas vertentes teóricas. � Analisar as principais mudanças ocorridas no serviço social pós-reconceituação. Introdução O movimento de reconceituação do serviço social constitui um marco no legado e história da profissão. A partir da contestação oriunda do movimento, o serviço social atravessou um processo de transformação e renovação de conceitos, modificando a forma de agir e a formação dos profissionais. Neste capítulo, você conhecerá as vertentes que emergiram do movimento de reconceituação, analisando a perspectiva moderniza- dora, o processo de reatualização do conservadorismo e a perspec- tiva de intenção de ruptura. Ainda, aprenderá que o movimento de reconceituação não foi um processo homogêneo, mas que havia uma heterogeneidade no interior da categoria profissional marcada pela presença de revolucionários e conversadores. Movimento de reconceituação do serviço social Para o serviço social, o processo de reconceituação, iniciado na década de 1960, representa o início de uma reformulação global no cerne da profis- são. De acordo com Netto (2005), o movimento de reconceituação é, sem dúvida, parte integrante do processo internacional de erosão do serviço social tradicional. Trata-se de um marco para o processo de revisão crítica do serviço social. Iniciado no Cone Sul da América Latina, o movimento de reconceituação teve sua origem em 1965 no I Seminário Latino-americano de Serviço Social, que ocorreu em Porto Alegre e apresentou duas faces: modernização e ruptura. No Brasil, inserido no contexto da ditadura, o serviço social começa a romper com o tradicionalismo profissional presente até o momento e passa a apresentar críticas e heterogeneidade nas propostas interventivas que funda- mentassem o fazer profissional. Nesse contexto, podemos mencionar que, a partir do pós-64 e até meados da década de 1980 o serviço social brasileiro atravessou um processo de renovação, que apresenta três direções: � perspectiva modernizadora; � reatualização do conservadorismo ou fenomenológica; � intenção de ruptura. Essas direções fornecem a contextualização necessária para compreender as principais linhas de reflexão profissional no país. Ao examinar as produções literárias difundidas nesse período você verá que o processo de renovação se configurou como cumulativo, com distintos estágios teórico cultural e ideopolítico. Como coloca Netto (2009): No que toca à distribuição diacrônica da elaboração profissional, nosso exame sugere um cenário em que se registram três momentos privilegiados de con- densação da reflexão: o primeiro cobre a segunda metade dos anos sessenta, segundo é constatável um decênio depois e o terceiro se localiza na abertura dos anos oitenta (NETTO, 2009, p. 152). O processo de reconceituação do serviço social II2 marci Realce Para compreender a dinâmica do processo de renovação é necessário, de alguma maneira, relacionar-se com as instituições que sustentavam e impulsionavam esse processo. Netto coloca que, no primeiro momento, as iniciativas do Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviço Social (CBCISS) abriram uma série de seminários de teorização; em um segundo momento de teorização do serviço social, percebe-se uma inquietude no âmbito dos cursos de pós-graduação; e no terceiro momento, verifica-se a influência das agências de formação, como a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS). Essa diversidade está relacionada às direções profissionais diferentes registradas nos três momentos de condensação da reflexão situadas his- toricamente por Netto. Dessa forma, colocando em síntese o processo de renovação e os organismos que estimulam e alimentam sua base, podemos dizer que [...] a renovação se inicia mediante a ação organizadora de uma entidade que aglutina profissionais e docentes, em seguida tem seu centro de gravitação transferido para o interior das agências de formação e, enfim, espraia-se desses núcleos para organismos de clara funcionalidade na imediata representação da categoria profissional (NETTO, 2009, p. 153). O processo de renovação deve ser visto, portanto, como um pluralismo no interior do serviço social, fruto de um processo histórico que possibilita enxergar a realidade de maneira diferente e possibilita, por meio da diversidade teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa, repensar e renovar o saber e o fazer profissional. Perspectiva modernizadora Considerada a primeira expressão do processo de renovação, a perspectiva modernizadora nasce com a função de adequação do serviço social às de- mandadas do momento histórico vivido no Brasil. Trata-se de uma linha de desenvolvimento profissional que se encontra o auge da sua formulação, exatamente na segunda metade dos anos de 1960 (NETTO, 2009). 