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ANNA MARIA MOREIRA RAMOS HEPATOESPLENOMEGALIAS NA INFÂNCIA CONCEITOS INICIAIS Hepatomegalia e esplenomegalia são o aumento do fígado e do baço, respectivamente. Podem andar juntas ou separadas. PROPEDÊUTICA DO FÍGADO E DO BAÇO 1) Ao palpar alguma estrutura principalmente a nível de hipocôndrio, deve-se, primeiramente, perguntar: é realmente fígado/baço? Outra estrutura? Processo expansivo? 2) Caso seja, esse órgão realmente está aumentado de tamanho? Algumas condições podem aumentar o tamanho dessas vísceras: - Ex.: criança muito magra e longilínea pode ter alguma hipotonia diafragmática, podendo levar a uma ptose do fígado e/ou do baço; - Ex².: processo expansivo que desloca as vísceras; - Ex³.: paciente em vigência de crise asmática, onde há hiperexpansibilidade pulmonar, podendo levar a um rebaixamento transitório do diafragma) 3) Se elas tiverem realmente aumentadas de tamanho, esse aumento é aceitável fisiologicamente p/ a faixa etária, ou trata-se de algo patológico? (há algumas faixas etárias que possuem aumento fisiológico do fígado e/ou do baço, e doenças não-graves que cursam c/ aumento sutil, na maioria dos casos; como também existem causas graves que levam a esse aumento e que podem ser potencialmente fatais se não diagnosticadas e tratadas de forma precoce) Aumento fisiológico do fígado e do baço: há algumas faixas etárias em que se considera normal a palpação dessas vísceras. Até 6 meses Fígado até 3-3,5 cm do RCD 6 meses a 2 anos Fígado até 2,5-3 cm do RCD Até 10 anos Fígado até 2 cm do RCD Quanto ao baço, até ⅓ dos RN apresenta uma ponta de baço palpável, e até os 10 anos, pouco menos de 10% pode apresentar uma “pontinha” de baço palpável sem que isso seja patológico. 4) P/ identificar se um processo é patológico ou não, é essencial valorizar o contexto clínico no qual a criança se apresenta. MECANISMOS RESPONSÁVEIS Algumas situações clínicas levam ao aumento de tamanho, levando-se em conta as funções básicas dessas vísceras. O fígado e o baço participam do sistema linfoide retículo endotelial. Inflamação: Logo, qualquer situação clínica que leve a um processo inflamatório, seja leve (IVAS, ITU, sd. monolike) ou mais graves (dças. reumatológicas, neoplasias), leva a um aumento tanto do tamanho quanto do nº das células. Anemia/hemólise: Além disso, essas vísceras, na vida intrauterina, tinham função de hematopoiese. Em situações de anemia moderada a grave, independente da etiologia, essas vísceras podem resgatar essa função, levando consequentemente ao aumento das mesmas. Isso é visto com mais clareza na anemia hemolítica, talassemia, anemia falciforme, anemia hemolítica autoimune; mas pequenos aumentos, principalmente do fígado, podem ser encontrados numa anemia carencial moderada a grave. O tamanho vai variar de acordo com a gravidade e a etiologia do processo. Congestão cardiocirculatória: Esses órgãos são bem vascularizados. Logo, num contexto onde haja uma congestão cardiocirculatória, pode haver aumento dessas vísceras. Ex.: no contexto da GNPE, em quadros onde há taquicardia, taquipneia, hepatomegalia e fígado doloroso à palpação. Um quadro de ICC, de congestão cardiocirculatória importante, pode levar a um aumento dessas vísceras. Invasão por células estranhas: Invasão do fígado e do baço por células estranhas. Erros inatos do metabolismo: doenças metabólicas podem levar a um acúmulo de substâncias ou de elementos que normalmente não se depositam nas células desses órgãos, levando a seu aumento. Processo infeccioso na própria víscera: abscesso hepático ou esplênico (mais raro); hemangioma. CAUSAS INFECCIOSAS Virais: EBV, CMV, hepatites, HIV, rubéola Bacterianas: salmonelose, brucelose, TB, endocardite Parasitárias: malária, esquistossomose, tripanossomíase, toxoplasmose, leishmaniose, toxocaríase, abscesso amebiano Fúngicas: blastomicose, histoplasmose, candidíase NEOPLÁSICAS: tumores hepáticos primários, leucemia, linfomas, neuroblastoma, tumor de Wilms, hemangioma DOENÇAS INFLAMATÓRIAS: colagenoses (LES, AIJ), sarcoidose, hipersensibilidade química ou medicamentosa, hepatites crônicas DOENÇAS HEMATOLÓGICAS: anemias hemolíticas ou ferroprivas DOENÇAS DE DEPÓSITO: por lipídeos, por glicogênio, galactosemia, mucopolissacaridose, deficiência de alfa-1-antitripsina DOENÇAS QUE CURSAM COM HIPERTENSÃO PORTA: trombose de v. porta, fibrose hepática congênita, hepatites, esquistossomose, pericardite constritiva, ICC, Budd-Chiari AVALIAÇÃO CLÍNICA Mais do que a hepatoesplenomegalia em si, nós devemos avaliar a constelação de sinais e sintomas associados. IDADE - RN: anemia hemolítica por incompatibilidade sanguínea (por Rh principalmente), processos infecciosos (TORCHS, sepse), erros inatos do metabolismo, atresia de colédoco 1 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS - Esse quadro nunca anda sozinho, sempre está associada a mais alguma coisa. - Até os 2 anos de idade, a maioria dos quadros corresponde a afecções benignas, sobretudo à etiologia viral. No lactente, a causa mais comum de esplenomegalia ou hepatoesplenomegalia febril é ITU, mas é uma esplenomegalia que não chega a chamar tanta atenção pelas dimensões dessas vísceras. - Ainda nessa idade até os 2 anos e chegando à fase pré-escolar, chama a atenção algumas parasitoses intestinais que podem levar a hepatoesplenomegalia. A toxocaríase pode levar à hepatoesplenomegalia pronunciada, associada a um quadro febril, pode ter sintomas respiratórios associados, eosinofilia importante a nível de sangue periférico. FORMAS DE APRESENTAÇÃO: pode apresentar-se de forma súbita ou indolente. Isso é muito difícil de ser avaliado pois é muito raro que o paciente chegue no PA ou no ambu c/ um quadro de hepatoesplenomegalia a esclarecer. É mais comum vir c/ icterícia, ou palidez, ou queixa articular e, no exame físico, ser encontrada uma visceromegalia. - Processos como infecções e quadros congestivos cursam com aumentos mais súbitos dessas vísceras; - Já nas anemias, hepatopatias, erros inatos do