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Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA (IRA) A insuficiência renal aguda (IRA) ou, usando-se o termo mais recente, lesão renal aguda representa uma síndrome frequente em hospitais e unidades de terapia intensiva (UTI). Classicamente, é definida como uma redução abrupta da filtração glomerular, levando ao acúmulo de escórias nitrogenadas (uréia e creatinina), distúrbios do equilíbrio ácido-base e alterações hidroeletrolíticas. Entretanto, nos últimos anos, o conceito de IRA vem se desenvolvendo, bem como as estimativas a respeito de incidência, prevalência e mortalidade. Um quadro de insuficiência renal é dito agudo (IRA) quando sua evolução é rápida, ao longo de horas ou dias. Na maioria das vezes este é um diagnóstico puramente laboratorial, feito pelo reconhecimento da elevação da ureia e creatinina plasmáticas (azotemia), na ausência de sintomas. Contudo, quando a disfunção renal for grave (Crpl > 4,0 mg/dl, geralmente com TFG < 15-30 ml/min), os sinais e sintomas da síndrome urêmica já podem aparecer. Por definição, Insuficiência Renal é a queda na taxa de filtração glomerular (TFG). Entretanto, a azotemia (Crpl > 1,5 mg/dl em homens e > 1,3 mg/dl em mulheres) costuma aparecer somente quando a TFG está pelo menos 50% abaixo do valor normal. Logo, podemos deduzir que mesmo um paciente SEM AZOTEMIA já pode apresentar perda significativa da função renal. Recentemente, foi proposta uma nova nomenclatura para substituir o clássico termo “Insuficiência Renal Aguda”. O termo “Injúria Renal Aguda” tem sido preferido por representar melhor o amplo espectro de apresentação da doença, uma vez que a terminologia antiga descreve bem somente um subgrupo desses pacientes, que são aqueles que necessitam de suporte dialítico de emergência... Há muito se tenta padronizar a definição de IRA, mas ainda não há consenso absoluto na literatura. Uma das definições mais utilizadas na atualidade é aquela proposta pela KDIGO. Note que, apesar do destaque dado à OLIGÚRIA na definição acima, na verdade a IRA pode ser dividida em 3 subtipos, de acordo com o débito urinário: (1) IRA oligúrica, quando o débito urinário for inferior a 500 ml/24h, ou 400 ml/24h, dependendo da referência; (2) IRA não oligúrica, quando a diurese for maior que 400-500 ml/24h; e (3) IRA anúrica, para débitos urinários inferiores a 50 ml/24h ou 100 ml/24h (novamente existe divergência na literatura). O fato é que mais de 50% das IRA cursa com a forma não-oligúrica, com volume urinário normal em torno de 1 a 2 L/dia! Eventualmente, um débito urinário acima do normal (poliúria = mais de 3 L/dia), pode ser observado em pacientes com injúria renal aguda. EPIDEMIOLOGIA ▪ As primeiras descrições da IRA datam da Segunda Guerra Mundial, período no qual a mortalidade era de aproximadamente 100%, uma vez que não existiam métodos de substituição renal. ▪ Mais de 50 anos se passaram e muito se aprendeu a respeito da fisiopatologia da IRA. Entretanto, a mortalidade na IRA persiste elevada, podendo chegar a 90% em algumas séries (idosos, hipertensos, diabéticos). ▪ Essa alta mortalidade pode ser explicada por alterações demográficas, principalmente o aumento da faixa etária dos pacientes e a existência de maior número de comorbidades, acarretando quadros associados de falência de múltiplos órgãos. ▪ A IRA trata-se de uma condição bastante incidente no dia a dia médico. Mundialmente, a incidência de pacientes hospitalizados com IRA varia de 5 a 7%, além de cerca de 30% dentre os admitidos estão em UTI. ▪ Aqueles que sobrevivem à IRA têm um maior risco para o desenvolvimento posterior de doença renal crônica (DRC). ETIOLOGIA A IRA pode ser resultado de uma série de motivos que tendem a serem causados de acordo com a porção do trato urinário a qual é afetada. Por exemplo, a redução da função renal pode ter ocorrido: ou por um problema circulatório que preceda o néfron, envolvendo as arteríolas renais; ou por um problema na filtração feita por esse néfron; ou por algum distúrbio ou lesão na via coletora de urina. A função renal pode ser dividida em etapas: ▪ Sangue das artérias renais e suas subdivisões que chegam aos glomérulos. ▪ Os glomérulos produzem o ultrafiltrado, normalmente sem proteínas ou elementos figurados do sangue. ▪ Os túbulos manipulam o ultrafiltrado por meio da reabsorção e da secreção de solutos e/ou água. Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA ▪ O fluido tubular final, a urina, deixa os rins através da pelve renal, do ureter, da bexiga e da uretra. A doença renal pode ser causada por qualquer processo capaz de interferir em uma das estruturas e/ou funções citadas anteriormente. Dessa maneira, classifica-se a IRA em três categorias: ▪ Injúria pré-renal (60-70%); ▪ Injúria renal intrínseca (25-40%); ▪ Injúria pós-renal (5-10%). INJÚRIA PRÉ-RENAL Corresponde a uma alteração funcional, reversível e sem representação histológica. Ocorre em situações de diminuição da pressão de perfusão renal e/ou de aumento da resistência vascular renal, levando a uma diminuição do ritmo de filtração glomerular com consequente acúmulo de escórias nitrogenadas. Dessa forma, as quatro grandes causas dessa lesão renal são: ▪ Depleção absoluta do fluido corporal: Conhecida também como uma redução do volume circulante efetivo, é a causa mais comum dessa injúria. Pode ser causada por hemorragia externa ou interna (choque hemorrágico em caso mais extremos), diarreia, vômitos, fístula digestiva, poliúria, sudorese, intensa, perda para o terceiro espaço (ex.: ascite, queimaduras) e uso de diuréticos. ▪ Vasoconstrição renal: Ocorre em situações como sepse (lesão do endotélio, liberação de mediadores inflamatórios e geração de espécies oxidativas causam tal fenômeno) e doenças hepatorrenais (patologias graves caracterizadas pela rápida deterioração da função renal por conta de cirrose ou insuficiência hepática fulminante). ▪ Redução do débito cardíaco: Complicação de pacientes com insuficiência cardíaca congestiva, hipertensão pulmonar, embolia pulmonar e infarto agudo do miocárdio, tamponamento pericárdio. ▪ Alterações na autorregulação: Medicamentos como AINES (anti-inflamatórios não esteroidais), IECA (inibidor da enzima conversora de angiotensina) e BRA (bloqueador do receptor de angiotensina) atuam interferindo na hemodinâmica do corpo. Esses medicamentos inibem a produção e/ou ação de mediadores como prostaglandinas (provoca vasodilatação na arteríola aferente) e angiotensina II (provoca vasoconstrição na arteríola eferente), que auxiliam o aumento de pressão por conta do aumento da TFG. ▪ Vasoldilatação periférica . Bacteremia . Medicações anti-hipertensiva ▪ Resistência vascular renal aumentada . Anestesia . Cirurgias . Síndrome hepatorrenal A redução do volume circulante efetivo é a causa mais comum de injúria pré-renal e, portanto, de injúria renal aguda. Pode ser devida à hemorragia externa ou interna, diarreia, vômitos, fístulas digestivas, poliúria, sudorese intensa ou perda para o terceiro espaço (retroperitônio – pancreatite; peritônio – ascite; luz intestinal – obstrução intestinal aguda, isquemia intestinal, íleo paralítico; tecido muscular – rabdomiólise). Devemos estar atentos para não “deixar passar” o diagnóstico de hemorragias internas, como hemotórax, hemoperitônio e hematoma muscular da coxa, todos consequentes a trauma. A musculatura da coxa traumatizada pode armazenar até 12 L de líquido, só de edema. O estado de choque é acompanhado pela redução generalizada do fluxo orgânico. Um dos órgãos mais afetados é o rim. Os choques hipovolêmicos, cardiogênico, séptico e obstrutivo são os tipos descritos. A causa mais comum de choque cardiogênico é o infarto agudo do miocárdio. A insuficiência cardíaca descompensada pode causar redução importante do fluxo renal, pelo baixo débito cardíaco. Na insuficiênciacardíaca, a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona promove retenção hidrossalina que inicialmente é benéfica, por aumentar o retorno venoso e manter, até certo ponto, um débito cardíaco satisfatório. Contudo, no estado mais avançado da cardiopatia, a retenção de sódio e água pelo rim torna-se excessiva, sobrecarregando o ventrículo doente e levando a congestão pulmonar e sistêmica. A cirrose hepática com ascite é um estado de hipovolemia relativa, pois estes pacientes apresentam uma intensa vasodilatação esplâncnica, reduzindo a quantidade de fluido no leito arterial. A hipertensão porta, em associação com a disfunção hepatocelular, prejudica a depuração do óxido nítrico (NO) produzido pelo endotélio da circulação mesentérica. O óxido nítrico é um potente vasodilatador local. A nefropatia isquêmica é uma situação especial de azotemia pré-renal. Ocorre na estenose bilateral de artéria renal (ou estenose arterial em