3O processo de reconceituação do serviço social II A perspectiva modernizadora tem como grande momento de sua formulação os textos dos seminários de Araxá e Teresópolis. Nessa perspectiva, o núcleo é a tematização do serviço social, que ganha força no processo de crise do tradicionalismo que marca a profissão e tem como marco principal a adequação às demandas do militarismo. Netto (2009, p. 154) ressalta: [...] uma perspectiva modernizadora para as concepções profissionais – um esforço no sentido de adequar o Serviço Social, enquanto instrumento de intervenção inserido no arsenal de técnicas sociais a ser operacionalizado no marco de estratégias de desenvolvimento capitalista, às exigências postas pelos processos sócio-políticos emergentes no pós-64. Marcada por características do discurso de desenvolvimento da sociedade, esta perspectiva revela profunda vinculação com a ordem sociopolítica oriunda do golpe militar, com posicionamento tipicamente estrutural-funcionalista. Foi a expressão da renovação profissional adequada à autocracia burguesa (NETTO, 1976 apud NETTO, 2009). No seu plano ideal, buscou-se um tom de tecnicidade, em que a matriz profissional consistia em conhecimentos técnicos capazes de interferir na realidade societária. Nesse aspecto, trata-se de uma tendência que visa incorporar bases teó- ricas e científicas ao saber e fazer profissional, revelando a necessidade de adoção de um método científico, sem, no entanto, romper com as bases do tradicionalismo que marcam o surgimento da profissão. Com posicionamentos estrutural-funcionalista, na perspectiva modernizadora o positivismo constitui- -se como um pano de fundo. Na direção positivista, o “[...] método científico das ciências naturais será utilizado para analisar a sociedade às relações de classe presente nela” (NETTO, 1976 apud NETTO, 2009, p. 156). Sendo seu traço conservador incompatível com o segmento profissional crítico. O processo de reconceituação do serviço social II4 marci Realce marci Realce A perspectiva modernizadora teve como um dos seus principais representantes José Lucena Dantas, que se orientou pela teorização funcionalista — que prevê o sistema social na mais perfeita ordem. A materialização das ideias dessa perspectiva teve seu auge nos documentos de teorização dos seminários de Araxá (1967) e Teresópolis (1970), organiza- dos pelo CBCISS. Neles, é possível perceber a preocupação dos profissionais de serviço social com o aperfeiçoamento do instrumental operativo, com os procedimentos metodológicos e técnicos e os padrões de eficiência. A partir dos anos de 1970, a perspectiva modernizadora será colocada em questionamento frente à dinâmica sociocultural e política da ditadura militar. A perda do início da legitimidadeda ditadura, em meados de 1974, dará condições para o desenvolvimento do pensamento crítico no serviço social e a criação dos cursos de pós-graduação. As considerações da reforma universitária aquecida nos anos anteriores contribuíram para redução da autorrepresentação dos assistentes sociais da época por essa perspectiva. Reatualização do conservadorismo no serviço social A perspectiva de reatualização do conservadorismo, trata-se de uma vertente que recupera os componentes originários da herança histórica e conservadora da profissão. É aquela que recupera o vínculo tradicional com a doutrina católica e enfatiza a intervenção na centralidade da pessoa. Conforme Netto (2009): Essencial e estruturalmente, esta perspectiva faz-se legatária das caracte- rísticas que conferiam à profissão o traço microscópico da sua intervenção e a subordinaram a uma visão de mundo derivada do pensamento católico tradicional; mas o faz com um verniz de modernidade ausente no anterior tradicionalismo profissional, à base das mais explícitas reservas aos limites dos referenciais de extração positivista. Aí, exatamente, o seu caráter renovador em confronto com o passado: o que se opera é uma reatualização dele, com um consciente esforço para fundá-lo em matrizes intelectuais mais sofisticadas (NETTO, 2009, p. 157). 