metab., doenças hematológicas, a hepatoesplenomegalia é mais insidiosa/lenta. MANIFESTAÇÃO CLÍNICA ASSOCIADAS: Não existe uma manifestação padrão. A princípio, alguns exames são solicitados para nortear o raciocínio clínico. Febre: a hepatoesplenomegalia febril é encontrada nos pacientes que têm um quadro inflamatório associado, de etiologia infecciosa, neoplásica ou reumatológica. - Muitas vezes, nos quadros de sd. monolike (mononucleose infecciosa, MCV, toxoplasmose) é comum que a hepatoesplenomegalia se mantenha mesmo depois de passado o período febril. Nessa condição, não necessariamente o paciente vai ter febre no momento em que se encontra a hepatoesplenomegalia, pois a regressão das vísceras pode se dar mais lentamente. - Em anemias carenciais ou hemolíticas, erros inatos do metabolismo, doenças congestivas, hepatobiliares, ou que cursam com hipertensão porta, é menos comum haver febre, a não ser que haja uma causa infecciosa concomitante. Anemia: nós vimos que a hepatoesplenomegalia vai ocorrer porque o fígado e o baço vão resgatar sua função de eritropoiese. As anemias carenciais moderadas a graves podem levar à hepatoesplenomegalia, mas na maioria dos casos são hepatoesplenomegalias sutis. Algumas anemias hemolíticas, como a talassemia major, pode levar a um aumento volumoso do fígado e do baço. Icterícia: é às custas de bilirrubina direta ou indireta? isso norteia o raciocínio clínico. Hepatoesplenomegalia associada a icterícia nem sempre é consequência de colestase ou de uma hepatopatia. A icterícia vai acontecer quando tiver um aumento de bilirrubina direta (BD) ou indireta (BI). Às custas de BD Investigar p/ hepatopatia de ductos biliares Às custas de BI Investigar p/ hemólise Adenomegalias: aqui se encontram muitas doenças, como processos virais (incluindo sds. monolike), neoplasias, intoxicações medicamentosas,doenças reumatológicas Manifestações hemorrágicas: hepatopatia c/ disfunção hepática e redução da síntese dos fatores de coagulação; plaquetopenia acentuada podendo ser algum defeito medular; sequestro esplênico Acometimento articular (artrite/artralgia): desde infecções virais (sd. monolike), a leucemias, neoplasias, doenças reumatológicas Acometimento respiratório: PNM de repetição, imunodeficiência, FC, parasitoses c/ ciclo pulmonar (toxocaríase pode levar a febre prolongada com hepatomegalia e eosinofilia em sangue periférico; TB) Acometimento cardiovascular: ICC (aumento súbito do fígado e dor à palpação pela distensão da cápsula hepática), pericardite constritiva, endocardite infecciosa (mais comum em quem tem cardiopatia prévia, como defeito valvar) Ascite: hipertensão porta Outras alterações: características dismórficas, alterações faciais, oculares, atraso no DNPM, convulsões de difícil controle, vômitos inexplicáveis Medicamentos e drogas hepatotóxicas DADOS EPIDEMIOLÓGICOS: - S/ saneamento básico + baixas condições socioeconômicas = parasitose? - Contato c/ gatos = toxoplasmose? - Contatos domiciliares c/ enfermos = TB? - Contato c/ cães = calazar? - Banho de açude = esquistossomose? ANTECEDENTES FAMILIARES E PESSOAIS: - Anemia na família = anemia falciforme? talassemia? - Fibrose cística - Alterações genéticas EXAME FÍSICO: ectoscopia (estado geral, icterícia, palidez cutâneo-mucosa), ausculta respiratória, palpação abdominal (dimensões do fígado e do baço), adenomegalias, acometimento articular AVALIAÇÃO LABORATORIAL E DE IMAGEM INICIAL A literatura sugere que inicialmente seja feita uma avaliação laboratorial e de imagem p/ começar c/ mais clareza a investigação clínica. Hemograma e reticulócitos AST, ALT (na pesquisa de disfunção hepatocelular) SU e Urocultura (na pesquisa de ITU - causa mais comum de hepatoespleno no RN) Sorologias (sds. monolike - mononucleose, CMV, 2 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS toxoplasmose; e alguns recomendam p/ hepatite e HIV) USG de abdome (p/ ter certeza das visceromegalias e sua ecogenicidade) OUTROS EXAMES (cf. a necessidade) PPD Teste do suor Mielograma Biópsia hepática, ganglionar, esplênica RX de ossos longos CASO CLÍNICO 1 - Mononucleose infecciosa Paciente do sexo feminino, 13 anos, branca, trazida ao PA c/ história de febre e odinofagia há 7 dias. Há 3 dias, procurou assistência médica, onde foi prescrita amoxicilina que, segundo a genitora, desencadeou reação alérgica, o que levou à sua suspensão. Ao exame: hipertrofia e hiperemia tonsilar, c/ exsudato esbranquiçado, presença de linfonodomegalia em cadeia cervical posterior bilateralmente c/ aglomerado linfonodal medindo cerca de 6cm, móvel, não aderido a planos, esplenomegalia c/ baço palpável a 2 cm do RCE e fígado palpável a 3 cm do RCD. HD? Conduta? Aparentemente é um quadro agudo de hepatoesplenomegalia febril. Sendo febril, existe provavelmente um processo inflamatório adjacente que pode ser por conta de um processo infeccioso viral ou bacteriano, neoplásico ou reumatológico. Diante dessa situação clínica se pensou numa sd. monolike, a mononucleose infecciosa, que pode levar a alterações importantes a nível de orofaringe c/ exsudato abundante, pode levar a adenomegalia e a hepatoesplenomegalia. O que chama atenção é que na hora em que foi administrada a amoxicilina, a paciente evoluiu com o rash, uma reação referida pela mãe e interpretada como uma reação alérgica, levando à sua pronta suspensão. Mas, a literatura diz que em até 90% dos casos dos pacientes c/ mononucleose, que fazem uso de derivados da penicilina fazem um rash, esse é um caso clássico. - Ao chegar um paciente assim, num 1º momento pode-se pedir: hemograma e sorologias. - Ainda não necessitam ser feitos outros exames, pois o que mais chama atenção no quadro é a odinofagia e a hiperemia de orofaringe que já justificam a adenomegalia satélite. Resultados dos exames: Leucograma: 20.000 → leucocitose Linfócitos: 40% - Atípicos: 12% → atipia importante Segmentados: 35% - Bastões: 4% EBV: IgG positivo, IgM positivo Leucocitose com mais de 10% de atípicos, é muito sugestivo (embora não seja patognomônico) de