rimúnico). Geralmente são pacientes previamente hipertensos e com aterosclerose em vários territórios vasculares. O mecanismo da isquemia aguda pode ser trombose sobre a placa de ateroma, hipovolemia ou uso de inibidores da ECA/ AINE em pacientes com Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA estenose bilateral grave. No caso dos inibidores da ECA e AINE, a IRA geralmente é reversível após a retirada da droga. INJÚRIA RENAL Existe dano estrutural, ocasionado por fatores intrínsecos, os quais podem ser separados em alterações isquêmicas, nefrotoxicidade, doenças de pequenos vasos e glomérulos, doenças de grandes vasos e nefrite intersticial aguda. Quando a IRA não resulta primariamente de alterações vasculares, intersticiais ou glomerulares, costuma ser referida como necrose tubular aguda (NTA). Frequentemente, na prática clínica, os termos IRA e NTA são usados de forma semelhante. Entretanto, uma vez que a NTA é um achado histológico, o senso estrito não permite o uso indiscriminado entre IRA e NTA. ▪ A Necrose Tubular Aguda (NTA) isquêmica é uma causa frequente de IRA oligúrica em pacientes internados, especialmente na UTI. Em geral são pacientes em estado crítico (choque, sepse, pancreatite aguda necrosante, politrauma, grande queimado, pós-operatório). As cirurgias mais associadas à NTA isquêmica são: (1) cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea > 2h; (2) correção de aneurisma de aorta abdominal com clampeamento aórtico acima das renais > 60min; e (3) cirurgia biliar em pacientes ictéricos. O sistema tubular é mais sensível à lesão isquêmica ou hipóxica do que o glomérulo, pois (1) tem um gasto energético maior e (2) recebe menor vascularização. A parte reta do túbulo proximal e a porção ascendente espessa da alça de Henle são especialmente suscetíveis (são os segmentos que gastam mais energia). ▪ Rabdomiólise: significa lesão muscular extensa, liberando na circulação enzimas musculares (CPK, TGO, LDH, aldolase), eletrólitos (potássio, fosfato), ácidos (ácido lático) e pigmentos (mioglobina). As causas mais comuns de rabdomiólise são: trauma (especialmente o esmagamento muscular), isquemia muscular (síndrome compartimental e da reperfusão muscular), imobilização prolongada, grande mal epiléptico, hipertermia maligna, exercício físico extenuante, hipocalemia ou hipofosfatemia graves, infecções (influenza, tétano), intoxicações (etanol, cocaína, anfetamina, ecstasy) e envenenamentos (Crotalus sp. – cobra cascavel). A grande quantidade de mioglobina liberada pelo tecido muscular lesado é filtrada pelo glomérulo e alcança os túbulos. Com um baixo fluxo tubular (componente pré-renal associado: sequestro de líquidos no “terceiro espaço” – tecido muscular lesado), a concentração deste pigmento no lúmen torna-se muito alta, podendo, então, promover NTA. O grupamento heme contido na mioglobina é o grande pivô da lesão celular (por causar estresse oxidativo). Além de lesar diretamente os túbulos renais, a mioglobina também possui efeito vasoconstrictor, por depletar o óxido nítrico intrarrenal. INJÚRIA PÓS-RENAL Decorrente de eventos subsequentes à formação da urina e que levam à obstrução do trato urinário. Essas anormalidades podem ser funcionais (obstrução causada por uma perturbação na anatomia de sistema coletor) e/ou estruturais (fatores que interfiram na funcionalidade desse sistema), congênitas ou adquiridas. A obstrução renal também pode ser secundária a doenças extrínsecas ao trato urinário. As causas de IRA pós-renal são: ▪ Obstrução uretral Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA ▪ Obstrução vesical . Hipertrofia prostrática . Carcinoma de bexiga . Funcional: neuropatia ou agentes bloqueadores ganglionares ▪ Obstrução bilateral de ureteres . Intra-uretral: cristais de ácido úrico ou sulfonamida, coágulos, debris piogênicos, cálculos, edema, papilite necrotizante. . Extra-uretral: tumores (colo de útero, próstrata, endometriose), fibrose periureteral, ligadura acidental de ureteres em cirurgia pélvica, abscesso pélvico, hematoma pélvico, ascite, gestação. A dilatação (hidronefrose) ocorre proximal ao sítio da obstrução. A nefropatia obstrutiva pode se manifestar clinicamente por uma queda abrupta ou gradual da função renal, sendo potencialmente reversível com a correção da obstrução. Dentre as principais causas de IRA encontra-se a sepse, especialmente choque séptico, com prevalência variando de 9 a 50%. A sepse foi a causa de NTA em 35% dos pacientes internados em UTI e em 27% dos pacientes em unidades de internação. A hiperplasia prostática benigna é a causa mais comum de injúria pós-renal. Nesta doença, o tecido prostático que cresce é o interno, comprimindo, assim, em graus variados, a uretra prostática. Eventualmente, a obstrução pode se agravar de maneira súbita (“retenção urinária aguda”), por edema da glândula, espasmo do colo vesical ou disfunção aguda do músculo detrusor, levando à retenção urinária. Os fatores precipitantes mais frequentes são: uso de medicamentos com efeito anticolinérgico (disfunção do detrusor) ou simpatomimético (espasmo do colo vesical), infecção prostática (prostatite) ou do trato urinário e infarto prostático. Clinicamente, o paciente apresenta-se com oligoanúria, desconforto hipogástrico e “bexigoma”. Alguns evoluem com síncope vasovagal, desencadeada reflexamente pela distensão aguda da bexiga. Lembre-se que a presença de diurese de modo algum descarta a hipótese de obstrução, pois o fluxo de urina pode estar ocorrendo por “transbordamento” em uma bexiga repleta... A passagem de um cateter de Foley costuma resolver a obstrução e, portanto, a azotemia. Quando a retenção vesical for maior que 900 ml, a chance do paciente voltar a urinar espontaneamente é pequena (em torno de 15%), necessitando de cirurgia prostática desobstrutiva. As outras causas menos comuns de obstrução do sistema uroexcretor devem ser divididas em (1) congênitas e (2) adquiridas. Exemplos de uropatia obstrutiva bilateral congênita: valva uretral posterior, estenose uretral, fimose. Das patologias adquiridas, destacam-se: câncer de próstata, câncer de bexiga, bexiga neurogênica, cálculo uretral, cálculo ureteral bilateral ou em rim único, carcinoma metastático para pelve (mais comum: CA de colo uterino), linfoma pélvico, fibrose retroperitoneal, ligadura cirúrgica acidental dos ureteres. FISIOPATOLOGIA A homeostasia do corpo depende de forma crucial da função renal. Os rins são particularmente suscetíveis aos efeitos tóxicos de muitas substâncias e/ou medicamentos, uma vez que muitos destes compostos têm suas concentrações aumentadas à medida que o filtrado glomerular é reabsorvido pelos túbulos. Com certa frequência, a lesão aguda está superimposta a um quadro de insuficiência renal crônica, sendo IRA cada vez mais reconhecida como um importante fator precipitante da doença renal crônica terminal. Quando a lesão está relacionada a deprivação de oxigênioou nefrotoxicidade, acontece uma série de respostas das células epiteliais. A lesão resulta em uma perda rápida da integridade do citoesqueleto e da polaridade celular. Ocorre perda da borda em escova, perda da polaridade com deslocamento das moléculas de adesão e de outras proteínas de membrana, tais como a Na+K+ATPase e beta integrinas, bem como apoptose e necrose. Segue-se descamação de células viáveis e inviáveis, originando regiões onde a membrana basal representa a única barreira entre o filtrado e o interstício peritubular, ocorrendo “vazamento” desse filtrado, especialmente quando a pressão intratubular encontra-se aumentada devido a obstruções decorrentes de debris celulares que interagem com proteínas dentro da luz tubular. Todo este processo resulta na geração de mediadores inflamatórios e vasoativos, ocasionando piora da vasoconstrição e inflamação. Os rins podem se recuperar de insultos isquêmicos ou tóxicos, porém, atualmente, reconhecem-se efeitos deletérios a longo prazo, mesmo com períodos curtos de isquemia. As células remanescentes, que permaneceram aderidas, passam por um processo de reparo com potencial para recuperar a função renal normal. A existência de uma população de stem cells ou células progenitoras tem sido objeto de estudo. O processo de recuperação consiste em uma sequência de eventos que inclui a disseminação celular e a migração para cobrir as áreas expostas de membrana basal, a dediferenciação celular e a proliferação para restaurar a integridade funcional do néfron. FISIOLOGIA Para definir e compreender a injúria renal é fundamental um entendimento preciso das funções do rim. Das três Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA principais, duas podem ameaçar a vida de maneira imediata se forem perdidas. São elas: (1) função de filtro, ou função excretória, e (2) regulação do equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico. A