5O processo de reconceituação do serviço social II marci Realce Considerada a perspectiva que se interpõe entre a modernização e a rup- tura, a reatualização do conservadorismo apresenta um terceiro caminho ao pluralismo teórico-metodológico oriundo do processo de renovação do serviço social. É a reatualização do conservadorismo que se manifesta no interior da complexa dialética de ruptura e continuidade com o passado profissional, sem prejuízo dos elementos renovadores que apresenta (NETTO, 2005). Tendo como polo difusor de suas ideias as instituições universitárias do Rio de Janeiro e São Paulo. A reatualização do conservadorismo expressa uma inspiração fenomenológica no interior do serviço social, referenciando o exercício profissional ao circuito da ajuda psicossocial. Netto (2009, p. 208) aponta que nessa perspectiva “[...] a demanda do aporte teórico do pensamento fenomenológico surge como a faceta mais proeminente das colocações sig- nificativas dos autores”. Uma das figuras mais exponenciais na perspectiva de reatualização do conservadorismo é Anna Augusta de Almeida. Para aprofundar o conteúdo, recomenda-se a leitura do seu livro Possibilidades e Limites da Teoria do Serviço Social, de 1978. Considerado um marco nas formulações dessa perspectiva, Almeida (1978 apud NETTO, 2009) expressa na sua tese de livre docência o texto básico para o que aparece como “nova proposta” para as ideias de cientificidade de cunho fenomenológico ao processo teórico-profissional. Nesse sentido, um dos pon- tos que salientamos nos textos representativos da tendência de reatualização do conservadorismo é o suporte metodológico com viés fenomenológico, que aparece neles como o insumo para a re-elaboração teórica e prática da profissão (NETTO, 2009). Sobre o suporte metodológico da fenomenologia, Netto (2009) aponta que é um traço pertinente a reatualização do conservadorismo: [...] antes do seu surgimento, o pensamento fenomenológico era verdadeira- mente desconhecido na elaboração profissional brasileira. Aliás, entre nós a incidência desse pensamento sobre as ciências sociais não possui grande lastro, fato que por si só sinaliza além da recepção relativamente tardia da postura fenomenológica na cultura do nosso país a relevância da reivindicação (NETTO, 2009, p. 208–209). O processo de reconceituação do serviço social II6 Destacamos aqui que nas obras literárias que se filiam a esta tendência não há referências a um suposto projeto societário no âmbito do serviço social, as reflexões vindas dessa perspectiva estão centradas no entendimento do fazer profissional como ajuda psicossocial. Entre a ajuda proposta pelo eixo psicossocial está a transformação ou ajustamento da subjetividade do sujeito. Sobre a ajuda psicossocial Anna Augusta de Almeida diz que é entendida: como um sentimento humano que existe em estado latente na interiori- dade do ser, e se manifesta por um apelo dialietizado de querer ajudar e querer ser ajudado. No momento em que a ajuda se manifesta como um apelo, ela se materializa numa profissão (ALMEIDA, 1978, p. 118 apud NETTO, 2009, p. 230). Portanto, o “marco referencial teórico” da proposta de Almeida é composto pela tríade conceitual: diálogo, pessoa e transformação social. Essa vertente, como pontua Netto (2009), não registra uma polêmica acesa em torno das suas proposições. É possível afirmar que ela não impõe mudanças significativas no fazer profissional, pois mantém em seu processo algumas práticas conservadoras, não propondo um projeto societário para o interior da agenda de debates que se operavam no serviço social no Brasil. Sumaré e Alto da Boa Vista Ao longo da trajetória histórica do serviço social, é evidente a ralação entre a autocracia burguesa e o serviço social no Brasil. Os traços mais evidentes de que se revestiu a renovação e a erosão das práticas mais tradicionais evi- denciam essa relação. Nesse sentido, mapear e identificar a conjuntura sociopolítica em que estão inseridos os documentos de Sumaré e Alto da Boa Vista é uma tarefa indis- pensável na compreensão dos aspectos históricos do processo de renovação da profissão no país. Sobre esse aspecto, Netto (2009) pontua que o ciclo autocrático burguês recobre três lustros, de abril de 1964 a março de 1979, ou seja, do golpe até a posse do General Figueiredo. 