mononucleose infecciosa. - Nesse caso o tto é puramente de suporte. Não faz sentido pedir SU, urocultura e outros exames, já que o contexto clínico desta paciente leva a uma HD muito forte e palpável. CASO CLÍNICO 2 - Leishmaniose Paciente do sexo masculino, 3 anos, negro, natural e procedente de Cajazeiras, PB, admitido com história de febre intermitente há 2 meses, aferida, variando de 38,5-39ºC. Pai relata também adinamia e hiporexia. Refere diurese concentrada, com odor normal. Não evacua há 3 dias. Nega outras queixas. Não faz uso crônico de medicações e nem fez tratamento medicamentoso recente. AF: gemelar, nascido de parto cesáreo, prematuro (32 sem), PN 2.750g, sem intercorrências no período neonatal. Mãe fez pré-natal com 8 consultas. AP: Teve varicela há 1 ano. Relata internação prévia por diarreia e vômitos há 18 meses. Nega cirurgias e hemotransfusões. Vacinas atualizadas. AF: Pai saudável, mãe com HAS. Nega outras doenças na família. HV: reside em zona rural, casa de alvenaria, com fossa séptica, energia elétrica e água encanada. Afirma contato com cães e gatos de vizinhos. Nega banhos de açude. - Existem várias informações que colhemos na anamnese, afinal temos que perguntar absolutamente tudo, mas é importante filtrar as informações. Ex.: até que ponto essa varicela há 1 ano é importante p/ o Dx atual? - É um paciente com febre há 2 meses, então é uma febre prolongada. Tem adinamia e hiporexia, diurese concentrada e não evacua há 3 dias. Aqui já é uma hepatoesplenomegalia febril com alguns sintomas constitucionais, então nós norteamos mais nosso raciocínio para as situações onde há um processo inflamatório (infecção, neoplasia, reumatológico). Ao exame: hipocorado (+++/4+), anictérico, febril. Fígado a 3cm do RCD e baço ao nível da cicatriz umbilical. Sem outras alterações. - Além do quadro febril prolongado, é um paciente que vem da zona rural, que tem contato com animais, febre, com astenia e hiporexia. Logo, podemos acrescentar às HD aqui: anemia a esclarecer + hepatoesplenomegalia. - Chama a atenção a desproporção do fígado pro baço. Tem algumas situações clínicas que essa desproporção entre as vísceras sugere, mas não é patognomônico nem essencial, mas sugere algumas patologias bem definidas. Nesse momento, quais as HD p/ trabalharmos em cima delas: um quadro provavelmente infeccioso (onde vamos buscar as causas) onde ele tem uma anemia, e tem uma esplenomegalia que chama a atenção, e tem o passado epidemiológico de contato com cães. O que devemos pedir? Se eu desconfio que ele tem uma anemia, podemos usar aquele raciocínio de pedir os exames laboratoriais c/ alguns ajustes. 1) Então pedimos hemograma com reticulócitos pra ver se ela tem uma anemia e se essa anemia é hiperproliferativa ou não. 2) Podemos pedir culturas (urocultura, hemocultura), já que se trata de uma febre de origem indeterminada 3) Sorologias. Aqui, como ele tem essa desproporção importante de baço p/ fígado, a sorologia p/ mononucleose 3 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS apenas não será suficiente e nós pedimos também sorologia p/ calazar. 4) Podemos pedir também imagens, uma USG a princípio p/ avaliarmos A depender dos exames iniciais, nós vamos mergulhando nas HDs, confirmando umas e descartando outras, e pedindoou não novos exames laboratoriais ou mais invasivos. Partindo do hemograma (lembrar também que podemos pedir provas inflamatórias, como VSH, PCR) Exames: Hb - 6mg/dl Leuc - 2.500 B - 2 S - 54 L - 35 LA - 2 Plt - 50.000 Reticulócitos - 0,5% - É um paciente que tem pancitopenia. Ele tem uma alteração importante em todas as séries sanguíneas: vermelha, branca e plaquetária; e tem uma tendência à reticulopenia: 0,5%. - Se vocês lembrarem, reticulócitos são formas jovens das hemácias, então se eu tenho uma anemia + reticulocitopenia, é sinal, por algum motivo, que a produção da série vermelha pela medula não anda boa, por algum motivo. P/ saber onde está o defeito, nós devemos percorrer todo o ciclo de produção (defeito no substrato, como anemia carencial? acometimento medular (aplasia, leucemia, dça. de depósito)?). Se houver uma reticulocitose, o raciocínio muda, pois a medula está trabalhando muito, produzindo muitas células jovens, no sentido de compensar alguma perda. Então: hemólise/quebra de hemácia? hemorragia aguda? sequestro esplênico? - É importante que nesse quadro fique claro que há uma pancitopenia com uma reticulocitopenia. P/ esses casos é necessário que se faça o índice de produção reticulocitária e o índice reticulocitário corrigido. É importante pedir todos aqueles exames, e não pode deixar de pedir também um exame que veja como está a produção medular, então se solicita o Aspirado de Medula Óssea, p/ ver se existem células neoplásicas, parasitas... Sorologias: EBV, CMV, toxoplasmose = negativas Calazar = positiva → a especificidade da sorologia p/ calazar é bem alta, assim como o teste rápido Hemocultura e urocultura = negativas USG abdominal = hepatoesplenomegalia uniformes, sem outras alterações Mielograma = presença de leishmanias - Pancitopenia associada a reticulopenia é uma indicação quase formal de solicitação de Aspirado de Medula Óssea. CASO CLÍNICO 3 - Fibrose cística Paciente do sexo feminino, 10 anos, procedente de Serra Negra - RN, admitida com história de tosse crônica (é asmática, segundo a mãe), com piora nos últimos 8 dias, acompanhada de febre e dispneia progressiva. Afirma dor abdominal desde o início do quadro. Nega outras queixas. Em uso de GH há 5 meses, por baixa estatura (faz seguimento clínico com endocrinopediatra). Faz uso também de medicação inalatória para controle da asma. APF: mãe G2P2. parto a termo, sem intercorrências. Apgar 8/9. PN: 3800g. Nega intercorrências no período neonatal. APP: paciente com história de asma, com várias internações por “bronquite”. AF: mãe diabética. Pai com HAS. Primo teve leucemia. HV: mora em zona urbana, com saneamento básico. Nega contato com animais. Sem fumantes em domicílio. É um quadro crônico com agudização nos