terceira função renal é a função endócrina, mediada basicamente através da produção de dois hormônios principais: a eritropoietina e o calcitriol (forma ativa da vitamina D). Comentaremos sobre a função endócrina mais tarde, no capítulo de insuficiência renal crônica. INFLAMAÇÃO Na IRA isquêmica, a patogênese é representada pela regulação anormal do fluxo sanguíneo local. A vasoconstrição pré-glomerular persistente pode contribuir; entretanto, a inflamação desempenha papel importante na redução do fluxo sanguíneo local para regiões do córtex e medula externa com consequências adversas na função tubular e viabilidade. A resposta imunológica, inata e adaptativa, contribui de forma importante na fisiopatologia da lesão isquêmica. O componente inato é responsável pela resposta precoce a infecção ou lesão, e é independente do estímulo externo. A isquemia/reperfusão promove uma maior expressão endotelial de integrinas, selectinas e membros da superfamília de imunoglobulinas, incluindo moléculas de adesão intercelular (ICAM, intercellular adhesion molecule) e molécula de adesão vascular (VCAM). Vários compostos vasoativos também podem afetar a interação leucócito- endotélio. Vasodilatadores, como o óxido nítrico (NO), apresentam efeitos anti-inflamatórios. NO inibe a adesão de neutrófilos a células endoteliais (estimulada por TNF-alfa). Já foi demonstrado, em modelo de isquemia/reperfusão, a expressão de citocinas pró-inflamatórias (TNF-alfa e interleucina 1, IL-1). As fases tardias da IRA são caracterizadas por infiltração de macrófagos e linfócitos T, os quais predominam sobre os neutrófilos. As espécies reativas de oxigênio (ROS, reactive oxygen species), geradas por leucócitos ativados e por células epiteliais durante a reperfusão e como resultado da resposta inflamatória, desempenham papel importante na lesão celular. Em resumo, a lesão renal é um processo dinâmico e, frequentemente, ocorre no contexto de insuficiência de múltiplos órgãos e sistemas, envolvendo alterações hemodinâmicas, inflamação e lesão direta do epitélio tubular, seguida de um processo de reparo que pode restaurar a diferenciação e a função epiteliais. A inflamação desempenha um papel fundamental na fisiopatologia da IRA. Reconhece-se, cada vez mais, a existência de mecanismos endógenos para controle da inflamação. O entendimento destes processos anti-inflamatórios pode ajudar na elaboração de estratégias para prevenir e/ou minimizar as consequências da AKI. PATOGENIA A injúria renal aguda pode ser causada por três mecanismos básicos: (1) hipofluxo renal (azotemia pré-renal); (2) lesão no próprio parênquima renal (azotemia renal intrínseca) e (3) obstrução do sistema uroexcretor (azotemia pós-renal). A causa de azotemia renal intrínseca mais comum é a NTA (Necrose Tubular Aguda), responsável por cerca de 90% dos casos neste grupo etiopatogênico. Analisando especificamente a população de doentes críticos (isto é, aqueles internados no CTI), observa-se uma proporção diferente, com a NTA sendo responsável por 50% dos casos de insuficiência renal aguda, seguida pela pré- renal (35%) e pós-renal (10%). Outras causas de injúria renal intrínseca correspondem a menos de 10% do total de casos. AZOTEMIA PRÉ-RENAL Azotemia pré-renal é a elevação das “escórias nitrogenadas” causada pela redução do fluxo sanguíneo renal. É o tipo mais comum de injúria renal aguda (55-60% dos casos). Caracteriza-se clinicamente pela reversibilidade, uma vez restaurado o fluxo renal. As principais causas são: (a) hipovolemia; (b) estados de choque; (c) insuficiência cardíaca; (d) cirrose hepática com ascite. O que todas estas entidades possuem em comum é a queda do chamado volume circulante efetivo, ou seja, aquele que preenche o leito arterial e perfunde nossos órgãos. Em situações normais, este volume corresponde a 30% do volume sanguíneo total. Na insuficiência cardíaca e na cirrose com ascite, esta proporção pode cair para menos de 10%, pois ocorre represamento do fluido intravascular, respectivamente, no território venoso e esplâncnico. ▪ FISIOPATOLOGIA Felizmente, os vasos renais possuem um mecanismo de proteção contra alterações deletérias do fluxo renal e da taxa de filtração glomerular, o que denominamos autorregulação do fluxo renal e da filtração glomerular. Quando a Pressão Arterial Média (PAM) cai, as arteríolas aferentes vasodilatam, reduzindo a resistência vascular do rim, evitando o hipofluxo renal. Em condições normais, o fluxo sanguíneo renal é preservado até uma PA sistólica de 80 mmHg. Caso a pressão caia abaixo desse limite, a autorregulação não será mais capaz de evitar o hipofluxo, pois as arteríolas já estarão em seu máximo de vasodilatação. Neste ponto, instala-se a azotemia pré-renal. É importante ressaltar que indivíduos com um “desajuste” da autorregulação renal podem desenvolver azotemia pré- renal mesmo quando a PA sistólica está um pouco acima de Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA 80 mmHg. É o caso dos idosos, hipertensos crônicos e diabéticos de longa data (condições que comumente lesam a arteríola aferente). O mecanismo de vasodilatação aferente depende de dois fatores: (1) estímulo direto de barorreceptores de estiramento da própria musculatura lisa arteriolar (reflexo miogênico) e (2) liberação intrarrenal de vasodilatadores endógenos (prostaglandina E2, sistema calicreína-cinina, óxido nítrico) que agem predominantemente na arteríola aferente. A TFG ainda pode ser regulada de forma independente do fluxo renal, por ação da angiotensina II, um potente vasoconstritor da arteríola eferente. Ao agir sobre esta arteríola, a angiotensina II promove um aumento da pressão de filtração glomerular, contribuindo para a manutenção da TFG. Os AINE (inibidores da formação de prostaglandinas), os inibidores da ECA e os antagonistas do receptor de angiotensina II prejudicam a autorregulação do fluxo renal e da TFG. Estes fármacos podem precipitar azotemia pré- renal em pacientes com baixo fluxo renal,como aqueles com hipovolemia moderada a grave, ICC descompensada, nefropatia crônica ou estenose bilateral de artéria renal. A redução do volume circulante efetivo é um forte estímulo para a ativação do sistema renina-angiotensina- aldosterona, do sistema adrenérgico e para a liberação de ADH (vasopressina). A angiotensina II, as catecolaminas e a vasopressina promovem vasoconstrição periférica de modo a desviar o fluxo sanguíneo para os órgãos “nobres”. Quando o estímulo é intenso, a vasoconstrição acomete também os vasos renais, contribuindo para a azotemia pré- renal. O uso de drogas com efeito vasoconstrictor renal, tais como a noradrenalina, adrenalina, dopamina (em dose alfa), ergotamina, ciclosporina e contraste iodado, pode também precipitar uma azotemia pré-renal. Na tentativa de conservação hidrossalina, a angiotensina II aumenta a reabsorção de sódio e água pelo néfron proximal, enquanto a aldosterona aumenta a reabsorção de sódio e água no néfron distal. A vasopressina aumenta a reabsorção de água livre no néfron distal. Resultado final: oligúria, urina hiperconcentrada e pobre em sódio. ▪ SÍNDROME HEPATORRENAL A Síndrome Hepatorrenal (SHR) é uma forma peculiar de IRA pré-renal que acomete cerca de 20-40% dos portadores de cirrose hepática avançada, mas também pode surgir no contexto da insuficiência hepática fulminante (particularmente na hepatite alcoólica). Apesar de ser uma IRA “pré-renal”, a SHR não pode ser resolvida apenas com a normalização da volemia. Em termos histológicos, caracteriza-se pela ausência de alterações estruturais no parênquima renal, sendo o mecanismo da IRA uma intensa vasoconstrição nas artérias e arteríolas pré-glomerulares (isquemia do córtex), o que configura um tipo de IRA “funcional” potencialmente reversível. Acontece que essa reversibilidade depende única e exclusivamente da normalização da função hepática, seja de maneira espontânea (ex.: cura da hepatite aguda), ou após transplante de fígado (ex.: cirrose avançada). Um curioso fato nos ajuda a entender que o problema da SHR “não está nos rins do paciente”: se o rim de um portador de SHR for transplantado num indivíduo não hepatopata, a vasoconstrição se desfaz espontaneamente, e a função renal se restabelece de maneira paulatina. Mas por qual motivo ocorre essa vasoconstrição renal tão intensa? A SHR representa na verdade o evento terminal de um continuo de alterações hemodinâmicas induzidas pela disfunção hepática. Nas fases iniciais de qualquer hepatopatia grave podemos notar uma progressiva VASODILATAÇÃO ESPLÂNCNICA, cuja principal consequência é a redução da resistência vascular sistêmica (tendência à hipotensão). Todavia, inicialmente não ocorre hipotensão arterial, pois o volume circulante efetivo consegue ser mantido à custa de aumentos no débito cardíaco, na vasoconstrição periférica (desvio de sangue de órgãos “menos nobres”, como pele e musculatura esquelética) e retenção renal de sódio e água. Tais respostas são mediadas pela ativação de dois importantes sistemas: (1) adrenérgico e (2) renina-angiotensina-aldosterona. Entretanto, a piora da função hepática leva a um aumento absurdo da vasodilatação esplâncnica, promovendo uma queda tão acentuada da resistência vascular sistêmica que os mecanismos compensatórios não conseguem mais manter a homeostase circulatória e, por fim, acabam se tornando eles mesmos deletérios. Olha só: o aumento do tônus adrenérgico promove vasoconstrição inicialmente periférica, mas quando exagerado também promove vasoconstrição renal direta. Já o excesso de angiotensina II, além de contribuir para o estímulo vasoconstritor, também induz hipersecreção de aldosterona, o que por sua vez faz os rins reabsorverem sódio com uma avidez extrema (justificando o clássico achado de Na u < 10 mEq/L na SHR). O aumento do sódio corporal total leva ao estado hipervolêmico (aumento do volume de fluido extracelular), que neste caso se expressa como edema periférico e, principalmente, ascite volumosa, não raro refratária ao tratamento clínico. Existe ainda um terceiro mecanismo compensatório que será ativado nos casos extremos, numa última tentativa de normalizar o volume circulante efetivo: a secreção “não Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA osmótica” de vasopressina (AVP ou ADH). Este hormônio aumenta a retenção renal de água-livre (causando hiponatremia dilucional) e possui efeito vasoconstritor direto (mais um fator aumentando a vasoconstrição renal). Lembre-se que a hiponatremia é um marcador de péssimo prognóstico na cirrose hepática justamente por traduzir a existência de doença muito avançada. Enfim, como você já deve ter percebido, tanto a queda inexorável do volume circulante efetivo (por “roubo” da circulação esplâncnica), quanto os fenômenos compensatórios exageradamente intensos (causando vasoconstrição renal) levam a uma profunda redução na taxa de filtração glomerular e no ritmo de produção de urina, o que resulta em oligúria (débito urinário < 500 ml/dia ou < 400 ml/dia, dependendo da referência) e azotemia (Cr > 1,5 mg/dl), ou seja, um quadro de injúria renal grave. Mas o que explica a vasodilatação esplâncnica? Tudo leva a crer que a vasodilatação no território esplâncnico é secundária ao fenômeno da translocação bacteriana, isto é, bactérias presentes no lúmen intestinal conseguem ultrapassar a mucosa (danificada pela hipertensão porta) e alcançar os linfonodos mesentéricos. Neste local, leucócitos mononucleares iniciam a produção de citocinas pró- inflamatórias – como TNF-alfa e IL-6 – induzindo hipersecreção pelo endotélio de mediadores como óxido nítrico, monóxido de carbono e canabinoides endógenos, que promovem vasodilatação local e “roubo de sangue” para a circulação esplâncnica. AZOTEMIA RENAL INTRÍNSECA A azotemia renal intrínseca, ou IRA por lesão intrínseca, é a disfunção renal aguda causada por lesão no próprio parênquima renal. É responsável por 35-40% dos casos de injúria renal aguda. Pode cursar com oligúria (necrose tubular aguda isquêmica, rabdomiólise, glomerulonefrites ou nefropatias microvasculares), anúria (necrose cortical aguda, algumas glomerulonefrites) ou não oligúria/poliúria (necrose tubular aguda por aminoglicosídeos). A injúria renal aguda por lesão renal intrínseca é uma entidade comum entre os pacientes com patologias graves internados em CTI. Nessas circunstâncias, está associada a uma alta letalidade (até 80%), mas não por causa da insuficiência renal propriamente dita, e sim devido à gravidade da doença de base (ex.: sepse com falência orgânica múltipla). Enquanto o comprometimento glomerular (glomerulopatias) predomina entre as causas de lesão renal intrínseca crônica, a causa mais comum de lesão renal intrínseca aguda é o comprometimento tubular! O tipo mais comum de IRA intrínseca é a Necrose Tubular Aguda (NTA) – descrita no Volume II – que responde por cerca de 90% dos casos. A Tabela 6 mostra as principais causas de injúria renal aguda intrínseca. Vamos aproveitar para rever os pontos mais importantes de cada uma delas. As principais subtipos e causas desse dano no parênquima são: ▪ Doença vascular renal: Ocorrem por conta de obstrução do lúmen, por trombo ou êmbolo, de vasos de médio- grande calibre e/ou microvasculatura renal, ou de uma vasculite. ▪ Doenças tubulares e intersticiais: Ocorre quando há um dano na estrutura tecidual e/ou celular do túbulo do néfron ou do interstício do rim. ▪ Doenças glomerulares: Consiste na inflamação ou degeneração do glomérulo renal, que pode ser classificada como primária (caso seja idiopática e não esteja relacionado com outras patologias sistêmicas) e secundária (induzida por síndromes paraneoplásicas, drogas ou doenças reumatológicas sistêmicas). Por conta dessa lesão no parênquima, a função reabsortiva foi prejudicada, ao ponto da urina do paciente com IRA intrínseca tende a ter uma urina mais diluída,por conta do excesso de ureia e sódio. A depender da fisiopatologia específica, pode repercutir ou não com oligúria. AZOTEMIA PÓS-RENAL Azotemia pós-renal, ou injúria pós-renal, é uma disfunção renal causada por obstrução aguda do sistema uroexcretor. É responsável por apenas 5-10% dos casos de injúria renal aguda, embora, no subgrupo dos idosos, esta proporção se torne um pouco maior devido à elevada prevalência de doença prostática. Azotemia pós-renal só irá se desenvolver nas obstruções com repercussão renal bilateral, como ocorre na obstrução uretral, do colo vesical, ureteral bilateral ou ureteral em rim único. Uma obstrução renal unilateral, mesmo que completa, geralmente não causa azotemia, pois o rim contralateral (se for normofuncionante) é capaz de suprir a falta do outro. Entretanto, se o paciente já for um nefropata crônico (ex.: IRC em tratamento conservador) mesmo a obstrução de um único ureter pode desencadear um quadro de uremia, pois o rim não obstruído pode não ser capaz de manter a homeostase. ▪ FISIOPATOLOGIA Após um quadro de obstrução urinária aguda, a pressão no interior dos túbulos renais aumenta de maneira súbita. Curiosamente, a filtração glomerular não se reduz nas primeiras horas e, muito pelo contrário, aumenta. Este fato deve-se à produção inicial excessiva de prostaglandinas pelo parênquima renal. Tais substâncias promovem vasodilatação da arteríola aferente, o que aumenta de forma importante a pressão hidrostática no tufo glomerular, aumentando, por conseguinte, a filtração. Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA Chamamos esta fase de “hiperêmica”. Após as primeiras horas do início da obstrução (12 a 24h), observamos a síntese progressiva de substâncias vasoconstritoras, como angiotensina II e tromboxano A2, que levam a uma diminuição da filtração glomerular. Se a obstrução (mesmo que parcial) for persistente, o epitélio tubular, sob efeito da maior pressão luminal, libera substâncias quimiotáxicas que atraem células inflamatórias. O resultado a médio e longo prazo será uma nefrite tubulointersticial crônica (nefropatia obstrutiva). Os monócitos e macrófagos infiltrantes secretam citocinas que promovem fibrose tecidual. Parece que um dos fatores mais importantes neste processo é o TGF-beta (Transforming Growth Factor-beta). Quando suspeitar de IRA pós-renal? Naquele paciente idoso com história de prostatismo e que repentinamente ficou anúrico (por obstrução completa da uretra prostática). Insuficiência renal com anúria pode ser encontrada eventualmente na necrose cortical aguda e na glomerulonefrite rapidamente progressiva, mas deve sempre nos fazer pensar em obstrução do trato urinário. Como dissemos, nem toda azotemia pós-renal é anúrica. Quando a obstrução é parcial ou funcional, o paciente urina, apresentando oligúria, débito urinário normal ou até mesmo poliúria. A poliúria, neste caso, deve-se à perda da capacidade de concentrar a urina, resultado da nefropatia obstrutiva crônica (uma nefrite tubulointersticial crônica). Muitos pacientes têm obstrução parcial de longa data, e apenas “agudizam” a disfunção renal. QUADRO CLÍNICO Antes de abordamos as principais manifestações que compõe o quadro clínico do paciente com IRA, é necessário termos em mente que o rim é um órgão de funcionamento sistêmico, interagindo com os outros sistemas do organismo, de forma sinérgica. Agora juntando esse conhecimento com o déficit funcional agudo do rim, podemos entender os sintomas apresentados durante a IRA. Sendo assim, o paciente com IRA apresenta sintomas renais (ex.: oligúria – sendo a mais frequente; anúria; ou poliúria) e extra-renais (ex.: edema, hipertensão e uremia), sendo esses últimos associados a condições clínicas como ICC, sepse, síndrome nefrítica, etc. Esses sintomas