7O processo de reconceituação do serviço social II marci Realce Ao longo desses três lustros, autocracia burguesa evoluiu diferencialmente. Parece-nos legítimo apanhar essa evolução segundo três momentos distintos: o que vai de abril de 1964 a dezembro de 1968 (cobrindo o governo Caste- lo Branco e parte do governo Costa e Silva); de dezembro de 1968 a 1974 (envolvendo basicamente o fim do governo Costa e Silva, o intermezzo da Junta Militar e todo o governo de Médici) e o período Geisel (1974 a 1979) (NETTO, 2009, p. 35). Fazer esse breve recorte histórico nos permite situar a conjuntura política em que foram realizados os seminários e as influências do momento de suas elaborações. Até meados do final da década de 1960, a realidade global da “modernização conservadora” ocupava quase que unicamente o universo profissional no processo renovador. Já em meados da década de 1970, Netto (2009) coloca que já se fazem sentir os vetores socio-históricos e profissionais que responderão pelo nível de deslocamento da perspectiva modernizadora do proscênio que, no processo brasileiro da renovação do serviço social, ela ocupava quase que solitariamente. É desse período que se registra o deslocamento da perspectiva moder- nizadora da arena central de debates e da polêmica, passando a concorrer com outras vertentes do processo de renovação. Com o enfraquecimento no que tange a hegemonia da vertente modernizadora e com o início da crise da autocracia burguesa, entra em cena, no cenário do processo de recon- ceituação, a perspectiva de reatualizarão do conservadorismo. “Trata-se de uma vertente que recupera os componentes mais estratificados da herança histórica e conservadora da profissão, nos domínios da (auto)representação e da prática, e os repõe sobre uma nova base teórico-metodológica” (NETTO, 2009, p. 157). Nessa direção, disputando espaço e ganhando lugar nos foros de discus- sões e debates da profissão, as concepções dessa vertente vão adentrando o cenário profissional, instaurando os seminários realizados no Rio de Janeiro, no centro de Sumaré e no Alto da Boa Vista, expressivos no deslocamento da perspectiva modernizadora dos quatros efetivos do serviço social no Brasil. Concepções debatidas nos seminários Considerados deslocadores da perspectiva modernizadora, porretirarem do centro as elaborações e as discussões trazidas em torno dessa vertente, os seminários de Sumaré a Alto da Boa Vista inserem, no interior do serviço social, as concepções trazidas pela reatualização do conservadorismo. O processo de reconceituação do serviço social II8 Organizados pelo CBCISS, o seminário de Sumaré aconteceu entre 20 e 24 de novembro de 1978, no centro de estudos de Sumaré da arquidiocese carioca, reunindo 25 pessoas, entre coordenadores, consultores, apoiadores e participantes. Entre eles, nove participantes tinham estado em Araxá e sete em Teresópolis. O seminário do Alto da Boa Vista foi realizado em 1984 no colégio Coração de Jesus, com a participação de 24 pessoas, entre elas estavam 23 profissionais e um estudante. Considerada a distância temporal de seis anos entre os dois seminários, a proposta temática de ambos era discutir o serviço social e a cientificidade, o serviço social e a dialética e o serviço social e a fenomenologia. Nesse contexto, mesmo tendo um significado histórico e social na profissão, os dois seminários não obtiveram uma expressiva representatividade na categoria profissional. Tanto no colóquio de Sumaré como no do Alto da Boa Vista, ainda que ve- rificado o interesse dos organizadores em abrir o debate numa perspectiva menos unívoca e monocolor, bem como em utilizar uma dinâmica que não redundasse em textos cerrados, a condução da formulação dos problemas teóricos e culturais