últimos 8 dias. Ao exame, encontra-se com EGR, desnutrida, taquidispneica, hipocorada (+/4+), afebril. AR: MVN com creptos em base de HTD. Abd: flacido, com fígado a 3 cm do RCD e baço a 3 cm do RCE. Ext: bem perfundidas, baqueteamento digital. Sem outras alterações. HD? Conduta? - Nós fazemos o diagnóstico tipo sindrômico (ex.: isso + isso + isso a esclarecer). Começávamos pelas hipóteses mais comuns e íamos mergulhando nas mais raras. - Essa paciente possui um quadro respiratório crônico com agudizações. Nessa agudização atual, a HD mais sugestiva é uma PNM. é uma paciente de EGR, que tem creptos na sua ausculta respiratória e taquidispneia. Mas qual seria a doença de base? Poderia ser uma asma de difícil controle. Mas é uma doença tão grave a ponto de levar a alterações pondero estaturais. E é uma paciente que tem baqueteamento digital, que tá associado a cronicidade. Já para o Dx atual nós pedimos um RX de tórax. RX de tórax: broncopneumonia em base direita. Opacidades e sinais sugestivos de bronquiectasias em lobos superiores. - Isso chama a atenção, pois essas bronquiectasias se desenvolvem quando os pacientes têm PNM de repetição, processos inflamatórios nos brônquios de repetição. HDs: imunodeficiência? disfunção mucociliar? fibrose cística? Hemograma: Hb - 9,0 mg/dl (anemia) leuc - 20.000 B - 10% S - 40% (leucocitose + neutrofilia c/ desvio à esquerda) LT - 30% LA - 2% Plt - 600.000 (plaquetose - 150-450 mil seriam os níveis normais ) PCR: 90 (alto, nos levando a considerar um processo inflamatório em curso) AST: 35 ALT: 40 (normais) - Todas essas alterações são justificadas pelo atual quadro infeccioso de PNM. O processo infeccioso, em especial o bacteriano, pode levar a graus variados de anemia. Provavelmente, depois que eu tratar essa paciente, se ela não tiver nenhuma comorbidade, os níveis de Hb vão voltar ao normal em cerca de 3-4 semanas. - A leucocitose com desvio tá mais do que justificada em neutrofilia. Quando à plaquetose, as principais causas de plaquetose no nosso meio são: processo infeccioso, anemia ferropriva e uso de algumas drogas. PPD: não reator Pesquisa de BK no escarro: negativa TC de tórax: bronquiectasia cística e espessamento das paredes brônquicas, com sinais de impactação mucóide Essas alterações da TC são muito sugestivas de FC. Teste do suor: indisponível Pesquisa da mutação da DF508: positivo (mutação mais comum do paciente com FC) Sorologia p/ HIV: negativa 4 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS Dosagem de imunoglobulinas: normais - A sorologia p/ HIV e a dosagem de imunoglobulinas foi feita já pensando em imunodeficiência, pois isso justificaria PNM de repetição. Lembrar que nós damos o Dx de FC baseando-se em dados clínicos e laboratoriais. Existem algumas coisas p/ se fechar o Dx de FC. Antes, se apostava muito naquela história de PNM de repetição associada à diarreia crônica - é o quadro clínico clássico e mais relatado na literatura. É aquele caso que a criança vai apresentando desde o início da vida esse quadro, e vai progressivamente tendo queda no estado geral e se agravando. Essa paciente nós demos o Dx já com 10 anos de idade, então é um Dx mais tardio que demos de FC lá no HU. Chama atenção alguns pontos nesse quadro: primeiro uma “cochilada” que deram, infelizmente, nesse quadro respiratório crônico, pois atribuíram tudo que ela apresentava, as agudizações e tudo, a uma asma de difícil controle. Então lembrar que, atualmente, até diante de sinais menos clássicos, nós devemos desconfiar da possibilidade de FC, nem sempre nós vamos ter insuficiência pancreática exógena associada que se manifestaria com diarreia crônica, e existem alguns autores já mostrando que essas famosas bronquites de repetição são mais comuns até do que essas PNM de repetição no paciente c/ FC, Então: quadro respiratório, de difícil controle (principalmente se o Dx não foi fechado) tem que ser melhor investigado. Chama atenção também que ela foi p/ a endocrinologia, que atribuiu esse déficit de crescimento a uma asma de difícil controle, quando na verdade era uma consequência da FC. Nós fechamos como um Dx de FC por critérios clínicos e laboratoriais. Quanto aos critérios clínicos, a gente deve ter um quadro respiratório associado ou não à insuficiência pancreática exócrina; tem que ter uma história familiar ou então um Teste do Pezinho positivo. Quanto aos testes laboratoriais, é necessário um Teste do Suor, mostrando a dosagem do cloreto superior a 60 em 2 medidas seguidas (no lactente esses valores mudam um pouco). Na pesquisa da mutação genética (a que mais usamos é a mutação do DF508) ou então na diferença transmembrana no epitélio nasal; esse último particularmente eu nunca vi, só na literatura. Se eu tiver um critério clínico associado a um critériolaboratorial, fechou o Dx. O que ela tinha de critério clínico: um quadro respiratório crônico c/ agudizações. E o que ela tinha de padrão laboratorial: a pesquisa da mutação do DF508. Nós começamos a tratar essa paciente, tiramos do quadro agudo, demos o suporte que ela necessitava e ela vem crescendo e se desenvolvendo de forma adequada desde o Dx. CASO CLÍNICO 4 - Doença falciforme Paciente de 10 anos de idade, negra, natural e procedente de Queimadas - PB, internada com quadro de dor intensa em abdome e topografia de coluna lombossacra, há 24 horas. Há 3 dias com quadro de febre e rinorreia. Nega queixas urinárias e gastrintestinais. APF: Mãe GIII PII A0. Gestação sem intercorrências. Parto eutócico, a termo. Mãe não sabe informar PN ou APGAR. Sem problemas no período neonatal. APP: afirma internação prévia por artrite. Já fez vários tratamentos para anemia. AF: mãe, pai e irmão saudáveis. Tia falecida aos 30 anos, “de anemia”. HV: mora em zona rural, sem saneamento básico, 3 cômodos para 5 pessoas. Afirma contato com vários animais (cães, cabras, gatos). Banho de açude. - Na história prévia da paciente, o que chama a atenção? É uma paciente que tem uma dor abdominal intensa, em topografia de coluna lombossacra há 1 dia, há 3 