extra- -renais que ajudam, durante a anamnese e exame físico, a identificação da patologia de base dessa lesão renal. Em alguns casos, os pacientes podem se apresentar assintomáticos, corroborando para que o seu diagnóstico seja eminentemente laboratorial! Por conta do mal funcionamento das diversas atividades renais, as manifestações clínicas principais do paciente com IRA são: Alterações hidroeletrolíticas: Relacionada com o déficit da filtração e reabsorção de eletrólitos e água; Distúrbio ácido-base: Por conta da participação do néfron no equilíbrio ácido-base; Uremia: Relacionada a azotemias graves. ALTERAÇÕES HIDROELETROLÍTICAS Sabemos que, com a lesão do rim, sua função de filtrar e reabsorver água e eletrolíticos são perturbadas. Ou seja, há menos filtração dessas substâncias e, consequentemente, menos reabsorção. Com a retenção de sódio na circulação, gerando uma hipernatremia e, consequentemente de água, há uma sobrecarga do volume intravascular que pode ser percebida de diversas facetas, como HAS leve, edema cerebral, edema agudo de pulmão, aumento da pressão venosa jugular, edema periférico. Com a diluição desse sódio, o paciente com IRA pode repercutir com hiponatremia e, quando agudizada, tal comorbidade pode resultar em edema cerebral, crise convulsivas, cefaleia, confusão e estupor, coma (distúrbios neurológicos). Já no que tange ao potássio, o mais comum é de encontrar, com sua retenção na corrente sanguínea, é a hipercalemia. Mesmo sendo menos incidente que a hipernatremia, é um distúrbio mais grave por conta do teor cardiotóxico dessa substância quando em excesso (é assintomático em doses baixas). A hiperfosfatemia e hipercalcemia podem estar presentes de forma concomitante. Isso ocorre por conta do excesso de fosfato que o sangue apresenta nesses pacientes, eletrólito que apresenta forte relação com o cálcio no sangue. DISTÚRBIO ÁCIDO-BASE Por outro lado, pacientes com IRA grave tendem a apresentar uma acidose metabólica, que se instara no organismo quando há retenção de metabólitos proteicos ácidos por conta da falha na sua filtração. Essa acidose da IRA possui o intervalo aniônico (ânion gap) elevado, que se instaurou por conta da diminuição da excreção de ácidos proteicos e da reabsorção de bicarbonato (HCO3-), além do acúmulo de sulfatos, fosfatos, uratos e hipuratos. Sabemos que o principal cátion em nosso organismo é o sódio, sendo seu valor basal no plasma igual a 140 mEq/L. Já os principais ânions, bicarbonato e cloro, tem um valor sérico de 24 e 105 mEq/L, respectivamente. Então, ao somarmos seus valores, considerando o princípio da eletroneutralidade (a mesma valência de cargas positivas e negativas se anulam), ainda sobram 11 unidades de ânions não mensuráveis no hemograma. Essa unidade que representa o ânion gap. Consideramos o valor de referência do ânion gap em nosso sangue de 4 a 12 mEq/L. Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA Obs.: Em casos graves, o paciente com acidose metabólica apresenta náuseas e vômitos, letargia e hiperpneia. O diagnóstico de tal quadro sindrômico é medido com gasometria arterial e eletrólitos séricos. UREMIA (SÍNDROME URÊMICA AGUDA) A uremia, da mesma forma que a acidose metabólica, também tem seus sintomas manifestantes a partir da intensificação da lesão renal aguda (TFG < 35 mL/min). E, como já vimos, esse termo não se refere a concentração de ureia no corpo, mas sim do quadro sindrômico que o paciente apresente quando suas concentrações de metabólitos nitrogenados dialisáveis – de caráter tóxico – estão em alta. E, por conta do caráter sistêmico dessa síndrome, o paciente vai repercutir com diversos distúrbios nos sistemas ao longo de seu organismo. MANIFESTAÇÕES NEUROLÓGICAS Paciente pode apresentar confusão mental, irritabilidade, delirium, convulsão, coma, hiperreflexia tendinosa, mioclonia, flapping e sinal de Babinski bilateral, formando um quadro de encefalopatia urêmica MANIFESTAÇÕES CARDIOPULMONARES A insuficiência renal aguda oligúrica ou anúrica pode causar retenção importante de líquidos e sódio, aumentandoa volemia. Os sinais e sintomas de hipervolemia aguda são: Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS); Edema Agudo de Pulmão (EAP); e edema periférico. ▪ Hipertensão Arterial Sistêmica A hipertensão arterial sistêmica é encontrada na IRA oligúrica ou anúrica das glomerulonefrites, nefrite intersticial aguda, nefroesclerose hipertensiva maligna, ateroembolismo por colesterol, síndrome hemolítico- urêmica, crise renal da esclerodermia e obstrução urinária aguda. A hipertensão, quando presente, pode ser grave e refratária ao tratamento medicamentoso, só respondendo à diálise. O procedimento dialítico deve ter como meta, nesta situação, não apenas a redução dos compostos azotêmicos, mas sim um processo conhecido como ultrafiltração (que na prática quer dizer “retirada de líquido”), movido por um gradiente pressórico. Na hemodiálise, isso é feito pelo aumento da pressão hidrostática no capilar do filtro; na diálise peritoneal, aumenta-se simplesmente a osmolaridade da solução de diálise (“puxa mais líquido”). Obs.: Além da retenção hidrossalina, a insuficiência renal predispõe à vasoconstricção arteriolar sistêmica, talvez pela depleção de substâncias endógenas vasodilatadoras, como o óxido nítrico. ▪ Edema Agudo de Pulmão (EAP) A retenção hidrossalina também promove congestão e edema pulmonar cardiogênico, levando à dispneia, ortopneia ou até insuficiência respiratória. As toxinas urêmicas podem aumentar a permeabilidade capilar pulmonar, levando a um componente não cardiogênico de edema pulmonar, do tipo SDRA (“pulmão urêmico”). A ultrafiltração é mandatória nesses casos, reduzindo o edema pulmonar e melhorando a troca gasosa e a mecânica ventilatória. ▪ Edema periférico O edema periférico está presente na síndrome nefrítica e no renal crônico com insuficiência renal agudizada. É do tipo periorbitário, das serosas (derrame pleural, pericárdico, ascite) e de regiões dependentes de gravidade (membros inferiores). ▪ Outras alterações A pericardite urêmica manifesta-se com dor torácica pleurítica, associada a atrito pericárdico e/ou alterações eletrocardiográficas de pericardite aguda (taquicardia sinusal + pequeno supradesnível de ST de formato côncavo em várias derivações). Provém de uma inflamação pericárdica hipervascularizada, predispondo à rotura de capilares e sangramento. Por isso, o líquido pericárdico geralmente é hemorrágico. O tamponamento cardíaco é uma das complicações mais temíveis da uremia, pois pode ser fatal. Ocorre pelo acúmulo muito rápido de líquido na cavidade pericárdica, elevando subitamente a pressão intrapericárdica. A causa mais comum é o sangramento pericárdico, o que pode ser precipitado pelo uso de heparina na hemodiálise. Como prevenção, a hemodiálise deve ser realizada sem heparina nos pacientes com pericardite urêmica, ou então, deve-se preferir a diálise peritoneal. MANIFESTAÇÕES HEMATOLÓGICAS A anemia pode ocorrer, porém costuma ser menos acentuada que a anemia da uremia crônica. Diversos podem ser os fatores que causam anemia no paciente com uremia aguda, muitos deles não diretamente associados à insuficiência renal. Anemia é um achado muito frequente em pacientes graves e pode ser consequente à infecção, perda sanguínea, hemodiluição, hemólise etc. A uremia aguda cursa com um distúrbio da hemostasia, devido à disfunção plaquetária. As plaquetas no paciente urêmico têm menor capacidade de adesão e agregação. O Tempo de Sangramento (TS) está caracteristicamente prolongado. O fator de Von Willebrand, elemento importante para a adesão plaquetária ao colágeno, está disfuncionante. As plaquetas encontram-se depletadas do fator III. A consequência clínica é uma forte predisposição ao sangramento. Epistaxe, gengivorragia, sangramento de sítios de punção, hemorragia digestiva e até mesmo AVE hemorrágico podem ocorrer!!! O uso de desmopressina Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA (dDAVP) intranasal pode aumentar a disponibilidade do fator de VWB, melhorando o distúrbio hemostático da uremia. MANIFESTAÇÕES NEUROLÓGICAS A encefalopatia urêmica aguda caracteriza-se pelo estado de confusão mental, agitação psicomotora, associado à mioclonia (abalos musculares repetitivos), asterixis, hiper- reflexia tendinosa e sinal de Babinski bilateral. O quadro pode evoluir para crise convulsiva tônicoclônica, torpor, coma e óbito por edema cerebral grave. É importante destacar que a encefalopatia urêmica deve ser diferenciada da síndrome do desequilíbrio dialítico (edema cerebral desencadeado pelas primeiras sessões de hemodiálise, devido à queda súbita da osmolaridade extracelular) e da encefalopatia aguda pelo alumínio. A síndrome das pernas inquietas está relacionada à neuropatia urêmica. O paciente queixa-se de desconforto nos