operou de forma tal que suas impostações se apresen- taram como defasadas em confronto com a modalidade de reflexão que encorpava nas expressões mais visíveis do debate profissional (NETTO, 2009, p. 195–196). Essa defasagem se deve ao cenário nacional da época, que rebatia sobre o interior da categoria profissional, que passava por alterações no seu corpo profissional marcado pelo surgimento de novos organismos de expressão e representação. Nos dois seminários, mais notadamente no do Alto da Boa Vista, é perceptível um movimento de abertura a referências distintas do conservadorismo (Netto, 2009). Nesse sentido, Netto (2009) aponta que: Ainda que se considere o panorama diverso do final do decênio de setenta (quando se realiza o encontro de Sumaré) e o dos primeiros anos da década de oitenta (quando ocorre o do Alto da Boa Vista) – vale dizer: tomando em conta o caráter datado dos eventos em tela, as elaborações e preocu- pações que tiveram curso nos dois colóquios possuem traços tais que as tornavam muito pouco aptas para galvanizar a atenção das vanguardas profissionais emergentes. Esses traços podem ser resumidos se se alude ao seu denominador comum: a extrema pobreza teórica que exibiam [...] (NETTO, 2009, p. 196). 9O processo de reconceituação do serviço social II Essa pobreza teórica era comparada a discussões que aconteciam nos foros acadêmicos, culturais e políticos dentro e fora da profissão na época. Nesse sentido, os seminários de Sumaré e Alto da Boa Vista, na concepção de Netto, carecem de concepções modernas. As tematizações apresentadas em ambos assinalavam vetores teórico-metodológicos que recuperavam os valores conservadores. Os valores e objetivos profissionais são compreender o homem e o mundo por meio de uma fenomenologia existencial e motivada por uma ética cristã, características da reatualização do conservadorismo. O seminário do Alto da Boa Vista desenvolve-se a partir de sete conferências, pronun- ciadas por convidados. Martins de Souza cuidou da “Problemática autoritária no Brasil”, L. Konder falou dos “Aspectos da história do marxismo no país”, Silvia Oliveira tratou do “Positivismo”, Telza Dozelli tematizou a “Fenomenologia”, Antônio Paim dissertou sobre o “Estatismo e questão social no Brasil”, Vélez Rodriguez relacionou o “Estado autoritário e as ciências sociais” e C. Ziviani abordou a “Tecnologia social” (NETTO, 2009). Documentos de Sumaré a Alto da Boa Vista As elaborações de ambos os documentos tiveram como eixo temático o serviço social e a cientificidade, o serviço social e a dialética e o serviço social e a fenomenologia. No seminário de Sumaré, as discussões em torno dos temas abordando a cientificidade do serviço social e as reflexões sobre o processo histórico- -científico de construção do objeto do serviço social foram preparadas por dois grupos de assistentes sociais, um do Rio de Janeiro e outro de São Paulo. No encontro de Sumaré, foram apresentados e discutidos “documentos de base” sobre a cientificidade do serviço social, e reflexões em torno da construção do serviço social a partir da abordagem de compreensão, ou seja, da interpretação fenomenológica do estudo do serviço social foram feitas (NETTO, 2009). O processo de reconceituação do serviço social II10 marci Realce marci Realce Nas elaborações redigidas pelo grupo carioca, a problemática da cienti- ficidade teve por base as teses de Goldstein. Ele sugere que o serviço social tem uma base comum de conhecimento. As proposituras de Goldstein, ancoradas teoricamente em um ecletismo que se lastreia em concepções estruturais funcionalistas, não contém qualquer problematização substantiva da natureza do serviço social tradicional (GOLDSTEIN, 1973 apud NETTO, 2009, p. 198). De acordo com essa proposição, o serviço social tem seus próprios meios e objetivos, insistindo que não haverá prática científica no serviço social. se os aspectos epistemológico e teórico forem negligenciados em proveito apenas de manipulações técnicas de caráter pragmático e terapêutico, os autores creem viável pensar ‘o caráter cientifico do Serviço Social’ como “busca de um consenso intersubjetivo sobre um campo delimitado de análise sobre o qual se estruturam conhecimentos