dias começou um quadro provavelmente de uma IVAS c/ febre e rinorreia, e já teve uma internação prévia por Artrite e já fez vários tratamentos para anemia (tem quase que uma anemia crônica). Além disso, chama a atenção também a tia falecida aos 30 anos “de anemia”. Ao exame: EGR, fácies de dor, hipocorada (++/4+), eupneica, hidratada, afebril, ictérica (++/4+). ACV e AR: sem alterações. Abd: Plano, flácido, doloroso difusamente à palpação profunda; fígado a 3 cm do RCD. Sem esplenomegalia. HD? Conduta? - Vamos só resgatar a história: é uma paciente que nos chega a 3 dias c/ um quadro que sugere uma IVAS, há 1 dia c/ uma dor intensa, tem uma tia falecida c/ uma anemia a esclarecer e ela nos antecedentes tem um quadro de anemia quase que crônica porque fez vários ttos sem sucesso e tem uma internação prévia por artrite e no exame está hipocorada, ictérica e tem uma hepatomegalia. Essa é uma história real e, já na beira do leito, a mãe relatou que a criança sempre tinha alguma dor em algum lugar e que a mãe sempre tinha um frasco de Ibuprofeno pra dar a ela nessas crises de dor. Nós vamos colocar no Dx sindrômico: crise álgica, associada a uma anemia interrogada (já que está hipocorada), associada a uma icterícia, associada a uma hepatomegalia. - Como devemos conduzir? Ela tem uma anemia a esclarecer c/ icterícia. Essa icterícia é às custas de BD ou de BI? Isso pra gente saber se trata-se de uma anemia c/ alguma coisa colestática ou se é uma anemia hemolítica. Como ela já tinha icterícia, pedimos também BD e BI às custas de quê ela estava ictérica; como ela tinha anemia nós pedimos hemograma c/ reticulócitos. Exames: Hb – 6,0 (anemia) leuc – 5.000 (normais) Plt – 300.000 (normais) Reticulócitos – 8,5% (reticulocitose) - antes de ver os outros exames: isso significa que ela tem uma anemia hiperproliferativa, por algum motivo essa medula está trabalhando mais do que o normal, é uma anemia que significa algum tipo de perda - anemia + reticulocitose BD – 0,2 BI – 3,5 (icterícia às custas de BI; obs.: existem outros marcadores como o DHL, que é um marcador inespecífico de lesão celular, nas anemias hemolíticas pode estar bem aumentado). Aqui eu já posso incrementar no meu raciocínio clínico: é um paciente que tem um quadro álgico, tem IVAS, + anemia hemolítica + hepatomegalia. - Então, nós entramos aqui nas possibilidades de anemias hemolíticas na infância e das que cursam c/ 5 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS crise álgica, o protótipo normalmente se trata de Doença Falciforme. USG abdome: fígado aumentado, com ecotextura normal. Baço atrófico, com áreas de fibrose. Eletroforese de Hb – Doença falciforme - Nesses pacientes, onde a fisiologia é muito complexa e não se restringe apenas à quebra de células, é uma hemoglobinopatia que leva à hemólise crônica e a uma anemia. Mas não se trata só disso. Na doença falciforme, além da anemia hemolítica, existe uma série de alterações a nível de endotélio e de membrana dessas células falcizadas, que fazem c/ que a criança evolua c/ processos vasoclusivos de repetição, são pequenos trombos em vários locais da circulação. Essas crises álgicas são pequenos locais de vasoclusão. Esse processo vasoclusivo pode acometer todos os sistemas, podendo levar a um AVC isquêmico, pode/vai levar a alterações renais a médio-longo prazo, mas a circulação do baço é mais suscetível ainda a esses processos, e o que vai acontecer vão acontecendo esses processos vasoclusivos, que posteriormente dão origem a áreas de fibrose, e a uma autoesplenectomia. Vai chegar um ponto que a maioria desses pacientes vai apresentar um baço atrófico. Só que esse baço, em determinadas condições, se mantém. No período de lactente, por exemplo, ele está presente, não sofreu ainda a autoesplenectomia. - Nós podemos encontrar nessas crianças um processo, ou uma intercorrência aguda potencialmente fatal que se chama Sequestro esplênico. Esse baço sequestra literalmente, funciona como esponja que absorve quantidades variáveis de volume sanguíneo, e o paciente pode inclusive chocar. - Quando vocês virem uma história desse tipo, de um paciente que tem uma anemia crônica e que de repente faz uma esplenomegalia súbita associada a palidez cutâneo-mucosa, com taquicardia e taquipneia que sugerem já uma descompensação hemodinâmica, pensar já em uma Doença Falciforme c/ sequestro esplênico. Essa paciente do caso foi diagnosticada mais tardiamente pois ela não tinha A anemia falciforme, mas uma forma mais leve, que é a doença falciforme associada à persistência da Hb fetal. Mas, ainda falando de anemia + reticulocitose + aumento de DHL nos pacientes que sugerem que tenham um processo hemolítico, nós temos muitas anemias hemolíticas que podem justificar esse achado. Por exemplo: - Defeitos de membrana: esferocitose - Deficiências enzimáticas: G6PD, piruvato-quinase - Hemoglobinopatias: talassemias, doença falciforme - Anemias Hemolíticas Autoimunes - Lembrar que as hemoglobinopatias só abrem um caso após 4-5 meses de idade, porque o paciente normalmente nasce c/ muita Hb fetal, 90% de HbF que vai sendo substituída paulatinamente por outras hemoglobinas. Pra que essas manifestações clínicas comecem a ocorrer em decorrência da substituição da HbF pela suposta Hb patológica, vai decorrer alguns meses. É extremamente improvável que uma criança de 1-2 meses de idade já tenha manifestações de doença falciforme. - Na doença falciforme, uma porcentagem significativa desses pacientes abre o quadro c/ uma dactilite, que é uma crise álgica, um processo vasoclusivo nos dedos das mãos e/ou dos pés. É uma doença predominante em negros e pardos, mas em virtude de nossa miscigenação isso não pode ser tão levado em conta. - Ainda falando de hemoglobinopatias, destacando a Talassemia Major, que pode se manifestar no período de lactente, é uma doença grave c/ períodos de agudização. É um paciente que se apresenta geralmente c/ o baço muito aumentado em comparação ao fígado, descompensações comuns e frequentes (c/ taquicardia, taquipneia e