membros inferiores e uma vontade incontrolável de mexer as pernas. A neuropatia periférica pode levar a parestesias nas extremidades. A irritação do nervo frênico propicia o aparecimento de soluços incoercíveis, comuns na uremia aguda. As manifestações neurológicas da uremia aguda costumam melhorar com a diálise. MANIFESTAÇÕES GASTROINTESTINAIS Os primeiros sintomas da uremia aguda frequentemente estão relacionados ao aparelho digestório. A uremia provoca inflamação nas mucosas e disfunção na motilidade. Surgem então sintomas como: anorexia, náuseas e vômitos (como consequência à gastroparesia), diarreia ou íleo metabólico. Os sintomas gastrointestinais da uremia melhoram prontamente após o início da terapia dialítica. DIAGNÓSTICO O diagnóstico de uma IRA começa a partir da identificação da patologia de base, como já abordamos. Faremos isso na anamnese e no exame físico. Mas isso não é o suficiente para diagnosticarmos um paciente com esse quadro, pois precisamos de exames laboratoriais e, se for necessário, de exames de imagem para termos certeza do diagnóstico e da sua respectiva etiologia. Obs.: A IRA costuma não acarretar sintomas, a não ser que a retenção das “escórias” seja muito acentuada. Então, a situação mais comum é encontrarmos elevação da ureia e creatinina em um paciente com os sinais e sintomas provenientes, não da IRA em si, mas da patologia que a está determinando (ex.: sepse, hipovolemia etc.). EXAME DE FUNÇÃO RENAL O ideal para avaliar tal critério seria medir a TFG em cada néfron presente em ambos rins, estimando aproximadamente a verdadeira eficácia do funcionamento renal. Embora isso não seja possível na prática, podemos utilizar a depuração ou clearence da creatina para avaliação renal, substância produzida pelo metabolismo do tecido muscular esquelético. Foi escolhida essa substância pois ela é livremente filtrada do sangue no filtrado, não sendo reabsorvida como as outras. Mesmo com isso, vale a pena sabermos que seus níveis variam de acordo com estado nutricional, massa muscular e sexo do indivíduo. Além disso, sua depuração pode superestimar o TFG. Isso ocorre, pois uma pequena parte da creatina excretada é secretada no túbulo contorcido proximal. Por conta disso, tanto faz usar sua depuração como sua concentração sérica para estimar a função renal, pois o restante que não foi filtrado do sangue, será secretado nessa porção do túbulo. Entenderam? Essa creatina ela é totalmente excretada na urina no rim saudável, porém, em um rim lesionado, ela tende a aumentar sua concentração sérica e diminuir na urina, a partir de uma TFG menor que 70%. Sendo essa transição procedural (transição rápida de alta concentração de creatina da urina para sangue sugere uma rabdomiólise). Entendido isso, podemos usar a fração entre a concentração de ureia plasmática e de creatina plasmática para avaliarmos se há algum indício de IRA, além de classificar sua etiologia. Faremos isso a partir do pressuposto que o valor de referência (VR) normal dessa fração é de 20:1, ou seja, para 2º ureias, tem-se 1 creatinina. Esse valor varia a depender da etiologia da IRA: ▪ Numa injúriapré-renal Por conta do hipoperfusão renal, menor fluxo de sangue passa pelas arteríolas renais, havendo maior filtração de ureia e creatina. Mas até aí, as proporções se mantêm. No entanto, cerca de 90% da ureia é reabsorvida, por conta da integridade funcional do rim. Assim, a relação ureia/creatina aumenta, alcançando um VR > 40:1; ▪ Numa injúria renal intrínseca Nesse caso, não há aumento da reabsorção de ureia por conta de uma disfunção das células tubulares proximais. Assim, a relação diminui, chegando a um VR < 15:1; Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA ▪ Numa injúria pós-renal Geralmente, o VR se encontra igual (20:1) ao normais, podendo haver um leve aumento por conta do aumento efetivo de reabsorção da ureia resultante da grande pressão inferida pela obstrução. EXAME DE URINA TIPO 1 Permite a análise química, física e de sedimentos da urina, além de não ser dispendiosa. Na análise química, avaliaremos pH, concentração de glicose, proteína e outras substâncias que não deviam aparecer na urina, como sangue e secreção purulenta. Já na física, vemos seu aspecto, cloração e densidade. Por fim, em relação a seus sedimentos, pesquisamos a presença de elementos celulares, como células epiteliais e leucócitos, além de cilindros (deposições moléculas ou íons, juntos com células mortas que formam um “tampão” no formato cilíndrico). ▪ Numa injúria pré-renal Nenhum aspecto químico diferente da urina normal; maior densidade (concentrada) por conta da menor concentração de solvente (água) nela; sedimentos ausentes ou em formato de cilindros hialinos; ▪ Numa injúria renal intrínseca Por conta de lesões no parênquima, pode haver hematúria, piúria, proteinúria e glicosúria; urina se encontra com menor densidade (diluída) por conta do menor poder de reabsorção do rim; podemos encontrar células epiteliais, leucócitos e cilindros; ▪ Numa injúria pós-renal Por conta da lesão por conta da obstrução, pode existir hematúria e piúria; a priori, normal, mas pode se tornar mais concentrada caso a obstrução torne a pressão dentro túbulo tamanha; ausentes (pode aparecer pedaços do coágulo ou do cálculo). FRAÇÃO DE EXCREÇÃO DO SÓDIO É um exame que ajuda a diferenciar as etiologias da IRA entre pré-renal e renal intrínseca: Na injúria pré-renal: Aqui, o rim absorve muita água e sódio, por conta do hipofluxo (dá “mais tempo” para as células tubulares os reabsorverem). Sendo assim, a excreção de sódio será < 1%; Na injúria renal intrínseca: Excreção > 2%; EXAMES DE IMAGEM Em geral, os exames de imagem auxiliam o diagnóstico de IRA com etiologia pós-renal. ▪ USG O USG das vias urinárias é um exame excelente para avaliarmos a existência de uma IRA pós-renal, principalmente em suspeita de obstrução. Por ele avaliar parênquima renal, sua ecogenicidade, tamanho, presença de hidronefrose, entre outras características, podemos identificar aumento da ecogenicidade dos rins, perda da diferenciação corticomedular e dilatação do sistema coletor. Obs.: Comparação entre a USG de um rim saudável (a esquerda) e de um rim com IRA (a direita). ▪ Outros exames Na suspeita de doenças vasculares, a realização de ultra- sonografia com Doppler pode trazer informações dos fluxos em veias e artérias renais. É importante ressaltar que os exames contrastados devem ser evitados na vigência de quadro de IRA. Até pouco tempo, preconizava-se, caso fosse fundamental um exame de imagem com contraste, a realização de ressonância magnética com gadolíneo. Entretanto, estudos mostram que em pacientes com clearance de creatinina < 30 mL/min, o gadolínio não deve ser utilizado, pois pode desencadear uma síndrome grave caracterizada por fibrose pulmonar, cardíaca, cutânea ou renal, denominada fibrose sistêmica nefrogênica que, geralmente, é fatal e ainda sem tratamento. BIÓPSIA RENAL A biópsia renal está indicada quando a causa da IRA permanece desconhecida, suspeita-se de doenças sistêmicas ou manifestações clínicas extra-renais, proteinúria maciça ou persistente, hipertensão arterial grave na ausência de hipervolemia, oligúria prolongada por mais de 4 semanas, anúria na ausência de uropatia obstrutiva, suspeita de necrose cortical ou de nefrite intersticial por agentes necessários ao tratamento do paciente. NOVOS BIOMARCADORES DA LESÃO RENAL AGUDA A despeito de significantes avanços na terapêutica, a mortalidade e a morbidade associadas com IRA permanecem elevadas. O conhecimento da fisiopatologia por meio de modelos animais permitiu a elaboração de estratégias terapêuticas que, entretanto, ainda não apresentam resultados satisfatórios em humanos. Um dos motivos que justificam esse fato é a ausência de marcadores precoces da lesão renal, o que leva a um atraso no início do tratamento. Na prática clínica, IRA é tipicamente diagnosticada por intermédio de medidas de creatinina. Infelizmente, a creatinina não representa um indicador adequado durante alterações agudas da função renal: sua concentração não muda até que mais de 50% da função renal esteja comprometida. Em modelos animais, tem-se mostrado que a AKI pode ser prevenida e/ou tratada se a terapêutica for instituída precocemente após a lesão, bem antes da elevação da creatinina. É importante ressaltar que Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA estudos realizados em humanos demonstram que a intervenção precoce aumenta as chances de recuperação da função renal. Os biomarcadores devem ser capazes de discernir os subtipos de IRA (pré-renal, renal e pós-renal), identificar as possíveis etiologias (isquemia, toxinas, sepse), predizer a gravidade da lesão (estratificação de risco e prognóstico para guiar terapia) e monitorar o curso da IRA e a resposta ao tratamento. ▪ Neutrophil