conceitos próprios ou originados das ciências do homem de um modo geral, para uma posterior aplicação” (CENTRO BRASILEIRO DE COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO DE SER- VIÇOS SOCIAIS, 1986, p. 126 apud NETTO, 2009, p. 198). Nas elaborações do documento base do grupo do Rio de Janeiro não é possível analisar a realidade em termos de variáveis esquematizadas. A cien- tificidade representa uma ideia reguladora, não um modelo determinado. O saber científico é, ao mesmo tempo, aquisição de um saber, aperfeiçoamento de uma metodologia e elaboração de uma norma. Nesse contexto, o serviço social está na habilidade, responsável e cons- cientemente, de se tornar uma parte do complexo sistema de interação humana e produzir mudanças no comportamento do indivíduo. O foco é a compreensão do homem e do universo, a relação entre pessoa cliente e pessoa assistente social. No que se refere à elaboração do grupo paulista, o foco era o objeto do serviço social. “Os redatores pensam que se deve discutir a construção do seu objeto mediante um ‘enfoque dialético’ que incorpore uma dupla perspectiva: a da ‘ciência’ e dos ‘modos de produção’, das formas sociais e das conjunturas políticas” (CENTRO BRASILEIRO DE COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO DE SERVIÇOS SOCIAIS, 1986, p. 145–146 apud NETTO, 2009, p. 198–199). Preocupados com fenômenos e fatos, existe uma preocupação dos elabo- radores em sintetizar teoria e ação. O documento opera com categorias que reenviam ao “pensamento dialético”. No entanto, cabe uma consideração: a concepção dialética posta no documento é compreendida sobre a lente de Dilthey. 11O processo de reconceituação do serviço social II Nesse contexto, “A dialética recebe um tratamento francamente ininteli- gível e a própria ‘concepção dialética’ acaba por se reduzir à construção do objeto ‘a partir da concepção da realidade enquanto movimento no processo histórico’’’ (CENTRO BRASILEIRO DE COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO DE SERVIÇOS SOCIAIS, 1986, p. 145 apud NETTO, 2015a, p. 199). Com relação à abordagem serviço social e fenomenologia, pontuamos que no documento constam os registros da professora Creusa Capalbo. Ela apresenta a ciência do vivido segundo Husserl, entendendo a fenomenologia como compreensiva e não explicativa. Ao olharmos para os temasabordados e debatidos nos documentos de base de ambos os grupos você notará que o grupo do Rio apresentou preo- cupações quanto ao estudo do fenômeno, do saber científico e aos princípios que devem ser adotados pela categoria, ou seja, o serviço social propõe um desenvolvimento da consciência reflexiva das pessoas. Já o grupo paulista apresentou indagações sobre implicações de cunho fenomenológico para o serviço social. Quanto às elaborações publicadas no seminário do Alto da Boa Vista, dada a ausência de bibliografia que aprofunde a sua abordagem, é possível avaliar como o simplismo das intervenções dos conferencistas convidados tornou-se um fato central (CENTRO BRASILEIRO DE COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO DE SERVIÇOS SOCIAIS, 1988 apud NETTO, 2015a, p. 200). Contudo, uma das considerações feitas sobre a tônica “moderna”, é dada pela sugestão do “serviço social como sistema cibernético”, em que se supõe a utilização de alternativas de recursos tecnológicos como meios no processo interventivo, implicando, necessariamente, redefinições de princípios profissionais (CENTRO BRASILEIRO DE COOPERAÇÃO E INTERCÂMBIO DE SERVIÇOS SOCIAIS, 1988, p. 135–142 apud NETTO, 2015a, p. 200–201). Em 1984, quando ocorreu o encontro do Alto da Boa Vista, já havia sido realizado o III e o IV Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, e a ABEPSS já estava consolidada como foro de debates teórico- metodológico e profissional e como acervo nacional da bibliografia produzida por assistentes sociais sobre temas idênticos ou similares já largamente difundidos. O processo de reconceituação do serviço social II12 marci Realce marci Realce Dada a relevância história da construção desses seminários para o serviço social, a apreensão dos debates por eles não derivou em um debate profissional profundo na época. Os exames dos