sopro sistólico), e também é provável que ele se apresente c/ aumento da expansibilidade de algumas partes ósseas, por conta da parte medular. É uma anemia tão grave, que leva a uma produção medular tão intensa, que pode levar a, por ex., uma fronte, a um maxilar mais proeminentes. - Os defeitos de membrana (esferocitose) bem comoos defeitos enzimáticos, podem aparecer ainda no período precoce (antes dos 4-6 meses), mas podem aparecer em qualquer idade. Lembrar que a deficiência de G6PD não se apresenta como uma anemia hemolítica crônica, mas como uma anemia c/ agudizações. Por ex., situações desencadeiam a hemólise, como infecções, uso de medicamentos (sulfa, derivados de cloroquina), alguns alimentos (fava é o protótipo). - Uma anemia relativamente comum é a anemia hemolítica autoimune. Era um paciente previamente hígido, que faz um quadro viral, na sua maioria de IVAS, e que apresenta uma palidez cutâneo-mucosa súbita, uma anemia que pode ser intensa, inclusive evoluindo p/ descompensação hemodinâmica. - Como diagnosticar esses diversos tipos de anemia? - Se eu pensar nos defeitos de membrana, a esferocitose é o mais comum, é manifestado cedo, c/ esplenomegalia. Pede-se a curva de fragilidade osmótica. - Se eu pensar em uma hemoglobinopatia, pedir eletroforese de hemoglobinas. - Se eu pensar em uma anemia hemolítica autoimune, peço o Coombs direto - Se formos pensar em deficiência de G6PD, nós pedimos a dosagem de G6PD. CASO CLÍNICO 5 - Anemia Pré-escolar de 2 anos e um mês, natural e procedente de C. Grande – PB, encaminhado p/ ambulatório de pediatria da UBS local p/ investigação de hepatoesplenomegalia. Nega queixas. APF: GI PI A0. Mãe teve quadro de ITU no 3º trimestre. Parto cesáreo, pré-termo (33 semanas). PN = 2.300 g (baixo peso = abaixo de 2500g). Apgar 7/8. Sem intercorrências no período neonatal. LM exclusivo até o terceiro mês, quando iniciou leite de vaca. Atualmente, predominantemente láctea. APP: História prévia de quadro sugestivo de bronquiolite, há um ano. Nega uso prévio ou 6 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS atual de medicações. DNPM adequado para a idade. EF: BEG, ativo, hidratado, hipocorado (++/4+), eupneico, afebril, eutrófico, anictérico. ACV e AR: sem alterações. Abd: Globoso, flácido, indolor, com fígado a 3,5 cm do RCD e baço a 2,5 cm do RCE (hepatoesplenomegalia muito discreta, a princípio). - Se formos fazer Dx sindrômico, é uma palidez cutâneo-mucosa a esclarecer, num paciente que tem uma hepatoesplenomegalia muito leve, aparentemente eutrófico, que tem um erro alimentar, foi prematuro e baixo peso, e não fez suplementação de ferro. Então, p/ elucidar essa anemia nós pediríamos hemograma e reticulócitos, e partir dos níveis de VCM e de reticulócitos nós poderiamos pensar em uma ferropriva ou em outras etiologias. Exames: Hb – 7,5 Hcto – 22,5 VCM – 56 (está baixo, p/ ele seria 72 o mínimo) RDW – 18 (o máximo seria de 14) Leuc – 7.000 (normal) Plt – 180.000 (normal) Reticulócitos – 1,0% - Se a gente fizer a correção reticulocitária, existe aqui uma tendência à reticulopenia. Só por esses exames e pelo fato de o paciente estar bem não tem sentido investir em outros exames. A partir daqui nós temos 2 caminhos: (1) como os antecedentes dele são sugestivos de dieta carencial pobre em ferro, não fez suplementação, prematuro, baixo peso; e os exames iniciais sugerem ferropriva, nós já poderíamos fazer uma prova terapêutica com ferro, e ele voltaria 5-7 dias depois, pois ele tem reticulócito normal ou baixo pela deficiência de substrato, e se ele volta na outra semana, e o reticulócito aumenta, a reticulocitose já é sinal de resposta terapêutica, pois a medula está trabalhando e vai acelerar a produção à medida que eu dou o substrato que ela precisa; (2) o outro caminho seria também começar com ferroterapia, e mandar voltar c/ 1 mês c/ hemograma de controle, onde provavelmente essa Hb vai ter melhorado em 1,5-2 mg/dl de acordo c/ a literatura. - Mas, eu posso mergulhar também na ferrocinética p/ ter certeza dessa deficiência. Lembrar que numa deficiência de ferro, o 1º a ser depletado é o ferro de depósito, a ferritina, então eu espero que a ferritina seja baixa. Se a ferropenia persiste, eu vou ter um aumento na capacidade de ligação do ferro, c/ diminuição da saturação de transferrina. E se esse baixo aporte de ferro continua, nós vamos ter alterações hematológicas com alterações nos índices hematimétricos. Isso justifica os exames a serem solicitados. Nós pedimos geralmente: ferritina, Fe sérico e capacidade de ligação à transferrina. Só que a saturação da transferrina combina 2 marcadores: na fórmula de cálculo dela está combinada a capacidade de ligação de ferro ao ferro sérico. Na verdade é 100 x ferro sérico, dividido pela capacidade de ligação ao ferro sérico. Dentre os exames que nós dispomos hoje em dia, seria o melhor exame p/ se Dx uma anemia. A ferritina pode e deve ser pedida, mas temos que vê-la c/ uma certa cautela, pois se o paciente tiver uma infecção em curso, mesmo que leve, nós sabemos que a ferritina é uma prova inflamatória positiva. Ou seja, diante de uma inflamação, a tendência é um aumento dos seus níveis. Se essa ferritina estiver normal ou alta, não descarta a possibilidade de ferropriva. A gente nunca pede a ferritina sozinha. - O Fe sérico pode se pedir, mas é um exame muito lábil, que pode mudar seus valores até a depender do momento em que é coletado. Até o ritmo circadiano, que está associado ao pico endógeno de cortisol, pode alterar esses níveis de ferro. - A saturação de transferrina seria o exame mais fidedigno p/ esse nosso Dx. Como nós interpretamos: abaixo de 16% é muito sugestivo de anemia ferropriva, abaixo de 10% é dx de anemia ferropriva. CASO CLÍNICO 6 - Abscesso hepático Paciente do sexo masculino, natural e procedente de Juazeirinho, 4 anos de idade, com quadro de febre há 20 dias, acompanhada de dor abdominal, astenia e hiporexia. Genitora afirma vômitos ocasionais. Nega outras queixas. APF: Mãe GVIII PV A III. Gestação sem