Gelatinase-Associated Lipocalin (NGAL) Identificada como uma proteína de 25 kDa ligada a gelatinase de neutrófilos. É expressa em baixos níveis por vários tecidos humanos (rins, pulmões, estômago e cólon) e principalmente pelo epitélio lesado; por exemplo, as concentrações de NGAL estão elevadas no soro de pacientes com infecções bacterianas agudas e na secreção traqueal de pacientes com asma ou doença pulmonar obstrutiva. Recentemente, NGAL mostrou-se um marcador precoce após lesão renal isquêmica ou nefrotóxica em modelos animais de AKI. ▪ Cistatina C Proteína sintetizada e liberada para o sangue por todas as células nucleadas em ritmo constante, sendo livremente filtrada pelos glomérulos e completamente reabsorvida pelo túbulo proximal, sem ser secretada. Uma vez que os níveis séricos de cistatina C não são afetados pela idade, pelo sexo, pela raça ou pela massa muscular, mostra-se melhor marcador da filtração glomerular do que a creatinina. Em UTI, demonstrou-se que um aumento de 50% na cistatina C identificou pacientes com IRA, 1 a 2 dias antes da elevação da creatinina. ▪ Kidney Injury Molecule-1 (KIM-1) Proteína transmembrana com expressão aumentada em células tubulares proximais dediferenciadas após isquemia ou nefrotoxicidade em modelos animais de IRA. Representa um marcador promissor e mais específico para lesões isquêmicas e nefrotóxicas, sendo pouco influenciado por doença renal crônica ou infecções do trato urinário. ▪ Interleucina-18 (IL-18) Citocina pró-inflamatória que é induzida e clivada no túbulo proximal, sendo subseqüentemente detectada na urina após isquemia em modelos animais. Os níveis urinários de IL-18 apresentam sensibilidade e especificidade > 90% no diagnóstico de IRA estabelecida. Obs.: São necessários mais estudos para validar a sensibilidade e a especificidade desses novos marcadores, de modo a permitir a realização de um diagnóstico precoce de IRA, fato que seguramente repercute no prognóstico desta entidade. CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS Já compreendemos as manifestações do quadro de IRA, além dos exames para diagnósticar sua etiologia. Mas antes, precisamos efetivamentediagnosticar o nosso paciente. Para isso, foram criados critérios de diagnóstico, como: RIFLE (Risk, Injury, Failure, Loss of kidney function, End- Stage kidney disease) – o mais antigo; AKIN (Acute Kidney Injury Network) – uma versão mais reduzida da RIFLE que aborda temporaridade; KDIGO (Kidney Disease Improving Global Outcome) – o mais recente e mais usado, mesclando os dois outros; Como foi dito, o KDIGO é o mais usado no dia a dia médico e propõe que, para ser diagnosticado com injúria renal aguda, o paciente precisa apresentar UM dos seguintes TRÊS critérios: Aumento da creatinina sérica > 0,3 mg/dL dentro de 48 horas; Aumento da creatinina sérica > 1,5x o valor de base, conhecido ou presumido nos últimos 7 dias; Débito urinário < 0,5ml/kg/h por 6 horas. CRITÉRIOS ESTADIAMENTO Além disso, o KDIGO também possui critérios para o estadiamento da IRA, ajudando a determinar o quão grave é seu estado. Dessa forma, o KDIGO estabelece a existência de três estágios, em que o paciente precisa APENAS apresentar 1 dos critérios de estadiamento para ser diagnosticado nesse estágio. ESTÁGIO 1 Aumento da creatinina sérica 1,5 a 1,9 vezes o valor de base; Aumento da creatinina > 0,3mg/dl; Débito urinário < 0,5ml/kg/h por 6-12 horas; ESTÁGIO 2 Aumento da creatinina sérica em 2 a 2,9 vezes o valor de base; Débito urinário < 0,5ml/kg/h > 12 horas; ESTÁGIO 3 Aumento da creatinina 3 vezes o valor de base; Aumento da creatinina > 0,4mg/dl; Débito urinário < 0,3ml/kg/h > 24 horas; Anúria > 12 horas; Início de terapia de substituição renal; Redução da TFG < 35ml/min nos pacientes com menos de 18 anos. TRATAMENTO O que devemos fazer no tratamento de pacientes com IRA é cessar a causa da patologia de base e garantir suporte metabólico ao paciente, corrigindo as complicações sistêmicas resultantes dessa lesão renal. Portanto, pacientes com etiologias diferentes, necessitam de formas diferentes para reverter a IRA, indo sempre na patologia de base. Obs.: O tratamento da IRA depende do tipo fisiopatológico. As azotemias pré-renal e pós-renal são exemplos de IRA prontamente reversíveis com a terapia. Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA ABORDAGEM GERAL Independente da etiologia, todos os pacientes necessitam do MESMO suporte metabólico, corrigindo as alterações hidroeletrolíticas, a acidose metabólica e a uremia. Dessa forma, é aconselhável que o paciente receba, se necessário: MEDIDAS GERAIS Monitoramento constante da concentração sérica de eletrólitos, creatinina e ureia (em TODOS os casos); dieta com baixo teor de sódio e potássio até melhora da função renal; em caso de hiponatremia, restrição do uso de soluções hipotônicas e da ingesta de água; suspensão de fármacos como AINEs, BRAs e IECAs (interferem na perfusão renal); evitar fármacos nefrotóxicos, como aminoglicosídeos, e contrastes radiológicos; MEDIDAS FARMACÊUTICAS Embora os diuréticos não melhorem a função renal e o prognóstico do paciente, é recomendado seu uso no controle volêmico de ALGUNS paciente nas fases iniciais do tratamento. Sempre em dose controladas, evitando seu uso por tempo prolongado. TERAPIA DIALÍTICA Os métodos dialíticos são empregados para reduzir a circulação de compostos azotêmicos, promover equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico e combater a hipervolemia. As indicações de diálise de urgência estão resumidas abaixo: Os métodos dialíticos utilizados na IRA devem aliar duas características: eficácia; e tolerabilidade hemodinâmica. ▪ Hemodiálise Intermitente A Hemodiálise Intermitente é o método de escolha nos pacientes hemodinamicamente estáveis, pois, durante o método (3-4h), a retirada abrupta de líquido pode agravar a má perfusão de pacientes críticos hemodinamicamente instáveis. Nestes últimos devemos indicar: (a) diálise peritoneal contínua; e (b) hemodiafiltração venovenosa contínua. Se o paciente já estiver em hemodiálise e fizer hipotensão aguda podemos associar aminas vasopressoras até o término do procedimento (ex.: drip de noradrenalina). ▪ Diálise Peritoneal Contínua A Diálise Peritoneal Contínua é um excelente método naqueles sem doença abdominal ou peritoneal e que não possuem estado hipercatabólico predominante, hipercalemia grave ou hipervolemia grave (a hemodiálise é mais eficaz para corrigir tais distúrbios, por eliminar mais líquido, mais eletrólitos e pequenos solutos). A diálise peritoneal é bem tolerada em pacientes hemodinamicamente instáveis e é um método especialmente eficaz em crianças (que em geral têm um peritônio mais saudável). ▪ Hemodiafiltração Venovenosa Contínua A Hemodiafiltração Venovenosa Contínua é considerada um excelente método para diálise de pacientes com hemodinâmica instável. Os métodos hemodialíticos contínuos baseiam-se na utilização de um fluxo mais baixo (100 ml/min em vez de 300-400 ml/min) e por mais tempo (8-24h). Com isso, a retirada de líquido ocorre de forma mais lenta e gradual, tendo menos repercussão hemodinâmica. Maiores detalhes serão abordados no Capítulo 3 desta apostila. TERAPIA DE SUBSTITUIÇÃO RENAL (TSR) Caso essas medidas gerias sejam ineficientes, podemos lançar mão da terapia de substituição renal (TSR) que atuam na correção das anormalidades metabólicas decorrentes da disfunção renal, a regulação do equilíbrio e balanços influenciados pelos rins. Além disso, a TSR também interfere no manejo de líquido extracelular e na recuperação das funções orgânicas sistêmicas. Essa teria pode ser feita pelos seguintes métodos: diálise peritoneal, hemodiálise. Obs.: Caso não haja melhoram da função renal após o término TSR, podemos suspeitar de uma cronificação da lesão renal aguda. Dessa forma, realiza-se novamente os exames laboratoriais para o diagnóstico do paciente com doença renal crônica, que pode progredir ao ponto dele depender da TRS até ser eleito para uma cirurgia de transplante renal. ABORDAGEM ESPECÍFCA O tratamento da insuficiência renal baseia-se fundamentalmente na correção do fator desencadeante. Dessa forma, a terapêutica pode ser divida de acordo com cada tipo de azotemia. Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA AZOTEMIA PRÉ-RENAL O tratamento visa à otimização do fluxo sanguíneo renal. Drogas do tipo AINE ou inibidores da ECA/Ant. Angio II devem ser suspensas! A reposição de cristaloides é o tratamento inicial de escolha para os estados hipovolêmicos, qualquer que seja a causa ou o tipo de fluido perdido (vômito, diarreia, poliúria, suor, terceiro espaço ou sangue). A despeito de controvérsias persistentes, nunca foi demonstrada uma superioridade das soluções coloides no tratamento agudo da hipovolemia. Na realidade, o uso excessivo deste tipo de solução pode acarretar mais danos do que benefícios (ex.: discrasia sanguínea), além de elevar os custos do tratamento. AZOTEMIA PÓS-RENAL Uma obstrução uretral por hiperplasia prostática pode ser prontamente tratada pela inserção do cateter de Foley. Se não for possível ultrapassar a obstrução uretral com o cateter, devese proceder à cistostomia. Se a obstrução for ureteral e houver hidronefrose, um cateter duplo J pode ser inserido no ureter por via transuretral (baixa) ou transpiélica (alta). Se a obstrução ureteral não puder ser vencida, uma nefrostomia percutânea estará indicada. Na presença de cálculos obstrutivos, os mesmos devem ser removidos. AZOTEMIA RENAL INTRÍNSECA Depende da doença que causou o dano no parênquima e interstício renal. Por exemplo, em caso de infarto por conta de um trombo ou êmbolo, é preconizado medicamentos anticoagulantes junto de estatina; caso seja por intoxicação, é suspendido o agente patógeno; em caso de inflamações, recomenda-se uso de anti-inflamatórios não esteroidais ou glicocorticoides. Glomerulonefrites rapidamente progressivas (ex.: vasculites ANCA-positivo) respondem à imunossupressãoagressiva com corticosteroides + ciclofosfamida e, algumas, como a síndrome de Goodpasture, têm também indicação de plasmaférese. Os corticoides podem acelerar a melhora da função renal na nefrite intersticial aguda farmacoinduzida (“nefrite alérgica”), mas isso nunca foi comprovado por ensaios clínicos de alta qualidade. A hipertensão arterial deve ser controlada agressivamente na nefroesclerose maligna e na crise renal esclerodérmica, mesmo que no início do tratamento ocorra piora da função renal. Lembre-se que na crise renal esclerodérmica os anti-hipertensivos de escolha são os IECA ou Ant. Angio II. ▪ Tratamento da Necrose Tubular Aguda (NTA) – a causa mais comum de IRA por lesão intrínseca (90% dos casos) O principal objetivo a ser buscado é a otimização da volemia e do estado hemodinâmico do paciente. A lesão renal pode piorar caso a isquemia renal persista... Até o presente momento, não há nenhum tratamento específico que comprovadamente acelere a recuperação do parênquima renal uma vez instalada a NTA. Suporte Nutricional É de crucial importância na terapia da IRA grave. Pacientes com NTA geralmente se encontram em estado crítico, hipercatabólico, com elevada produção endógena de escórias nitrogenadas. Um suporte nutricional adequado visa reduzir o hipercatabolismo, devendo-se fornecer um aporte energético total entre 25-30 kcal/kg/dia. A maior parte dessas calorias é dada sob a forma de carboidratos, e deve-se dar preferência às proteínas de alto “valor biológico” (aquelas cujos aminoácidos são mais incorporados ao organismo do paciente, sem desvio para a síntese de escórias nitrogenadas). A quantidade de proteínas na dieta deve variar entre 0,8-1,0 g/kg/dia (paciente em tratamento conservador, não dialítico), podendo chegar a 1,0-1,7 g/kg/dia em pacientes mais graves que já estejam em hemodiálise (é preciso aumentar o aporte proteico pois há perda pela diálise). A dieta deve ter ainda restrição de sódio, potássio e fosfato. A fim de atingir as metas nutricionais preconizadas, alguns pacientes necessitam de nutrição parenteral (exclusiva ou associada à dieta enteral), o que demanda a infusão de um volume expressivo de líquidos. Neste caso, costuma-se equilibrar o balanço hídrico com o acréscimo da ultrafiltração (retirada de água) no procedimento dialítico. Controle Hidroeletrolítico e Acidobásico A reposição hídrica deve contar com o volume oferecido na dieta. No paciente oligoanúrico, o somatório dos líquidos administrados deve ser igual às perdas insensíveis (600-1000 ml/24h). Não deve haver reposição de potássio nos pacientes francamente oligúricos. Os distúrbios eletrolíticos ameaçadores à vida devem ser prontamente tratados. A hipercalemia grave com alteração eletrocardiográfica deve ser tratada com gluconato ou cloreto de cálcio (efeito cardioprotetor) e glicoinsulinoterapia (10 U de insulina + 100 ml de glicose a 50%). O efeito da glicoinsulina é transitório (4-6h). O bicarbonato de sódio pode ser administrado na dose de 50 mEq para ajudar na correção da hipercalemia e da acidose (se pH < 7,20, manter HCO3 > 15 mEq/L). Obs.: Muito cuidado ao infundir bicarbonato de sódio no paciente com hipocalcemia grave (pelo risco de tetania) e muito hipervolêmico (pelo risco de edema pulmonar). A hiperfosfatemia grave pode ser abordada com quelantes enterais de fosfato, como hidróxido de alumínio, carbonato de cálcio ou, de preferência, sevelamer. Para a correção da hiponatremia é necessária a restrição de água livre. Dopamina em dose “renal” - NÃO FAZER Apesar de doses de dopamina entre 2-3 mcg/ kg/min (doses “dopaminérgicas”) terem efeito vasodilatador renal e Maria Eduarda de Souza – DOR TORÁCICA natriurético, seu uso na NTA oligúrica já foi proscrito da prática médica... O motivo é a comprovada inexistência de benefício, pelo contrário: esta é uma droga potencialmente arritmogênica, mesmo em doses baixas, e seu uso na NTA, além de não alterar o curso natural da lesão renal, pode induzir arritmias fatais. Diuréticos de alça (Furosemida) – CONTROVERSO Nenhum estudo demonstrou de forma incontestável o benefício dos diuréticos na NTA oligúrica, no que diz respeito à mortalidade e história natural (duração da IRA, necessidade de diálise). Contudo, os diuréticos têm sido utilizados com frequência nestes pacientes com o intuito de tratar a hipervolemia e facilitar a manipulação do balanço hídrico, ao transformar uma IRA oligúrica em IRA não oligúrica, quando administrados nas primeiras 24-48h do início da NTA isquêmica. Obs.: O diurético de escolha é a furosemida. A dose de ataque máxima é de 100-200 mg (5-10 ampolas). A dose de manutenção deve ser prescrita somente naqueles que respondem ao diurético, de modo a evitar o uso desnecessário de uma droga potencialmente ototóxica. A dose é 0,3-0,6 mg/kg/h, feita, de preferência por infusão contínua em bomba infusora. A infusão contínua traz menos chance de lesão auditiva do que a posologia intermitente. PROGNÓSTICO O prognóstico de pacientes com IRA pré ou pós-renal é em geral bastante favorável, desde que a causa do problema seja prontamente reconhecida e resolvida (ex.: reposição volêmica e desobstrução do trato urinário, respectivamente). A mortalidade costuma ser < 10% nesses pacientes. Por outro lado, a mortalidade da NTA permanece elevada, oscilando entre 30-86%. Taxas mais altas estão associadas à maior gravidade da doença de base (sepse, pancreatite necrosante, politrauma, pós-operatório complicado). A mortalidade tende a ser máxima se a NTA ocorrer como componente da síndrome de disfunção orgânica múltipla. O comprometimento grave da função de quatro órgãos (sendo um deles o rim) tem uma mortalidade beirando os 100%... Contudo, quando a NTA ocorre de forma isolada, a mortalidade é bem menor: em torno de 30%. Os principais fatores de mau prognóstico na NTA são: Sepse Oligúria Refratariedade à furosemida Síndrome urêmica Disfunção orgânica múltipla Obs.: Se um paciente com NTA sobreviver à afecção de base, a recuperação da função renal será a regra, ocorrendo em 90-95% dos casos. Os 5-10% restantes evoluem com perda renal definitiva, tornando-se cronicamente dependentes de diálise... Na NTA, a recuperação da função renal começa, em média, após 7-21 dias, primeiramente com o aumento do débito urinário ou poliúria. Depois de instalada a poliúria, as escórias nitrogenadas ainda podem demorar alguns dias para começar a cair. O mecanismo de recuperação da função renal nesses casos é a regeneração do epitélio tubular. IRA X IRC A chance de se tornar “renal crônico” após um episódio de IRA tende a ser maior nos pacientes que já possuíam disfunção renal prévia – atualmente é descrito um ciclo vicioso entre injúria renal aguda e progressão acelerada da IRC.. O mecanismo é o seguinte: em certos pacientes de risco (idosos, diabéticos, IRC em estágios iniciais), a microcirculação do parênquima renal apresenta um endotélio mais “vulnerável”, o que facilita a instalação de um quadro de IRA em face de insultos renais diversos, como hipovolemia, AINEs, sepse, pós-operatório etc.AIRA, por sua vez, lesa ainda mais os microvasos já doentes, modificando de forma irreversível o chamado labirinto endotelial renal (que será quantitativamente reduzido). Assim, após se recuperar do episódio agudo, o rim sai com a microcirculação ainda mais doente do que antes!!! Uma nova exposição a fatores nefroagressivos poderá levar a IRA com mais facilidade, de forma mais precoce, mais intensa e com menos chance de recuperação. FONTES Clínica Médica – USP Medicina Interna - Harrison Tratado de Clínica Médica – Lopes Diretrizes da sociedade brasileira de nefrologia sobre IRA
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