resultados do Sumaré e do Alto da Boa Vista patenteia que o processo de renovação profissional já transitava por outros condutos e envolvia outros protagonistas (NETTO, 2009). Intenção de ruptura Com a crise final da ditadura e a emergência do operariado no cenário so- ciopolítico, na passagem dos anos de 1970 para os anos de 1980, nasce, no interior do serviço social, a perspectiva de intenção de ruptura. Nesse período, o Brasil vive a massificação dos movimentos populares contrários ao regime militar, as expressões do movimento estudantil e do sindicalismo ganham força. Nessa fase, comprometido com uma proposta de projeto societário alternativo ao domínio capitalista, o serviço social assume um posicionamento de classe, vinculado à classe trabalhadora, associando- -se a grupos sociais e partidos políticos favorável à ideia de emancipação societária e humana. Na direção identificada na perspectiva de intenção de ruptura, almeja-se o rompimento total com o tradicionalismo histórico do serviço social. “Ao contrário das anteriores, essa fase possui como substrato nuclear uma crítica sistemática ao desempenho ‘tradicional’ e aos seus aportes teóricos, metodo- lógicos e ideológicos” (NETTO, 2009, p. 159). Um dos marcos da intenção de ruptura é a sua criticidade a ordem so- cietária vigente, considerada a perspectiva de caráter opositora a autocracia burguesa, que recorre, principalmente, ao pensamento marxista (tido de forma progressiva na sociedade). Com relação à expressão da perspectiva de intenção de ruptura, Netto (2009) coloca: Na primeira metade dos anos oitenta, é esta perspectiva que dá o tom a polê- mica profissional e fixa as características da retórica politizada (com nítidas tendências à partidarização) de vanguardas profissionais de maior incidência na categoria, permeando o que há de mais ressonante na relação entre esta e a sociedade e de tal forma fornece a impressão de possuir uma inconteste hegemonia no universo profissional (NETTO, 2009, p. 160). Na construção dessa vertente, podemos afirmar que ela se caracteriza pela formação de uma massa crítica de assistentes sociais. Sua formulação inicial 13O processo de reconceituação do serviço social II marci Realce marci Realce marci Realce tem como cenário a Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais, e surge da inquietude de jovens assistentes sociais que “[...] elaboraram (...) uma alternativa que procura romper com o tradicionalismo no plano teórico-metodológico, no plano da intervenção profissional e no plano da formação” (NETTO, 2005, p. 263). A participação da classe trabalhadora como sujeitos políticos teve influência significativa sobre as instituições universitárias a partir de 1968. A partir das reformas universitárias são criados os cursos de pós-graduação em serviço social, começando a surgir um profissional acadêmico, com dedicação ex- clusiva ao trabalho científico. O pensamento crítico se desenvolve no seio da universidade, estando atrelado fortemente a existência de um ambiente rico culturalmente e dotado de certa autonomia. Nesse contexto, é evidente na perspectiva de intenção de ruptura a vin- culação à universidade. Sobre essa característica, Netto (2009) escreve que: Entendamo-nos: a universidade enquadrada e amordaçada (também já o vi- mos) nunca foi um território livre; no entanto, pelas próprias peculiaridades do espaço acadêmico, este se apresentava como menos adverso que os outros para apostas de rompimento; era, comparado aos demais, uma espécie de ponto fulcral na linha menor da resistência. Permitiria, se as condições fossem minimamente favoráveis, na conjunção da pesquisa e extensão, o atendimento de necessidades de elaboração e experimentação – e estas eram absolutamente imprescindíveis ao projeto de ruptura (NETTO, 2009, p. 250–251). Por esta razão, a intenção de ruptura evidenciou-se primeiramente como produto universitário e, por meio de seus espaços, tornou-se possível a intera- ção intelectual entre os profissionais, tornando possível quebrar o isolamento intelectual do assistente social e viabilizar experiências de prática autogeridas (NETTO, 2009). Emergência e desenvolvimento da perspectiva de intenção de ruptura A perspectiva de intenção