intercorrências. Parto a termo, eutócico. PN=? Apgar=? APP: Fez tratamento com sulfato ferroso há 6 meses. Nega internações e outras doenças. LM exclusivo por três meses, quando começou a ser alimentado com leite de vaca e sucos. Aos 5 meses, papa salgada. Atualmente, cardápio familiar. DNPM adequado. AF: pais e irmãos saudáveis. Tias com HAS. Primo asmático. Vacinas atualizadas. HV: Mora em zona rural, sem saneamento básico. Contato com animais (cães e gatos). Banho de açude. EF: EGR, hipoativo, toxemiado, hipocorado (++/4+), eupneico, hidratado, afebril, anictérico. ACV e AR sem alterações. Abd: Semigloboso, algo tenso. Fígado a 6 cm do RCD, difusamente doloroso a palpação, com tumoração de difícil delimitação (menor com dor, não colaborativo). Ponta de baço palpável. - É um paciente que tem uma febre prolongada c/ sinais constitucionais que chamam atenção. Voltando àquele raciocínio, se eu tenho uma hepatoesplenomegalia e febre, é um processo infeccioso? é um quadro neoplásico? é um quadro hematológico? é um quadro crônico que teve uma intercorrência? Chama atenção a toxemia, ele está c/ o estado geral comprometido e isso pode se dever a algum processo infeccioso bacteriano; um fígado desproporcionalmente aumentado em relação ao baço, e uma dor intensa à palpação de hipocôndrio direito. Provavelmente se trata de um quadro bacteriano, e temos que levar em consideração essa dor intensa à palpação do fígado. Exames: Hb – 9,5 VCM – 75 leuc – 25.000 B – 15 S – 40 (leucocitose c/ desvio à esquerda) Plt – 600.000 (plaquetose) PCR – 95 (alto) - Isso aqui aponta p/ um provávelprocesso infeccioso bacteriano. USG – hepatomegalia com imagem sugestiva de abcesso, medindo cerca de 8,7 cm x 7,5 cm. - Na verdade esse paciente tinha um abscesso hepático. Como ele tinha essa febre prolongada, foram solicitadas as culturas. Hemocultura – S. aureus - Lembrar que a causa mais comum de abscesso ainda é S. aureus e existem algumas regiões onde abscesso por ameba é comum. Quando vamos cobrir esses pacientes, geralmente 7 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS colocamos uma droga p/ gram positivo e negativo e também cobrir um provável abscesso amebiano. Nós fizemos nesse paciente cefepime c/ metronidazol, teve que drenar o abscesso. - Então lembrar: desproporção no aumento do fígado e do baço, dor intensa à palpação do fígado, sinais de toxemia c/ febre de origem indeterminada. CASO CLÍNICO 7 - LES Adolescente de 15 anos, sexo feminino, natural e procedente de Campina Grande – PB. Admitida para investigação diagnóstica por quadro de palidez cutâneo-mucosa progressiva, astenia e febre intermitente há um mês. Afirma dor e limitação funcional em punho e joelho esquerdos. - Ela tem artrite. Lembrar que artrite o conceito é edema apenas, mas se nós temos artralgia c/ limitação funcional ou artralgia c/ sinais flogísticos, também se trata de artrite, mesmo que não haja edema evidente. Nega outras queixas. Não tem vida sexual ativa. APP: nega internações prévias. Varicela aos 7 anos. AF: desconhece doenças na família. Pais e irmãos saudáveis. HV: Mora em zona urbana, com saneamento básico. Cinco cômodos para três pessoas. Cria um gato. EF: EGR, hipocorada (++/4+), eupneica, hidratada, afebril, ictérica (+/4+). ACV e AR sem alterações. Abd: Plano, flácido, com fígado a 2,5 cm do RCD e ponta de baço palpável. - Icterícia + anemia = será que é uma anemia hemolítica? O que vai me dizer é a dosagem de BD e BI e de reticulócitos. Tem uma febre + artrite + palidez cutâneo mucosa (anemia?) + icterícia a esclarecer. É uma hepatoesplenomegalia febril. - Aqui podemos ter diversas de doenças que se justifiquem, desde infecciosas, como sds. monolike que podem levar a uma depressão medular levando a palidez, c/ artrite viral no momento do processo, levando à febre de origem indeterminada e hepatoesplenomegalia. A icterícia entraria numa hepatite transinfecciosa. - Pode ser um quadro neoplásico, reumatológico também. Exames: Hb: 7,0 Hcto: 21 VCM: 110 (macrocitose por conta da reticulocitose) Leuc: 3.000 (diferencial normal) (leucopenia) Plt: 70.000 (plaquetopenia) Reticulócitos: 9% (reticulocitose) DHL: 900 (aumentado) BD: 0,2 BI: 2,8 VSH: 50 (alto) PCR: 70 (alto) Alfa 1 glicoproteína ácida aumentada Sumário de urina: 10 hemácias/campo (hematúria, que é considerada acima de 5 hemácias/campo). Proteínas (+++) Proteinuria de 24 horas: 700 mg/dl (proteinúria subnefrótica) Urocultura – negativa Hemocultura - negativa Sorologias para EBV, CMV, toxoplasmose, hepatites, HIV: negativas. - Diante disso, nós devemos pensar em dças reumatológicas e dentre elas, a que mais se comporta dessa forma e que é relativamente comum é o Lupus. Por isso pedimos um FAN e um Coombs direto. Coombs direto: + FAN: Padrão misto nuclear homogêneo e pontilhado fino (1:640) C3, C4 e CH50 – diminuídos USG: discreta hepatoesplenomegalia, sem alterações de ecogenicidade do parênquima. - OBS.: dentro do DD de doenças reumatológicas há a possibilidade de doença de Still, que é uma AIJ sistêmica. Se você tem um paciente c/ febre arrastada, acometimento articular, associada ou à serosite, ou a hepatoesplenomegalia, ou a adenomegalia, lembrar da possibilidade de AIJ. A febre geralmente está associada a rash cutâneo c/ manchas geralmente c/ padrão salmão. CASO CLÍNICO 8 - Mucopolissacaridose Menino de 2 anos, natural e procedente de Boqueirão – PB, encaminhado de UBSF local para investigação diagnóstica. Atualmente, apresenta dificuldade na deambulação. Aos três meses foi notado aparecimento de giba lombar e peito escavado. Ficou em pé com um ano, mas nunca chegou a andar, fatos que os pais atribuem em parte à diminuição da visão e em parte à rigidez articular. Refere resfriado constante. Ao exame, observa-se fácies grotesco, crânio volumoso, com aumento do diâmetro ântero-posterior. Testa proeminente. Ponte nasal achatada, narinas amplas. Lábios espessos, boca entreaberta, língua volumosa e protrusa. Dentes pontiagudos e espaçados. Opacificação das córneas. Pescoço curto. Peito escavado. Coluna: cifose dorsolombar acentuada, com giba nessa região. Abdome globoso, hérnia umbilical bilateral, hepatoesplenomegalia. Dedos das mãos curtos e largos, em flexão. Limitação generalizada da expansibilidade articular com contraturas de flexão nos cotovelos e nos joelhos. Pele: hipertricose. - Diante desse quadro, devemos pensar em erros inatos do metabolismo. Esse paciente em especial tinha uma Mucopolissacaridose. Lembrar que diante de pacientes que tenham comprometimento neuropsicomotor, convulsões, alterações dismórficas, oculares, essa hepatoesplenomegalia pode ser uma consequência importante do depósito intracelular de elementos que não deveriam se depositar. CASO CLÍNICO 9 - Linfoma de Hodgkin Adolescente do sexo masculino, 15 anos, natural e procedente de Patos – PB, admitido para investigação diagnóstica com queixa de febre e adenomegalia cervical há 2 meses. A febre é vespertina, diária (não aferida). Refere também astenia, hiporexia e sudorese noturna desde o início do quadro. Tosse seca ocasional, sem dispneia. APF: Mãe GV PV A0. Gestação, parto e período neonatal sem intercorrências. PN=? Apgar=? APP: Epilepsia (faz uso de fenobarbital desde os 10 anos). Nega outras doenças. AF: Mãe tratando anemia. Pai e irmãos saudáveis. Nega outras doenças na família. HV: Mora em zona urbana, saneamento básico. Nega contato com animais, banhos de açude. Ao exame físico: REG, orientado, hipocorado (+/4+), eupneico, hidratado, febril, acianótico, emagrecido. ACV e AR sem alterações. Abd: Distendido, hipertimpânico, fígado a 3 cm do 8 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS RCD e baço a 3,5 cm do RCE. Adenomegalias em região cervical; a maior em região cervical inferior esquerda, medindo cerca de 4 cm x 4 cm, consistência endurecida, aderida aos planos profundos, sem sinais flogísticos. - Adenomegalia na infância é extremamente comum. A maioria dos casos se trata de adenomegalias reacionais. Existem alguns sinais de alarme que merecem investigação mais acurada. (1) Localização: cervical inferior, supraclavicular, epitroclear e poplítea - sempre manejar como processo relacionado a adenomegalia (2) Característica do linfonodo: independente do tamanho, se for aderente a planos superficiais e profundos, de consistência pétrea, contorno multilobulado (3) Associação c/ sinais sistêmicos - Esse paciente específico tem muita coisa que indica uma investigação mais aprofundada, inclusive Bx. Exames: Hb: 8,1 Leuc: 2.000 Plt: 56.000 AST: 42ALT: 35. Tem pancitopenia. Sorologias para EBV, CMV, toxoplasmose, leishmaniose negativas. PPD: não reator USG abdominal: hepatoesplenomegalia; ecotextura homogênea. RX tórax (p/ ver timo): alargamento do mediastino: pode justificar a tosse seca ocasional. Bx de linfonodo cervical: presença de células de Reed Sternberg (compatível com LH, variante predomínio linfocitário): indicação formal de biópsia, pela existência de sintomas constitucionais, características de localização do gânglio e a presença de células que são patognomônicas de Linfoma de Hodgkin. Mielograma: presença de células de Reed Sternberg. -> justifica a pancitopenia. Diagnóstico: Linfoma Hodgkin c/ metástase p/ medula óssea. CASO CLÍNICO 10 - Doença de Wilson Escolar do sexo feminino, 7 anos, natural e procedente de Caturité – PB, encaminhada de outro serviço para o hospital universitário para investigação de hepatoesplenomegalia e aumento do volume abdominal. APF: Mãe GIII PIII A0. Nasceu de parto eutócico, sem intercorrências. PN= 3.100 g. APP: teve quadro de hepatite há 1 ano e meio. Vacinas atualizadas AF: Pais e irmãos hígidos. Desconhece doenças na família. EF: REG, hipocorado (+/4+), hidratado, afebril, ictérico leve, eupneico. Pele: Discretas petéquias em face e membros. Equimoses múltiplas. AR: MVN em AHT, sem RA. ACV: RCR em 2T, BCNF, sem sopros. FC= 120 bpm. Abd: Presença de circulação colateral em parede abdominal. Semigloboso. Fígado endurecido palpável a 4 cm do RCD e baço palpável a 5 cm do RCE. Ext: sem edemas. SN: sem alterações. Exames complementares: Hb- 9,6 Leuc – 3.500 (diferencial normal) Plt – 50.000 AST – 500 ALT – 220 BD – 1,5 BI – 0,3 Albumina – 2,5 TP – 24s (alargado) TTPA – 44s INR – 2,5 (alargado) - Na verdade ele tem uma anemia que não é hemolítica, pois a BI está normal. Tem pancitopenia + colestase. Eu não coloquei aqui, mas ele tem reticulocitose. E por que ele teria? Ele tem um alargamento de TP, de 24seg, quando normalmente seria 15, em média, e tem um aumento de INR, 2,5, então ele tem uma disfunção/insuficiência hepática e disfunção da albumina, que favorece esse raciocínio de disfunção hepática. É um paciente que tem uma hepatopatia, c/ um baço bem aumentado, provavelmente aí c/ algum grau de hipertensão portal, de cirrose hepática, e evolui c/ pancitopenia. Nesses pacientes, essa pancitopenia provavelmente se deve a um sequestro esplênico. Diante desses casos, há um padrão de investigação, vamos levar em conta a epidemiologia, mas não só ele. Nós pedimos as sorologias, que pode ser decorrente de uma hepatite viral, de uma hepatite autoimune, também rastreamos p/ esquistossomose (por método de Kato-Katz e Bx retal), p/ Doença de Wilson e p/ deficiência de alfa-1-antitripsina. Sorologias para toxoplasmose, CMV, EBV , leptospirose, leishmania e hepatites A, B e C: negativas. USG: moderada hepatoesplenomegalia c/ sinais de cirrose hepática e hipertensão portal Solicitados exames para investigação de hepatopatia. Ceruloplasmina sérica normal e cobre urinário (pensando em doença de Wilson): ceruloplasmina baixa e cobre urinário aumentado Fundo de olho (buscando o Sinal de Kayser-Fleisher da doença de Wilson): sem alterações PF (Lutz e Kato-Katz): negativo Dosagem de alfa-1-antitripsina: normal FAN, anticorpo antimúsculo liso, ALKM-1, anti mitocôndria (triagem p/ hepatite autoimune): negativos Na verdade o que a paciente tinha era uma Doença de Wilson. 9 ANNA MARIA MOREIRA RAMOS Fonte: Aula da Profª Taciana Raulino (2020.1) 10
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