de ruptura passou por diversos momentos consti- tutivos, desde sua emergência nos espaços universitários até a construção dos seus produtos mais típicos e influentes. É legítimo mapear essa perspectiva em três momentos diferentes: o da sua emersão, a consolidação acadêmica e seu espraiamento sobre a categoria profissional. Seu processo de emergência está historicamente situado na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais, onde se formulou o método O processo de reconceituação do serviço social II14 marci Realce Belo Horizonte. Originário da inquietude de um grupo de jovens profissionais, a intenção de ruptura não inicia acidentalmente em Belo Horizonte. Historica- mente, a capital mineira fora um sítio de elites reacionárias e aguerridas que contribuíram para o golpe de 1964, porém, ali estavam situados importantes movimentos sindicais e populares, além de uma forte tradição estudantil não só democrática, mas com impulsão revolucionária e socialista (NETTO, 2009). Toda essa conjuntura cultural e sociopolítica conjugam os elementos ne- cessários para tornar Belo Horizonte o berço adequado para expressão inicial do projeto profissional de ruptura. Para apreender sobre o caráter global da alternativa de ruptura proposta pelos pro- fissionais da escola mineira, basta examinar as peças vitais da reflexão do grupo, principalmente três documentos elaborados na escola entre 1971 e 1974, que são hoje de difícil consulta (A prática como fonte da teoria, Uma proposta de reestruturação da formação professional e Análise histórica da orientação metodológica da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais). No primeiro momento, parecia que a emergência da intenção de ruptura era algo passageiro. No entanto, trabalho de conclusão de cursos de pós-graduação de assistentes sociais no final dos anos de 1970 e no iníciodos anos de 1980, revela uma recuperação da intenção de ruptura marcando a fase de consolidação dessa perspectiva. Percebe-se, no interior da profissão. Uma recuperação que colocava o projeto de rompimento sobre novas bases, estritamente acadêmica, mas ainda assim significando um marco da universidade enquadrada pela autocracia burguesa, que agora evidenciava sua crise (NETTO, 2009). Nessa perspectiva, a ampliação da categoria e das produções acadêmicas vai se concentrar nos debates profissionais. Essa busca por identidade ingressará no seu terceiro momento, o momento em que ela se espraia para o conjunto da categoria profissional, conduzindo os profissionais de serviço social para a inserção em fóruns e seminários, o que acarretará a propagação da perspectiva. O fato é que a incidência do projeto de intenção de ruptura, a partir do se- gundo terço da década de oitenta, penetra e enforma os debates da categoria profissional, dá o tom da sua produção intelectual, rebate na formação de quadros operada nas agencias acadêmicas de ponta e atinge as organizações representativas dos assistentes sociais (NETTO, 2009, p. 267). 15O processo de reconceituação do serviço social II Assim, esse resgate histórico das formulações constitutivas da perspectiva de intenção de ruptura revela que a tendência é um condutor no processo de renovação do serviço social no Brasil, marcada por linhas de continuidade inscrita na contemporaneidade com objetivo de transformação da sociedade e do homem, evidenciada pelo seu potencial crítico e contestador das relações de classe no modo de produção capitalista. NETTO, J. P. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2009. 334 p. NETTO, J. P. O Movimento de Reconceituação: 40 anos depois. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 84, p. 5-20, nov. 2005. Leituras recomendadas ALMEIDA, A. A. Possibilidades e limites da teoria do serviço social. 4. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. 159 p. ANDRADE, M. A. R. A. O metodologismo e o desenvolvimentismo no Serviço Social Brasileiro 1947-1961. Serviço Social & Realidade, Franca, v. 17, n. 1, p. 268-299, 2008. Dis- ponível em: <https://ojs.franca.unesp.br/index.php/SSR/article/view/13>. Acesso em: 7 out. 2018. O processo de reconceituação do serviço social II16 Conteúdo:
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